Resumo: O objeto do presente trabalho está em utilizar da tipologia dos principais movimentos de política criminal desenvolvido por Mireille Delmas-Marty (DELMAS-MARTY, 2004) para identificar traços marcantes da mais recente política criminal brasileira. O processo de classificar consiste em dividir um objeto em partes segundo algum critério predeterminado. A existência de uma classificação, por si só, pode não passar de um exercício de revolvimento do objeto em suas várias facetas. Contudo, o processo de classificação pode auxiliar o pesquisador na análise dos desdobramentos que o exercício de compartilhamento pode trazer no estudo do objeto. Classificar os diversos movimentos de política criminal –– conquanto seja o trabalho carregado de problemas estruturais[1] advindos da própria dificuldade em definir com precisão os contornos do que seja uma política criminal[2] –– pode ajudar no projeto de identificação em um determinado ambiente institucional dos caminhos trilhados por uma determinada política criminal[3]. Esse trabalho de diagnosticar –– dando algumas das características marcantes –– os sintomas das políticas criminais levadas a efeito no Brasil recente constitui elemento fundamental para a prescrição de propostas de adequação e melhoramento. Sem conhecer um panorama do atual modelo de organização de respostas ao fenômeno criminal[4], o trabalho prospectivo perde densidade e passa a conviver com o risco de desconectar-se da realidade com a qual dialoga.
Palavras-Chave: Movimentos de política criminal – Inquérito policial no processo penal brasileiro – Capacidade postulatória da autoridade policial
Abstract: The aim of this article is to use the typology of the main movements in criminal policy, elaborated by Mireille Delmas-Marty, in order to identify the main traits of the most recent brazilian criminal policy. The classifcatory process consists in dividing an object into parts following some predetermined criterion. The existence of a classification, in and of itself, may not have emerged from the task of distinguishing the various facets of the object. The process of classification however, can help the researcher when analyzing results generated by using shared classifications in the study of the object. Classifying the main movements of criminal policy – even though this work is fraught with structural problems[5] due to the difficulties inherent in defining precisely the contours of a criminal policy[6] — can assist with the project of identifying the paths taken by a particular criminal policy within a particular institutional environment[7]. This work diagnosing — given certain key criteria – the symptoms of the criminal policies that have been implemented in Brazil recently, constitutes a fundamental element when recommending proposals of adequacy and proposals for improvement. Without knowledge of an overview of the current model of responding to the phenomenon of criminality[8], the work in view loses concreteness and runs the risk of becoming disconnected from the reality with which it is in dialogue.
Key Words: Movements in criminal policy – police investigation in the brazilian penal process – the postulatory capacity of the police authority.
Sumário: Introdução. 1. Tipologia dos principais movimentos de política criminal. 2. A experiência brasileira: o inquérito policial. 3. Anômala capacidade postulatória da autoridade policial: resquício autoritário no processo penal brasileiro. Conclusão.
Introdução
O presente trabalho destina-se a estudar a capacidade postulatória do delegado de polícia no ordenamento jurídico brasileiro sob a perspectiva da tipologia dos movimentos de política criminal desenhada por Delmas-Marty. A atribuição de capacidade postulatória aos delegados de polícia está presente em diversos diplomas legais. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 2º da Lei n. 7.960/89 (representação policial por prisão temporária), com o art. 3º, inciso I, da Lei n. 9.296/96 (representação policial para interceptação telefônica e telemática) e com o art. 4º da Lei n. 9.613/98 (representação policial para bloqueio de bens em lavagem de dinheiro). Não houve, até o presente momento, questionamento da constitucionalidade desses dispositivos legais perante o Supremo Tribunal Federal. Entretanto, mais recentemente, o Ministério Público, reivindicando a privatividade da função de titular da ação penal, tem manifestado, a esta parte de modo mais sistemático, repúdio à atribuição de competência postulatória aos delegados de polícia. Identificar o traço autoritário subjacente à opção legislativa de conferir capacidade postulatória aos delegados de polícia pode contribuir para a superação desse anacrônica delegação de função acusatória à autoridade administrativa.
