Resumo: Este artigo investiga a existência de obrigatoriedade na redação do art. 103, § 3º, da Carta Magna, segundo a qual deve o Advogado-Geral da União, de modo irrecusável, pugnar pela manutenção dos dispositivos legais questionados em sede do controle da constitucionalidade in abstrato. Analisando, em especial, julgados do STF e opiniões de renomados juristas, sem evitar confrontar seus entendimentos, emitimos, ao final, nossa conclusão.
Sumário: I – Introdução. II – Ingerência política. III – Check and Balances. IV – Incompatibilidade Funcional. V – Indeclinabilidade da Defesa. VI – Conclusão. VII – Reflexão.
Comentário do autor (em 05.2010)
Trata-se de artigo elaborado em outubro de 2004, quando, ainda na metade do curso de Ciências Jurídicas, eu tomava contato com o tema do controle da constitucionalidade e com as normas que regem a atuação do Advogado-Geral da União. O tempo decorrido desde então, me despertou a necessidade de uma breve revisão.
Hoje, por coincidência, exerço o cargo de procurador federal da Advocacia-Geral da União, oportunidade que me colocou em contato com outros valores e princípios relacionados com a verdadeira missão da Advocacia Pública e que me fazem refletir melhor sobre a existência de limites à independência funcional de seus membros.
No entanto, mesmo disposto a revolver o tema e pesquisar o farto acervo doutrinário e jurisprudencial que surgiu nestes quase seis anos, no momento, decidi de preservar as conclusões de outrora, a fim de manter o registro à época em que foi escrito.
I – Introdução.
“Art. 103 (…)
§ 3º – Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado”.
A redação do art. 103 § 3º da Constituição Federal tem suscitado grande polêmica na doutrina. O início da discussão está fincado no Direito Constitucional – na teoria do controle da constitucionalidade –, todavia, o debate reverbera de sobremaneira na Filosofia da Advocacia Pública.
Durante a malsinada tentativa de revisão constitucional, o então deputado Nelson Jobim propôs a supressão do comentado dispositivo da Lei Maior. Reaquecendo a polêmica, o projeto de emenda à Constituição que trata da Reforma do Judiciário retomou o intuito de suprimi-lo, contudo, resultou na sua manutenção integral.
II – Ingerência política.
João Carlos Souto, estudando o sistema jurisdicional norte-americano, relata uma certa reforma do Judiciário tentada nos idos de 1937, pelo então presidente Franklin Roosevelt. Explica que, durante capítulo da história americana, inovou-se na competência do “Attorney General” (Secretário de Justiça) em defender os textos legais impugnados perante a Suprema Corte no exercício do controle da constitucionalidade. Diz o Procurador da Fazenda Nacional[1], in verbis:
“Sem sombra de dúvidas, e guardadas as devidas dessemelhanças entre o sistema norte-americano (que acolhe o controle difuso desde 1803) e o brasileiro (que agasalha o difuso e concentrado), de controle da constitucionalidade, essa medida legislativa proposta pelo Executivo e chancelada pelo Capitólio se assemelha ao estatuído no art. 103, § 3º, do Estatuto Básico de 1988”.
O citado autor aproveita esta conclusão para criticar a influência do precursor norte-americano na redação atual do polêmico parágrafo terceiro. Todavia, no bojo de sua dissertação, fica evidenciada a intenção política do Presidente Roosevelt em criar mecanismos de controle sobre o Judiciário.
Nada obstante às influências, não nos parece que a motivação do constituinte brasileiro seguiu o histórico acima narrado. Em sentido oposto, a proteção dada à presunção de legitimidade visa resguardar o julgamento técnico da constitucionalidade, ponderando, outrossim, a utilidade dos controles preventivos, legislativo (CCJ) e executivo (veto) e, numa última análise, a legitimação popular que permeia toda a produção legislativa.
III – Chek and Balances.
A presença do Advogado-Geral neste tipo de ação não se dá por critérios políticos – de ingerência do chefe do Executivo no Poder Judiciário. Pelo contrário, advém de uma tarefa atribuída pela Lei Maior de defesa da própria lei ou ato normativo em tese.
