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O abandono no Brasil e a ofensa ao direito ao conhecimento da origem genética

Resumo: Formas trágicas da ocorrência de abandono de recém-nascidos são diariamente anunciadas. E esse abandono fere o direito do filho em conhecer sua origem genética. Assim, o artigo propõe uma reflexão sobre a violação, através do abandono, do direito do filho em conhecer sua origem genética, com base na Teoria Tridimensional da condição humana.


 Palavras-chave: Abandono. Origem genética. Teoria Tridimensional.


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Sumário: 1 Introdução. 2 Abandono no Brasil. 3 Direito ao conhecimento da origem genética. 4 A diferença entre o direito ao conhecimento da origem genética e a declaração de paternidade/maternidade. 5 Teoria tridimensional do direito de família e o direito do filho em conhecer sua identidade genética. 6 Conclusão.


1 INTRODUÇÃO


A todo instante, ouve-se notícia de que um recém-nascido foi abandonado nas mais diversas situações: em latas de lixo, bueiros, rios poluídos. Alguns têm a sorte de ser encontrados com vida e, se não for identificada a família biológica, são encaminhados para uma família substituta, para adoção. Ocorre que nesta última situação, este sujeito acaba não tendo qualquer registro que o identifique com a família biológica. Assim, este trabalho objetiva abordar a violação ao direito ao conhecimento da origem genética diante das situações de abandono de recém-nascidos. 


Para alcançar os objetivos propostos, o trabalho de cunho científico utilizará o método indutivo para, através da analise doutrinária e de artigos eletrônicos e revistas, discutir à violação aos direitos de personalidade decorrentes do ato de abandono.


Nesse sentido, o estudo dividir-se-á em quatro partes. Inicialmente, serão verificados os antecedentes históricos do abandono no Brasil, em especial a respeito da Roda dos Expostos, bem como contextualizou-se o abandono. Na segunda parte do trabalho será analisado o direito à origem genética, abordando os direitos da personalidade, em especial o direito à identidade pessoal, que é gênero do direito à origem genética, que é o ponto norteador do trabalho.


Na terceira parte do trabalho, será abordada a distinção entre a declaração de paternidade/maternidade e o direito ao conhecimento da origem genética. Pois, o direito fundamental ao conhecimento da própria origem, derivado do direito ao conhecimento da sua identidade, não se confunde com o direito de filiação. 


Por fim, na última parte do trabalho, será feita uma análise entre a teoria tridimensional do direito de família e a observância do direito à origem genética.


2 ABANDONO NO BRASIL


Abandonar, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa (1996), significa: “deixar, desamparar, desprezar, renunciar”.


E o abandono de crianças não é fato recente. No Brasil, um modelo inspirado na tradição européia foi implantando como forma de garantir o acolhimento de recém-nascidos abandonados, bem como manter o anonimato de que os ali deixasse, conhecido como Roda dos Expostos. Tratava-se de um compartimento giratório instalado geralmente em igrejas e hospitais onde a criança era abandonada do lado de fora, e a mãe, girando a estrutura permitia que do outro lado a criança fosse recepcionada sem que fosse identificada.


Na segunda metade do século XIX, segundo Trindade (1999), as mães que enfrentavam dificuldades para manter seus filhos viam a Roda dos Expostos como única saída para que os mesmos não morressem de fome, enquanto as mães escravas, por sua vez, encontravam na Roda uma possibilidade de livrar seus filhos da escravidão. A Roda dos Expostos tinha cunho assistencialista, e foi uma das poucas instituições existentes na história que se preocupou com o bem estar de menores de idade.


“Até meados do século XIX, em geral, conceituava-se a criança em face do adulto, considerando-a como algo tão irrelevante, tão desvalioso, tão inexpressivo, que seu estudo se afigurava como desnecessário, uma coisa frívola e desprovida de cientificidade. Impunha-se apenas como necessário protegê-la, na maioria dos casos, de acordo com as normas cristãs. Mas essa proteção era apenas um dever moral, uma questão de caridade vista como incumbência das mães, e, na falta delas, de pessoas bem intencionadas”. (TRINDADE, 1999)[1].