1. Tipologia dos principais movimentos de política criminal
Para chegar à tipologia dos principais movimentos de política criminal, Delmas-Marty (2004, p. 66) parte de uma estrutura que convencionou denominar de invariantes, porque presentes em qualquer modelo de política criminal, assim resumidas: a) comportamentos de desvio das normas; e b) respostas do corpo social. O desvio pode ser normativo (infração) ou desvio da normalidade (desvio)[9]. A resposta do corpo social, por sua vez, pode advir do Estado ou do corpo social. Com esses quatro elementos – dois tipos de desvio e dois tipos de respostas ao desvio – a autora apresenta as quatro relações fundamentais dentro de qualquer política criminal: a) infração – resposta do Estado; b) infração – resposta da sociedade; c) desvio – resposta do Estado; e d) desvio – resposta da sociedade. Cada uma dessas relações fundamentais pode ser substituída por alternativas, mantendo-se a característica fundamental. Por exemplo, a relação fundamental infração – resposta do Estado pode se manifestar por diversas formas de relações derivadas, quais sejam: infração – penalidades administrativas; infração – sanções civis, etc. Da mesma forma, poder-se-ia dizer que a relação fundamental infração – resposta da sociedade se materializa, por exemplo, com as relações derivadas infração – resposta do meio profissional e infração – autodefesa.
Mantendo-se o primeiro elemento da relação fundamental (infração ou desvio), o segundo elemento (resposta do Estado ou da sociedade) pode se apresentar de diversas formas. Cada uma delas corresponde a uma relação derivada.
Por fim, Delmas-Marty (2004, p. 72) identifica as relações complementares[10], é dizer, a forma de interação da relação-mãe com o delinquente, a vítima e o grupo social de um lado – sociedade – e com os Poderes estatais, de outro.
Em torno desses elementos – relações fundamentais, derivadas e complementares – se organizam os sistemas de política criminal.
Para mais, além de identificar a estrutura dessas relações, a autora afirma que propor um princípio de classificação dos sistemas de política criminal é também determinar as correntes ideológicas que podem influenciá-los[11]. Para a corrente liberal, com base na qual o fundamento do direito penal passou a ser o Estado de Direito, a liberdade está na lei (princípio da legalidade). Liberdade e ordem não se contradizem, mas são complementares. Nessa linha, a pena serve à recomposição do universal –– Hegel ––, sendo desnecessária a sua severidade. A lesão exterior é ínfima, pois, na verdade, o que se combate é a lesão interna, da máxima da liberdade que está na existência do universal (norma). A corrente igualitária apresenta duas vertentes: o movimento libertário ou anarquista, para quem o mal está no princípio da autoridade, razão pela qual defende a rejeição do conceito de desvio e o desaparecimento de qualquer política criminal[12]; e a tendência autoritária na qual o controle do Estado sobre o conjunto de respostas ao fenômeno criminal está associado à rejeição do Estado de Direito. Por fim, há a corrente totalitária, que visa abertamente à dominação total. Exemplo da incorporação dessa corrente foi o Reich nazista, que somente poderia se considerar como Estado de Direito no sentido de que o Direito servia à formação e aparelhamento do Estado, mas não à submissão deste às normas jurídicas.
A divisão e definição das principais correntes ideológicas, a despeito de contribuir para a investigação dos modelos de política criminal, só aparentemente os explicam, mesmo quando uma das correntes é dominante. Nas sociedades pluralistas, “a política criminal é sempre resultante de muitos outros fatores, não somente políticos, mas econômicos e culturais. Resulta jamais fixa, equilíbrio sempre instável, imagens obstinadamente múltiplas.” (DELMAS-MARTY, 2004, p. 59).
Fixadas essas premissas, Delmas-Marty estabelece a tipologia dos principais movimentos de política criminal da seguinte maneira: a) a estratégia de adaptação consiste na modificação de relações derivadas (DELMAS-MARTY, 2004, p. 331); b) a estratégia de ruptura se dá com a modificação de relações fundamentais (DELMAS-MARTY, 2004, p. 362); e c) a estratégia de expansão ou de recuo consiste, respectivamente, no aparecimento ou desaparecimento de relações fundamentais (DELMAS-MARTY, 2004, p. 337). Com base nessa divisão dos movimentos de política criminal faremos uma análise do atual estágio de desenvolvimento da política criminal no Brasil, seus rumos e as suas ideologias subjacentes.
2. A experiência brasileira: o inquérito policial
O Brasil, assim como os demais países tidos como de ideologia liberal, é enquadrado, segundo a tipologia dos modelos de política criminal apresentada por Delmas-Marty (2004, p. 45-48), como um Estado-sociedade liberal[13], cuja marca registrada se exprime na resposta do Estado à infração, ornada pelo princípio da legalidade e fortemente influenciada pelo ideal de limitação da repressão estatal à infração. Nesse modelo, destacam-se, ainda, as seguintes características: a polícia, diferentemente dos modelos autoritário e totalitário, exerce um papel auxiliar do sistema penal; há pouca abertura do sistema à participação da sociedade civil[14]; o delinquente, no processo penal, deve estar presente, mas tem papel passivo; e a vítima tem papel totalmente secundário.
