Resumo: Após seu surgimento no domínio norte-americano, a figura jurídica dos centros comerciais alastrou-se por todo o mundo, sendo, hoje, encontrada em quase a totalidade dos países, tanto ocidentais, quanto orientais. Importante observar que a realidade fática dos shopping centers esbarra em um problema de índole formal, qual seja a qualificação da natureza jurídica dos contratos de instalação de lojistas. A qualificação da nova modalidade contratual demonstra suma importância, pois será por meio de tal exercício que se fixará o regime jurídico apto ao trato da matéria. Tendo por supedâneo o ordenamento jurídico português e, principalmente, as correntes doutrinárias apresentadas, procura-se definir qual a qualificação mais adequada, conexa e pertinente ao correto tratamento do tema.
Palavras-chaves: natureza – jurídica – contrato – instalação – shopping
Abstract: After his appearance on American dominance, the legal concept of shopping has taken off around the world and is today found in almost all countries, both Western as Eastern. Important to note that the objective reality of the shopping malls coming up in a matter of a formal nature, which is the classification of the legal nature of contracts for installation of tenants. The qualification of a new kind of contract demonstrates the utmost importance, because it is through such an exercise that will set the legal system able to treat the matter. Having footstool by the Portuguese legal system and, especially, the current doctrinal presented, which seeks to define the most appropriate qualification, relevant and related treatment to correct the issue.
Keywords: legal – nature – contract – shopping – center
Sumário: Introdução. I – Centros Comerciais: Conceito e Qualificação. II – Natureza Jurídica dos Contratos de Instalação de Lojistas. 2.1. Doutrinas de menor vulto. 2.2. Instalação de lojistas em centros comerciais como contrato de arrendamento. 2.3. Instalação de lojistas em centros comerciais como contrato atípico. Sínteses Conclusivas. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
A partir da segunda metade do século XX, as grandes metrópoles dos países ocidentais assistiram a proliferação de uma nova estrutura comercial apta a satisfazer as demandas de uma sociedade de mercado. A figura do centro comercial, também chamada pela designação shopping center, revelou perfeita adequação aos anseios de uma população consumidora que, em um único espaço físico, passou a realizar todo o seu ânimo por aquisição de mercadorias e serviços[1].
Vistos sob o prisma fenomenológico, os centros comerciais tiveram como local de nascimento os Estados Unidos da América. Com o término da Segunda Guerra Mundial, buscou-se soerguer uma nova estrutura complexa de edificação empresarial, com o claro intuito de satisfazer as aspirações de uma abastada sociedade emergente. Em razão do referido, a expressão de origem inglesa – shopping center – difundiu-se e passou a ser amplamente utilizada em grande parte dos países ocidentais.
Após seu surgimento no domínio norte-americano, a figura jurídica dos centros comerciais alastrou-se por todo o mundo[2], sendo, hoje, encontrada em quase a totalidade dos países, tanto ocidentais, quanto orientais. É candente a importância de tal estrutura na configuração das relações comerciais hodiernas. A mercancia, antes restrita aos centros das cidades (downtowns), migrou, em substancial parte, para os shopping centers devido a diversos fatores, dentre os quais se elencam a segurança, o conforto, a praticidade e a estética visual. Visualiza-se, assim, uma edificação que procura compor e incentivar, ao máximo, as relações de consumo, gerando benefícios para uma tríade, composta pela população, pelos comerciantes e pelo órgão gestor do centro comercial.
Importante observar que a realidade fática dos shopping centers esbarra em um problema de índole formal, qual seja a qualificação da natureza jurídica dos contratos de instalação de lojistas. Na ordem legislativa portuguesa, não há instrumento normativo hábil a sanar as dúvidas acerca do tema, permanecendo um vácuo que tem sido preenchido por digressões doutrinárias e excertos jurisprudenciais emanados dos mais diversos tribunais lusitanos. Verifica-se, contudo, que, até mesmo nessas duas últimas searas, não é possível falar-se em consenso, perfilhando-se um quadro de diferentes posicionamentos. O cerne das discussões, que ainda hoje permeiam a matéria, centra-se na delimitação da natureza jurídica dos contratos de instalação de lojistas em centros comerciais, bem como, nos seus consectários efeitos. A qualificação da nova modalidade contratual demonstra suma importância, pois será por meio de tal exercício que se fixará o regime jurídico apto ao trato da matéria.