Ainda, conforme Trindade (1999), a concentração do abandono nas vilas devia-se a várias razões, sendo a mais importante delas o fato de se caracterizar como um refúgio seguro contra o escândalo e a reprovação de gravidez indesejável. Desse modo, as instituições criadas para acolher e assistir os abandonados se constituía em agências para eliminação da infância indesejada.


“As mães iriam para as vilas não só devido à existência de estabelecimentos especiais para acolher seus filhos, mas também porque nas localidades de origem a criança ilegítima e o escândalo disso decorrente impediam as mães de encontrar alojamento e trabalho. Nas vilas existiam pessoas que, sob remuneração, ofereciam seus serviços às moças grávidas, e às mães solteiras. Não só os serviços de parteira, mas também de ajuda àquelas que quisessem se livrar do fruto de amores ilícitos. Algumas chegavam a fazer anúncios em jornais, como foi constatado por Molin, em seu estudo sobre Milão. Essa prática parece comum também em outras regiões da Europa no século XVIII”. (TRINDADE, 1999) [2].


Outra constatação, ainda segundo Trindade (1999), é a de que uma mãe solteira abandonada na miséria poderia tirar uma dupla vantagem do abandono: ela se livrava da criança e ganhava um salário se oferecendo como nutriz (ama-de-leite) no próprio estabelecimento.


As primeiras iniciativas de atendimento à criança abandonada no Brasil se deram segundo a tradição portuguesa, instalando-se a Roda dos Expostos nas Santas Casas de Misericórdia, quando o Estado chamou para si a responsabilidade pelo cuidado com crianças abandonadas, decorrente da política do Direito do Menor. Em princípio quatro: Salvador (1726); Rio de Janeiro (1738); Recife (1789); e ainda em São Paulo (1825), já no início do Império. Outras rodas menores foram surgindo em outras cidades após este período, informa Gallindo (2006).  Segundo a Santa Casa (2006), o Asilo do Santo Nome de Jesus funcionava num prédio na Rua da Misericórdia, próximo à atual sede da Santa Casa. A construção já não existe mais.   


A última Roda dos Expostos a ser desativada, em 1948, foi na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, que acolheu durante o tempo de seu funcionamento cerca de 5.700 crianças. Porém, de cada dez abandonadas três morriam, pois eram entregues já doentes ou desnutridas, observa Almeida (2008).


Atualmente, a Constituição Federal de 1988 adotou a Doutrina da Proteção Integral, garantindo a crianças e adolescentes direitos individuais, entre eles o direito à vida e a convivência familiar, o que, por si só, afastaria qualquer situação de abandono. Porém, mesmo assim, as noticias sobre o tema são constantes.


“Dois exemplos ajudam a entender porque a discussão recomeçou: Um deles aconteceu no dia 30 de setembro de 2007, na cidade de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais, um bebê morreu cinco dias após ter sido jogado pela própria mãe no poluído ribeirão Arrudas, logo após nascer. A mãe foi indiciada por homicídio qualificado por motivo fútil e torpe. Outro caso ocorreu em fevereiro de 2006, quando uma criança de dois meses foi abandonada pela mãe num saco plástico na lagoa da Pampulha, também na capital mineira, após ter tido alta da maternidade”. (ALMEIDA, 2008, p. 26).


Almeida (2008) complementa que, a exemplo dos mencionados, poucos bebês sobrevivem, a maioria morre em razão de ferimentos, hemorragias, infecções generalizadas e edemas cerebrais ocasionados pela violência do abandono. Freitas (2008) destaca que o abandono de recém-nascidos é uma realidade recorrente. Em todo Brasil é crescente o número de recém-nascidos abandonados em condições indignas e subumanas. A forma cruel com que os abandonos acontecem choca a sociedade e demandam uma medida efetiva por parte do Poder Público.