De um lado, a existência-validade de qualquer norma jurídica é conferida pela Lei Fundamental, de modo que a nulidade plena é a conseqüência imediata da dissonância destas leis infraconstitucionais com a fonte jurígena.
De outro lado, a presunção de conformidade das espécies normativas para com a Carta Republicana merece especial amparo, conquanto assegura a estabilidade do sistema legislativo. Ao ingressar no ordenamento jurídico a norma adquire uma espécie de “selo de garantia” atestando que tramitou pelas formalidades devidas, as quais presumem o controle prévio de sua compatibilidade com a Constituição. Negar defesa a esta presunção seria desequilibrar o sistema de check and balances, sobrecarregando o Judiciário na competência de fiscalizar a validade de todo o qualquer ato normativo.
Por isso, no controle concentrado de constitucionalidade não existe defesa direta da União. Enquanto exerce o múnus constitucional, o Advogado-Geral estará desvinculado, momentaneamente, da tarefa de representação do ente federativo, adstrito apenas à atribuição de propugnar pela manutenção do texto impugnado.
Destarte, mesmo quando o dito interesse partidário do Governo estiver em jogo, militando pela declaração da inconstitucionalidade, deve o defensor legis cumprir o encargo constitucional, empenhando todo o notável saber jurídico que lhe içou ao cargo.
IV – Incompatibilidade funcional
Admitindo a possibilidade de descumprimento do ônus, João Carlos Souto, inclusive, expõe uma situação na qual deduz uma divergência de interesses numa mesma pessoa[2].
Quando o Advogado-Geral houver dado parecer[3] pelo veto a um projeto de lei que, posteriormente, foi derrubado pelo Congresso, sendo, então, publicada a lei. Caso o Presidente da República provoque o controle abstrato da constitucionalidade[4] contra esta mesma lei, estaria o Advogado-Geral da União obrigado a opinar em favor da manutenção desta espécie normativa que recentemente condenou?
Neste caso, se considerássemos a atuação do Advogado-Geral da União, sem desconectá-lo “psicologicamente” do ônus de defensor e patrocinador dos interesses da União Federal, estaríamos, como dito pelo citado autor, diante duma incompatibilidade subjetiva de funções, visto que, muitas vezes o próprio ente federativo (titular do interesse público) persegue a declaração de inconstitucionalidade.
Posta questão de foro íntimo – in casu, a elaboração do parecer – estaríamos diante de uma incompatibilidade pessoal, e jamais, duma incoerência funcional. De maneira simplória contornamos a situação, atribuindo-se a tarefa da pessoa do Advogado-Geral para o seu substituto legal – nomeado pelo Presidente, nos termos do art. 3º, §2º, da Lei Complementar nº 73/93.
Para melhor dirimir a controvérsia seria necessário fazer uma distinção entre o interesse do ente público – fundado na legalidade – e o interesse constitucional de se garantir a defesa da presunção de constitucionalidade. Não estamos, todavia, a afirmar que o interesse da União está desvinculado da Constituição Federal, mas apenas que, em tese, tal interesse é oriundo de fontes diversas, ora a personalidade jurídica da União, ora uma “personificação” da presunção de constitucionalidade.
A este respeito, Carlos Luiz Neto nos ensina que a defesa a presunção de constitucionalidade não se confunde com a defesa do ente que editou a norma impugnada, a qual pode ser oriunda da União ou dos Estados-membros[5].
