Maria Angélica de Oliveira Santos Alves [1]
Resumo: Esse trabalho é resultado de um estudo que se pretende mostrar, a título de colaboração, a forma como os precedentes judiciais se prestam a colaborar com um processo mais efetivo a partir do Código de Processo Civil de 2015, havendo, para muitos uma verdadeira mudança de paradigma em relação a sua aplicação. Compreendendo os precedentes judiciais e a forma como ele é tratado pelo atual diploma processual é possível combater leituras equivocadas que vêm sendo realizadas em relação ao instituto.
Palavras-chave: Direito Processual Civil. Civil Law. Common Law. Precedentes Judiciais.
Abstract: This work is the result of a study that aims to show, through collaboration, the way in which judicial precedents lend themselves to collaborating with a more effective process, based on the Civil Procedure Code of 2015, with changes of paradigm in relation to his application for some people. Understanding the judicial precedents and the way it is treated by the current procedural law, it is possible to combat misinterpretations that have been made in relation to the institute.
Keywords: Civil procedural law. Civil Law. Common Law. Judicial precedents.
Sumário: Introdução; 1. Conceito de Precedentes Judiciais; 2. Natureza Jurídica do Precedentes Judiciais; 3. Dos Elementos dos Precedentes Judiciais; 3.1. Ratio Decidendi; 3.2. Obiter Dictum; 4. Do Precedente Judicial Como Fonte do Direito; 5. Diferenciações Conceituais Relevantes; 6. Precedentes Judiciais no Código de Processo Civil de 2015; 6.1. Foi Criado Um Sistema de Precedentes Brasileiro?; 6.2. Eficácias dos Precedentes Judiciais no Código de Processo Civil; Considerações Finais; Referência.
INTRODUÇÃO
Os precedentes judiciais configuram-se como decisões judiciais tomadas de acordo com um caso concreto, o qual é utilizado como elemento de normatização que tende a ser utilizado como diretriz para solucionar conflitos posteriores análogos. Portanto, são legitimados por sua autoridade e carregam forte carga interpretativa.
O Brasil, em decorrência de sua colonização portuguesa, acaba por adotar o sistema jurídico romano-germânico, conhecido como Civil Law, sistema este que privilegia a norma positivada em detrimento dos precedentes judiciais. Porém, há uma tendência de utilização dos precedentes principalmente após o Código de Processo Civil de 2015.
Para analisar tal mudança em um primeiro momento fora abordada noções iniciais a respeito dos precedentes judiciais, como o seu conceito, natureza jurídica e elementos. Em seguida, abordou-se sua atuação como fonte do direito, as diferenças em relação a outros institutos semelhantes e, finalmente, o tratamento dado pelo Código de Processo Civil 2015.
Para tanto, realizou-se mediante análise crítico-dialética e revisão bibliográfica da doutrina especializada, atentando para a necessidade de se concretizar um estudo exploratório e descritivo.
Para adequada compreensão do presente estudo é necessário que se estabeleça com precisão o conceito de precedente. Ao conceituar o precedente Fredie Didier Junior ensina que, num sentido amplo, são: “a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos” (2018, p. 505).
Na visão de Lenio Luiz Streck, de forma semelhante ao que fora apontado acima:
O precedente é uma decisão de um Tribunal com aptidão a ser reproduzida-seguida pelos tribunais inferiores, entretanto, sua condição de precedente dependerá de ele ser efetivamente seguido na resolução de casos análogos-similares. Ou seja, não há uma distinção estrutural entre uma decisão isolada e as demais que lhe devem “obediência hermenêutica”. Há, sim, uma diferença qualitativa, que sempre exsurgirá a partir da applicattio (STRECK, 2013, p. 42)
O elemento normativo apontado pelo autor se relaciona com as “razões generalizáveis que podem ser identificadas a partir das decisões judiciais” (MITIDIERO, 2016, p. 96). Assim, o tratamento dado aos precedentes judiciais deve ser de instrumento propício para chegar-se a uma solução jurídica demonstrável através de uma unidade fático-jurídica do caso-precedente com o caso objeto da análise presente (ZANETI, 2016, p. 305).
Outrossim, os precedentes judiciais decorrem da “densificação de normas estabelecidas a partir da compreensão e um caso e suas circunstâncias fáticas e jurídicas”, posto que, da aplicação do caso-precedente, ao analisar o caso atual, extrair-se-á a ratio decidendi.
Para tanto, os precedentes são escritos munidos de autoridade, mas que dependem de interpretação (BUSTAMENTE, 2016, p. 259). Dessa forma, um precedente não surge no mundo jurídico com o objetivo de sê-lo, porém acaba por se tornar um, “assim é o tribunal subsequente que, interpretando, dispõe a deliberação da ratio decidenti do (que virá a ser o) precedente” (STRECK, 2018, p. 116).
