Resumo: Este artigo tem o objetivo de examinar o tratamento do conflito num momento em que a crise do Estado-jurisdição afeta vários países, cujos Tribunais operam além dos seus limites. Diante desse quadro, a procura por alternativas na solução dos conflitos para que se efetive o acesso à justiça, mostra-se evidente e necessária à segurança jurídica. No entanto, a busca por essa efetividade deve se dar com cautela, para que na ânsia de resolver a crise do Estado-jurisdição não se crie na verdade, obstáculos ainda mais graves ao acesso à justiça, como a adoção de um sistema de mediação obrigatória ou a processualização da mediação, desnaturando sua essência.
Palavras-chaves: Acesso à justiça. Efetividade. Mediação. Conflitos. Judiciário.
Sumário: I. A denominada “crise do judiciário”. II. A contribuição de Eligio Resta para a melhor compreensão do problema. III. A mediação hoje na Itália: judicial e obrigatória? IV. Peculiaridades do caso brasileiro. V. Reflexões e ponderações. VI. Bibliografia.
I. A denominada “crise do judiciário”.
A crise das instituições, especialmente do Judiciário[1], é a praga do Estado contemporâneo.
A obstrução das vias de acesso à justiça, problema cada vez mais crescente nos países da América Latina e na Europa, promove um distanciamento cada vez maior entre o Poder Judiciário e a população.
Em diferentes países, a crise do Estado-jurisdição se fortalece com uma instituição burocrática e lenta, desacreditada pelo povo e que representa na verdade um convite a demanda, potencializando os conflitos.
O marcante crescimento do acesso à justiça, que evoluiu conjuntamente com a passagem da concepção liberal para a concepção social do Estado moderno, permitiu que diferentes grupos sociais buscassem meios eficazes de tutela para a solução dos seus conflitos. Naquela época em que prevalecia como máxima dominante o laissez faire, todas as pessoas eram formalmente presumidas iguais e os mecanismos de acesso à justiça eram criados sem preocupação com sua eficiência prática ou efetiva.
Assim, partindo da ideia de egalité, um dos marcos da Revolução Francesa, o Estado não deveria intervir nas disputas, permanecendo passivo em relação à incapacidade que muitas pessoas tem de utilizar plenamente a Justiça. Esse procedimento adotado para a solução dos litígios repercutia a filosofia essencialmente individualista dos direitos refletida nas “declarações de direitos”, típicas dos séculos XVIII e XIX e que assumiram a partir do século XX, um caráter mais coletivo.
O modelo democrático moderno que se afirmou como decorrência da renovação do “pacto social” reclamada pela filosofia política desde o século XVII, partia do estado de natureza de Locke, para justificar um Estado de poderes limitados[2].
E, na visão liberal nascente, o conflito ocorreria sempre entre indivíduos e sempre para reivindicar direitos, de uns sobre os outros; a lei abstrata, apresentar-se-ia como o parâmetro da solução deste conflito, aplicada por um juiz imparcial, e se após o julgamento, houvesse resistência num ameaçador desafio à sociedade, o ato poderia ser reprimido, com uso inclusive da força.
Verdade que a composição justa dos conflitos vem se tornando cada vez mais complexa, pois além do crescente demandismo representado pelas lides individuais, cuja solução se resume a resolver a pendência na dicotomia vencedor-vencido, a crise na prestação jurisidicional se mostra mais evidente na solução dos megaconflitos que hoje se expandem pela sociedade massificada e competitiva, mostrando-se a solução adjudicada não raro, deficiente.
Em ambos os casos, a pretensa solução se resume a resolver apenas a crise jurídica, deixando em aberto as pressupostas crises de outra natureza, as quais por não terem sido conjuntamente dirimidas, a tendência é que retornem num momento futuro, porventura até recrudescidas.
O crescente acesso à justiça para a solução de conflitos de interesse em áreas socialmente impactantes evidencia que o termo jurisdição não pode mais se restringir ao clássico dizer o Direito, ou seja, não basta a garantia do acesso à justiça, mas à essa liberdade pública deve-se agregar o direito a um provimento jurisdicional idôneo a produzir os efeitos práticos a que ele se preordena.
Nesse contexto a obsessiva produção de normas, muitas vezes de escassa eficiência, que é símbolo de vários ordenamentos, acaba abrindo uma fenda abissal entre o mundo do dever ser e o mundo efetivo e real do ser.
E cada vez mais se inova a legislação processual e mais controvérsias entre os operadores jurídicos surgem, retardando o trâmite dos processos acumulados nos Tribunais, que associado à falta de recursos humanos e materiais, a cultura judiciarista que resiste aos meios alternativos de resolução de conflitos, e a ineficiência das instâncias administrativas em equacionar os conflitos que surgem em nossa sociedade, fazendo com que eles acabem judicializados, criam o ambiente propício para a crise que se avista, motivando um incremento na litigiosidade sem que o Estado tenha condições para atendê-la, ou tentando fazê-lo, responde a destempo ou de forma inconsistente.
Como bem observado por Boaventura de Souza Santos, Maria Manuel Leitão Marques e João Pedroso[3], o problema do excesso legislativo reflete a tendência de cada povo ao posicionar suas escolhas para resolver os conflitos por meios autocompositivos ou através da adjudicação.
No Brasil, embora o acesso à justiça figure entre os direitos e garantias fundamentais, é mister um reexame da expressão para que o instituto não seja minimizado à mera oferta generalizada e incondicionada do serviço judiciário estatal[4].
Por tudo isso, é que tem se diagnosticado a inaptidão do Judiciário para recepcionar e resolver eficazmente as lides, que depassam a crise estritamente jurídica e vão além do interesse egoístico dos sujeitos indivíduos; a litigância judicial assume um horizonte retrospectivo, versando sobre eventos passados, muitas vezes instável e contraditória que culmina com uma explosão de litigiosidade.
Nesse preocupante cenário, não podemos nos furtar à estimada contribuição a este estudo com relação ao ordenamento jurídico italiano, a partir da primorosa obra de Elígio Resta, principal teórico desse tema que a partir da década de 90 apresenta seu arrebatador texto Il Diritto Fraterno.