“Assim, como visto acima, não há que falar em conflito de interesse entre a União e Estado em sede ação direta de inconstitucionalidade. De tal sorte, o fato de a norma impugnada ser estadual ou federal não tem nenhuma relevância na aplicação do comando inserto no §3º do artigo 103 da Constituição Federal. Enfim, não é o fato da norma acoimada de inconstitucionalidade ser estadual que impede a atuação do Advogado-Geral da União na defesa do ato ou da norma impugnada. Na verdade, não há nenhuma incompatibilidade no fato do Advogado-Geral da União defender uma lei estadual, afinal o que ele defende, na hipótese, é a constitucionalidade da norma legal e não a pessoa jurídica do Estado membro, da mesma forma que defende a lei federal, e não a União”. – grifamos
Apesar da aparente dicotomia, o próprio Pretório Supremo concorda com a inexistência de incongruência entre as competências constitucionais do Advogado-Geral da União, conforme depreende do julgado abaixo transcrito:
“Compete ao Advogado-Geral da União, em ação direta de inconstitucionalidade, a defesa da norma legal ou ato normativo impugnado, independentemente de sua natureza federal ou estadual. – não existe contradição entre o exercício da função normal do advogado da União, fixada no caput do artigo 131 da carta magna, e o da defesa de norma ou ato inquinado, em tese, como inconstitucional, quando funciona como curador especial, por causa do principio da presunção de sua constitucionalidade”.(ADI 97 QO, rel. Min. Moreira Alves, DJ 30.03.90, p. 02339) – grifamos
Explica-se a ausência de incompatibilidade porque a própria ADI tem natureza especial em relação a uma simples ação declaratória[6]. A representação de Inconstitucionalidade não é movida em face da União, e, em verdade, sequer há réu, em sentido material. Neste entendimento converge o magistério de Moreira Alves, verbis:
“A representação de inconstitucionalidade, por sua própria natureza, se destina tão somente à defesa da Constituição vigente quando de sua propositura. Trata-se, em verdade, de ação de caráter excepcional com acentuada feição política pelo fato de visar ao julgamento, não de uma relação jurídica concreta, mas da validade da lei em tese, razão por que o titular dela – e árbitro da conveniência de sua propositura – é um órgão político (o Procurador-Geral da República), e a competência exclusiva para processá-la e julgá-la cabe ao Supremo Tribunal Federal, como cúpula de um dos poderes da União. Tais características estão a mostrar que não é ela uma simples ação declaratória de nulidade, como qualquer outra, mas, ao contrário, um instrumento especialíssimo de defesa da ordem jurídica vigente estruturada com base no respeito aos princípios constitucionais vigentes”. (RT 95/999) – g.n.
A noção de especialidade do controle abstrato é reconhecida até mesmo por aqueles que defendem a flexibilidade do múnus de defesa. Assim explicam Guilherme de Figueiredo e Marcos de Barros, procuradores do estado de São Paulo, em ótimo artigo[7]:
“Inicialmente, é de todo oportuno salientar que a ADIn não é ajuizada em face de uma pessoa física ou jurídica. Na petição inicial é formulado pedido ao tribunal competente para que julgue determinada lei ou ato normativo inconstitucional, a fim de que o Poder Judiciário determine que a norma combatida seja eliminada do ordenamento jurídico positivo. O tribunal, recebendo a inicial, solicita informações aos Poderes Executivo e Legislativo da pessoa jurídica de direito público – editora da lei impugnada – para que preste informações”.
Nesse diapasão, importante sepultar qualquer dúvida através do argumento levantado por Clèmerson Merlin Clève[8], litteris:
“A finalidade da ação direta de inconstitucionalidade não é a defesa de um direito subjetivo, ou seja, de um interesse juridicamente protegido lesado ou na iminência de sê-lo. Ao contrário, a ação direta de inconstitucionalidade presta-se para a defesa da Constituição. A coerência da ordem constitucional e não a defesa de situações subjetivas consubstancia a finalidade da apontada ação. Por isso consiste em instrumento da fiscalização abstrata de normas, inaugurando ‘processo objetivo’ de defesa da Constituição. Cuidando-se de processo objetivo, na ação direta de inconstitucionalidade não há lide, nem partes (salvo no sentido formal), posto inexistirem interesses concretos em jogo. Por isso, as garantias processuais previstas pela Constituição, não se aplicam, em princípio, à ação direta de inconstitucionalidade” – grifamos
Assim, por força do procedimento, na ação direta de inconstitucionalidade figuram o Autor (aqueles legitimados pelo art. 103), o Poder Legislativo promulgador da lei ou ato normativo impugnado (alcunhado de Réu), o Pretório Excelso (incumbido de julgar a representação), eventual amicus curiae (“assistente especial” em qualquer pólo) e o Advogado-Geral (como curador da presunção de constitucionalidade).