Quanto a decisão que dá ensejo a um precedente ela deve ser categórica ao aceitar ou não argumentos, assim como se mostrar adequada para a orientação dos demais juízes e cidadãos. De forma a se caracterizar como razões generalizáveis identificáveis a partir das decisões judiciais, funcionando como incidentes da justificação da decisão (MITIDIERO, 2016, p. 613).
Assim, o precedente funcionará para dinamizar o sistema jurídico, visto que sua a interpretação deve levar em consideração a completude do ordenamento jurídico e os aspectos que o embasaram, assim, “sempre que ele for a base de uma nova decisão, seu conteúdo é passível de um ajuste jurisprudencial” (STRECK, 2013, p. 96).
Duas teorias se prestam a explicar qual a natureza jurídica dos precedentes. A primeira delas, denominada de declarativa, afirma que a norma é preexistente à decisão judicial, de modo que a decisão judicial que o declarou apenas o confirmou. Assim, partindo dessa perspectiva o direito independe da decisão judicial, que cumpre apenas a função de exteriorizar a norma jurídica (SOUZA, 2013, p. 41).
Como um dos principais defensores dessa teoria temos Willian Blackstone. Para ele havia um direito não escrito e um direito escrito. A edição dos precedentes, na visão do autor, justificava-se em nome de uma manutenção da escala de justiça, limitando-a para que não seja renunciada a cada nova opinião judicial, uma vez que os juízes devem julgar de acordo com a lei e os costumes da terra e não de acordo com suas convicções pessoais (ALMEIDA, 2012, p. 349).
Diante de outra perspectiva, uma segunda teoria, denominada de constitutivista. Adotada por Benjamim Cardozo, o constitutivíssimo sustenta que o magistrado cria efetivamente o direito em sede de julgamento. Nesse entendimento, o direito seria produto da vontade dos juízes, que o cria no momento de prolatar a decisão (ALMEIDA, 2012, p. 350).
Atualmente, o entendimento de o Direito se limita ao que fora positivado fora superado, a filosofia da linguagem compreende que todo o texto é passível de determinado grau de interpretação, comportando, assim, a utilização da criatividade.
Por outro lado, relevante destacar que ressaltar a natureza constitutiva dos precedentes judiciais, não se adequa com o princípio da separação de poderes do qual o Brasil é adepto, portanto, há poucos juristas que defendem esse entendimento no país. Outra problemática que surge ao se afirmar que o Poder Judiciário cria o Direito é a segurança jurídica.
Há, pois, a compreensão de que, existe certo grau na atividade jurisdicional, como ocorre em toda atividade interpretativa. Nesse sentido, encontra-se um equilíbrio entre as duas teorias a respeito da natureza jurídica dos precedentes judiciais.
Para uma melhor compreensão dos precedentes enquanto instituto jurídico é necessário examinar seus elementos constitutivos, cujas relações internas são objetos de teorias divergentes, a depender da perspectiva jurídico-filosófica escolhida.
O precedente, como já fora destacado, compõe-se por duas partes diferentes: a conjuntura de fato que fundamenta a controvérsia e a tese ou princípio definido na motivação do provimento decisório (DIDIER JUNIOR, 2019, p. 381).
Nesse contexto, dois elementos se mostram indispensáveis na composição de um precedente: a ratio decidendi, ou seja, a tese jurídica adotada na decisão, formada pela análise dos fatos que deram origem ao julgamento e o obter dictum, ou seja, aquilo que mais foi abordado no julgamento.
3.1. Ratio Decidendi
A ratio decidendi é o elemento de eficácia persuasiva ou vinculante do precedente. Trata-se da essência do julgamento para decidir o caso concreto. A razão de decidir “é a tese jurídica ou a interpretação da norma consagrada na decisão” (MARINONI, 2016, p. 161). Ou, conforme leciona Mello, “a regra ou princípio explícita ou implicitamente tratado pelo juiz como um passo necessário a atingir a decisão, à luz das razões por ele adotadas” (MELLO, 2008, p. 156).
O autor Lenio Luiz Streck, por sua vez, conceitua ratio decidendi com a “regra jurídica utilizada pelo Judiciário para justificar a decisão do caso, devendo ser necessariamente analisada à luz da questão fático jurídica (caso concreto) que ela solucionou” (2016, p. 40).