II. A Contribuição de Eligio Resta para a melhor compreensão do problema.
Arrebatador porque Resta retoma a concepção de fraternidade[5] lançada na Declaração de Direitos do Homem tentando justamente apresentar respostas e mostrar o verdadeiro sentido da fraternidade que até então repousava numa aparente fragilidade diante da falta de fundamentos que lhe pudessem conferir um tratamento adequado, “provocando nelle culture giuridiche e politiche una necessaria e salutare auto-riflessione”, deduzindo ainda que “la fraternitá è soltanto consapevolezza di dover pretendere distanza dalle logiche dell´inimicizia e condividere spazi comuni a ogni altro individuo, con la sua vita, storia, dignità”.
E um dos pilares mais relevantes do Direito Fraterno[6] é consolidado sob o alicerce de uma sociedade humana, retratando um direito não violento, em que se busca a inclusão e o mais importante, a ruptura do binômio amigo-inimigo, convenção arraigada no processo judicial tradicional.
Essa parametrização da aplicação do remédio ao conflito de interesse, como bem evidenciado por Resta[7], navega num nível de policy que emerge de um sistema no qual não se busca a causa do conflito, mas incrementa-se o aparato judiciário que “vive nel confflitoe del confflito che egli decide, pronunciando l´ultima parola” na ilusão de que isto pode diminuir a conflituosidade, e assim “Il rimedio reagisce sul rimedio ma non ha nessuna diretta incidenza su cause, dimensioni, effetti dei la litigiosità che determinano i conflitti”.
Temos repetido o pensamento do Mestre no sentido de que a oferta monopolística de justiça foi incorporada no interior do sistema da jurisdição, delegado a receber e a regular uma conflituosidade crescente, sendo que tecnicamente o que levou o sistema jurisdicional a altos graus de ineficiência, foi um crescimento vertiginoso das expectativas sociais sobre o sistema[8].
Tecnicamente o que se chama explosão da litigiosidade, que tem muitas causas, mas que nunca foi analisado de forma mais profunda.
É notório como a nossa estrutura jurídico-política foi sempre muito atenta aos remédios (portanto reformas perenes das normas), quase nunca às causas, deixando de lado análises atentas sobre a litigiosidade que cresce, que é constantemente traduzida na linguagem jurídica e que se dirige à jurisdição sob a forma irrefreável de procedimentos judiciários.
Em face de tal hipertrofia, a direção da política do direito deve ser no sentido de uma jurisdição mínima, contra uma jurisdição tão onívora e ineficaz[9].
A explosão da litigiosidade que caracteriza as sociedades contemporâneas, e preocupa, é de causa complexa, mas sem dúvidas também é fomentada pela abundante normatividade, que de forma isolada não consegue prevenir a formação do conflito, resolvê-lo, e tampouco serve para dissuadir os destinatários a não infringi-la.
É experiência característica de países com ordenamento jurídico pouco efetivo e baixa credibilidade social, que dificulta o conhecimento ou confunde a população, tornando-se um obstáculo ao próprio cumprimento destas normas.
E ainda, a resistência de algumas sociedades à autocomposição dos conflitos, seja por uma cultura demandista ou por orientação do próprio Poder Judiciário que não admite a perda do controle e poder sobre a sociedade, acaba por sobrecarregar a já exaurida capacidade produtiva jurisdicional[10].
Diante desta crise, reacender o debate em torno da fraternidade significa operar a propulsão para retirar do Estado a função exclusiva de dizer o direito e colocá-lo numa função de articulador da solidariedade, sem esquecer, todavia, que também há um comodismo e uma orientação social em atribuir tudo ao Estado, especialmente a solução dos seus conflitos, sem reconhecer que o Estado é a própria sociedade que vem se tornando cada vez mais incapaz de resolver tais impasses.
A sociedade deve se conscientizar de que o acesso à justiça deve ser uma espécie de cláusula de reserva, descabendo sua propagação generalizada, ao risco de se incrementar o ambiente de conflituosidade geral que tornou-se característica de muitos países principalmente da civil law, convertendo o direito de ação à um perigoso convite a litigância, tendência cada vez mais gravosa na medida em que o Estado contemporâneo também se coloca a remediar o conflito, ao invés de identificar e enfrentar as causas do problema.
A cultura de que qualquer interesse contrariado deve ser submetido ao judiciário deve ser urgentemente modificada, pois a ação é um direito do jurisdicionado e não um dever[11].
Essa capacidade limitada da solução adjudicada tem se mostrado ineficaz, protrai o fechamento da demanda a um futuro incerto, e muitas vezes não resolve o problema, pois apenas agrega estabilidade – indiscutibilidade da decisão. Desse modo, a busca por um sistema paralelo para colaborar com o modelo oficial não é apenas oportuna, como essencial.
Surge então com expectativa a adoção de métodos alternativos endo ou paraprocessuais para a solução das demandas, como antídoto contra a crise jurisdicional, que não deve cingir-se apenas a descongestionar os Tribunais ou promover a cura para um litígio, mas deve sim buscar a sua solução plena, duradoura e de forma pacífica, não violenta, buscando a solução de conflito em conjunto, amenizando-se a a dependência social da juridição, no molde desenhado pelo Direito Fraterno.
Mas cabe ressaltar desde já, que a busca pela autocomposição do conflito deve ser uma opção, pois quando o cidadão busca refúgio no meio alternativo não por livre escolha, mas para se livrar dos riscos de um processo judicial lento, ineficaz e oneroso, certo é que o as bases do acesso à justiça encontram-se ameaçadas[12].
Deve ficar claro porém, que a intenção não é a defesa do fim da jurisdição enquanto forma de adjudicação e tampouco imaginar que os métodos autocompositivos são a solução mágica para a crise do Estado-juiz, mas sim conscientizar o Poder Judiciário de que o cumprimento de seu papel constitucional não consiste necessariamente na intervenção em todo e qualquer conflito[13]; e nessa perspectiva a efetividade da prestação jurisdicional significa intervir quando necessário, como ultima ratio[14], e incentivar o estudo do direito através de uma ótica transdisciplinar e não somente por uma mirada dogmática e formalista, construindo um novo referencial para a ciência do direito.
A concepção contemporânea de jurisdição vai deixando então de ser tão centrada no poder, para conectar-se à ideia de soberania aderindo à função que o Estado Social de Direito deve desempenhar no sentido de promover a solução justa dos conflitos, em seu sentido pleno, com uma tutela adequada[15], num tempo razoável.
Também não se pode negar que o resultado do tratamento de uma controvérsia emerge em função do grau de cooperação e de competitividade das partes dentro do processo de resolução.