Dos três movimentos de política criminal destacados por Delmas-Marty (2004, p. 331) a estratégia de adaptação é a mais comum. A política criminal constitui-se em um processo dinâmico e constante de influências e pressões –– fortemente marcadas por ideologias ––, sendo que as modificações mais facilmente efetivadas são as que menos alteram o estado das coisas, ou seja, as que substituem determinadas relações derivadas por outras, mantendo intactas as relações fundamentais em jogo.
Não é diferente no Brasil. As estratégias de ruptura dizem respeito, nos modelos Estatais, ao aumento (resposta estatal ao desvio) – ou diminuição (aparecimento de redes de auto-regulação) da presença do Estado, o que demanda alterações mais profundas das instituições envolvidas e da ideologia social subjacente, mormente numa sociedade que tradicionalmente prioriza a resposta estatal em detrimento da participação da sociedade civil. Da mesma forma, diz-se das estratégias de recuo[15], eis que o desaparecimento de uma relação fundamental, numa sociedade imbuída de um espírito altamente punitivo, sempre enfrenta forte resistência dos defensores da ideologia “lei e ordem”.
No Brasil, a chamada fase preliminar –– que antecede à instauração da ação penal –– é marcadamente inquisitiva, consubstanciando-se o inquérito policial[16] como peça informativa na qual não tem aplicabilidade os princípios da ampla defesa e do contraditório. O aspecto inquisitivo do inquérito policial está a revelar a função primordial da sua existência: a apuração unilateral da notícia da ocorrência de um delito. Sobreleva nesse caso a atividade de busca de informações pela autoridade policial, ficando a proteção da pessoa investigada num plano evidentemente secundário.
No entanto, a não incidência dos princípios do contraditório e da ampla defesa não quer traduzir, como estão a sugestionar diversos precedentes jurisprudenciais, o afastamento do controle estatal sobre a legalidade dos atos investigatórios. Se, por um lado, não existe propriamente uma pretensão punitiva deduzida, o que afasta a possibilidade do contraditório, de outro, impende salientar que o aspecto inquisitivo do inquérito deve compatibilizar-se com a necessidade de salvaguarda do indivíduo e das suas garantias constitucionais –– exigência de fundamentação judicial concreta para a decretação de medidas constritivas à liberdade e à propriedade, direito de vista dos autos, direito à defesa técnica e etc.[17].
O regime jurídico do inquérito policial, notadamente ornado por caracteres próprios do autoritarismo – reforço às instâncias executivas[18] –, passa por uma revisão em seus fundamentos. A marca de autoritarismo tende a ser substituída por uma tendência de preeminência do direito –– judicialização das práticas[19] ––, processo para o qual tem contribuído a jurisprudência. A título de exemplo, podemos citar o mais recente entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito do direito de vista dos autos do inquérito policial sigiloso pelo investigado[20] e também a recente posição do Superior Tribunal de Justiça sobre a possibilidade de o órgão do Ministério Público dirigir de forma autônoma o expediente investigatório[21].
O movimento de adaptação –– modifica-se a rede de relações complementares em jogo –– no que tange especificamente ao inquérito policial parece ser a de um paulatino abandono do autoritarismo em direção à preeminência do direito. O investigado tende a contar com uma participação cada vez mais ativa no percurso trilhado pela autoridade policial[22], pois passa a ter acesso aos expedientes de investigação e, pois, possibilidade de pleitear a realização das suas garantias fundamentais em juízo. O Ministério Público, de sua vez, atendendo aos reclamos constitucionais de concretização da sua competência de defesa dos interesses individuais indisponíveis e também da ordem jurídica, passa a desenvolver a sua atribuição de autor da ação penal para acompanhar e desenvolver atividades investigatórias, potencializando o controle externo sobre a atividade policial[23].
A constatação de que existem traços da fase pré-processual dentro da rede penal que se orientam no sentido da preeminência do direito –– judicialização das práticas com arrefecimento da autonomia policial –– não autoriza, por outro ângulo, a conclusão de que o inquérito policial corresponde amplamente às expectativas de uma investigação dentro de um ambiente constitucional democrático. Há, é certo, vários déficits a serem contornados, como, por exemplo, a viabilização do acesso efetivo ao Judiciário, a maior participação da vítima nos procedimentos estatais e por que não a mudança da ideologia da perseguição que insiste em envolver as práticas investigatórias.