Assim, o ratio decidendi é composto pela indicação dos fatores relevantes da causa, o raciocínio logico-jurídico da decisão e, por fim, o próprio juízo decisório. Dessa forma, ao se analisar os precedentes, o magistrado busca constatar, na decisão precedente, a razão de decidir, ou seja, a razão por trás da decisão. É o que ensina Luiz Guilherme Marinoni:
É fácil demonstrar que mediante a ideia de interpretação do precedente não se busca revelar o conteúdo do seu texto, mas identificar os seus extratos formais, entre eles a ratio decidendi. É claro que o ato de procurar o significado de um precedente, ou de interpretar um precedente, não se confunde com o de interpretar a lei. Quando se fala em interpretação de precedente a preocupação está centrada nos elementos que o caracterizam, especialmente na delimitação da sua ratio. Nessa situação, a tarefa do juiz é analisar a aplicação do precedente ao caso sob julgamento, ocasião em que se vale, basicamente, da técnica do distinguishing. É por isso que se diz que o juiz, mais do que interpretar, raciocina por analogia (2016, p. 162).
Destaca-se que, “assim como a lei, o precedente é texto e carece de interpretação. A maior proximidade que o precedente possui com os fatos, certamente, torna-o mais seguro e lhe dá a função de delimitação da norma legal, mas isso não autoriza a noção de que o precedente é unívoco” (MACÊDO, 2015, p. 318). Assim, a ratio decidendi é a sentido presente, fruto de interpretação. Não há precedente sem ratio decidendi, portando.
Conclui-se, portanto, a ratio decidendi é a regra de direito que foi posta como fundamento da decisão, sendo importante ressaltar que só haverá ratio decidendi se a fundamentação que determinou o resultado da decisão for adotada pela maioria da corte, sendo consideradas, portanto, paradigma de orientação ao jurisdicionado e ao magistrado (MARINONI, 2016, p. 156).
3.2. Obiter Dictum
A partir do conceito de ratio decidendi a doutrina elenca o obiter dictum como elemento do precedente. Representam os argumentos “apenas de passagem” na motivação da decisão (LIMA JUNIOR, 2015, p. 49).
Depreende-se daí seu tratamento como “juízos acessórios, provisórios, secundários, impressões ou qualquer outro elemento que não tenha influencia relevante e substancial para a decisão” (DIDIER JUNIOR, 2009, p. 383).
Neste sentido, destaca-se a contribuição conceitual de Celso de Albuquerque Silva quando ensina que:
O conceito de obiter dicta, dictum está ligado ao conceito de holding, que é a regra ou princípio enunciado pelo juiz em um determinado caso que era necessário para a resolução da questão. Assim, toda e qualquer regra elaborada pela Corte que não era necessária para a solução da questão é considerada dicta, dictum. Considerando que as Cortes podem criar regras de direito, mas com a limitação de que elas devem estar relacionadas com os fatos postos sob adjudicação, esse poder está confinado pelas necessidades das controvérsias que lhe são submetidas para decisão. Os obiter dictum, portanto, são aquelas considerações jurídicas elaboradas pelo Tribunal não relacionadas com o caso, embora as considerem desnecessárias para justificar a decisão proferida. São pronunciamentos que se afastam do princípio justificador daquela decisão. A partir do momento que dele se afastam, o Tribunal passa a falar extrajudicialmente e nenhuma opinião que possa expressar é considerada vinculante (SILVA, 2005, p. 303).
O Obiter dictum não vira precedente em si, mas não pode ser desprezado como elemento do precedente pois pode vir a ser um sinalizador de futura orientação do tribunal – de forma análoga ao que ocorre com o voto vencido. Ensina Marinoni:
É necessário entender o precedente, separando a sua ratio decidendi de tudo aquilo que nele é obiter dicta. Fazem parte da ratio decidendi os fatos materialmente relevantes para a decisão, enquanto os fatos irrelevantes são ditos obiter dicta. É possível afirmar, também, que a ratio decidendi expressa a tese jurídica que qualifica a decisão, sendo todas as demais considerações jurídicas, não imprescindíveis à tomada da decisão, obiter dicta (2016, p. 145).
Assim, o obter pode ser promovido à condição de ratio, bem como o contrário também pode acontecer, o que apresenta, portanto, a necessidade de indicação de ambos os elementos do precedente. Nesse sentido, Souza destaca:
Quando se restringe a ratio decidendi à solução dada ao caso, permite-se que fundamentos anteriormente considerados dictum se tornem ratio no futuro. Por exemplo: são obter dictum os fundamentos sobre questão processual preliminar ou mesmo de mérito que, embora acolhidas, não definem o resultado do julgamento. E aí que as Cortes inferiores podem se considerar obrigadas por essas razões no futuro, as quais deixam de ser vistas como dicta e passam a ser consideras ratio decidendi alternativa (2016, p. 04).