Um dos principais motivos para o abandono em vias públicas é o constrangimento da mãe em entregar o próprio filho e, também, por ser considerado crime pelo Código Penal Brasileiro. O Código Penal tipifica como crime o abandono de incapaz e a exposição ou abandono de recém-nascido[3].


Neste sentido, observa Almeida (2008), que a criminalização da conduta, na verdade, agrava a situação, pois os genitores, por temor à punição, acabam por procurar maneiras para lançar os recém-nascidos à própria sorte. É essa clandestinidade do abandono que confere maior crueldade e indignidade aos recém-nascidos. Esse abandono feito “às escuras” torna a vida dessas crianças ainda mais vulnerável e exposta a sofrimentos de diversas ordens.


A Constituição Federal de 1988 preceitua que é dever da família assegurar a criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à educação, à dignidade, entre outros direitos. Segundo Albuquerque (2008)[4] são normas dotadas de efetividade jurídica e sua inobservância impõe responsabilidades, neste sentido argumenta:


“A decisão de entregar um filho em adoção ou a idéia de fazê-lo pode ter vários significados, desde aceitar a impossibilidade de criá-lo, ou aceitar a frustração do amor e do desejo de maternar. O significado deste termo o difere da maternidade. Enquanto este diz respeito à procriação, à esfera do biológico. Àquele é inscrito no âmbito sócio afetivo da criação dos filhos, pertence à esfera social no universo relacional/interacional entre mãe e filho.”


É possível suscitar, conforme Albuquerque (2008), duas ordens de motivação: a entrega da criança e o abandono propriamente dito. Sem dúvida tanto a entrega quanto o abandono propriamente dito são espécies do gênero abandono, mas cada qual apresenta dimensões distintas e reflexos no tocante à integridade psíquica do filho. Chega-se a uma encruzilhada, de um lado a sociedade tipifica como crime o abandono, de outro há a omissão do dever de garantir os princípios constantes na CF/88, bem como a censura e discriminação quando a mulher resolve entregar o filho.


Não é possível acreditar que uma mulher resolva entregar um filho para adoção por prazer. Conforme Gozzo (2008), não se leva uma gravidez adiante, muitas vezes, sem condições econômicas, sem a possibilidade de acompanhamento pré-natal, sem qualquer tipo de assistência, porque se deseja. Uma mãe, em geral, não abandona um filho porque não o quer, mas sim porque não se sente em condições psicológicas, econômicas, familiares, de mantê-lo ao seu lado. Não se trata de uma decisão fácil para uma mulher. Assim como não basta só a elaboração de lei sobre planejamento familiar com o fim de dar cumprimento ao dispositivo de ordem constitucional, para que uma gravidez indesejada seja descartada.


Atualmente, quando a genitora pretende entregar seu filho para adoção, conforme previsão no Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8.069/90) não será o caso de abandono e a mesma não será responsabilizada por tal ato[5]. Mesmo assim, em especial por receio de ser discriminada, muitas mães continuam optando pelo abandono de recém-nascidos.


3 DIREITO AO CONHECIMENTO DA ORIGEM GENÉTICA


O direito à identidade genética decorre do direito amplo à identidade, assegurado pelo princípio da dignidade humana, que rege os direitos fundamentais. (GOBBO, 2004). É importante reforçar que o direito à identidade genética trata-se de direito da personalidade, tendo em vista os efeitos e prerrogativas que tal atributo traz em si, entendimento tanto da doutrina quanto da jurisprudência.


A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, ao tratar dos Direitos e Garantias Fundamentais efetivou a tutela de alguns dos mais importantes direitos inerentes à condição humana, o reconhecimento dos direitos da personalidade. 


A idéia de personalidade é o que está intimamente ligada à da pessoa, pois exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações, é um atributo jurídico. Já direitos da personalidade são, “garantias máximas de que dispõe o ser humano; são muralhas que resguardam aquilo que ele tem de mais valioso”. (ELESBÃO, 2002, p. 16-17).