O processo competitivo adversarial origina vencedores, enquanto o processo cooperativo amparado na doutrina do Direito Fraterno, determina ganhadores. Entende-se até de um modo amplo, que mesmo que a parte vença uma disputa, não logra um conflito construtivo, pois a satisfação de objetivos unilaterais, unicamente individuais, cristaliza o egocentrismo, auxiliam o totalitarismo e provocam com o tempo, consequências sempre destrutivas.
O conflito também se tornará eminentemente prejudicial quando os mecanismos para resolução utilizados são inadequados, por retirar do conflito o que ele tem de melhor, sua capacidade de gerar a satisfação de interesses e resoluções construtivas.
Quando esses mecanismos são descartados, a função do conflito é a produção de violência ou outros conflitos. A decisão judicial pode interromper ou acelerar o processo de causa e efeito, mas não propicia a mudança necessária para a evolução que o conflito pode provocar. A questão determinante da função do conflito será então, a escolha do processo de resolução que possa atender aos resultados desejados[16].
E nessa esteira de insatisfação, que parte de uma insuficiência estatal para atender as demandas sociais e os conflitos de interesse como um todo, delinea-se com entusiasmo, o sistema de métodos alternativos à jusrisdição ou Alternative Dispute Resolution (ADR) para a solução dos conflitos, pautado numa prática discursiva, criando através do diálogo e não da força coercitiva, uma resolução para o conflito, cuja legitimidade deste resultado encontra suas bases no próprio processo comunicativo que lhe originou[17].
Esse artifício comunicativo sobre o qual se constrói uma razão comunicativa nos moldes propostos por Habermas[18], fornece as ferramentas necessárias para a análise do mecanismo da ADR e esclarece como a linguagem pode influenciar neste processo interindividual, dentro de um amplo processo de argumentação entre as partes, reconhecendo a figura do outro, enquanto diferente[19] o que também se coaduna com as diretrizes do Direito Fraterno.
III. A mediação hoje na Itália: judicial e obrigatória?
No sistema europeu, a política de valorização da solução consensual de conflitos entrou na ordem do dia na European Judicial Area, desencadeada a partir da edição da Diretiva 52, de 21 de maio de 2008[20] pelo Parlamento Europeu, oriunda da recomendação fundamental lançada em 1998 (98/257/CE) e em 2001 (2001/310/CE), obrigando cada Estado-membro a refletir, inserir ou criar textos legais que contemplem os mecanismos de solução amigável dos conflitos, o que gerou uma série de alterações significativas nos ordenamentos nacionais de muitos países-membros[21].
Cabe festejar o inegável mérito da Comunidade Européia ao reconhecer a importância dos meios alternativos de solução de conflitos, trazendo-os formalmente para o âmbito do Direito Comunitário Europeu no intuito de garantir a efetividade do acesso à justiça aos cidadãos europeus, especialmente por se tratar de um ordenamento comunitário que como bem salientou Flávia Hill[22], se origina da congregação de diferentes países, mas que mesmo assim, vem se mostrando mais aberto e sensível na detecção das expectativas do cidadão moderno a respeito de um Direito Processual mais ágil, apresentando mais respostas à essa legítima expectativa do que em alguns de seus Estados-membros isoladamente considerados.
A diretiva é a primeira intervenção geral com o intuito de promover a resolução alternativa de conflitos e consequentemente um melhor acesso à justiça, mais simples e mais rápido, consagrando a mediação nos casos civis e comerciais como o passo necessário no sentido de permitir o desenvolvimento e o funcionamento adequado dos procedimentos extrajudiciais de resolução de litígios.
Elígio Resta observa que a diretiva comunitária com all´introduzione dei vari “filtri” della giurisdizione, faz emergir uma salutar tentativa de redefinir o sistema institucional de solução do conflito, não com uma negação da jurisdição, mas através de uma redefinição de suas fronteiras, adotando como premissa o reconhecimento de que os procedimentos extrajudiciais alternativos são verdadeiros instrumentos facilitadores do acesso à justiça, cabendo aos Estados-membros promoverem com especial atenção, a implementação do instituto da mediação: Lascia aperta la strada alla mediazione prima di arrivare al giudice che dica l´ultima parola.
Apesar da norma, por ser comunitária, ter como foco imediato a regulação de conflitos transnacionais, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Européia entendem que a adoção da mediação mesmo no cenário interno dos países significaria: maior rapidez na solução das controvérsias; baixo custo a ser dispendido; a previsão de uma maior disposição das partes envolvidas no cumprimento espontâneo e a preservação da relação amigável entre os interessados.
E seguindo estes parâmetros, a diretiva adotou como conceito de mediação, em seu artigo 3º, tratar-se de um processo estruturado, independentemente da sua designação ou do modo como lhe é feita referência, através do qual duas ou mais partes em litígio procuram voluntariamente alcançar um acordo sobre a resolução do seu conflito com a assistência de um mediador, podendo este processo ser iniciado pelas partes, sugerido ou ordenado por um tribunal, ou ainda imposto pelo direito de um Estado-membro, excepcionando sua adoção em matéria tributária, administrativa e de responsabilidade civil do Estado, destacando contudo que:
1. A mediação deve ser precipuamente voluntária, gozando os litigantes de liberdade para a busca desse meio para a solução de seus conflitos, ressalvada a possibilidade de previsão de sua realização de forma obrigatória pelos Estados-membros, desde que não venha impedir o acesso à justiça;
2. Deve ser pautada pela informalidade, detendo as partes ampla liberdade para organizar o procedimento a ser adotado na mediação;
3. Ausência de prazo, permitindo que a parte encerre a mediação a qualquer tempo, autorizando os tribunais a fixarem prazo máximo para sua duração;
4. Possibilidade de incentivo à mediação pelos tribunais quando oportuno, bem como deverá cada Estados-membros promover a formação e capacitação dos seus mediadores;
5. A normatização pelo ordenamento interno dos países no sentido de dar executoriedade aos acordos obtidos na mediação e ainda assegurar a confidencialidade da mediação inclusive em relação à divulgação de informações para instrução de processo judicial, salvo quando esteja envolvido interesse de menor ou a execução do acordo de mediação, situações em que será possível divulgar as informações.