O presente trabalho buscará apresentar e apreciar os diferentes cotejos a versar sobre os contratos de instalação de lojistas em shopping centers. As justificativas e conseqüências da adoção um modelo de natureza jurídica serão abordadas, objetivando a compreensão dialética do tema em apreço. Tendo por supedâneo o ordenamento jurídico português e, principalmente, as correntes doutrinárias apresentadas, procurar-se-á definir qual a qualificação mais adequada, conexa e pertinente ao correto tratamento da matéria em apreço.
I – CENTROS COMERCIAIS: CONCEITO E QUALIFICAÇÃO
Respaldando-se na idéia de integração e cooperação entre cada um dos lojistas, o centro comercial pode ser delineado como sítio dotado de características peculiares que intenta, ao máximo, desenvolver a mercancia. Em regra geral, um shopping center encontra-se instalado às margens da urbe, tendendo a estar sempre organizado sob gestão singular, conglomerando variadas lojas destinadas ao comércio e à prestação de serviços, que, por sua vez, sujeitam-se a normas contratuais padronizadas, para manter o equilíbrio da oferta e da funcionalidade, assegurando a convivência integrada e pagando um valor em conformidade com o faturamento[3].
Antunes Varela afirma que “a idéia diretriz que anima a construção de um centro comercial é a de reunir num vasto espaço, atraentemente decorado, distribuído por um grande edifício ou vários edifícios devidamente articulados entre si, pequenas e grandes lojas, abrangendo ramos de atividades complementares, com as denominadas “lojas âncora” nos pólos estratégicos das novas instalações, a fim de se facilitar a vida do cliente, dando-lhe a possibilidade de com uma só deslocação adquirir muitos dos artigos e produtos que até então só com grande dispêndio de tempo conseguia comprar nos estabelecimentos dispersos pelos vários bairros da cidade”[4].
Soma-se a esse complexo empresarial uma gama de facilidades disponibilizadas ao consumidor. Desse modo, tem-se, comumente, aliada a estrutura do shopping center, um conjunto de acréscimos, dentre os quais se pode elencar os telefones públicos, os sistemas de ar condicionado, as casas de banho, as áreas de lazer, os cinemas, os teatros, as praças de alimentação, os parques de estacionamento e até mesmo os sistemas elétricos e os aparatos de decoração. Essas praticidades têm por desígnio claro instigar os freqüentadores a efetuarem um maior volume de compras de produtos e serviços, exercendo todo seu ímpeto consumista.
Tem-se, ainda, que esse agrupamento de lojas dá-se de uma forma racionalizada. A distribuição das atividades comerciais pelo espaço físico do centro comercial deve seguir uma lógica concorrencial, que tem por objetivo último a maximização dos lucros da empresarialidade. Ana Isabel da Costa Afonso destaca, contudo, que “tal premissa não é suficiente para caracterizar esta fórmula de organização comercial. Em boa medida, a razão do seu sucesso e eficácia está na relação contratual que liga o empreendedor do centro comercial aos lojistas. A forma como é fixada a contrapartida a satisfazer pelo lojista, pela cedência do espaço, permite assegurar ao empreendedor a participação nos lucros obtidos pelos lojistas, estabelecendo-se, deste modo, uma relação direta entre a rentabilidade do empreendedor e a rentabilidade de cada uma das atividades comerciais individualmente desenvolvidas”[5].
Adentrando-se a seara da classificação, a doutrina tem por hábito considerar os centros comerciais em três categorias distintas, segundo área, localização, número de lojas e público que se deseja atrair[6]. Dessa forma, ter-se-iam:
a) Centros comerciais regionais: os que apresentem de 30.000 a 40.000 m2 de área bruta localizável, mais de 80 lojas e uma população envolvente de 250.000 pessoas que não precisem de mais de 20 minutos de deslocação em automóvel;
b) Centros comerciais intercomunais: os que tenham uma área bruta localizável entre 5.000 e 40.000 m2 e reúna, à volta de um supermercado, umas 30 a 50 lojas, dirigidas a uma população envolvente de 50.000 a 150.000 indivíduos, cuja deslocação de automóvel dure cerca de 10 minutos;
c) Centros comerciais locais: de bairro, locais turísticos, de 1.000 a 10.000 m2 de área bruta localizável, e cerca de umas 30 lojas, atraindo uma população que o poderá alcançar mesmo deslocando-se a pé.