Outro aspecto relevante que diferencia o obiter dictum do ratio decidendi é que os fundamentos não partilhados pela maioria dos membros do órgão colegiado, na análise do caso, mesmo que defendidos por alguns dos julgadores, constituem obiter dictum, o que não ocorre com o ratio decidendi, composto apenas pelo entendimento acolhido pela maioria da corte.
Assim, a ratio decidendi é a regra de direito utilizada como fundamentação na decisão, por conseguinte, o obiter dicta, são as afirmações e argumentações que, embora possam ser úteis para a compreensão da decisão, não constituem parte de seu fundamento jurídico (GRILLO, 2015).
Não é porque não vinculam que os obiter dicta são destituídos de relevância jurídica. Ora, entendimentos minoritários, votos vencidos e considerações desnecessárias à solução de um caso podem ser muito importantes para sinalizar as inclinações da corte quanto a julgamentos futuros (signaling), para indicar tendências deste ou daquele membro do colegiado e para inspirar novas teses e intervenções do legislador.
A expressão “fontes do Direito” é um termo utilizado pelos estudiosos do direito onde, analogamente se compara as nascentes de um rio, em que suas águas brotam da terra, e as nascentes do Direito (MÁYNEZ, 2002, p. 52).
Assim, em conformidade com as lições de Arnaldo Rizzado, a importância do estudo das fontes do direito decorre de sua função, ou seja, as fontes originam o próprio direito. Segundo o autor “as fontes do direito são os elementos geradores do direito, ou os elementos de onde deriva o direito” (RIZARDO, 2003, p. 37).
No Brasil, o direito segue a tradição do sistema escrito, de origem romano-germânica, conhecido como Civil Law. Dessa forma, as pautas de direito do país são feitas, em regra, a partir da elaboração de normas pelo legislativo. Diante dessa lógica as fontes do direito podem ser classificadas em principais ou acessórias (GAGLIANO, 2003, p. 29).
A principal fonte dos países que adotam o civil law, como é o caso do Brasil, é a lei. Ensina Cario Mário da Silva Pereira que: “Voltando a norma, o Estado a redige e difunde, tornando-a conhecida, o que é característico do direito escrito: em Roma, costumava-se gravar a lei em tábuas de mármore ou bronze, guardadas no Tabularium do Capitólio.”
Contudo, por mais talentoso que seja o legislador, este não consegue prever todas as situações existentes. Assim, o direito é lacunoso, em decorrência da dinamicidade da própria sociedade. Nesse sentido, em casos onde a lei não se apresenta como solução o magistrado, já que não pode se eximir de julgar diante de sua obrigação de prestação jurisdicional, deverá se valer das fontes acessórias.
Diante do conceito trazido acima, é possível definir os precedentes como fonte acessória do direito. Isso porque, o poder do juiz para emissão de enunciado normativos e os precedentes como norma torna inquestionável a aptidão dos precedentes para se apresentarem como fontes normativas (BERTÃO, 2016, p. 12).
Neste mesmo sentido, Maria Helena Diniz defende que:
É indubitável que constitui, além de uma importantíssima fonte de normas jurídicas gerais, uma fonte subsidiária de informação, no sentido de que atualiza o entendimento da lei, dando-lhe uma interpretação que atenda aos reclamos das necessidades do momento do julgamento e de preenchimento de lacunas (2014, p. 318).
Como forma de analisar o assunto de forma mais sistematizada a doutrina costuma classificar as fontes em formais e materiais. Estas referem-se as situações fáticas que fazem parte da pretensa regulação pelo legislador, aquelas são os instrumentos pelo qual se manifestam as fontes materiais, assim, são fontes formais as que expressam direito positivo.
Na visão de Bonnecase a principal distinção entre classificação abordada acima é entre a substancia e a forma que se incorpora nas normas jurídicas. De acordo com o autor as fontes formais seriam predeterminadas e obrigatórias em virtude da potência coercitiva do Direito (BONNECASE, 1994, p. 249).
Em uma perspectiva positivista tentou-se reduzir as fontes formais como a legislação apenas, promovendo um monopólio do Estado na criação do Direito, o que foi denominado de processo de monopolização da produção jurídica do Estado (BOBBIO, 1995, p. 26). Nessa perspectiva fora dado ao julgador a função de retirar do texto legislativo qual seria a norma jurídica a ser aplicada no caso concreto.
Por mais que possamos estabelecer os precedentes judiciais como fontes do Direito é controvertida sua recepção como fonte formal, ou seja, como meio através do qual o Direito se exterioriza para cumprir a sua função apaziguadora dos conflitos que surgem na sociedade.
