Resumo: O presente artigo apresenta como tema principal o acesso à Justiça direito fundamental do Homem previsto na Constituição Federal. Busca-se fazer uma análise do acesso à Justiça no Brasil onde os direitos fundamentais nem sempre são observados ou são mitigados por interesses de somenos importância. Aborda-se em síntese a dicotomia existente entre o efetivo acesso à Justiça e o acesso ao Poder Judiciário que são coisas distintas pois facilitar o acesso do cidadão ao Poder Judiciário não significa exatamente lhe proporcionar o acesso à ordem jurídica justa que à um direito fundamental do Homem. Evidentemente sem esgotar este tema procura-se demonstrar que apesar dos diversos instrumentos criados para garantir o acesso do cidadão ao Poder Judiciário o seu acesso à ordem jurídica justa ainda à um objetivo a ser alcançado.
Palavras-Chave: Constituição. Acesso à Justiça. Acesso à ordem Jurídica Justa. Poder Judiciário. Tutela Jurisdicional Efetiva.
Abstract: This article presents the main theme as access to justice fundamental human right provided in the Federal Constitution. It aims to make an analysis of access to justice in Brazil where fundamental rights are not always observed or mitigated by unimportant concerns. We discuss briefly the dichotomy between effective access to justice and access to the judiciary which are distinct because to make easier the citizens access to the judiciary does not mean exactly providing access to fair legal system which is also a fundamental human right. Obviously without exhausting this subject seeks to demonstrate that despite the several instruments designed to ensure the citizens access to the judiciary and their access to fair legal system this is still a goal to be achieved.
Keywords: Constitution. Access to Justice. Access to fair legal order. Judiciary. Jurisdictional Effective Trusteeship
Sumário: Introdução. 1. O acesso à Justiça como direito fundamental do cidadão. 1.1. A efetividade do acesso à Justiça e o duplo grau de jurisdição. 2. A jurisprudência defensiva dos tribunais.
Introdução
Inicialmente é necessário pontuar que a solução dos conflitos nem sempre se apresentou da forma como se apresenta na atualidade, onde a jurisdição é inafastável e vem prevista expressamente na Constituição Federal.
Nos primórdios das civilizações prevaleceu o que se denominava “fase da vingança privada”, onde a própria parte exercia a chamada “justiça com as próprias mãos”, um sistema precário de solução dos conflitos, onde os homens mais fortes acabavam se sobrepondo aos mais fracos, fator este que gerava manifesta injustiça.
Com o decorrer do tempo e o surgimento do Estado, que passou a ter o poder-dever de tutelar os direitos, tirou-se dos cidadãos a possibilidade de resolver os litígios com o uso da denominada autotutela, pois os direitos passaram a ser protegidos pelo ordenamento jurídico.
A ideia de acesso à justiça é muito anterior à atual Constituição Federal e como já nos ensinou o professor Paulo Cezar Pinheiro Carneiro[1] já no Código de Hamurabi existiam normas que se preocupavam com a proteção dos mais fracos e oprimidos, notadamente “a viúva e o órfão”, incentivando-os a buscar a justiça do soberano.
Entretanto, apesar de se iniciar esta preocupação com a isonomia, o acesso à justiça era um privilégio de uma pequena minoria, da qual eram excluídos os escravos e estrangeiros.
Posteriormente, sob a influência de Aristóteles, começou a surgir na Grécia antiga a ideia de direitos iguais, de equidade na aplicação da lei, sendo correto afirmar que a partir deste momento é que surge o que atualmente se entende por teoria da justiça.
Pouco tempo mais tarde, sob a influência grega, se verifica em Roma o crescimento acelerado do que hoje chamamos de jurisdição, nascendo então conceitos utilizados na atualidade, como o patrocínio em juízo e a necessidade do advogado presente para garantir a paridade de armas das partes em litígio, ideias estas que terminaram sendo incorporadas ao Código de Justiniano.