Essa classificação não encontra guarida em instrumentos normativos. Como já asseverado, essa recente realidade social não possui adequado supedâneo legislativo na ordem jurídica portuguesa. Resta ao tema, por conseguinte, uma abordagem rasa e incompleta. As primeiras disposições legais a consagrar a definição de um centro comercial materializaram-se em uma simples portaria (n. 424/85, de 05 de julho)[7]. Por esse instrumento jurídico, observou-se serem exigidos cinco elementos como requisitos essenciais para a configuração de um shopping center, quais sejam: a) área bruta mínima de 500 m2; b) número mínimo de 12 lojas; c) edifício único ou edifícios contíguos; d) unidade de gestão; e) unidade de horário de funcionamento.
Verifica-se, assim, que as características apresentadas pelos instrumentos legais são apenas um pequeno norte para a qualificação de uma composição complexa. O que importa perceber, neste ponto, é a dissociação entre a figura do centro comercial e a simples união de lojas em um único edifício. É preciso saber distinguir tais desenhos, para posterior adequação de regime jurídico. Assim, a gestão autônoma, sem estar subordinada a uma estrutura administrativa, desprovida, ainda, do caráter de atuação integrada, não configura o desenho de um shopping center. Outras realidades fáticas similares – como as galerias, as magazines, os supermercados – também devem ser cotejadas de maneira diversa, uma vez que estão dotadas de outras características a consagrar a sua feição.
Releva, pois, encarar esses elementos apresentados, apenas, como um delineamento mínimo do que seria uma estrutura apta a ser designada por shopping center. Em uma análise perfunctória, não seria possível definir por meio dos conceitos oferecidos a natureza jurídica dos contratos de instalação de lojistas em centros comerciais. Na verdade, esse enquadramento deve exceder o conteúdo da lei, não prescindindo de adequado exame das perspectivas doutrinárias que salteiam a temática.
II – NATUREZA JURÍDICA DOS CONTRATOS DE INSTALAÇÃO DE LOJISTAS
Apesar da difusão dos centros comerciais como tipos sociais[8], não existe um consenso acerca da definição da natureza jurídica de seus contratos de instalação de lojistas. As teses aventadas passam por institutos consolidados como o contrato de sociedade (associações), a cessão de estabelecimento comercial, o contrato de arrendamento, chegando até a sua qualificação como contrato atípico.
Para definirmos a natureza jurídica de um instituto, revela-se importante a precípua análise de sua conceituação. Hugo Duarte Fonseca caracteriza o referido contrato do seguinte modo: “lojista e gestor do centro comercial acordam na cedência de um espaço (uma loja “em tosco”, que será decorada de forma a não ofender a imagem escolhida para o conjunto do complexo), que o primeiro ocupa para aí levar a cabo sua atividade comercial, nos termos definidos pela gestora do centro, que não se limita a planejar a situação em que o estabelecimento operará (para que das vizinhanças que se instituam possa resultar o máximo proveito para cada dependência), porquanto determina também com minúcia o ramo de negócio que o lojista abraça, a ponto de excluir do seu comércio a venda do bem x ou y”. O autor acrescenta, ainda, que “assim que celebrado o contrato, é devido à gestora um “prêmio de assinatura” que, de uma certa perspectiva, acaba sendo o “preço” a pagar pela própria concepção das múltiplas vantagens que o complexo encerra; já em razão da implementação do projeto que a gestão unitária possibilita, vê-se o lojista adstrito a um leque de obrigações que vão desde a contribuição para um fundo de promoção e publicidade do centro, passam pela assunção de parte das despesas relativas às partes comuns do edifício e terminam na vinculação à realização de prestações pecuniárias periódicas de montante fixo, combinadas com outras cujo caráter variável emana da direta ligação que é estabelecida com o volume vendas alcançado”[9].
Partindo do conceito apresentado, releva adentrar a qualificação da natureza jurídica do referido instrumento contratual. A sua definição demonstra singular importância, tendo em vista que só após o seu enquadramento, serão definidas, de maneira clara, as normas aptas a serem aplicadas à matéria. Acrescenta-se, ainda, que na ordem jurídica portuguesa, a qualificação dos contratos envolvendo os shopping centers apresenta peculiar relevo, em razão das especificidades e vicissitudes que podem ser carreadas pela aplicação de alguns institutos consagrados pelo Direito Civil.