Seguindo o que preceitua o artigo 12 da Diretiva 2008/52/CE, que prevê o dever dos Estados-membros de criarem normas que lhe deem cumprimento, o Parlamento Italiano editou a Lei nº. 69[23] de 18 de junho de 2009, que além de dispor sobre matérias relacionadas a desenvolvimento econômico e alterações do Código de Processo Civil, trouxe no artigo 60 o instituto da mediação, delegando ao Governo e dentro do prazo máximo de seis meses a partir da entrada em vigor da referida lei, a edição de um decreto legislativo destinado a regulamentá-la no âmbito civil e comercial no ordenamento italiano.
Exercendo então a delegação outorgada pela lei 69/2009, o Governo Italiano editou o Decreto Legislativo nº. 28[24] de 4 de março de 2010, a fim de regulamentar a mediação na Itália[25], seguindo as regras gerais pré-estabelecidas por aquela lei:
a) a mediação deveria ser contemplada no decreto legislativo como meio de solução de litígios envolvendo direitos disponíveis; deveria ser instituído um registro dos organismos de mediação mantido pelo Ministério da Justiça;
b) a possibilidade de da Ordem dos Advogados e demais conselhos profissionais instituírem órgãos de mediação;
c) a possibilidade de nomeação de peritos pelo mediador, caso entenda por necessário; a previsão regulamentada dos honorários dos mediadores, a ser majorado em caso de celebração de acordo;
d) previsão do dever conferido ao advogado de informar seu cliente sobre a possibilidade de mediação antes da instauração do processo judicial;
e) a previsão de vantagens fiscais para a celebração de acordo;
f) possibilidade de condenação do vencedor no processo judicial ao reembolso das despesas em favor do vencido, caso tenha recusado na ocasião da mediação, proposta feita pelo mediador, cujo conteúdo corresponda inteiramente à decisão judicial;
g) vedação a que a mediação tenha duração superior a quatro meses[26];
h) garantia de imparcialidade, neutralidade e independência do mediador e ainda a previsão de que o acordo tenha eficácia executiva revestido de título executivo para fins de hipoteca judicial.
E o Decreto Legislativo que carrega em seu espírito o desejo de melhorar o sistema italiano de mediação, o faz, mas com particularidades próprias, movendo-se no contexto europeu que vem se demonstrando sensível à garantia de um melhor acesso à justiça e por conseguinte, o acesso aos métodos judiciais e extrajudiciais de resolução de disputas.
Contudo, é inegável que o principal objetivo da reforma é usar a mediação como mais um instrumento para resolver uma grave crise na justiça civil, tornando-se um instrumento de diminuição da carga de trabalho dos juízes. Aqui está, contudo, a nosso ver, o grande equívoco, como será demonstrado à frente.
O retrato da justiça européia vem bem revelado por Vincenzo Vigoriti[27], o que justifica a busca que tem se verificado na última década pela ADR nos ordenamentos que tradicionalmente dispensavam apreço pela solução de conflitos pela via judicial:
Sem considerar a terminologia usada pelo legislador e as diferenças entre a mediação e conciliação, o fato é que o decreto procura distinguir entre três tipos de mediação: mediazione obbligatoria, mediazione facoltativa e mediazione concordata[28].
Contudo, o núcleo mais significativo e que certamente vem causando maior impacto, e não por acaso, vem sendo criticada com veemência e suscitada sua constitucionalidade, é quanto a introdução da mediação obrigatória alçando tal experimento à condição de admissibilidade do processo judicial, colocando-se em desalinho como muitos juristas italianos vem sustentando, à garantia do acesso à justiça.
Assim, nos termos do artigo 5º do D. Legislativo 28/2010, qualquer pessoa que pretenda levar uma ação à um Tribunal versando sobre matéria elencada no rol de litígios enumerados, deverá previamente experimentar o processo de mediação nos termos deste Decreto, ou ao procedimento de conciliação previsto no decreto Legislativo n. 179 de 08 de outubro de 2007 ou ainda ao procedimento estabelecido nos termos do artigo 128 da lei consolidada em matéria bancária e crédito referida no decreto n. 385 de 1 de setembro de 1993 e alterações posteriores.
A exigência de experimentar a mediação prévia passou a ser exigida a partir de 20 de março de 2011, doze meses após a publicação do decreto.
O uso da mediação, não como livre escolha das partes que desejam chegar a uma possível pacificação do seu conflito, mas como uma condição indispensável para a obtenção de acesso à via judicial, tem provocado a perplexidade da comunidade jurídica italiana[29].
A crítica está particularmente no fato de que o artigo 60 da Lei n. 60/2009 simplesmente prevê a instituição da mediação visando a reconciliação, devendo tal regramento geral ser alcançado sem prejuízo ou redução do acesso à justiça, enquanto que o Decreto Legislativo 28/2010, num sentido inverso, tem estabelecido em muitos casos, a mediação como condição de admissibilidade da demanda (art. 5º), situação não prevista na lei 69, e também em contraste com esta lei na medida em que a mediação não teria o condão de impedir o acesso à justiça.
Obviamente tais limites criados pelo legislador tem suscitado questionamentos pela doutrina acerca de sua legalidade e validade face a Carta do Estado italiano por conta das inevitáveis repercussões processuais que tal condição pode trazer, como por exemplo, se essas regras devem englobar também o pedido de reconvenção ou ainda se devem ser aplicadas na intervenção de terceiros.
Os argumentos lançados contra a obrigatoriedade da mediação se referem principalmente ao fato de se tratar de um obstáculo ilegítimo ao acesso à justiça e que pode retardar excessivamente o processo por quatro meses (tempo máximo estabelecido pelo Decreto Legislativo) para o exercício da tentativa de mediação.
Ademais, há a preocupação com a proteção dos direitos individuais e processuais, bem como com uma possível redução de trabalho de advogados principalmente em causas menores, pois o Decreto Legislativo 28/10 (artigo 4º, §3º) impõe ainda a estes profissionais a obrigação de informar ao cliente sobre a possibilidade ou necessidade de submissão a mediação prévia nos casos em que este requisito é condição de admissibilidade da ação.
Também há dúvidas com relação a possíveis problemas de estrutura e a logística que demandará organizar uma rede de órgãos permanentes, situados no território nacional, havendo a possibilidade de desperdício de recursos principalmente na fase inicial.