Sobre este tema é relevante citar o magistério de Parosky[2]:
“O sistema jurídico criado pela cultura romana teve forte inspiração do pensamento grego, influenciando a construção dos sistemas jurídicos do futuro, hoje conhecidos como da família romano-germânica. Noções e princípios importantes nos sistemas contemporâneos, ligados ao direito e a justiça, foram hauridos do sistema jurídico romano, (…) O direito romano apresentou notável desenvolvimento dos institutos jurídicos e da jurisdição. Inicialmente a solução se dava pela autotutela (justiça privada), depois pela autocomposição e, em seguida, pelo modelo de resolução de conflitos através da escolha de árbitros pelas próprias partes, geralmente fundada em razões religiosas, sendo imparciais e traduzindo a vontade das partes”.
É neste momento histórico que a autotutela se vê enfraquecida e entra em cena a composição realizada sob os auspícios do Estado (pretor), dando início então à jurisdição.
1. O Acesso à Justiça como Direito Fundamental do Cidadão
O termo “acesso à justiça” tem um significado que no decorrer dos tempos sofreu influências de natureza política, religiosa, sociológica, filosófica e histórica, que traduz a evolução da luta do cidadão pela afirmação dos seus direitos fundamentais.
Atualmente, com o surgimento de novas tecnologias, aperfeiçoamento dos meios de comunicação e conquistas da classe trabalhadora, formam-se novos movimentos sociais das mais variadas segmentações, movimentos estes que lutam pela efetivação das garantias inseridas no ordenamento jurídico e na discussão do sentido do termo acesso à justiça.
Destarte os debates acerca deste tema se tornam cada dia mais acalorados e envolvem questões que dizem respeito à celeridade processual, efetivação da justiça, bem como aquelas questões ligadas diretamente com a pessoa humana, como a proteção à dignidade e à justiça de forma ampla.
Entretanto, foi por meio da garantia do acesso à justiça que todo cidadão passou a ter direito de buscar a defesa dos seus direitos individuais. Evidencia-se tal garantia na redação do inciso XXXV, entre outros, do art. 5º da Constituição Federal de 1988.
A dissertar acerca da diferenciação entre “direitos naturais”, “direitos fundamentais”, “direitos do homem” e “direitos do cidadão”, Paulo Cezar Santos Bezerra[3] leciona que:
“Quando se pensa em justiça, não se está apenas querendo observar o aspecto formal da justiça nem seu caráter processual. O acesso à justiça é um direito natural, um valor inerente ao homem por sua própria natureza, e a sede de justiça que angustia o ser humano tem raízes fincadas na teoria do direito natural”.
O acesso à justiça não se resume ao acesso ao processo. Nessa perspectiva, decorrem normas constituidoras de direitos e garantias fundamentais não só do dispositivo citado, mas de outros, tais como nas normas que garantem indenização pela violação à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, a necessidade de pressupostos de flagrante delito e de ordem judicial para prisão ou violação do lar e as garantias do devido processo legal e da legítima defesa.
A evolução do significado de acesso à justiça no Brasil foi, inicialmente, muito lenta. Após aproximadamente três séculos desde o descobrimento do Brasil, a legislação infraconstitucional ainda era basicamente formada pelas Ordenações Filipinas.
No Brasil, depois de um longo período sob o regime de exceção, no qual as garantias individuais e os direitos humanos foram abertamente desrespeitados, o Estado Democrático de Direito foi restaurado, com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, que não trouxe qualquer exceção e regulou de modo amplo o acesso à jurisdição.
Sobre o renascimento da democracia na nossa Pátria, Luiz Roberto Barroso[4] assim se expressou:
“É inegável que a Constituição de 1988 tem a virtude de espelhar a reconquista dos direitos fundamentais, notadamente os de cidadania e os individuais, simbolizando a superação de um projeto autoritário, pretensioso e intolerante que se impusera ao País. Os anseios de participação, represados à força nas duas décadas anteriores, fizeram da constituinte uma apoteose cívica, marcada, todavia, por interesses e paixões”.