2.1. Doutrinas de menor vulto
Para se cotejar da natureza jurídica dos contratos de instalação de lojistas em centros comerciais, parece mais plausível partir das teses de menor importância, justificando a sua não consagração pelo ordenamento jurídico português. Desta feita, buscar-se-á abonar o afastamento da aplicação de algumas doutrinas, intentando possibilitar um foco mais conciso ao presente estudo.
Inicialmente, parece importante salientar que a doutrina portuguesa, em um juízo negativo, é, praticamente, uníssona em afastar os contratos de instalação de lojistas em centros comerciais da tipologia da cessão de exploração de estabelecimento comercial, prevista no art. 111o do Antigo Regime do Arrendamento Urbano[10]. Tal entendimento é empreendido tendo por base a não configuração legal da figura do estabelecimento comercial. De acordo com Jorge Manuel Coutinho de Abreu, “pode-se definir empresa ou estabelecimento comercial (em sentido objetivo) como uma unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui um instrumento de exercício relativamente estável e autônomo de uma atividade comercial”[11]. Observa-se, pois, de forma candente, que no momento de celebração do contrato de instalação de lojista em shopping center, não há ainda um estabelecimento comercial. Tem-se, na verdade, apenas um simples local destinado ao funcionamento da loja, mesmo que superficialmente equipado[12]. Logo, é passível de afastamento as teses calcadas em tal argumentação.
Outra tese rechaçada por quase totalidade da doutrina centra-se na qualificação da avença em apreço como um contrato de sociedade ou outro tipo de associação (desde a conta de participação até a joint venture). O ponto central para rejeição da presente idéia encontra-se na ausência de affectio societatis entre o empreendedor e o conjunto de lojistas[13]. Não é possível se averiguar um vínculo contratual que denote uma atuação concertada das duas partes, objetivando um único e mesmo fim. Além disso, corrobora com tal entendimento, o fato de o gestor do centro comercial somente participar se forem apurados eventuais lucros. Não há compartilhamento de ocasionais prejuízos, impedindo de forma mais acentuada a configuração de um exercício comum com fim de repartição de prognósticos.
2.2. Instalação de lojistas em centros comerciais como contrato de arrendamento
Deixando as teses de menor vulto e adentrando ponto de maior polêmica, surge importante cotejo doutrinário, assente por parte considerável do magistério jurídico lusitano, que tem como certo que o contrato de instalação de lojistas em um determinado centro comercial configura típico contrato de arrendamento[14]. Para Galvão Telles, um dos expoentes de tal brocardo, “estar-se-ia diante de uma conjuntura em que se proporciona ao comerciante gozo temporário de uma determinada loja mediante retribuição, havendo, por conseguinte, total consonância com o artigo 1022o, do Código Civil Português. As especificidades do contrato envolvendo um centro comercial não teriam o condão de afastá-lo da figura típica do arrendamento. Qualificar o contrato em apreço como contrato atípico esbarraria em intransponível entrave, qual seja a circunstância de ser de todo ilegítimo considerar como atípica uma convenção que se enquadra perfeitamente no esquema essencial de determinado contrato típico”[15].
Está-se diante de situação que impele, somente, um juízo de subsunção. O tipo social verificado nos contratos de instalação de lojistas em centros comerciais seria passível de total enquadramento na fattispecie do arrendamento. Parte-se de um silogismo em que se tem uma premissa menor (o contrato de instalação de lojistas) inserida em um contexto maior, qual seja o contrato de arrendamento[16].
Utilizando-se tal raciocínio, às partes é dada a liberalidade de pactuarem cláusulas acessórias, mas sem exceder a essência do tipo determinado. Logo, no contrato de instalação de lojistas em centros comerciais, há margem para que se estabeleçam especificidades que se julguem necessárias. Entretanto, as partes não podem fugir ao núcleo central do contrato tipo, que dentro de tal entendimento, está nos contornos do contrato arrendatício. Como o acordo tem natureza de locação, seus elementos específicos são regulados pelo tipo consagrado. O uso das cláusulas acessórias deve respeitar os limites impostos pelo desenho legal, restando claro que, neste ponto, a autonomia da vontade é tolhida em respeito às disposições normativas acerca do tema. Seriam inadmissíveis cláusulas que contrariem o respectivo regime jurídico, em toda medida em que este seja imperativo[17].