Logo, não ocupa o Advogado da União posição de réu nem de fiscal da lei (custus legis). Ele intervém no processo por imposição constitucional para servir de escudo ao próprio ordenamento jurídico. Desta forma, exerce o contraditório para fins de instruir o processo com elementos suficientes a permitir uma cognição justa pelo Pretório Excelso – protegendo a Constituição sem violar a presunção de compatibilidade das normas infraconstitucionais.
Desta forma entendeu o Supremo Tribunal Federal, em Ação Direta de Inconstitucionalidade, da relatoria do dileto Ministro Celso de Mello, litteris:
“A função processual do Advogado-Geral da União, nos processos de controle de constitucionalidade por via de ação, é eminentemente defensiva. Ocupa, dentro da estrutura formal desse processo objetivo, a posição de órgão agente, posto que lhe não compete opinar e nem exercer a função fiscalizadora já atribuída ao Procurador-Geral da República. Atuando como verdadeiro curador (defensor legis) das normas infraconstitucionais, inclusive daquelas de origem estadual, e velando pela preservação de sua presunção de constitucionalidade e de sua integridade e validez jurídicas no âmbito do sistema de direito, positivo, não cabe ao Advogado-Geral da União, em sede de controle normativo abstrato, ostentar posição processual contrária ao ato estatal impugnado, sob pena de frontal descumprimento do “munus” indisponível que lhe foi imposto pela própria Constituição da República”. (ADI 1254 MC-AgR / RJ, DJ de 19.09.97)
Não há, pois, incompatibilidade alguma quando o Advogado-Geral, ocupando posição processual especialíssima, em defesa da personalidade ficcional da presunção de legalidade, sustente argumentos contrários àqueles expendidos por ele, outrora, em exercício da defesa e assessoramento da União Federal.
V – Da indeclinabilidade da defesa
Uma interpretação literal do texto constitucional não deixaria dúvidas. Em todo o controle da constitucionalidade[9] pela via de ação deve o Advogado-Geral da União defender indistintamente a presunção de legalidade.
Ademais, torna-se visível a mens legem do texto constitucional ao instituir como defensor da presunção de constitucionalidade o órgão máximo de assessoramento jurídico na esfera federal. Invés de eleger qualquer representante do órgão ou da autoridade do qual emanou a espécie normativa atacada, seja ele federal ou estadual, optou o legislador constituinte por aquele órgão que detém notável saber jurídico e reputação ilibada, assim como os ministros da Cúpula Judiciária Brasileira.
Tamanha seria a desproporção dialética entre a parte proponente da representação e a parte “acionada”[10], que, esta última apenas presta informações[11]. Ou seja, ausente o defensor legis, quedará a norma totalmente vulnerável às inenarráveis ingerências que sobejam os meandros da Justiça. Por isso é indispensável sua presença.
Em que pese a ausência de partes, em sentido material, o modelo processual desenhado na Constituição Brasileira consagra de forma expressa a necessidade de antítese à qualquer pretensão exposta em juízo (art. 5º, LV). Para além de encerrar uma garantia individual, a exigência do contraditório em todos os processos também se liga à noção de inércia e imparcialidade do órgão julgador, o qual forma seu convencimento a partir dos elementos trazidos pelo autor e pelo réu.
Mutatis mutandi, a indeclinabilidade da defesa técnica em sede de ação de direta de inconstitucionalidade possui raízes nos mesmos princípios que asseguram aos acusados no processo penal o irrenunciável direito à defesa. Isto porque os valores defendidos na ação criminal (presunção de inocência) e na representação de inconstitucionalidade (presunção de constitucionalidade) possuem status constitucional de grande destaque e importância no ordenamento jurídico.
Poderia o advogado de defesa concordar com a acusação e pleitear a pena máxima para o réu?
Entretanto, doutrinadores de escol combatem esta tese asseverando pela não obrigatoriedade de o AGU executar a tarefa em determinados casos. Alegam que numa exegese teleológica do referido parágrafo, o “dever” perderia seu caráter inarredável quando, citado para tanto, o próprio AGU detectasse a inconstitucionalidade da norma a ser defendida.