Tendo em vista tal adequação como fonte jurídica, é possível identificar sua natureza de norma geral, porém é sempre importante deixar claro que a regra de direito retirada dos precedentes não é aplicável ao caso-precedente em si, mas aplicável posterirormente. Diante de todo o exposto é possível afirmar que o precedente atua como forma e não se confunde com a norma que dele pode ser extraída, funcionando como um mecanismo de criação de normas através do exercício da jurisdição (MACÊDO, 2015, p. 89).
Em suma, a classificação supramencionada mostra-se relevante como mecanismo de compreensão do papel dos precedentes judiciais como fonte do direito, em decorrência de sua função implícita na melhor adequação ao ordenamento jurídico a realidade. Sendo valorizada, em maior ou menor grau, no procedimento de criação das normas jurídicas.
Portando, mostra-se evidente que onde há direito também haverá precedente, sendo aquele pressuposto de existência deste. Nesse sentido, independente do sistema adotado pelo país, existirá precedentes, a diferença vai ser na valoração deles perante a jurisdição, funcionando com aplicabilidade vinculativa ou apenas como hipótese interpretativa (TARUFFO, 2007, p. 7).
Para uma delimitação conceitual mais eficiente do que é os precedentes no sistema jurídico brasileiro é importante destacar as diferenças do instituto de outros que por vezes são tratados, equivocadamente, como sinônimo deste.
A primeira diferenciação que se mostra oportuna é entre o precedente e a decisão judicial. Numa visão generalizante é possível afirmar que todo precedente é uma decisão judicial, mas a reciproca não é verdadeira, nem toda decisão judicial, ainda que seja proferida no âmbito dos tribunais superiores, será precedente.
Na visão de Marinoni a matéria tratada pelo precedente é uma questão de direito, ao passo que cabe a decisão tratar sobre questão de fato (MARINONI, 2016, p. 213). A solução encontrada no julgamento que apenas leva em conta a reprodução do conteúdo legal, não havendo nem mesmo uma interpretação com possível inovação, não configura um precedente. Assim, se a decisão não transcender o caso concreto não será utilizada como precedente. O autor argumenta que o precedente seria “a primeira decisão que elabora a tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia, deixando-a cristalina” (2016, p. 214).
Lenio Luiz Streck analisa a diferenciação do caso julgado, que se apresenta como limitados aos litigantes, e a formação do precedente judicial da seguinte maneira:
No caso julgado, têm-se a resolução de uma demanda considerada em si mesmo, que não possui força para influenciar decisões futuras pelo fato de que a motivação da decisão não produz um novo paradigma, mas apenas reproduz os já existentes no sistema. Já no precedente – também oriundo de um julgamento concreto –, tem-se a instituição de um novo paradigma (uma holding) que possui uma espécie de força atrativa que irá capilarizar outras decisões. Todavia, essa “aplicação” em outros casos similares, não é feita a partir de um procedimento dedutivo, mas sim a partir de uma aproximação histórica tendo em vista a similaridade dos casos concretos que se encontram sub judice (STRECK, 2008, p. 165).
Outro equívoco comum é tentar equiparar os precedentes à jurisprudência. José Naufél defina a jurisprudência como: “a interpretação que os tribunais dão às leis, adaptando-as a cada caso concreto submetido a seu julgamento” (1998, p. 304). Outra definição que merece destaque é a de Rodolfo Camargo Mancuso, que determina que a jurisprudência refere-se ao valor agregado e qualificado das decisões de segundo grau, quando concordantes e reiteradas sobre determinado tema em especifico (2018, p. 36).
Em síntese, para a produção da jurisprudência é necessário haver um conjunto de decisões em determinado período de tempo, mostrando-se um processo mais complexo do que ocorre com os precedentes, que compõe-se de uma decisão coadunada a um caso concreto em particular, munida de um diferencial.
Em uma visão qualitativa o precedente funciona por meio de mecanismos como a analogia, comparando os fatos subjacentes entre o caso atual e seu predecessor. Em contrapartida, a jurisprudência não aplica-se por meio de análise comparativa dos fatos, seu escopo será identificar qual o princípio de direito, em decorrência da busca por uma regra jurídica aplicável ao caso sucessivo (SALOMÃO, 2017, p. 60).
E, finalmente, precedente também não se confunde com enunciado de súmulas. A súmula funciona como uma descrição relacionada a conteúdo das decisões de determinado tribunal, não se revestindo de algumas garantias dos precedentes, visto que na sua formação não há contraditório, decorrente da participação dos litigantes. Ao analisar as formalidades é possível identificar nas súmulas uma desvinculação do caso concreto, se contrapondo ao precedente, que sempre enfrentará uma tese jurídica interligada a demanda que lhe deu causa.
Como herança da colonização portuguesa, o Brasil adotou, desde a sua criação, um sistema jurídico de tradução romano-germânica, conhecido como civil law. Assim, ao se analisar a estrutura do direito brasileiro é notório que desde sua formação o país sofreu grande influência da positivação de seus direitos, a partir de leis e codificações, o que perdura até os dias de hoje (VALLADÃO, 1974, p. 66).