Com o advento da nova ordem constitucional, o direito de acesso à justiça passou a ser previsto expressamente, todavia, é necessário estabelecer uma divisão entre o acesso à Justiça, como sinônimo de acesso ao Poder Judiciário e acesso à justiça como sinônimo de acesso à prestação jurisdicional efetiva, à ordem jurídica justa.
A expressão acesso à justiça, como já foi ensinado por Cappelletti[5], não é fácil de ser conceituada:
“Mas serve para determinar duas finalidades básicas do ordenamento jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.”
Entretanto, alcançar esta efetividade na prestação jurisdicional significa ter que ultrapassar os mais variados obstáculos, que vão desde a falta de estrutura do Poder Judiciário até os entraves criados pela famigerada jurisprudência defensiva, que será abordada mais a frente.
Na busca pela ordem jurídica justa, mesmo com o advento da nova Constituição Federal de 1988, o cidadão brasileiro ainda encontra vários empecilhos que o separam dos seus direitos. Entretanto, a luta deve ser árdua para eliminar estas barreiras.
Os problemas econômicos e os altos custos do processo sempre foram barreiras para que os menos favorecidos pudessem obter uma tutela jurisdicional que garantisse plenamente os seus diretos.
Especialmente em países cujos índices de pobreza são maiores, que apresentam indicadores socioeconômicos ruins, as barreiras que dificultam o acesso dos indivíduos aos órgãos do Poder Judiciário são enormes e, infelizmente, o fator socioeconômico não é o único a dificultar o acesso do cidadão menos favorecido à ordem jurídica justa.
Na busca por uma solução para tais problemas é que, já na década de 70, juristas de todo o mundo, com destaque para os processualistas Mauro Cappelletti e Bryant Garth, passaram a se empenhar na árdua tarefa de identificar quais eram os motivos que levavam os processos judiciais a se apresentar com custos tão elevados e decisões muitas vezes ineficazes, até em razão mesmo do excessivo tempo das demandas, provocando na sociedade o completo descrédito na função atividade de prestação jurisdicional do Estado.
Foi nesta década que se retomou a discussão acerca de questões que diziam respeito ao acesso pleno à Justiça que, como foi bem colocado pelos professores Mauro Cappelletti e Bryant Garth[6] não é um tema fácil de ser definido:
“A expressão ‘acesso à Justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico, o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individualmente e socialmente justos.”
Neste contexto, pela lição dos ilustres professores, apesar do acesso à justiça ser um tema complicado, difícil de ser definido, poderia ser resumido como um sistema pelo qual o cidadão pudesse resolver seus litígios sob os auspícios do Estado.
No Brasil, impulsionados por estas lições, diversos doutrinadores também começaram a debater este tema de forma muito intensa, sendo que inúmeras tentativas de sistematização conceitual foram levadas adiante na busca pela compreensão científica das diversas formas que o referido direito pode apresentar.
Na definição do professor Carreira Alvim[7] o acesso à justiça:
“Compreende o acesso aos órgãos encarregados de ministrá-la, instrumentalizados de acordo com a nossa geografia social, e também um sistema processual adequado à veiculação das demandas, com procedimentos compatíveis com a cultura nacional, bem assim com a representação (em juízo) a cargo das próprias partes, nas ações individuais, e de entes exponenciais, nas ações coletivas, com assistência judiciária aos necessitados, e um sistema recursal que não transforme o processo numa busca interminável de justiça, tornando o direito da parte mais um fato virtual do que uma realidade social.”
Se o tema acesso à justiça é alvo de muitos estudos e de difícil conceituação, é necessário ainda fazer uma distinção entre o direito de buscar a tutela jurisdicional do Estado e o direito à ordem jurídica justa, pois apesar de serem coisas distintas, muitas vezes são confundidas.