Para Bittar (1996), os direitos da personalidade são próprios da pessoa em si, diante da dignidade da pessoa humana ou referente às suas projeções para o mundo externo.  Salienta ainda, que são direitos de natureza e de caracteres próprios, distintos dos demais que compõe o estatuto da pessoa, destinados a preservar as pessoas em suas interações no mundo social e no âmbito privado.


“Consideram-se como da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos no homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos.” (BITTAR, 2003, p. 01).


Desse modo, ressalta Gobbo (2004), que apesar dos direitos da personalidade e os fundamentais terem a mesma essência e objetivo, nem todos os da personalidade coincidem com os fundamentais, pois, os da personalidade dizem respeito apenas aos direitos inatos ao ser humano em si (relações de direito pessoal e privado), e os fundamentais tem uma noção mais ampla (relações que envolvem questões do Estado). 


Já o direito à identidade pessoal é um dos direitos de cunho moral, porque se constitui no elo de ligação entre o indivíduo e a sociedade em geral, segundo Bittar (2003). Ainda destaca o autor que, o nome e outros sinais identificadores da pessoa são os elementos básicos de associação de que dispõe o público em geral para o relacionamento normal, nos diversos núcleos possíveis: familiar, sucessório, negocial, comercial e outros.


Segundo Gobbo (2004), a doutrina vem afirmando que se tem hoje no Direito de filiação brasileiro um princípio jurídico que autoriza a busca da verdade biológica em casos de filiação, dado que o estado de filiação é direito da personalidade. Nesse sentido, o reconhecimento pela Constituição Federal do direito à identidade pessoal, visando garantir aquilo que identifica cada pessoa como indivíduo singular e irredutível, compreende duas dimensões, segundo Otero (1999, p. 64):


“a) A identidade pessoal tem uma dimensão absoluta ou individual – cada pessoa tem uma identidade definida por si própria, expressão do caráter único, indivisível e irrepetível de cada ser humano: cada pessoa é, por isso, uma realidade singular, dotada de uma individualidade que a distingue de todas as demais; b) A identidade pessoal comporta também uma dimensão relativa ou relacional – cada pessoa tem a sua identidade igualmente definida em função de uma memória familiar conferida pelos antepassados, assumindo aqui especial destaque os respectivos progenitores, podendo falar-se num “direito à historicidade pessoal”.”


Mas Gobbo (2004) observa que nem sempre a ascendência biológica tem relação direta com o estado de filiação. Nessas situações pode-se estar em frente a uma dicotomia: o direito ao reconhecimento da filiação e o direito à origem genética. Além do princípio da dignidade humana, também o direito à vida abarca o direito à identidade, o direito à historicidade e á informação da sua ascendência genética como reflexos do relevo na vida da pessoa.


A identidade pessoal comporta também uma idéia de relação: cada ser humano, além de uma singularidade própria e exclusiva, tem a sua identidade definida, paralelamente, pela história ou memória em que se encontra inserida a sua existência no confronto com outras pessoas. O direito à identidade pessoal se afere pela singularidade, indivisibilidade e irrepetibilidade de cada ser humano, mas também essa identidade pessoal compreende, simultaneamente, o conhecimento da história de cada pessoa. (OTERO, 1999).


Barbas (1998), informa que não é fácil uma definição abrangente de patrimônio genético considerada a sua complexidade intrínseca. Seria o universo de componentes físicos, psíquicos e culturais que começam no antepassado remoto, permanecem constantes embora com naturais mutações ao longo das gerações, e que, em conjugação com fatores ambientais e num permanente processo de interação, passam a construir a nossa própria identidade e que, por isso, temos direito de guardar e defender e depois transmitir.


A Lei Nº. 12.010/2009, aprovada em 29 de julho de 2009, que ficou conhecida como “nova lei de adoção”, assegura ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica e acesso ao processo de adoção (artigo 48): “O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos”.


Portanto, não há mais dúvida do direito de qualquer pessoa conhecer sua origem genética.