Uma das principais conseqüências, na ordem jurídica portuguesa, da adoção de tal inteligência encontra-se na submissão dos contratos em análise ao regime jurídico da renovação obrigatória do arrendamento, também conhecido pela alcunha de “regra da prorrogação automática” (art. 1095o do Código Civil). Desse modo, as relações envolvendo lojistas e centros comerciais estariam vinculadas à disposição normativa que impossibilita ao senhorio a denúncia do contrato.
Parece importante observar que, nesse caso, a ratio legis configura-se em uma acentuada proteção do arrendatário, atalhando, de forma imperativa, que haja convenção em sentido contrário. Esse é um dos principais problemas que podem surgir desse panorama, tendo em vista que a renovação obrigatória atenta contra as especificidades dos contratos que envolvem um centro comercial, quais sejam seu caráter conjunto e a noção de integração entre os lojistas.
Ana Isabel da Costa Afonso assevera que “em nome da especificidade dos centros comerciais, onde a atividade desenvolvida pelo seu titular presta um contributo considerável à criação do valor do estabelecimento comercial dos lojistas, reconheceu-se que o prazo de duração do contrato e as condições de sua renovação ou prorrogação podiam ser livremente pactuados pelos contraentes. Evidenciar-se-ia que o intuito protetor da lei é dirigido à criação do novo instrumento de riqueza que o estabelecimento comercial constitui. Ora, se o valor do estabelecimento do lojista é também criado pelo promotor do centro comercial, a aplicação da norma ao caso, perderia a razão de ser”[18].
Essa problemática, contudo, para a linha doutrinária capitaneada por Inocêncio Galvão Telles, só poderia ser resolvida pela via legislativa. Não se revela possível afastar a aplicação das normas do arrendamento aos contratos de instalação de lojistas em centros comerciais. Caberia, assim, aos jurisconsultos chamar a atenção do legislador para o problema e convencê-lo de uma reforma que quebre a rigidez asfixiante da regulamentação legal em vigor, que mantém o locador manietado dentro de um verdadeiro colete de forças[19]. A qualificação do contrato como atípico seria mero pretexto para se eximir a aplicação do regime do arrendamento aos contratos de instalação de lojistas, não podendo, por conseguinte, perseverar tal entendimento na ordem jurídica portuguesa.
A qualificação do contrato de instalação de lojistas em centros comerciais como contrato de arrendamento traria uma série de problemas que, contudo, só poderiam ser afastados por meio do labor legiferante. Não haveria espaço para qualificá-lo como atípico, sendo tal ilação propositada desculpa para se eximir da problemática lançada. Restaria, pois, a necessidade de feitura de um novo instrumento normativo hábil a tratar as situações contratuais em apreço.
2.3. Instalação de lojistas em centros comerciais como contrato atípico
Em direção diametralmente oposta, encontra-se o posicionamento doutrinário capitaneado por Antunes Varela[20]. Para tal linha de pensamento, estar-se-ia diante de um contrato atípico[21]. A operação para verificação da referida atipicidade passa por um duplo exercício. Primeiramente, faz-se necessário o levantamento rigoroso dos valores subjacentes ao contrato típico ou nominado que esteja em causa; em um segundo momento, efetiva-se o confronto do esquema abstrato de valores próprio do contrato típico analisado com os valores em jogo na espécie negocial particular cuja natureza jurídica se pretende determinar[22].
Neste ponto, revela-se importante salientar os traços distintivos que envolvem o desempenho do gestor do centro comercial. Sua atuação não está restrita a mera locação de um espaço físico para um determinado lojista. Contrariamente, é preponderante que opere de maneira concertada, atentando-se para o caráter de integralidade e complementaridade presentes em um shopping center. Assim, a distribuição das lojas, os elementos relativos à decoração, os sistemas de energia elétrica, a iluminação, o complexo de ar condicionado e os serviços prestados pela Administração são alguns dos afazeres e responsabilidades que integram a atuação do órgão gestor.