Ainda com relação a este tema é imprescindível fazer esta separação, pois nem todo cidadão que tem o direito de acesso à justiça, receberá uma tutela jurisdicional efetiva.
Sobre esta diferenciação o professor Horacio W. Rodrigues, citado por Carreira Alvim[8] ensinou que:
“O primeiro, atribuindo ao significante justiça o mesmo sentido e conteúdo que poder Judiciário, torna sinônimas as expressões acesso à Justiça e Poder Judiciário; o segundo, partindo de uma visão axiológica da expressão Justiça, compreende o acesso a ela como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano. E conclui que esse último, por ser mais amplo, engloba no seu significado o primeiro.”
O Ministro Teori Zavascki[9] também já se expressou sobre a diferença que existe entre o direito de acessar o Poder Judiciário e o direito de ter acesso a uma tutela jurisdicional efetiva quando afirmou que:
“O direito fundamental à efetividade do processo – que se denomina também, genericamente, direito de acesso à justiça ou direito à ordem jurídica justa – compreende, em suma, não apenas o direito de provocar a atuação do Estado, mas também e principalmente o de obter, em prazo adequado, uma decisão justa e com potencial de atuar eficazmente no plano dos fatos.”
Já Cinthia Robert e Elida Séguin[10] salientam que “o acesso à Justiça deve representar o acesso ao direito e não simplesmente acesso aos Tribunais”.
Genericamente, o acesso à justiça significa a possibilidade que o cidadão tem de buscar a solução de eventuais controvérsias perante o Poder Judiciário, ou seja, o acesso à justiça é sinônimo de acesso ao Poder Judiciário, é a possibilidade de provocar a jurisdição proporcionada pelo Estado.
Nesta simples concepção, o acesso à justiça significa ingresso em juízo, é a mera possibilidade de ajuizar uma ação perante o Poder Judiciário, é a admissão ao processo, o acesso aos tribunais.
Entretanto, o acesso à justiça deve se coadunar com a noção de efetividade do processo, uma vez que o poder jurisdicional não deve se limitar mais em apenas dirimir os conflitos apresentados, mas sim, eliminá-los de forma rápida e efetiva buscando-se a pacificação social com justiça real.
Sobre a conceituação de acesso à justiça o professor Kazuo Watanabe[11] ensina que:
“A problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim viabilizar o acesso à ordem jurídica justa.”
Em seu magistério José Cichocki Neto[12] também assevera que:
“A expressão ‘acesso à justiça’ engloba um conteúdo de largo espectro: parte da simples compreensão do ingresso do indivíduo em juízo, perpassa por aquela que enforça o processo como instrumento para a realização dos direitos individuais, e por, por fim aquela mais ampla, relacionada a uma das funções do próprio Estado a quem compete, não apenas garantir a eficiência do ordenamento jurídico; mas, outrossim, proporcionar a realização da justiça aos cidadãos.”
O professor Cândido Rangel Dinamarco[13] também entende que:
“O acesso à justiça é, mais do que ingresso no processo e aos meios que ele oferece, modo de buscar eficientemente, na medida da razão de cada um, situações e bens da vida que por outro caminho não se poderia obter”.
Em uma leitura superficial, pode-se entender que este acesso à justiça, sinônimo de mera possibilidade de ingresso perante o Poder Judiciário, tem previsão na Constituição Federal[14], pois seu texto assim prevê:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”
Esta previsão contida no texto constitucional trata-se, entretanto, da demonstração constitucional do princípio da inafastabilidade da jurisdição, o que significa dizer, em linhas gerais, que o Estado não pode se negar a solucionar qualquer conflito que lhe seja apresentado pelo cidadão.
Significa também, que o constituinte de 1988, buscou possibilitar o mais amplo acesso à justiça, tornando fácil o acesso ao Poder Judiciário e ao processo em si.
Neste contexto, não se pode olvidar que a garantia de acesso ao Poder Judiciário, é também uma via para que o cidadão obtenha a tutela jurisdicional justa.