Em primeiro lugar, vale destacar que alguns juristas alegam que é possível identificar que as reformas do sistema jurídico processual são precursoras na valorização dos precedentes judiciais no Direito brasileiro, configurando uma mudança no status quo e dando origem a uma nova tradição nacional. Tal entendimento, conforme defende Marcus Seixas Souza e Fredie Didier Junior é equivocado, pois ignora as características do Direito do Império e do Direito lusitano anterior ao que temos hoje, que já valorizavam os precedentes e a jurisprudência (DIDIER JUNIOR, SOUZA, 2015, p. 106).
A utilização dos precedentes como instrumento de fundamentação das decisões tem seu surgimento ainda na era colonial (SOUZA, 2014, p. 58) Porém, com o passar dos anos a discussão sobre os precedentes veio se alargando, o que se pode atribuir, dente outros fatores, ao aumento expressivo do número de processos e da obrigação, imposta pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de promover uma solução com duração razoável do processo.
Outrossim, na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil de 2015 destacou- se expressamente seus objetivos de alcançar organicidade às regras do processo civil pátrio, impulsionando uma coesão no sistema (BRÊTAS, 2016, p. 50).
Um aspecto relevante é que na Exposição de Motivos o termo “sistema” fora utilizado inúmeras vezes.
De forma sintetizada Antônio Aurélio Souza Viana e Dierle Nunes alegam que:
Em nome da segurança jurídica e da efetividade, na Exposição de Motivos do CPC/2015 é revelada a profunda preocupação com a indesejada fragmentação do sistema, algo que poderia ocorrer em decorrência da oscilação jurisprudencial. Nesse contexto, os tribunais superiores assumem a função de moldar o ordenamento jurídico por meio de suas decisões. No entanto, além dos objetivos anteriormente citados, espera-se que a uniformização e estabilização jurisprudencial, dadas não apenas pelos tribunais superiores, mas também pelos tribunais de segunda instância, sejam capazes de reduzir a sobrecarga de processos no judiciário (2018, p. 199).
Ao analisar o sistema anglo-saxônico é possível identificar que os precedentes se comportam como fontes preponderantes do direito. Em contrapartida, com a análise do sistema romano-germânico, como é o caso brasileiro, a lei ocupa esse papel, reduzindo a função dos precedentes a uma fonte secundaria, ou para alguns um simples instrumento de interpretação.
Dessa forma torna-se importante estudar os precedentes judiciais e sua atual valorização no ordenamento jurídico pátrio, promovendo uma aproximação entre as tradições jurídicas do civil law e common law.
6.1. Foi Criado Um Sistema de Precedentes Brasileiro?
Como produto do constitucionalismo moderno, país de tradição romano-germânica, diante do estabelecimento da constituição como ápice do ordenamento jurídico nacional, confere-se ao Judiciário o poder-dever de afastar a aplicação da lei ante a incompatibilidade com a Lei Maior do país.
Diante dessa sistemática, acentuou-se o papel criativo da atividade jurídica de interpretar a legislação. Nesse atual contexto o âmbito de discricionariedade é alargado, visto que, enquanto mais vaga a lei e mais impreciso os elementos do direito mais amplo se torna a função criativa do magistrado (CAPPELLETTI, 1993, p. 42).
O desenvolvimento do direito jurisprudencial brasileiro, assim como em outros países de tradição civil law, levantou discussões acerca de ter se criado um sistema de precedentes nacional: de um lado parte da doutrina aponta que com o Código de Processo Civil de 2015 houve uma valorização e regramentos próprios à respeito dos precedentes, criando assim, um verdadeiro sistema. Contrariamente, outros autores alegam que as alterações realizadas pelo novo diploma não são suficientes para se afirmar que temos um novo sistema nacional.
Como signatário da primeira corrente encontra-se Luís Roberto Barroso. Para o autor Código de Processo Civil de 2015 criou um verdadeiro “sistema de precedentes”, que aproximaria o civil low do common law. O que seria feito por uma “Corte de Precedentes” ao estabelecerem teses as tornariam vinculantes para todo o sistema. Luís Roberto Barroso e Patrícia Campos de Mello assim dispõe:
Se instituiu um sistema amplo de precedentes vinculantes, prevendo-se a possibilidade de produção de julgados com tal eficácia não apenas pelos tribunais superiores, mas igualmente pelos tribunais de segundo grau. Nessa linha, o art. 927 do novo Código definiu, como entendimentos a serem obrigatoriamente observados pelas demais instâncias: (i) as súmulas vinculantes, (ii) as decisões proferidas pelo STF em sede de controle concentrado da constitucionalidade, (iii) os acórdãos proferidos em julgamento com repercussão geral ou em recurso extraordinário ou especial repetitivo, (iv) os julgados dos tribunais proferidos em incidente de resolução de demanda repetitiva e (v) em incidente de assunção de competência, (vi) os enunciados da súmula (2016).