Seguindo essa linha de pensamento, o excesso e a peculiaridade de conteúdo das cláusulas acessórias em um contrato de instalação de lojista em centro comercial acabam por retirar-lhe a natureza de um contrato típico de arrendamento. As atribuições patrimoniais, que delineiam a atuação do gestor do empreendimento, somadas à reduzida autonomia de que goza o suposto locatário, levam ao desmantelamento da possibilidade de aplicação ao caso do instituto do arrendamento. São demasiadas as limitações, para ambas as partes, impostas por essa nova figura contratual. O contrato típico do arrendamento não se demonstra apto a suprir as vicissitudes do modelo contratual em apreço, restando-lhe a necessária configuração como contrato atípico. Todo o conjunto de benefícios de caráter patrimonial, da mais variada natureza, exorbita claramente, na sua totalidade, quer da estreita e limitada função econômico-social do arrendamento do prédio urbano ou da locação do estabelecimento comercial[23].
Pedro Pais de Vasconcelos, outro adepto da doutrina da atipicidade, restringindo-se ao objeto do contrato, assevera que “as lojas dos centros comerciais têm características específicas que lhes advêm da integração: desde logo, a pluralidade de lojas, o modo integrado como se relacionam e a dualização entre o que é próprio da loja e o que é comum do centro comercial”[24]. Essa característica essencial na configuração da estrutura em análise carrega como consectário efeito a sua exclusão do caráter típico de que se reveste a figura jurídica do arrendamento. É candente que o referido elemento não compõe a relação locatícia, assim como também é claro que se está diante de aspecto elementar na perfilhação de um centro comercial.
A referida tese doutrinária encontra guarida nos mais variados excertos jurisprudenciais lusitanos. A título de exemplo, o Supremo Tribunal de Justiça – STJ –, em acórdão datado de 12 de julho de 1994, apresentou entendimento em total harmonia com a tese defendida pelo professor Antunes Varela. Em seu sumário, apresenta-se a seguinte disposição: “A contratação referente à instituição e funcionamento de um centro comercial não pode deixar de ser havida como atípica, regulável pela vontade das partes, nos limites legais, pelas disposições gerais e, se necessário, pelas regras da figura típica que lhe esteja mais próxima”.
O contrato em apreço demonstra-se, para tal doutrina, como reflexo direto do princípio da autonomia da vontade. As cláusulas pactuadas resultam do poder das partes de convencionarem regras vinculativas para disciplinar os seus interesses. A liberdade contratual é manifestada nas mais variadas e peculiares cláusulas encontradas nos contratos de instalação de lojistas em centros comerciais. E, justamente por se estar diante de um excesso de particularidades, o contrato não está adstrito ao regime jurídico do arrendamento urbano.
Uma última vertente doutrinária materializa-se na inteligência de Oliveira Ascensão que, por seu turno, também carreia entendimento em consonância com a tese da atipicidade do contrato em exame. Contudo, seu juízo doutrinário centra-se em um novo elemento dinâmico, qual seja a integração empresarial.
Segundo o autor, “as regras do arrendamento comercial seriam de todo inaplicáveis em razão da natureza empresarial do contrato. Estar-se-ia diante de um contrato de integração empresarial em que o concessionário é integrado numa empresa mais vasta, que é o próprio centro comercial. Há na verdade uma relação entre duas empresas, que, aliás, se engloba num feixe de relações entre a empresa nuclear e as empresas singulares. O sentido do contrato é o de realizar a integração duma empresa singular no complexo do centro comercial”[25].
Tal inteligência já foi, inclusive, abordada em acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 24 de março de 1992. Em tal excerto, deu-se importante passo na configuração da atipicidade dos contratos travados entre lojistas e centros comerciais. O referido extrato jurisprudencial pautou-se na existência de uma espécie negocial nova, um contrato atípico ou inominado. Centrou-se no princípio da liberdade contratual, com conseguinte atenção às estipulações das partes e às regras dos contratos típicos afins em que exista a possibilidade de aplicação da analogia.
Em anotação ao acórdão retro, Oliveira Ascensão afirma que o douto aresto traz um considerável avanço ao qualificar com precisão este tipo de contrato e ao consagrar mesmo a categoria do contrato de integração empresarial. Mas chocou com um obstáculo que ele mesmo ergueu: a pretensa exigência de escritura pública[26]. O voto baseou-se em suposto erro formal para taxar como nulo o contrato firmado. Para tanto, o entendimento asseverado fundamenta-se em suposta infração ao art. 89.o, do Código de Notariado, que, por sua vez, estabelece que estejam sujeitas a escritura pública os negócios que tenham por objeto o gozo de estabelecimentos comerciais ou industriais. Observa-se que tal tese é facilmente afastada partindo-se do claro pressuposto de que não há ainda um estabelecimento comercial. Por conseguinte, não se revela possível configurar o gozo de algo que ainda não é juridicamente existente.