Sobre este tema é imperioso citar o magistério dos professores Paulo de Tarso Brandão e Douglas Roberto Martins[15] para os quais:
“O princípio constitucional do acesso à justiça está positivado na ordem constitucional brasileira em alguns dispositivos constitucionais e infraconstitucionais. O mais importante deles está previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição da República, que estabelece: a ‘lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’. Embora apareça aqui somente parcela do acesso à justiça, por se tratar de disposição que aparentemente cuida do acesso ao Poder Judiciário, não se pode descurar que este compõe parte significativa daquela […].”
Entretanto, o simples acesso ao Poder Judiciário, que como já foi dito é uma via de acesso à ordem jurídica justa, nem sempre é uma tarefa simples para o cidadão.
O acesso ao Poder Judiciário pode não ser sinônimo de acesso à ordem jurídica justa, à tutela jurisdicional efetiva, porém, é o caminho principal para que este direito fundamental seja alcançado.
E o acesso ao Poder Judiciário, esta via que pode levar o cidadão a alcançar a tutela jurisdicional efetiva é cheio de percalços e limitações, principalmente aos cidadãos menos favorecidos.
Não se pode olvidar que um importante entrave está ligado à carência de recursos econômicos e diz respeito ao desconhecimento por parte dos cidadãos menos favorecidos dos seus direitos básicos e dos instrumentos que podem ser utilizados para alcançar estes direitos.
Acerca das limitações impostas aos cidadãos menos favorecidos financeiramente o professor Boaventura de Souza Santos[16] aduz que:
“Os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os afecta como sendo problema jurídico. Podem ignorar os direitos em jogo ou ignorar as possibilidades de reparação jurídica. […] mesmo reconhecendo o problema como jurídico, como a violação de um direito, é necessário que a pessoa se disponha a interpor a ação. Os dados mostram que os indivíduos das classes baixas hesitam muito mais que os outros em recorrer aos tribunais, mesmo quando reconhecem estar perante um problema legal.”
Neste contexto, não se pode olvidar que além de não significar acesso à ordem jurídica justa, o simples acesso ao Poder Judiciário também ainda possui barreiras que são impostas ao cidadão menos favorecido financeiramente.
Infelizmente o acesso à Justiça, que pode se concretizar por intermédio do Poder Judiciário, para uma grande parcela da população brasileira, ainda é extremamente limitado, devido a problemas pontuais como a lentidão do Poder do Judiciário, os obstáculos econômicos e sociais que dificultam o acesso dos menos favorecidos e impedem que parte dos cidadãos receba a prestação jurisdicional do Estado.
Sobre as limitações de acesso ao Poder Judiciário Ruy Pereira Barbosa[17] assevera que:
“Justiça, para o povo, é sinônimo de demora, de morosidade. Há processos que permanecem em tramitação ano após ano. A Justiça era tardia antes e depois de Ruy Barbosa. Em seu tempo afirmava ele: “Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito das partes e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinquente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente”. O atraso na prestação jurisdicional, o que equivale a dizer, a Justiça tardia, prejudica especialmente os pobres, para os quais a longa espera traz prejuízo irreparáveis. A péssima sistemática da organização judiciária, o constante deslocamento de juízes, a escassez de recursos materiais, a falta de uma aplicação mais sensata dos recursos, tudo isto implica em prejuízo para a celeridade da prestação jurisdicional.”
Os entraves existentes para o acesso ao Poder Judiciário não são um tema novo e apesar dos inúmeros institutos criados com o objetivo de se ultrapassar estas barreiras, ainda hoje impedem que uma grande parcela dos cidadãos possa acessar o Poder Judiciário na tentativa de alcançar a tutela jurisdicional efetiva.
Apesar do acesso à justiça se traduzir em direito fundamental de acesso à ordem jurídica justa, infelizmente, a tutela jurisdicional efetiva não vem sendo garantida aos cidadãos.