Tais ressalvas não infirmam, no entanto, a correção da identificação de um movimento –– denso, mas inconstante –– de adaptação dos expedientes investigatórios em direção à preeminência do direito. Ao contrário, demonstram que uma política criminal não pode ser enraizada com base unicamente em precedentes jurisprudenciais e inovações legislativas, mas dependem de uma série de outros fatores de pressão e influência social.
De mais a mais, o efetivo controle judicial dos atos administrativos –– entre os quais situam os investigatórios –– é condição de existência de um Estado Democrático de Direito, motivo por que a judicialização da instância pré-processual indica, ainda que forma parcial, o recuo do modelo autoritário em favor de um modelo mais democrático.
O debate instaurado no Supremo Tribunal Federal, mas ainda não encerrado[24], a respeito dos poderes investigatórios do Ministério Público, constitui elemento fundamental para a definição dos contornos do processo penal brasileiro. A complexa relação institucional entre o Ministério Público e a polícia revela muito mais que uma questão corporativa. Está em discussão a estrutura do processo penal brasileiro na medida em que o foco central de toda a celeuma deve ser a posição do investigado em relação ao Estado. O modelo de acusação diz muito, já se disse, quanto ao estágio democrático da política criminal adotada. A preocupação maior há de ser a concretização de um processo criminal justo[25].
3. Anômala capacidade postulatória da autoridade policial: resquício autoritário no processo penal brasileiro
Já se disse que marca o modelo de política criminal Estado-sociedade liberal –– em linhas gerais adotado no Brasil –– o fato de que a polícia, diferentemente dos modelos autoritário e totalitário, exerce um papel auxiliar do sistema penal. Essa acessoriedade da atividade policial, bem assimilada em países como Alemanha e Itália, ainda não foi incorporada ao espírito do legislador brasileiro. Aliás, parece não ter sido captada pelas instituições estatais envolvidas na processualização do fato considerado criminoso.
Cabe atentar para a advertência de que a acessoriedade da atividade policial não supõe, em nenhum sentido, a diminuição da importância da relevante atividade policial.
A acessoriedade –– ou como afirma Delmas-Marty, na tradução que nos é oferecida, a auxiliariedade –– da atividade policial diz tão somente com a relação necessária que se deve estabelecer entre a atividade investigatória e a atividade acusatória. Num ambiente democrático, a política criminal aponta para a relação dessas funções estatais em ordem a que a atividade investigatória seja sempre acessória em relação à atividade principal ou acusatória. O desfazimento dessa ordem de precedência –– ou a sua inversão ––, precisamente por reforçar a instância executiva de apuração do delito, implica orientar o modelo de política criminal em direção ao autoritarismo.
Nossa memória histórica, muito embora sempre acusada de certa fragilidade, permite lembrar o modelo de apuração criminal amparado no reforço às instâncias executivas –– em detrimento à judicialização das práticas de apuração criminal –– vivenciado no período que antecedeu a Carta de 1988.
Permanece entre nós, entretanto, a presença de resquício de reforço às instâncias executivas –– na contramão, portanto, da judicialização das práticas investigatórias –– consubstanciado na manutenção da possibilidade de a autoridade policial requerer diretamente ao juiz medidas cautelares no processo penal. Atribui-se, assim, anômala –– porque fora do figurino constitucional de um processo penal de perfil acusatório –– capacidade postulatória à autoridade policial. Que implica essa autorização legal? A autoridade policial passa a desenvolver atividade principal de acusação, à margem do titular único e exclusivo da ação penal. Ao requerer diretamente o deferimento de medida que interfira na esfera de liberdades individuais está a autoridade policial a abandonar a sua missão de auxiliar do órgão constitucionalmente competente para promover a tutela penal e passa a desenvolver, em indevida substituição do Ministério Público, atividade principal de acusação criminal.
Insista-se que a relação estabelecida, no campo da política criminal, entre o órgão estatal incumbido da acusação e a polícia configura um dos mais seguros termômetros do grau de democratização do processo penal.
Um sistema sedizente acusatório e democrático busca, na esteira da rica experiência acumulada no direito comparado, a clara definição do caráter acessório da atividade policial, guardando sempre para que a acusação estatal seja realiza por órgão independente (não militar e não policial) diverso do juiz. Daí ter a Constituição de 1988 traçado novo perfil constitucional da política criminal, por meio da expressiva modificação do modelo estatal de apuração e punição de delitos. Atribuiu-se ao Ministério Público, agora função essencial à Justiça revestida das mesmas garantias da magistratura –– ademais, a função ministerial é tipicamente de magistratura ––, a titularidade exclusiva da ação penal pública; ao tempo em que se atribuiu à polícia a competência para promover atos de investigação criminal.