O entendimento analisado acima usa como argumento o fato de a lei ter deixado de ser o único paradigma obrigatório na decisão do magistrado. Visto que, de acordo com o artigo 489, §1º, VI, do Código de Processo Civil de 2015, considera-se como não fundamentada a decisão judicial que deixar de seguir precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
A mesma lógica utilizada no artigo 489 do Código de Processo Civil também é utilizada no artigo 926 e 927 do mesmo diploma processual. Todas fomentando a coerência e integralidade, a fim de se combater decisões sobre o mesmo tema e as mesmas circunstancias que destoem entre si (FERNANDES, 2016). Pergunta-se, essas disposições seriam suficientes para concluir-se que o Brasil tem um sistema de precedentes?
Para responder à pergunta acima é necessário, primeiramente, entender o que é um sistema. Para solucionar esse obstáculo inicial Lenio Luiz Streck dispõe que devemos entender por sistema a ideia de um conjunto coerente e harmônico de normas, ou seja, “uma teoria do ordenamento que necessita da ideia de sistema para lhe possibilitar adequado tratamento para a relação entre as normas jurídicas” (STRECK, 2015).
Partido desse conceito o autor identifica que o Código de Processo Civil de 2015 não cria nenhum sistema de precedentes. Numa perspectiva negativista, Streck alega que o Código não teria capacidade de alterar o sistema vigente, dando origem a um sistema de precedentes ou substituindo a opção de adoção do civil law pelo common law com a sua promulgação. Na busca de estabelecer um “sistema” acaba-se por suprimir direitos e aumentar o poder do Judiciário. Afirma o autor que:
O CPC-2015 elenca determinados provimentos judiciais, que independentemente da sua qualidade, consistência e integridade, passarão a ser vinculantes para o enfrentamento de nossa litigiosidade repetitiva. Mas não se trata de sistema- precedentes. O que não significa que o artigo 927 não possa contribuir para resolução de diversas mazelas judiciais contemporâneas. Contudo, para que essa contribuição não seja feita às custas das garantias constitucionais do jurisdicionado, o CPC-2105 deve ser lido conforme à Constituição — não o contrário! — e para tanto, precisamos parar de iniciar sua leitura como se fosse um dado a instituição do sistema de precedentes no Brasil (STRECK, 2015).
Corroborando com esse entender, Ataíde Jr. alega que Projeto da Câmara ocorreu a descrição de elementos essenciais a um sistema de precedentes genuíno, tais como os institutos próprios, a determinação de um repositório confiável de decisões, dentre outros aspectos pormenorizados. Porém, mesmo que o Projeto da Câmara dos Deputados tivesse entrado em vigor, no lugar do texto final do Senado Federal, não poderíamos afirmar que haveria um sistema de precedentes vinculantes completo.
Por tudo o que foi exposto, é evidente que houve, desde a promulgação da Constituição da República de 1988, uma maior valorização dos precedentes no ordenamento jurídico, trazendo reflexos no Código de Processo Civil de 2015. Porém, o presente trabalho compactua com a percepção de que não há um sistema de precedente complexo e sistematizado no Direito brasileiro. Acreditamos, assim como ocorreu nos países originários do common law, há uma necessidade de um processo de adaptação no sentido de racionalizar a sistemática judicial.
Nesse contexto a indicação que determina um sistema jurídico de significância mais limitada, no qual se presume sua sistematicidade, pode ser definido como um subsistema, que na visão de Antônio Aurélio Souza Viana e Dierle Nunes:
Diferentemente, o que mais importa para a configuração de um sistema de precedentes judiciais – poder-se-ia falar em subsistema –, para nós, poderia ser resumido em três aspectos: a) a coerência de enunciados legais que convergem em prol de uma finalidade específica; b) a estrutura organizacional de emissão de pronunciamentos; e c) a autoridade exercida pela estrutura organizacional anteriormente mencionada (VIANA, NUNES, 2018, p. 199).
Dessa forma, mesmo o atual Código de Processo Civil inaugurando provimentos judiciais vinculativos com o objetivo de redução da complexidade judicial, não podemos equiparar essa visão, expressa principalmente no artigo 927, a um sistema complexo de precedentes similar ao que ocorre nos países signatários do common law. Destarte, o Brasil ainda vislumbra um longo caminho pela frente (STRECK, 2016, p. 5).