Quando se fala em ordem jurídica justa, isto significa que o Estado deve proporcionar uma tutela jurisdicional que dê segurança jurídica ao cidadão.
2. A EFETIVIDADE DO ACESSO À JUSTIÇA E O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO.
A efetividade do acesso à justiça não significa apenas o direito de petição, mais do que isto, significa uma tutela jurisdicional pautada pela equidade.
O professor José Roberto dos Santos Bedaque[18] leciona que:
“O Judiciário deve garantir um efetivo acesso à ordem jurídica justa, colocando à disposição de todas as pessoas mecanismos destinados a satisfação do direito: Muito mais do que prever mera formulação de pedido ao Poder Judiciário, a Constituição da República garante a todos o efetivo acesso à ordem jurídica justa, ou seja, coloca à disposição de todas as pessoas mecanismo destinado a proporcionar a satisfação do direito. Não basta, pois, assegurar abstratamente o direito de ação a todos aqueles que pretendam valer-se do processo. É necessário garantir o acesso efetivo à tutela jurisdicional, por parte de quem dela necessita. Acesso à justiça ou, mais propriamente, acesso à ordem jurídica justa significa proporcionar a todos, sem qualquer restrição, o direito de pleitear a tutela jurisdicional do Estado e de ter à disposição o meio constitucionalmente previsto para alcançar esse resultado. Ninguém pode ser privado do devido processo legal, ou melhor, do devido processo constitucional.”
E uma das ferramentas que serve como garantia de acesso à ordem jurídica justa é o princípio do duplo grau de jurisdição que, apesar de não estar expresso no texto da Constituição Federal, é assim considerado, por estar ligado de forma indivisível, ao conceito de Estado Democrático de Direito.
Evidentemente em uma democracia, onde vigora o Estado Democrático de Direito, não se pode olvidar que a garantia de reexame das decisões judiciais pelas instâncias superiores é uma forma de franquear ao cidadão o acesso a uma tutela jurisdicional o mais justa possível, que acaba se traduzindo em ordem jurídica justa.
Entretanto, o duplo grau de jurisdição, que é sinônimo de acesso à justiça, no seu mais amplo sentido, vem sendo mitigado pelo que se passou a denominar de jurisprudência defensiva.
3. A JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA DOS TRIBUNAIS.
Como todos sabemos o Poder Judiciário brasileiro, em especial os Tribunais Superiores, convivem atualmente com uma grande quantidade de processos, fator este que, inegavelmente, termina sobrecarregando os julgadores.
Destarte em virtude desta enorme quantidade de trabalho, atualmente algumas medidas drásticas tem sido adotadas pelos tribunais, dentre elas a restrição à admissibilidade de processos, as restrições regimentais e vários posicionamentos jurisprudenciais que dizem respeito à admissão dos recursos.
Na ânsia de diminuir o número de processos que lhes chegam para julgamento, os tribunais de todo o País, inclusive os tribunais superiores, criam medidas que têm o nítido caráter de vedar o duplo grau de jurisdição.
E entre os mecanismos utilizados para diminuir o número de processos que chegam aos tribunais estão a necessidade de pré-questionamento, a repercussão geral e os poderes quase que ilimitados do relator.
A decisão monocrática do relator em qualquer recurso, dificilmente é revertida por meio de Agravo Legal, pois a jurisprudência é sempre no sentido de que a decisão do relator é soberana e só pode ser modificada no caso de falta de fundamentação ou de quando se vislumbrar ilegalidade ou abuso de poder que resulte em dano irreparável ou de difícil reparação para a parte.
Ora, sob este fundamento, o jurisdicionado acaba sendo impedido de ter acesso à ordem jurídica justa, pois por mais absurda que seja a decisão, dificilmente o colegiado a reforma, dando poderes quase que ilimitados ao relator. E todos sabem que esta é uma das formas de desafogar as Turmas e Câmaras dos diversos tribunais do País.