4 A DIFERENÇA ENTRE O DIREITO AO CONHECIMENTO DA ORIGEM GENÉTICA E A DECLARAÇÃO DE PATERNIDADE/MATERNIDADE


O direito ao conhecimento da origem genética, segundo Lôbo (2009), não está coligado necessária ou exclusivamente à presunção de filiação e paternidade/maternidade. Sua sede é o direito da personalidade, que toda pessoa humana é titular, na espécie direito à vida. É forte e razoável a idéia de que alguém possa pretender tão apenas investigar a sua ancestralidade, buscando a identidade biológica pela razão simplesmente de saber-se de si mesmo.


“O estado de filiação deriva da comunhão afetiva que se constrói entre pais e filhos, independentemente de serem parentes consanguíneos, Portanto, não se deve confundir o direito da personalidade à origem genética com o direito à filiação, seja genética ou não”. (LÔBO, 2009, p. 207).


Assim, a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, uma vez que outros são os valores que passaram a dominar esse campo de relações humanas. A imputação da paternidade/maternidade biológica não substitui o estado de filiação. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo. (LÔBO, 2009).


Em síntese, a filiação socioafetiva compreende a relação jurídica de afeto com o filho de criação, quando comprovado o estado de filho afetivo (posse de estado de filho), a adoção judicial, o reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade ou maternidade e a conhecida “adoção à brasileira[6]”, incluindo as hipóteses de fecundação heterólogas. (GOBBO, 2004).


Impõe-se assim, a distinção entre a origem genética e paternidade/maternidade. Ou seja, segundo Lôbo (2000), a filiação não é um determinismo biológico, ainda que seja da natureza humana o impulso à procriação. Na maioria dos casos, a filiação deriva da relação biológica, todavia, ela emerge da construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na responsabilidade. Há de se distinguir o direito da personalidade ao conhecimento da origem genética, o direito à filiação e à paternidade/maternidade, nem sempre são genéticos.


5 TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO DE FAMÍLIA E O DIREITO DO FILHO EM CONHECER SUA IDENTIDADE GENÉTICA


Welter (2009) entende que todo ser humano tem um modo existencial de ser-no-mundo-genético, de ser-no-mundo-afetivo e de ser-no-mundo-ontológico, sendo, portanto, um ser tridimensional, cuja condição humana não poderá ser confiscada por meio da legislação.


Em sua pesquisa sobre a teoria tridimensional, Welter (2009), sustentou que para o ser humano ser compreendido como humano, e não como uma coisa, precisa habitar o mundo humano tridimensional, da genética, da (des)afetividade e da ontologia. No sentido de que estes mundos estão sempre interrelacionados, condicionando-se uns aos outros.


“O mundo biológico é o mesmo em todos as seres vivos, dos objetos a nossa volta, o mundo natural, dos organismos, das leis, dos ciclos naturais de dormir, acordar, nascer, morrer, desejo, alívio, determinismo, necessidade biológica, impulso, instinto, o mundo em que o ser humano existe mesmo que não tivesse autoconsciência; O mundo (des)afetivo é o dos interrelacionamentos entre os seres humanos em família e na sociedade, em que, por exemplo, ele  não deve insistir para que o outro membro familiar se ajuste a ele ou a ele ao outro, porque, nesse caso,


ambos não estarão convivendo e compartilhando no mundo afetivo, e sim no mundo genético, no mundo do instinto, das necessidades dos seres vivos em geral. É no mundo afetivo que o humano deixa de ser um mero ser vivo, passando a ser pessoa, tendo em vista que mergulha no mundo da linguagem; O mundo ontológico é o da percepção de si mesmo, do autorrelacionamento, do autoconhecimento, o significado que uma coisa ou outro ser humano tem para ele, e não para os outros, é a percepção do senso da realidade como ela é, e não como ela nos é imposta pela cultura jurídica do mundo ocidental, numa relação entre sujeito e sujeito (de humano para humano)”. (WELTER, 2009, p. 169).