Por outro lado, a favor da obrigatoriedade, militam aqueles que entendem que a experiência demonstra que a tentativa prévia de acordo não impede o acesso à justiça, que só é adiada ante o interesse das partes em se submeterem a um procedimento mais rápido e menos dispendioso.
Ademais, deve ser considerado o interesse geral no sentido de promover o aperfeiçoamento da administração da Justiça.
Apesar da mediação forçada implicar numa condição de admissibilidade da demanda, os defensores da obrigatoriedade entendem que se trata de um requisito que pode ser tolerado desde que o acesso não se torne extremamente difícil e ainda que não resulte numa demora sensível para a solução do conflito. Em oposição ao outro grupo, defende-se por sua vez, que a obrigatoriedade da mediação possibilitará um incremento na oferta de oportunidade de trabalho para os advogados, cujas atividades se enquadrem no novo sistema.
Diante disso, algumas associações profissionais ingressaram com ação em face do Ministério da Justiça e do Ministério do Desenvolvimento Econômico perante o TAR Lazio que decidiu, em 2011[30], não serem infundadas as dúvidas suscitadas acerca de alguns dispositivos do decreto legislativo n. 28/2010 tais como a excessiva delegação constante no artigo 5º e que a mediação enquanto fase de pré-julgamento, traduzindo condição de admissibilidade da ação, impede efetivamente o acesso à justiça.
Foi reconhecido o risco de comprometimento da eficácia da proteção judicial, pois o terceiro parágrafo do artigo 60 da lei 69/2009 exige, na verdade, que o exercício da delegação deveria levar a cabo o princípio de que a mediação tem como objetivo principal a reconciliação de litígios relativos a direitos disponíveis, sem todavia excluir o acesso à justiça.
A espera de ouvir o pronunciamento da Corte Constitucional acerca da validade de alguns dispositivos do decreto, algumas associações de advogados italianos vem solicitando a não aplicação do instituto pelos tribunais, argumentando que o juiz, a pedido de qualquer uma das partes pode admitir o pedido, recusando-se a aplicar o artigo 5º do decreto por ser incompatível com a Carta Européia dos Direitos do Homem.
Nessa linha de raciocínio, diante da incompatibilidade do instituto face ao direito comunitário, acredita-se que os juízes nacionais podem afastar o conteúdo obrigatório da mediação por se tratar de violação a um princípio geral fundamental da União Européia.
Na verdade, embora o sistema obrigatório de mediação não seja uma novidade na Europa, a crítica que surge é que em nenhum outro país a lei aparenta ser tão invasiva e significativa quanto a prevista na Itália.
Veja-se, como o exemplo extraído da regra contida no artigo 13 do decreto, que prevê a inversão do princípio da sucumbência se a decisão judicial coincidir integralmente com o conteúdo da proposta feita pelo mediador e refutada pela parte, sendo então vencida no julgamento.
A regra traz um conteúdo intimidatório contra o advogado e às próprias partes e parece conferir à mediação um valor estritamente paraprocessual e não de facilitador de um acordo pelas partes, que seria mais próxima da mediação puramente voluntária e que endossaria sua legitimidade, mesmo que tenha sido planejada como uma condição obrigatória de admissibilidade.[31]
Portanto, na frente da amarga controvérsia que a mediação obrigatória causou entre a comunidade jurídica e em particular, entre as associações de advogados, é necessário que se aguarde o proncunciamento do Tribunal Constitucional acerca do tema.
Recentemente, no âmbito da União Européia, o Parlamento Europeu decidiu realizar um balanço prévio, em vista do comunicado sobre a implementação da diretiva referente à mediação previsto para 2013, tendo em conta as maneiras pelas quais os Estados-membros adotaram as medidas para operacionalizar as disposicões da Diretiva 2008/52/CE, os problemas que surgiram e alguns aspectos mais específicos registrados em alguns países, levando a adoção de uma Resolução[32], em 13 de setembro de 2011.
Como não poderia ser diferente, o Parlamento cita a Itália e seu decreto legislativo n. 28/2010 apontando como ponto mais polêmico a regra que diz respeito à realização da mediação obrigatória em relação a uma série de disputas para as quais, portanto, o acesso à justiça fica condicionado à prévia tentativa de conciliação entre as partes.
No entendimento do Parlamento, o parágrafo 2º do artigo 5º da diretiva comunitária permite aos Estados-membros a utilização da mediação de forma obrigatória ou a sujeite a incentivos ou sanções, tanto antes como após iniciado o processo judicial, desde que isso não impeça as partes de exercerem seu direito de buscar o sistema judicial.
Observa ainda que o legislador italiano decidiu reformar seu sistema legal neste sentido com vistas a aliviar a carga de trabalho perante os tribunais, notoriamente congestionados, agilizando assim o tempo de duração dos processos que muitas vezes distorcem o conceito de justiça, traduzindo-se numa verdadeira negação de direitos.
Entretanto percebe o Parlamento, que o mecanismo de mediação exigido na lei italiana que condiciona a admissibilidade da demanda judicial em alguns casos especificamente identificados, não tem sido bem recebido pelos operadores jurídicos, que tem impugnado o decreto, mas ressalta que em outros países aonde tornou-se a mediação obrigatória como na Bulgária e na Romênia, tem contribuído para uma disputa rápida, reduzindo a duração excessiva de uma demanda judicial.
Mais uma vez, parce que se perdeu o foco. Procura-se justificar o uso da mediação obrigatória a partir de sua capacidade de reduzir o número de processos. O argumento é equívocado e maléfico, eis que tal providência em nada contribuirá para a pacificação.
IV. Peculiaridades do caso brasileiro.
No Brasil, a mediação começa a ganhar forma legislativa com o Projeto de Lei nº 4.827/98, oriundo de proposta da Deputada Zulaiê Cobra, tendo o texto inicial levado à Câmara uma regulamentação concisa, estabelecendo a definição de mediação e elencando algumas disposições a respeito. Na Câmara dos Deputados, já em 2002, o projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e enviado ao Senado Federal, onde recebeu o número PLC 94, de 2002.
O Governo Federal, no entanto, como parte do Pacote Republicano, que se seguiu à Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004 (conhecida como “Reforma do Judiciário”), apresentou diversos Projetos de Lei modificando o Código de Processo Civil, o que levou à um novo relatório do P.L. 94. Foi aprovado o Substitutivo (Emenda nº 1-CCJ), ficando prejudicado o projeto inicial, tendo sido o substitutivo enviado à Câmara dos Deputados no dia 11 de julho. Em 1° de agosto, o projeto foi encaminhado à CCJC, que o recebeu em 7 de agosto. Desde então não se teve mais notícia do referido Projeto.