Entretanto, para que a tutela jurisdicional do Estado seja realmente efetiva, é necessário que o cidadão consiga acessar todas as instâncias do Poder Judiciário e possa esgotar todos os recursos previstos na legislação, sem qualquer barreira que não esteja prevista na legislação.
Em decorrência da crescente judicialização dos conflitos, há uma enorme quantidade de processos que acabam indo para as instâncias superiores na forma de recursos, sendo que os tribunais, em virtude de diversos fatores, não conseguem suprir esta demanda, o que tem causado o acúmulo de feitos para serem julgados e a morosidade nos julgamentos.
Neste contexto, como forma de reduzir o número de recursos que chegam para serem julgados, os tribunais brasileiros começaram a adotar procedimentos que são verdadeiras barreiras de acesso ao duplo grau de jurisdição e que terminam mitigando o pleno acesso à ordem jurídica justa.
É interessante verificar que o ordenamento jurídico brasileiro possui a previsão do princípio do duplo grau de jurisdição, que é supedâneo do direito ao recurso, já que por meio deste princípio o jurisdicionado tem a garantia de ver a decisão da qual é destinatário revista por um segundo julgador, preferencialmente por um colegiado.
Com relação ao duplo grau de jurisdição o Professor Luiz Rodrigues Wambier[19], em obra sob sua coordenação, já ensinou que:
“Este princípio nasceu da preocupação com o abuso do poder pelos magistrados. Tem sido entendido como garantia fundamental de boa justiça. Consiste no princípio segundo o qual uma mesma matéria deve ser decidia duas vezes, por dois órgãos diferentes do Poder Judiciário”.
Infelizmente, apesar do acesso à ordem jurídica justa passar, obrigatoriamente, pela garantia do duplo grau de jurisdição, o que se tem visto são julgados que têm o objetivo precípuo de impedir que os recursos cheguem aos tribunais.
E esta prática, a qual se dá o nome de jurisprudência defensiva, não é sequer omitida pelos tribunais, que na ânsia de desafogar os gabinetes, se utilizam deste instrumento, que se traduz em nítida afronta aos princípios da legalidade e do acesso à justiça.
Um exemplo clássico desta jurisprudência defensiva é a Súmula nº 7, do Colendo Superior Tribunal de Justiça:
Súmula 7. A PRETENSÃO DE SIMPLES REEXAME DE PROVA NÃO ENSEJA RECURSO ESPECIAL.
Ora, com fundamento nesta súmula, ainda que o recurso interposto ultrapasse várias barreiras anteriores e consiga chegar ao Superior Tribunal de Justiça, ainda assim, as razões recursais não serão objeto de análise, pois na maioria das vezes o tribunal entende que o julgamento de mérito se traduzirá em reexame de provas.
Neste sentido trazemos à colação decisão do Superior Tribunal de Justiça[20]:
AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL. REEXAME DE PROVAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. ART. 255, § 2º, DO RISTJ. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA DIVERGÊNCIA SUSCITADA. DESPROVIMENTO.
– Na via especial, é vedada a alteração das premissas fático-probatórias estabelecidas pelo acórdão recorrido.
– A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. Súmula 7-STJ. Precedentes.
– A teor da farta jurisprudência desta Corte, não se conhece de recurso especial pela alínea "c" do permissivo constitucional, se o dissídio jurisprudencial não estiver comprovado, nos moldes exigidos pelo art. 255, parágrafos 1º e 2º do RISTJ.
– Agravo regimental a que se nega provimento. (grifamos)
Destarte em nome da celeridade processual, praticamente todas as pretensões recursais são consideradas como simples reexame de provas e deixam de ser analisadas pelo tribunal que tem como fundamento a Súmula 7.
E esta prática do Superior Tribunal de Justiça é considerada tão normal que o então Ministro Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Gomes de Barros, em seu discurso de posse assim se manifestou com relação ao tema: “Para fugir a tão aviltante destino, o STJ adotou a denominada ‘jurisprudência defensiva’ consistente na criação de entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhes são dirigidos”.