6.2. Eficácias dos Precedentes Judiciais no Código de Processo Civil
Podemos classificar os precedentes judiciais no direito brasileiro em três espécies de acordo com a sua eficácia, conforme ensina Patrícia Perrone Campos (2008, p. 112).
Em primeiro lugar insta destacar os precedentes com caráter meramente persuasivo, classificação mais popular no ordenamento jurídico nacional, diante de sua origem romano- germânica. Os efeitos produzidos são limitados às partes e aos casos em que são afirmados, sendo importantes para o convencimento do magistrado e sua repetição possibilita a produção de jurisprudência nos tribunais, assim, atuam como fonte secundária do direito.
Outra classificação possível é a dos precedentes normativos ou vinculativos, que são os julgados e entendimentos de observância obrigatória pelas demais instâncias e caso desrespeitado haverá a possibilidade de entrar com uma reclamação. Encontra-se enorme resistência em incorporar os precedentes vinculantes no contexto nacional, visto que o mesmo é considerado uma interferência na independência e livre convencimento dos juízes, conceitos considerados princípios processuais (BARROSO, MELLO, 2016, p. 5).
Por fim, há ainda o que ficará conhecido como eficácia intermediaria, as quais não são dotadas de eficácia meramente persuasiva, visto que o ordenamento lhe concede efeitos que extrapolam os casos em que foram produzidos, tendo observância obrigatória. Porém, a eficácia não equivale a dos precedentes normativos, diante da impossibilidade do uso de reclamação diante da inobservância da orientação nela disposta. “Abriga, por isso, decisões judiciais com efeitos heterogêneos que produzem efeitos impositivos em diferentes graus” (BARROSO, MELLO, 2016, p. 9).
Com a vigência do Código de Processo Civil de 2015 a eficácia das decisões judicias sofreram mudanças notáveis. Perdurou o entendimento que dava eficácia persuasiva as decisões proferidas em primeiro grau de jurisdição, bem como os acórdãos dos tribunais, exceção apenas em relação a casos sujeitos a incidente de assunção de competência e incidente de resolução de demanda repetitiva.
A eficácia normativa concentrou-se, segundo Patrícia Perrone Campos Mello e Luís Roberto Barroso:
As súmulas vinculantes, os julgados produzidos em controle concentrado da constitucionalidade, os acórdãos proferidos em julgamento com repercussão geral ou em recurso extraordinário ou especial repetitivo, as orientações oriundas do julgamento de incidente de resolução de demanda repetitiva e de incidente de assunção de competência. O desrespeito a estes precedentes enseja a sua cassação, por meio de reclamação, junto à corte que o proferiu, nos termos do art. 988 do CPC/32 (BARROSO, MELLO, 2016, p. 10).
Em relação a eficácia intermediária, sua produção se limitou aos enunciados de súmulas originadas de jurisprudências do STJ e STF, bem como as orientações estabelecidas em sede de plenário ou órgãos especiais das cortes. Aqui há a obrigatoriedade de aplicação, porém, em caso de inobservância não haverá a possibilidade de ajuizamento de reclamação. Dessa forma, a obrigatoriedade na prática funciona como mera recomendação.
Em função de todo o exposto, no direito brasileiro, o precedente judicial estabelecido pelo atual Código de Processo Civil, em decorrência de suas raízes no sistema romano- germânico, se diferencia do que ocorre no contexto do common law, onde toda e qualquer decisão tem potencial de se tornar um precedente vinculante, no contexto brasileiro somente as decisões preestabelecidas legalmente é que podem dar ensejo a precedentes desse tipo (CÂMARA, 2017, p. 439).
Considerações Finais
Do estudo realizado, depreende-se que há uma tendência, no ordenamento jurídico brasileiro, de privilegiar os precedentes judiciais de forma mais expressiva em relação a que ocorria anteriormente. Os precedentes, na atual conjuntura, representam, portanto, um mecanismo essencial para a busca da concretização do ideal normativo, concretizando a estabilidade, integridade e coerência das decisões.
Desde o começo da vigência do Código de Processo Civil de 2015, iniciou-se um debate cada vez mais forte a respeito da aproximação do sistema brasileiro, conhecido como civil law, do seu sistema antagônico, common law. Afirmando, alguns autores, que o Brasil teria criado um verdadeiro sistema de precedentes, o que foi contestado no presente trabalho.
Em síntese, também foi possível estabelecer qual a eficácia dos precedentes de acordo com o diploma processual vigente, que, em decorrência de suas raízes no sistema romano-germânico, somente decisões estabelecidas legalmente podem ter efeito vinculante, restando aos precedentes em geral efeito persuasivo.
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[1] Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Advogada. E-mail: mariaangelicadosa@gmail.com
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