Questiona-se: a Constituição estabeleceu alguma relação necessária entre a atividade acusatória e a atividade investigatória? A resposta é desenganadamente positiva[26]. E é positiva a resposta porque a Constituição traçou –– e quanto a isso já não mais pairam dúvidas revestidas de alguma seriedade –– um modelo de processo penal tipicamente acusatório, no qual tanto o órgão incumbido de acusar como aquele incumbido de julgar são dotados de independência. Quando qualquer dessas funções estatais é desenvolvida por agente estatal dependente surge o risco de tornar o indivíduo objeto da atuação estatal, o que tem sido veementemente repelido em sistemas judiciais democráticos. A transformação do processo penal em instituto de penalização é reveladora de visão totalitária –– no mínimo extremamente autoritária –– muito comum nos países de socialismo real, incompatível, de resto, com a Carta da República. A colocação do indivíduo na mira do poder punitivo estatal –– pelas sérias consequências daí advindas –– somente se pode fazer, entre nós, pela iniciativa de órgão estatal tipicamente de magistratura. É o que se dá no sistema processual da Itália[27]. Aqui, muito embora com nome próprio, o Ministério Público constitui função estatal autônoma e independente, protegida por todas as garantias típicas da magistratura[28]. Não a toa muitos doutrinadores se animam, com razão, a enquadrar a atividade ministerial pública como atividade típica de magistratura.
Não se pode aceitar, numa tal conjuntura, a realização de atividade tipicamente acusatória pela autoridade policial. Do contrário, caminharíamos para um modelo de política criminal marcadamente autoritário. A atividade policial deve respeitar o cânone da acessoriedade. A autonomia da polícia, por isso mesmo, contrasta com o modelo acusatório.
Nessa trilha, ademais, o Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União – CNPG, segundo conclusão exposta no item 4.5 do Manual Nacional do Controle Externo da Atividade Policial (FREIRE, 2009, p. 68), adverte para o fato de que a titularidade privativa do Órgão Ministerial para propor a ação penal pública também se estende aos procedimentos de natureza cautelar requeridos em sede de investigação criminal, eliminando, por completo, a capacidade postulatória da autoridade policial.
A proposta apresentada pela Cúpula do Ministério Público Brasileiro vem em boa hora. Há que se atentar para a observância dos fundamentos do sistema de política criminal traçados pela Carta Constitucional. E por isso calha repetir: o reforço às instâncias executivas na persecução criminal, com a consequente atribuição de função autônoma à autoridade policial (órgão tipicamente dependente), remete a um modelo autoritário de política criminal.
A conclusão do louvável trabalho desenvolvido pelos Ministérios Públicos dos Estados e da União chama a atenção para a relação entre as medidas cautelares e a ação penal. Aquelas, como intuitivo, servem à garantia da efetividade da ação penal. A medida cautelar penal é, por tudo, acessória em relação à ação penal. Se a Constituição reservou a capacidade postulatória para o ajuizamento de ação penal ao Ministério Público poderia outro órgão estatal ostentar capacidade postulatória para deduzir medida cautelar que vise à efetividade daquela mesma ação penal? Ora, haveria aqui verdadeira subversão de papéis. Quem não pode deduzir o principal, nesse caso, não pode deduzir o acessório.
Atente-se para as conclusões lançadas no Manual Nacional do Controle Externo da Atividade Policial (CONSELHO NACIONAL DE PROCURADORES-GERAIS DE JUSTIÇA, 2010):
“A titularidade privativa do Ministério Público para a promoção da ação penal pública, diz respeito também a todos os demais procedimentos e processos de natureza cautelar.
Para além da tão (re)conhecida compreensão de que o titular das ações acessórias seja, necessariamente, o titular da ação principal, firme-se que devido ao caráter nitidamente instrumental das primeiras em relação à última, devem ser elas conduzidas pelo titular segundo a estratégia processual considerada eficiente para viabilizar a ação principal.
O manejo de qualquer ação judicial, notadamente das cautelares, somente cabe a quem esteja na legítima condição de parte para o possível e futuro processo principal. É nessa perspectiva que se mostra necessária toda uma revisão acerca do manejo das ações cautelares atualmente cabíveis no âmbito estreito da persecução penal. Nesse particular, afigura-se que ainda oportuna, não obstante o tempo de vigência da atual Constituição Federal brasileira, adequar, senão mesmo corrigir, o devido processo legal no âmbito da restrição cautelar de direitos fundamentais na persecução penal.