Entretanto, ao dispor que o Poder Judiciário não deixará de apreciar qualquer lesão ou ameaça de direito, a Constituição Federal pretendeu garantir, como cláusula pétrea, que o Poder Judiciário cumprirá suas funções de forma adequada, porém, por todos os argumentos já lançados, isso não tem ocorrido, em regra.
Apesar de ser uma garantia constitucional, erigida com o status de cláusula pétrea, nem sempre esta premissa é respeitada pelo próprio Poder Judiciário, que em nome da celeridade acaba por mitigar um direito constitucional.
Nesse sentido, é o magistério de Diogo Carneiro Ciuffo[21]:
“De acordo com tal garantia [do acesso à justiça], portanto, não podem os Tribunais Superiores criar óbices indevidos à admissão dos recursos especial e extraordinário, quer seja mediante novos requisitos de admissibilidade que não aqueles exigidos pela lei ou pela Constituição, bem como mediante o excesso de formalismo com os requisitos já existentes.A circunstância dos Tribunais Superiores encontrarem-se abarrotados de recursos aguardando julgamento não pode e nãodeve ser argumento para a utilização dos requisitos de admissibilidade dos recursos como freios para a contenção do grande volume recursal. O acesso à Justiça é bem de maior importância e deve, portanto, ser sempre preservado.”
No entanto, como bem observou o notável professor José Carlos Barbosa Moreira:
“Os tribunais, quando da análise da admissibilidade dos recursos, não podem exagerar na dose: por exemplo, arvorando em motivos de não conhecimento circunstâncias de que o texto legal não cogita, nem mesmo implicitamente, agravando sem razão consistente exigências por ele feitas, ou apressando-se a interpretar em desfavor do recorrente dúvidas suscetíveis de suprimento.”
Sob o argumento de que o Superior Tribunal de Justiça encontra-se atribulado com a quantidade de processos, observa-se, com frequência, julgamentos que demonstram a simples busca pelo encerramento dos processos a qualquer custo, em detrimento dos princípios constitucionais, principalmente da garantia do acesso à justiça.
Não obstante a imperiosidade da observância dos requisitos de admissibilidade e formalidades processuais no trâmite de qualquer recurso, já que estas asseguram a segurança jurídica dos jurisdicionados, ainda mais com relação ao recurso especial, que necessita de regras específicas para que tenha respeitada a sua excepcionalidade e a sua finalidade precípua de ser o intérprete final do direito federal.
Entretanto esta “filtragem” não pode ser levada a cabo a qualquer custo, mediante a consideração de filigranas processuais, algumas delas impostas ao arrepio da lei, em detrimento do direito material em discussão.
Também não parece razoável que os requisitos de admissibilidade do recurso especial e as formalidades a ele inerentes sejam utilizados com a finalidade precípua de eliminar processos.
Com efeito, contrariando os interesses dos jurisdicionados, que se socorrem do processo para obter uma tutela jurisdicional efetiva, mediante a resolução do mérito da demanda, as decisões proferidas pelos tribunais apegam-se ao rigor das formas e impõem entraves ao prosseguimento dos recursos.
O apego à formalidade é tão exagerado e o ímpeto de encerrar o processo também, que às vezes um recurso de agravo pode deixar de ser admitido se, além dos documentos obrigatórios previstos na legislação, o agravante deixar de instruir o recurso com documentos facultativos.
Apesar disso, não obstante a relevância desta observação é exatamente isso que os jurisdicionados estão acostumados a observar no dia a dia da jurisprudência dos nossos tribunais, ou seja, o excesso de rigor na análise da admissibilidade dos recursos, exigências destituídas de amparo legal e interpretações que mitigam o direito do cidadão.
Destarte este formalismo exacerbado e muitas exigências destituídas de fundamentação legal, configuram verdadeira mácula ao devido processo legal e ao princípio constitucional de acesso à ordem jurídica justa.
Advogado especialista em Direito Processual Civil
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