Quando já se perdiam as esperanças de uma positivação da mediação em nosso Direito, eis que, em 2009, foi convocada uma Comissão de Juristas, presidida pelo Ministro Luiz Fux, com o objetivo de apresentar um novo Código de Processo Civil.
Em tempo recorde, foi apresentado um Anteprojeto, convertido em Projeto de Lei (nº 166/10), submetido a discussões e exames por uma Comissão especialmente constituída por Senadores, no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal. Em dezembro de 2010 foi apresentado um Substitutivo pelo Senador Valter Pereira, que foi aprovado pelo Pleno do Senado com duas pequenas alterações. O texto foi então encaminhado à Câmara dos Deputados, onde foi identificado como Projeto de Lei nº 8046/10[33].
Ainda em dezembro de 2010, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 125[34], que tratou da política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário.
No início deste ano de 2011 foram iniciadas as primeiras atividades de reflexão sobre o texto do novo CPC, ampliando-se, ainda mais, o debate com a sociedade civil e o meio jurídico, com a realização conjunta de atividades pela Comissão, pela Câmara dos Deputados e pelo Ministério da Justiça.
Em agosto, foi criada uma comissão especial para exame do texto, sob a presidência do Dep. Fabio Trad. No momento em que este texto estava sendo concluído, ainda não tinham sido concluídas as atividades de revisão do texto.
Ainda em agosto de 2011, tivemos a oportunidade de apresentar sugestões ao Senador Ricardo Ferraço, formando grupo de trabalho ao lado das professoras Tricia Navarro e Gabriela Asmar. Apos exame da Consultoria do Senado, foi apresentado, no dia 25, o Projeto de Lei do Senado que tomou o número 517[35], e que se destina a regular o uso da mediação civil judicial e extrajudicial.
Na redação atualmente disponível do Projeto do novo CPC, podemos identificar a preocupação da Comissão com os institutos da conciliação e da mediação, especificamente nos artigos 144 a 153.
O Projeto se preocupa, especificamente, com a atividade de mediação feita dentro da estrutura do Poder Judiciário. Isso não exclui, contudo, a mediação prévia ou mesmo a possibilidade de utilização de outros meios de solução de conflitos (art. 153).
Ficam resguardados os princípios informadores da conciliação e da mediação, a saber: (i) independência; (ii) neutralidade; (iii) autonomia da vontade; (iv) confidencialidade; (v) oralidade; e (vi) informalidade.
A confidencialidade é especialmente protegida. Os §§ 2º e 3º do art. 144 determinam que ela se estende a todas as informações produzidas ao longo do procedimento, e, ainda, que o teor dessas informações “não poderá ser utilizado para fim diverso daquele previsto por expressa deliberação das partes”. Ademais, conciliador e mediador (bem como integrantes de suas equipes) “não poderão divulgar ou depor acerca de fatos ou elementos oriundos da conciliação ou da mediação”.
Importante frisar, aqui, a relevância da atividade ser conduzida por mediador profissional. Em outras palavras, a função de mediar não deve, como regra, ser acumulada por outros profissionais, como juízes, promotores e defensores públicos.
Neste ponto específico, como um juiz poderia não levar em consideração algo que ouviu numa das sessões de mediação? Como poderia não ser influenciado, ainda que inconscientemente, pelo que foi dito, mesmo que determinasse que aquelas expressões não constassem, formal e oficialmente, dos autos?
No art. 145, a Comissão de Juristas, após anotar que a conciliação e a mediação devem ser estimuladas por todos os personagens do processo, refere uma distinção objetiva entre essas duas figuras. A diferenciação se faz pela postura do terceiro.
Assim, o conciliador pode sugerir soluções para o litígio, ao passo que o mediador auxilia as pessoas em conflito a identificarem, por si mesmas, alternativas de benefício mútuo.
Importante ressaltar que a versão original do PLS 166/10 exigia que o mediador fosse inscrito nos quadros da OAB. Com o Relatório e o Substitutivo apresentados em 24 de novembro de 2010, prestigiou-se o entendimento da dispensabilidade deste requisito.
Esse registro conterá, ainda, informações sobre a performance do profissional, indicando, por exemplo, o número de causas de que participou, o sucesso ou o insucesso da atividade e a matéria sobre a qual versou o conflito. Esses dados serão publicados periodicamente e sistematizados para fins de estatística (art. 147 do Projeto).
Aqui vale uma observação.
É digno de elogio esse dispositivo por criar uma forma de controle externo do trabalho do mediador, bem como dar mais transparência a seu ofício. Por outro lado, é preciso que não permitamos certos exageros. Não se pode chegar ao extremo de ranquear os mediadores, baseando-se apenas em premissas numéricas. Um mediador que faz 5 acordos numa semana pode não ser tão eficiente assim. Aquele que faz apenas uma, pode alcançar níveis mais profundos de comprometimento e de conscientização entre as partes envolvidas.
Da mesma forma, um mediador que tem um ranking de participação em 10 mediações, tendo alcançado o acordo em todas, pode não ser tão eficiente assim. É possível que tenha enfrentado casos em que as partes já tivessem uma pré-disposição ao acordo ou mesmo que o “nó a ser desatado não estivesse tão apertado”.
Me preocupa muito a idéia do apego às estatísticas e a busca frenética de resultados rápidos. Esses conceitos são absolutamente incompatíveis com a mediação.
A Comissão, utilizando alguns dispositivos que já se encontravam no Projeto de Lei de Mediação, também se preocupou com os aspectos éticos de mediadores e conciliadores. Nesse sentido, fez previsão das hipóteses de exclusão dos nomes do cadastro do Tribunal, cabendo instauração de procedimento administrativo para investigar a conduta (art. 148).
Há, também, previsão para o impedimento (art. 149), a impossibilidade temporária (art. 150) e a chamada “quarentena” desses profissionais, que ficam impedidos, pelo prazo de um ano, contado a partir do término do procedimento, de assessorar, representar ou patrocinar qualquer dos litigantes (art. 151).