Há muito vem sendo reproduzido, na praxe forense, no tocante às ações cautelares do processo penal, uma prática inadequada ao devido processo legal constitucionalmente estabelecido. Vale dizer, faz-se como na vigência da ordem constitucional pretérita, quando se admitia o compartilhamento da titularidade da ação penal pública entre Ministério Público, delegados de polícia e até autoridade judiciária. Nessa direção, efeito da titularidade privativa da ação penal pública, que nenhuma outra autoridade/órgão/pessoa encontra-se legitimada, senão órgão do Ministério Público, a postular/pretender/veicular medida judicial para fins de prevenir/viabilizar/adequar/salvaguardar/ instrumentalizar futura ação penal pública.
Justificava-se, no regime constitucional anterior, a representação direta entre delegado de polícia e Poder Judiciário, em vista daquele deter parcela da titularidade na persecução penal. Agora, não mais! Sequer o Poder Judiciário pode adotar medida cautelar de ofício na persecução penal ante a exigência de
imparcialidade e ao novo papel conferido ao Ministério Público como titular exclusivo da ação penal pública e do encargo de exercer o controle externo da atividade policial. Sopesando essas novas funções aos agentes envolvidos na persecução penal está o princípio acusatório, conforme sedimentado por atualizada literatura jurídico-processual.
Na atual ordem jurídica constitucional, a capacidade postulatória para os atos judiciais pertinentes à ação penal pública deverá estar conjugada e condizente com o controle externo da atividade policial. Nesse sentido, as representações noticiando possível necessidade de medida cautelar para fim de viabilizar a apuração de infração penal, ou mesmo para assegurar a eficácia de futuro processo penal, estão incluídas no contexto maior do controle externo da atividade policial. Cabe à Instituição conhecer e avaliar se os motivos fáticos noticiados pela autoridade investigante – pois deve restringir-se a eles – na representação, acompanham a linha estratégica a ser adotada em futuro processo e, ainda, se a medida sugerida pela polícia é, ou não, necessária e adequada aos fins da apuração da infração.
Essa perspectiva viabiliza, a um só tempo, o resguardo do devido processo legal na restrição cautelar de direito fundamental, tendo o Ministério Público como titular privativo da capacidade postulatória para adoção de medida judicial preventiva, além de possibilitar, sobretudo, um efetivo controle da atividade policial no respeito aos direitos fundamentais.”
Somam-se aos ponderosos fundamentos acima transcritos preocupação com a higidez do modelo acusatório. Ao se transferir capacidade postulatória aos delegados de polícia se está a transferir parcela da própria função estatal acusatória. Essa transferência de poder do Ministério Público para a autoridade policial não pode ficar submetida à regra geral da delegação de poderes, tal como propugnada no âmbito do direito administrativo. O exercício da competência estatal de promover a acusação penal pública é exclusiva –– e não apenas privativa –– do Ministério Público. Lembre-se que em um sistema tipicamente liberal-democrático incumbe-se da acusação órgão estatal dotado de independência. E tudo isso por um motivo: para proteger o indivíduo da intentada acusatória de um Estado Policial.
À medida que se autoriza a transferência de capacidade postulatória no âmbito criminal à autoridade policial se reforça modelo que confere autonomia a essa atividade policial, ferindo de morte a máxima de que a força policial, numa democracia, é acessória em relação ao órgão independente de acusação.
Recentes manifestações de um Estado Policial no âmbito do processo penal brasileiro estão, quase sempre, de algum modo vinculadas ao exercício da anômala capacidade postulatória por parte da autoridade policial. Como bem alertou em recente obra o Ministro Gilmar Mendes, a autoridade policial requer a prisão de investigados e os alguns juízes se curvam de modo acrítico a esses pedidos de cerceamento da liberdade de indivíduos diante do poder avassalador acumulado pelas forças policiais. Adverte o Ministro Gilmar Mendes (MENDES, p. 31) que contrariar os pleitos deduzidos pela autoridade policial “poderia significar riscos sérios às próprias funções, exercidas, muitas vezes, sob coação”. Ora, investigados têm sua liberdade cerceada no âmbito do processo penal e onde estaria o Ministério Público (titular exclusivo da ação penal)? Ao Ministério Público tem sido reservado não um papel de protagonista –– como quer a Constituição –– mas de mero coadjuvante no exercício do poder acusatório estatal. Novamente aqui surge revigorado o modelo de política criminal tipicamente autoritário. As instâncias executivas ganham posição de destaque em detrimento da magistratura acusatória, a revelar o exercício de parcela da competência acusatória por meio de autoridade policial.