A atipicidade, que caracteriza a figura contratual da instalação de lojistas em centros comerciais, impele que tal modalidade de avença seja disciplinada de maneira autônoma pelas regras estipuladas entre as partes. Importa atentar, contudo, para as regras de caráter injuntivo, as quais o contrato não poderá estipular de maneira adversa. O contrato rege-se, ainda, subsidiariamente, pelo que resulte da sua própria natureza e pelas analogias que se traçarem com os contratos típicos[27].
SÍNTESES CONCLUSIVAS
Como elucidado, o nascimento da figura jurídica dos shopping centers revela-se como fenômeno típico da contemporaneidade. O objetivo premente dessa novel estrutura centra-se em uma cogente concentração do consumo em ambiente apto a proporcionar maior nível de facilidade, conforto e praticidade para a população de uma determinada urbe. Visa-se, por meio de um caráter de integralidade, a construção de um desenho que induza, em maiores escalas, os desejos capitalistas da massa consumidora.
Contudo, a realidade fática do tipo social “centro comercial” não encontra supedâneo legislativo adequado para o seu correlato tratamento jurídico. Os contratos firmados para a instalação de seus lojistas, apesar de difundidos no meio social, são alvo de diferentes cotejos doutrinários que versam acerca da definição de sua natureza jurídica e de seu consectário regime jurídico. A problemática apresentada centra-se, preponderantemente, em divergência entre duas teses. O primeiro entendimento cinge-se à tipicidade do contrato, impelindo em conseguinte aplicação do regime do arrendamento urbano às avenças em análise. Em lado oposto, está a inteligência pautada na atipicidade, restando à autonomia da vontade e à liberdade contratual o estabelecimento das vicissitudes que devem pautar a contratação.
Como demonstrado no desenvolvimento do presente estudo, a tese que se baseia na atipicidade logra mais êxito em suas asseverações e conclusões. O contrato de instalação de lojistas em centros comerciais é verdadeiro corolário da aplicação dos princípios da autonomia da vontade e da liberdade contratual. Em verdade, não há como qualificar um contrato como típico, quando se está diante de cláusulas acessórias que excedem em muito a natureza do tipo pretendido. A instalação de um lojista em um centro comercial é acompanhada de uma série de peculiaridades que têm por conseqüência direta a impossibilidade de simples aplicação do regime jurídico do arrendamento urbano. Desse modo, não prevalecem as asseverações que buscam no ordenamento jurídico português um modelo legal no qual se enquadre o contrato em apreço. Está-se, em verdade, diante de evidente contrato atípico, não se encontrando supedâneo adequado para sua qualificação como arrendamento comercial ou qualquer outro tipo de contratação prevista em lei.
A alcunha de contrato atípico, rotineiramente, é vista por parte dos doutrinadores com determinado receio. Parte-se do pressuposto que a ausência de referência direta a um tipo legal conduziria a demasiada insegurança jurídica. Importa salientar que o fato de estar-se diante de um contrato atípico não implica na impossibilidade de aplicação das normas gerais acerca dos negócios jurídicos, bem como das regras especiais relativas a contratos típicos, utilizando-se de analogia. A título de exemplo, poder-se-ia aplicar as disposições legais acerca das cláusulas contratuais gerais aos contratos de instalação de lojistas em centros comerciais, desde que compreendidos ao albergue daquela forma de contratação.
Outra ilação que não merece prosperar parte do entendimento reducionista de que a tese da atipicidade tem apenas o mero propósito de fraudar o previsto pelo texto legal. Partir-se-ia de uma pretensa atipicidade, unicamente, para eximir a contratação em apreço da aplicação das normas imperativas, presentes no regime jurídico do arrendamento urbano. Como demonstrado, não se está diante de mera justificativa para excluir a aplicação da legislação protecionista da locação de imóveis. Os elementos que compõem uma relação que envolva centros comerciais são tão característicos que retiram qualquer assimilação com o arrendamento por simples análise comparativa dos tipos. Não há como reduzir a um desenho jurídico já consagrado, a figura de um novo tipo social, marcado pelo excessivo número de particularidades.
Advogado em Minas Gerais; Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra – Portugal
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