Quanto à remuneração, o art. 152 do Projeto dispõe que será editada uma tabela de honorários pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Como visto, a preocupação da Comissão é com a mediação judicial. O Projeto não veda a mediação prévia ou a extrajudicial, apenas opta por não regulá-la, deixando claro que os interessados podem fazer uso dessa modalidade recorrendo aos profissionais liberais disponíveis no mercado. Imagina-se que ocorrerá com a mediação e a conciliação, o que sucedeu com o advento da Lei da Arbitragem (Lei nº 9.307/96), que estimulou a criação de entidades arbitrais no país.
Nesse aspecto, é preciso atentar para o fato de que isto não acontecerá de pronto. Ainda temos arraigada, entre nós, a cultura do litígio[36], ou seja, buscar a jurisdição antes mesmo de tentar dialogar com a parte contrária ou mesmo considerar a hipótese de recorrer a um meio alternativo para a solução daquele conflito.
Nesse passo, a visão que tem prevalecido é a de que será mais fácil para o jurisdicionado ter o primeiro contato com a mediação na sua modalidade judicial e, muitas vezes, incidental.
Isto parecer ser pedagógico e este processo já se iniciou entre nós, com a Resolução nº 125/10 do Conselho Nacional de Justiça.
Temos esperança que, com o passar do tempo, ocorra o amadurecimento da sociedade, no sentido de que os cidadãos passem a ter um papel mais ativo na procura de soluções e no gerenciamento dos conflitos, abandonando a atual postura de recorrer sempre e de forma automática ao Judiciário[37].
V. Reflexões e ponderações.
A realidade brasileira inquestionavemente tem se mostrado incompatível com esse modelo de Judiciário que busca tão somente remediar o conflito: uma sociedade que se caracteriza ainda por fortes desiguldades sociais e regionais, ao mesmo tempo em que assinala uma explosão de litigiosidade, contraditoriamente, também impede o acesso aos Tribunais de considerável parcela da população, em pobreza absoluta, comprometendo seriamente a efetividade dos direitos fundamentais.
A cultura demandista que se instalou na sociedade brasileira, por conta de uma leitura irreal da garantia constitucional do acesso à justiça, permitiu com essa oferta, o desaguadouro geral e indiscriminado no Judiciário de toda e qualquer pretensão resistida ou insatisfeita, obrigando-o a albergar desavenças que beiram o capricho dos litigantes, como as controvérsias de mínima expressão pecuniária ou nenhuma complexidade jurídica, que não justificam a judicialização, podendo ser resolvidas por outros meios, perante outras instâncias, fora e além do aparato estatal.
Nesse passo, para nós, o melhor modelo é aquele que admoesta as partes a procurar a solução consensual, com todas as suas forças, antes de ingressar com a demanda judicial. Não parece ser ideal a solução que preconiza apenas um sistema de mediação incidental muito bem aparelhado, eis que já terá havido a movimentação da máquina judiciária, quando, em muitos dos casos, isto poderia ter sido evitado.
Por outro lado, não concordamos com a idéia de uma mediação ou conciliação obrigatória. É da essência desses procedimentos a voluntariedade. Essa característica não pode ser jamais comprometida, mesmo que sob o argumento de que se trata de uma forma de educar o povo e implementar uma nova forma de política pública.
Nos EUA, a mediação é obrigatória em alguns Estados (como é o caso da Califórnia e da Flórida, por exemplo). Na Argentina, desde outubro de 1995, foi estabelecida a obrigatoriedade da instância prévia de mediação aos processos judiciais. Tal situação se mantém na atual Lei nº 26.589/10. Semelhante situação se dá na Itália, desde o advento do Decreto Legislativo nº 28, de março de 2010.
O Projeto de Lei 94 também fazia a previsão da mediação obrigatória nas hipóteses regidas pelo art. 34 deste Diploma.
Tais modalidades criam uma espécie de condição de procedibilidade, ou seja, nos casos determinados no texto legal, o uso da mediação deve necessariamente anteceder o exame judicial, sob pena de falta de condição para o regular exercício do direito de ação
Todas essas soluções, com o devido respeito, nos parecem equivocadas.
Mas é preciso buscar uma solução de equilíbrio entre essas duas vertentes.
Somos de opinião que as partes deveriam ter a obrigação de demonstrar ao Juízo que tentaram, de alguma forma, buscar uma solução consensual para o conflito.
Não há necessidade de uma instância prévia formal extrajudicial, como ocorre com as Comissões de Conciliação Prévias na Justiça do Trabalho; basta algum tipo de comunicação, como o envio de uma carta ou e-mail, uma reunião entre advogados, um contato com o “call center” de uma empresa feito pelo consumidor; enfim, qualquer providência tomada pelo futuro demandante no sentido de demonstrar ao Juiz que o ajuizamento da ação não foi sua primeira alternativa.
Estamos pregando aqui uma ampliação no conceito processual de interesse em agir, acolhendo a idéia da adequação, dentro do binômio necessidade-utilidade, como forma de racionalizar a prestação jurisdicional e evitar a procura desnecessária pelo Poder Judiciário.
Poderíamos até dizer que se trata de uma interpretação neoconstitucional do interesse em agir, que adequa essa condição para o regular exercício do direito de ação às novas concepções do Estado Democrático de Direito.
Mas esta é apenas uma das facetas desta visão. A outra e, talvez, a mais importante, seja a consciência do próprio Poder Judiciário de que o cumprimento de seu papel constitucional não conduz, obrigatoriamente, à intervenção em todo e qualquer conflito.
Tal visão pode levar a uma dificuldade de sintonia com o Princípio da Indelegabilidade da Jurisdição, na esteira de que o juiz não pode se eximir de sua função de julgar, ou seja, se um cidadão bate as portas do Poder Judiciário, seu acesso não pode ser negado ou dificultado, na forma do artigo 5º, inciso XXXV da Carta de 1988.
O que deve ser esclarecido é que o fato de um jurisdicionado solicitar a prestação estatal não significa que o Poder Judiciário deva, sempre e necessariamente, ofertar uma resposta de índole impositiva, limitando-se a aplicar a lei ao caso concreto. Pode ser que o Juiz entenda que aquelas partes precisem ser submetidas a uma instância conciliatória, pacificadora, antes de uma decisão técnica[38].
E isto fica muito claro no Projeto do novo CPC, na medida em que o art. 118 confere uma série de poderes ao juiz, sobretudo no que se refere à direção do processo, mencionando expressamente a adequação e a flexibilização mitigada enquanto instrumentos para se alcançar a efetividade.