Tomando de empréstimo a diuturna advertência lançada na bancada do Supremo Tribunal Federal pelo Ministro Marco Aurélio, convém recordar a organicidade do direito[29]. Seria razoável –– para não dizer lógico –– pensar que uma autoridade policial pode requerer diretamente ao Poder Judiciário a prisão de um indivíduo a pretexto da necessidade da medida para a garantia da efetividade do processo penal se o titular da ação penal entende, por exemplo, que o fato investigado é atípico? Faz sentido imaginar que a autoridade policial, atividade auxiliar do Estado-acusador, pode requerer diretamente ao juiz a prisão preventiva de um indivíduo se o próprio titular da ação penal entende que a efetividade do processo penal está resguardada sem a adoção dessa medida extrema de cerceamento da liberdade?[30] Quando se diz que o direito é orgânico supõe-se certa coerência do legislador, a fim de que o sistema judicial funcione de modo lógico ou minimamente racional. A atribuição de capacidade postulatória ao delegado de polícia subverte o modelo acusatório traçado pela Constituição e implica odiosa delegação de parcela da competência acusatória estatal.
O Ministério Público tem ressaltado, em sucessivos pronunciamentos, a posição de resto assentada no âmbito do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça, a inconstitucionalidade da capacidade postulatória desavisadamente atribuída pelo legislador ordinário. Confira-se o teor do parecer ofertado pela Procuradoria Regional da República da 5a Região a respeito do tema:
“Como é sabido, exclusivamente o Ministério Público, pode ser o dominus litis da ação penal pública, e nessa condição é possuidor da legitimatio ad causam ativa ordinária.
A relação processual penal na ação penal pública, se estabelece entre o Estado (titular do jus puniendi) e o infrator (titular do jus libertatis), sendo que o Estado atua através de um dos seus órgãos, a saber: o MINISTÉRIO PÚBLICO, exclusivamente. Como já dito, é o Ministério Público o titular da ação penal pública, e somente ele tem legitimidade para ir a juízo requerer qualquer ação cautelar para viabilizar a ação principal.
Como é também sabido, a Autoridade Policial não possui legitimidade para requerer em juízo, seja porque não é parte, seja porque não é substituto processual do titular da ação penal. Assim, somente o titular da ação penal pode propor qualquer ação cautelar para viabilizar a ação principal, que se inicia com a denúncia ou a queixa. Portanto, somente o Ministério Público têm interesse de agir e legitimidade para requerer cautelares penais, a exemplo da decretação da prisão temporária.
Como dito, a Autoridade Policial não tem legitimidade de parte na Ação Penal e muito menos capacidade postulatória para estar em Juízo. Ora, se ocorrer o caso do Juiz indeferir o pedido de prisão temporária formulado em Ação Cautelar, promovida pela Autoridade Policial, será que esse poderia fazer uso dos recursos cabíveis? Claro que não, pois ela não tem legitimidade para tanto. Só quem pode recorrer dessa decisão, é o Ministério Público, pois possui legitimidade e capacidade postulatória na hipótese.
Como dito no início, a Autoridade Policial pode representar pela prisão temporária, e não requerer nesse sentido (art. 2º da Lei 7.960/89). Como dita autoridade não possui o jus postulandi, não pode estar em Juízo, em nome próprio, movendo ações criminais ou correlatas, quaisquer que sejam. Assim, de início, a presente Ação Cautelar proposta pela Autoridade Policial, sequer deveria ser conhecida por esse Juízo.
Todavia, ante a relevância noticiada na peça esdrúxula, entendo que a mesma deve ser recebida como se representação fosse[31].”
No mesmo sentido, vale recordar importante manifestação da Procuradoria da República em Ilhéus veiculada por meio de habeas corpus dirigido ao Tribunal Regional Federal da 1a Região, da qual se extrai a seguinte passagem:
“Não é função da polícia judiciária a atuação em juízo. Do art. 144, § 1º, incisos I e IV, da CF não se retira tal múnus. As polícias não têm capacidade postulatória, nem como órgãos (isso, se possível, seria feito por intermédio da AGU ou das Procuradorias Estaduais), nem como delegados do Poder Executivo. E é fácil entender um dos porquês. Lembremos que o Ministério Público, como instituição extrapoder, não integra o Legislativo, o Judiciário ou o Executivo. A seus membros são asseguradas a inamovibilidade e a independência funcional, que, em última análise, são garantias do cidadão. Não haverá promotores ou procuradores escolhidos casuisticamente para acusar. Jamais será possível remover membros do Ministério Público em função de interesses subalternos, que possam ter repercussões em processos penais. Delegados de polícia, embora integrem corporações cada vez mais respeitadas, não dispõem de tais prerrogativas funcionais e, em razão disso, em situações excepcionais, representações policiais podem derivar de manipulação política ou de outro tipo de interferência indevida na persecução criminal, redundando em prisões ou medidas que restringem gravemente liberdades individuais. Por isso, é importante que, nas medidas criminais, ao imprescindível crivo do Poder Judiciário, se anteponha o exame do Ministério Público, estabelecendo-se, assim, mais um nível de proteção às garantias fundamentais do cidadão, à luz do art. 129, inciso II, da Constituição[32].”