Conforme Welter (2009), na legislação comparada é argumentado que a principal questão da investigação da paternidade/maternidade é o filho saber a sua origem genética, sua ancestralidade, sua identidade, suas raízes, de entender seus traços socioculturais (aptidões, doenças, raça, etnia), direito de vincular-se com alguém que lhe deu a bagagem genético-cultural básica, seu mundo genético.


“Investigar o nascedouro biológico é conhecer e ser a ancestralidade, a identidade pessoal, para impedir, por exemplo, o incesto, preservar os impedimentos matrimoniais, evitar enfermidades hereditárias, enfim, para receber o direito de cidadania, na qual estão incluídos todos os direitos e garantias do parentesco genético, afetivo e ontológico, porquanto “cada geração transmite um patrimônio social de usos, costumes, tradições e idéias à geração seguinte, para continuidade social””. (WELTER, 2009[7]).


Nesse sentido, Welter (2009) salienta que no decorrer da trajetória da vida, o ser humano vai adquirindo direitos, que vão moldando os seus modos de ser-no-mundo, encontrando-se em formação contínua da vida, motivo pelo qual nenhum desses episódios poderá ser renunciado, sob pena de renunciar à carga biológica, à história, à experiência de vida, à evolução da civilização, à linguagem humana e a toda temporalidade, que conduz o modo de ser-em-família, ser-em-sociedade e ser-no-mundo-tridimensional.


Ainda complementa, “é preciso desmistificar a idéia de que na família está compreendida a linguagem do anonimato, porque ela encobre os três mundos existenciais, pelo que o texto do direito de família não significa normatização humana anônima, mas, sim, existencial humano genético, afetivo e ontológico”. (WELTER, 2009).


Portanto, para garantir a tutela do direito da personalidade, não há necessidade de se investigar a paternidade/maternidade. O objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie de direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para prevenção da própria vida, e, também, para saber de si mesmo, conhecer a sua história. Não há necessidade de se atribuir a paternidade/maternidade a alguém para se ter o direito de conhecer suas origens reconhecido. 


6 CONCLUSÃO


Como se observou no decorrer deste trabalho, o problema do abandono de recém-nascidos já existia durante a Idade Média, cuja prática se configurava em um mero acontecimento, irrelevante para o ordenamento jurídico. 


Nesse contexto, ainda hoje são noticiados abandonos de recém-nascidos que são largados em latas de lixo, riachos, portas de residências entre outros locais não propícios para estes seres humanos que necessitam de cuidados específicos para sobreviverem.


O abandono e o descaso não possibilitam a criança o conhecimento da origem genética, criando uma afronta ao direito do filho de conhecer sua ancestralidade. O abandono possibilita a mitigação dos direitos da personalidade, pois se trata de direitos indisponíveis, no caso a proteção do direito personalíssimo à identidade do filho, que se refere ao gênero, do qual são espécies o direito à identidade genética e o direito ao nome.


O acesso aos dados genéticos é direito personalíssimo e potestativo do filho. Recentemente no Brasil com a Nova Lei da Adoção, em seu art. 48, há previsão de proteção a este direito. O conhecimento da origem biológica proporciona ao ser humano medidas de prevenção de futuras doenças e até mesmo do incesto, assim, por um raciocínio dedutivo, o acesso à origem genética é medida garantidora do direito à vida, protegido no caput do art. 5º da Constituição Federal.


Assim, o estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços afetivos entre pai e filho, constitui fundamento suficiente para a atribuição da paternidade ou maternidade. O que nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao conhecimento de sua origem genética. São duas situações distintas, tendo a filiação afetiva natureza de direito de família e a filiação biológica de direito da personalidade.


Portanto, conclui-se que a genitora que abandona o filho, além de estar sujeita a sanções de natureza penal, e estar violando a dignidade do filho, também coloca em risco a garantia ao conhecimento de sua origem genética, razão pela qual, o abandono deve ser refutado de forma veemente.