Nesse passo, é evidente que a maior preocupação do juiz será com a efetiva pacificação daquele litígio, e não, apenas, com a prolação de uma sentença, como forma de resposta técnico-jurídica à provocação do jurisdicionado.
Não custa lembrar, como nos indica Eligio Resta[39], que a conciliação tem o poder de “desmanchar” a lide, resultado este que, na maioria dos casos, não é alcançado com a intervenção forçada do Poder Judiciário.
Importante deixar clara essa nova dimensão do Poder Judiciário, aparentemente minimalista, numa interpretação superficial, mas que na verdade revela toda a grandeza desta nobre função do Estado. Nessa perspectiva, efetividade não significa ocupar espaços e agir sempre, mas intervir se e quando necessário, como ultima ratio e com o intuito de reequilibrar as relações sociais, envolvendo os cidadãos no processo de tomada de decisão e resolução do conflito.
A mediação incidental judicial já pode ser feita hoje em nosso ordenamento. Sobretudo após o advento da Resolução no 125/10 do CNJ. Contudo, nessa hipótese, como já frisamos, terá havido a movimentação da máquina judicial (apresentação da petição inicial, recolhimento de custas, despacho liminar positivo, citação do réu, prazo para contestação, diligências cartorárias, resposta do réu e designação de audiência prévia, sem contar com os inúmeros incidentes processuais que podem tornar mais complexa a relação processual).
O elemento principal, portanto, para a compreensão da mediação é a formação de uma cultura de pacificação, em oposição à cultura hoje existente em torno da necessidade de uma decisão judicial para que a lide possa ser resolvida.
Por outro lado, a mediação é atividade privada, livre de qualquer vínculo, não fazendo parte da estrutura de qualquer dos Poderes Públicos. Mesmo a mediação paraprocessual mantém a característica privada, estabelecendo apenas que o mediador tem que se registrar no tribunal para o fim de ser indicado para atuar nos conflitos levados à Justiça.
Importante registrar a obra de Luis Alberto Warat[40], para quem o objetivo da mediação não seria o acordo, mas a mudança das pessoas e seus sentimentos. Somente desta forma seria possível transformar e redimensionar o conflito.
Esta idéia parte da premissa segundo a qual os conflitos nunca desaparecem por completo; apenas se transformam e necessitam de gerenciamento e monitoramento a fim de que sejam mantidos sob controle[41].
Muitas vezes, esse controle significa, na prática, garantir que o canal de comunicação fique sempre aberto, e conscientizar as partes sobre a importância da preservação do vínculo que as une[42].
Para Boaventura Santos[43], só a mediação poderia subverter a separação entre o conflito processado e o conflito real, separação que domina a estrutura processual do direito do estado capitalista e que é a principal responsável pela superficialização da conflituosidade social na sua expressão jurídica.
Cada ordenamento jurídico faz sua opção política[44].
De qualquer forma, fica desde logo afastada qualquer idéia de que os meios alternativos conduzem à privatização do processo. Nesse sentido, não custa lembrar o ensinamento de Barbosa Moreira[45]: “falar em privatização do processo é uma expressão, nalguns casos, inadequada; noutros, falsa; em todos, perigosa”.
Ademais, como referido, a mediação não deve ser utilizada na generalidade dos casos. Tal conduta equivocada levaria a uma falsa esperança em mais uma forma de solução de conflitos que não tem o condão de se desincumbir, satisfatoriamente, de certos tipos de litígios.
Daí a importância, frise-se, de ser instituído um mecanismo prévio para a tentativa da solução negociada dos conflitos, ainda que não necessariamente a mediação.
É preciso, pois, a adoção de uma política de racionalização na prestação jurisdicional.
Se, desde o início, fica claro que o cerne da controvérsia não é jurídico, ou seja, não está relacionado à aplicação de uma regra jurídica, de nada adianta iniciar a relação processual, para então sobrestá-la em busca de uma solução consensual. Isto leva ao desnecessário movimento da máquina judicial, custa dinheiro aos cofres públicos, sobrecarrega juízes, promotores e defensores e, não traz qualquer conseqüência benéfica.
É mister amadurecer, diante da realidade brasileira, formas eficazes de fazer essa filtragem de modo a obter uma solução que se mostre equilibrada entre os Princípios do Acesso à Justiça e da Duração Razoável do Processo.
Já nos encaminhando para o fim deste breve texto, ciente de que as matérias aqui suscitadas abrem caminho para tantos outros questionamentos, gostaríamos de ressaltar que a mediação é um extraordinário instrumento que possibilita a compreensão do conflito a partir da participação efetiva dos envolvidos.
Parece-nos que ao longo da (recente) tradição democrática brasileira, talvez até mesmo como uma expressão da mea culpa do Estado, ciente de seu fracasso ao atender as necessidades mais básicas da população, forjou-se a idéia de que o Poder Judiciário deve ter uma posição paternalista em relação ao jurisdicionado.
O cidadão procura o Juiz, “despeja” seu problema e fica ao lado, aguardando impacientemente, reclamando e espraguejando se a solução demora ou se não vem do jeito que ele deseja. Estamos em que as partes devem ser envolvidas de forma mais direta na solução dos conflitos e a mediação contribuirá, em muito, para isso.
A implementação dessas idéias permitirá um enorme avanço no processo de desenvolvimento social do povo brasileiro e, ao mesmo tempo, levará à intensificação de uma preocupação que hoje já ocupa a mente dos juristas.
Me refiro à necessidade de se pensar um sistema que, ao mesmo tempo em que permite e incentiva o uso da mediação, preserva e viabiliza todas as garantias constitucionais neste procedimento, tornando-se verdadeiramente equivalente ao processo judicial, enquanto forma legítima de solução de conflitos no Estado Democrático de Direito.
Enfim, o desafio, de agora em diante não é mais o de inserir a mediação no ordenamento brasileiro, mas sim justificar constitucionalmente esse meio alternativo, e, principalmente, preservar a sua natureza, impedindo a sua deformação pelos vícios do processo.
Pós-Doutor em Direito (Uconn Law School). Mestre, Doutor e Professor Adjunto de Direito Processual Civil na UERJ. Professor dos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UNESA. Promotor de Justiça Titular no Estado do Rio de Janeiro.
Mestranda em Direito na UNESA, Advogada no Rio de Janeiro
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