Tais pronunciamentos mostram-se consentâneos com a orientação firmada pela Câmara de Coordenação e Revisão Criminal do Ministério Público Federal no sentido de que a autoridade policial não detém capacidade postulatória[33].
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, entretanto, tem-se reconhecido, pelo menos implicitamente, a legitimidade da legislação ordinária que atribui ao delegado de polícia a competência para representar diretamente ao juiz pela prisão do investigado[34].
Há quem brade, no seio da doutrina, pela diferença entre o poder de representação — deferido à autoridade policial — e a capacidade postulatória[35]. A diferença, de todo artificial, contraria doutrina secular a respeito da abrangência da categoria processual da capacidade postulatória, que inclui não apenas o poder de deduzir pretensão processual em sentido estrito mas de dirigir-se ao juiz para pleitear providências essenciais ao desenvolvimento do processo.
Assim, esse direito de postular em juízo, o ius postulandi, é ato de desempenho do advogado. No ius postulandi, diz Moacyr Amaral Santos (1993, p. 404), compreende-se o poder de praticar, em nome e no interesse da parte, todos os atos processuais necessários ou úteis ao início e ao desenvolvimento da relação processual, dirigindo-se o profissional ao juiz, diretamente, expondo-lhe os pedidos e as deduções da parte representada. A lição de João Bonumá (1946, p. 472) é esclarecedora e deve ser repetida: “consiste o ius postulandi na faculdade, concedida a determinadas pessoas, de ingressar em juízo e, aí, em nome próprio ou alheio, requerer, alegar, produzir documentos e outras provas, contestar, impugnar despachos ou sentenças; enfim, colaborar com os órgãos jurisdicionais na condução e desenvolvimento do processo”.
A exclusividade da capacidade postulatória decorre natural e logicamente da também exclusiva competência para promoção da ação penal pública. Nas palavras do Procurador da República Eduardo Ribeiro Gomes El Hage (2010, p. 6), “representações policiais, de qualquer espécie, devem ser dirigidas ao Ministério Público para que este, no exercício do controle externo (concreto) da atividade policial persecutória, verifique, antes, a necessidade de propor a medida ao Judiciário e também examine a sua conveniência e utilidade para a futura ação penal, que é de sua exclusiva iniciativa como dominus litis”[36].
Conclusão
Em conclusão, e na linha do que advertiu no Supremo Tribunal Federal o Ministro Joaquim Barbosa, não se pode coadunar com a primazia policialesca no processo criminal, contexto em que o Ministério Público com postura meramente contemplativa faz do processo penal, no Brasil, uma fachada[37].
Cabe a cada agente estatal assumir a parcela de dever-poder atribuída pela Constituição. Cabe ao Ministério Público acusar, com o auxílio da polícia; e ao juiz julgar. É simples. Causa estranheza discutir, ainda hoje, aquilo que, duas décadas após a promulgação da Constituição, deveria estar suplantado. A polícia não acusa — porque não detém nenhuma parcela do dever-poder de acusar atribuído com exclusividade a um órgão típico de magistratura (Ministério Público) — e por isso não deduz nenhum tipo de pretensão, no processo penal, ao juiz. Qual o motivo da manutenção dessa duplicidade de órgãos estatais autorizados a deduzir medidas cautelares perante o Poder Judiciário? Seria o Ministério Público, competente para promover a ação penal, incompetente para deduzir eventuais medidas cautelares? Teria o Ministério Público alguma deficiência estrutural que o impedisse de deduzir eventuais medidas cautelares em proteção à futura pretensão principal a ser por ele deduzida? Chega de contar com o arremedo! São inconstitucionais todos os dispositivos infraconstitucionais que atribuem, em qualquer medida, capacidade postulatória ao delegado de polícia[38].
Procurador do Município de Belo Horizonte com atuação perante o Supremo Tribunal Federal. Advogado. Membro do Grupo Candango de Criminologia. Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense
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