 Sugere-se, além de campanhas publicitárias esclarecedoras acerca do tema, atendimento integral à gestante para evitar que a mesma opte pelo abandono, orientando-a a respeito das formas legais de entregar o filho.


 


Referências

ALBUQUERQUE, Fabíola Santos.  O Instituto do Parto Anônimo no Direito

Brasileiro.  2008. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/anais_download.php?a=64>. Acesso em: 08 mar. 2009.

ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e dignidade humana. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Adoção à Brasileira e a Verdade de Registro Civil. São Paulo: IOB Thomson, 2006.

ALMEIDA, Marília. Revista Visão Jurídica: Parto Anônimo. São Paulo: Escala, n. 24, 2008.

BITTAR, Carlos Alberto. Curso de Direito Civil. v. 1. São Paulo: Forense, 1996.

BITTAR, Carlos Alberto.  Os Direitos da Personalidade.  6. ed. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2003.

BRASIL. Constituição: República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF:

Senado Federal, 1988.

BUENO, Francisco da Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. Ed. rev. e atual. São Paulo: FTD: LISA, 1996.

ELESBÃO, Elsita Collor (Coord.). Pessoa, gênero e família: uma visão integrada do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

FREITAS, Douglas Phillips.  Parto Anônimo. 2008. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=412>. Acesso em: 16 mai. 2008.

GALLINDO, Jussara.  Roda dos Expostos. 2006. Disponível em:

<http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_roda_dos_exposto

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GOBBO, Edenilza.  FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E DIREITO AO CONHECIMENTO

DA ORIGEM GENÉTICA: a contraposição de um direito de personalidade ao direito de filiação.  2004. 45 f. Monografia (Especialização em Direito Civil)-Pontifica Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004.

GOZZO, Débora.  Entrevista sobre Parto Anônimo. 2008. Disponível em:

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LÔBO, Paulo. Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. (Direito Civil)

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família.  A Família na Travessia do Milênio. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.

OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: um perfil constitucional da bioética. Coimbra: Livraria Almedina, 1999.

SANTA CASA.  Roda dos Expostos. Disponível em:

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TRINDADE, Judite Maria Barboza.  O abandono de crianças ou a negação do óbvio. 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

01881999000100003>. Acesso em: 09 abr. 2009.

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WELTER. Belmiro Pedro Marx. 2008.  Parto anônimo e a condição humana tridimensional. Disponível em: <http://www.mp.rs.gov.br/atuacaomp/not_artigos/id15046.htm>. Acesso em: 13 set.

2009.

WELTER, Belmiro Pedro. Teoria tridimensional do direto de família. Porto Alegre:

Livraria do Advogado Editora, 2009.


Notas

[1] Não consta página por se tratar de documento eletrônico.

[2] Não consta página por se tratar de documento eletrônico.

[3] Art. 133. Abandonar pessoa que esta sob o seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: Pena – reclusão, de seis meses a três anos. § 1º Se o abandono resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de um a cinco anos. § 2º Se resulta a morte: Pena – reclusão, de quatro a doze anos. § 3º As penas cominadas neste artigo aumentam-se de um terço: I – se o abandono ocorre em lugar ermo; II – se o agente é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima; III – se a vítima é maior se sessenta anos.

Art. 134. Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria: Pena – detenção, de seis meses a dois anos. § 1º Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – detenção, de um a três anos. § 2º Se resulta a morte: Pena – detenção, de dois a seis anos.

[4] Não consta página por se tratar de documento eletrônico.

[5] Parágrafo único. Art. 13.  As gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas à Justiça da Infância e da Juventude.

[6] O instituto da Adoção à Brasileira via de regra é associado às searas pena e civil. Consiste no ato de registrar filho de outro como próprio. (ALBUQUERQUE, 2006, p. 347).

[7] Não consta página por se tratar de documento eletrônico.

Informações Sobre os Autores

Carlize Wibrantz

Edenilza Gobbo

Advogada em São Miguel do Oeste/SC
Professora de Direito Civil na UNOESC/SC e Mestre em Direito pela UFSC


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Equipe Âmbito Jurídico

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