O ex-Advogado-Geral da União Gilmar Mendes, entende que, diante de decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal, a insistência no dever de defender implicaria na existência de um “advogado da inconstitucionalidade”.[12]
Com este magistério do atual ministro Gilmar Mendes, concordou o STF, por maioria, em julgamento recente, in verbis:
“O munus a que se refere o imperativo constitucional (CF, artigo 103, § 3º) deve ser entendido com temperamentos. O Advogado-Geral da União não está obrigado a defender tese jurídica se sobre ela esta Corte já fixou entendimento pela sua inconstitucionalidade. Ação julgada procedente para declarar inconstitucional a Resolução Administrativa do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região, tomada na Sessão Administrativa de 30 de abril de 1997”.(ADI 1616/PE, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 24.08.01 p.41)
Não obstante ao julgado recente, apoiamos, a opinião conservadora. Dentre os expoentes defensores da indeclinabilidade da defesa encontramos Alexandre de Moraes[13], cuja lição abaixo transcrevemos:
“Desta forma, atuando como curador da norma infraconstitucional, o Advogado-Geral da União está impedido constitucionalmente de manifestar-se contrariamente a ela, sob pena de frontal descumprimento da função que lhe foi atribuída pela própria Constituição Federal, e que configura a única justificativa de sua atuação processual, neste caso”.
Filiamo-nos, ainda, ao entendimento que vinha sendo sedimentado pelo Supremo Tribunal Federal, conforme jurisprudência que permeia todo o presente estudo. Tomamos como norte a conclusão do ministro Sepúlveda Pertence, então relator da ADI, em questão de ordem, assentou:
“Erigido curador da presunção de constitucionalidade da lei, ao advogado-geral da União ou quem lhe faça as vezes, não cabe admitir a invalidez da norma impugnada, incumbindo-lhe, sim, para satisfazer requisito de validade do processo da ação direta, promover-lhe a defesa, veiculando os argumentos disponíveis” (DJU, 25.5.90, p.4.603) – grifos nossos
A sabedoria do acórdão acima transcrito reside exatamente no período grifado: “veiculando os argumentos disponíveis”. Desta forma, buscou o brilhante julgador afastar a crítica contrária a respeito da impossibilidade de defender norma flagrantemente inconstitucional. Como dito acima, não interessa ao legislador constituinte que todas as ADIs resultem na manutenção da norma infraconstitucional, mas, tão somente, garantir a justa apreciação pela Cúpula do Judiciário.
Dada a relevância da ação de inconstitucionalidade, sua apreciação deve ser profunda, analisando em face de todos os princípios e normas pertinentes, bem como à luz do cenário jurídico e social do momento.
Portanto, cabe ao curador legis atuar tecnicamente, argüindo as matérias juridicamente aceitáveis, mesmo que, numa análise da conjuntura atual, se convença da inviabilidade de suas alegações ou da efetiva incompatibilidade constitucional. No entanto, a simples obediência aos precedentes anteriores poderia desequilibrar a presunção de constitucionalidade de normas semelhantes que, noutro contexto normativo ou doutrinário, poderia ser defendida.
Assim como a sociedade, o Direito está em constante transformação, inclusive quanto ao conteúdo dos conceitos constitucionais (mutação constitucional). Certos da velocidade das mudanças num mundo globalizado, deve a Suprema Corte garantir a segurança jurídica sem deixar de acompanhar a evolução do cenário político, social e econômico. Para auxiliar no aperfeiçoamento das orientações consagradas no âmbito da jurisdição constitucional, deve o Advogado-Geral da União, a cada nova impugnação da constitucionalidade das leis, buscar novos argumentos tendentes a compatibilizar a sobrevivência da norma (produto da vontade popular), com os imperativos da Constituição em vigor, considerado sempre o contexto atual.
Não entendemos, portanto, razoável a proposta de supressão do parágrafo 3º do art. 103 da Carta Magna, porquanto afinado com a garantia da constitucionalidade presumida das leis. Admitir o entendimento oposto poderia trazer o risco de desequilíbrio no sistema brasileiro de controle da constitucionalidade.
VI – Conclusão
Perante a obrigação de defender o texto de lei, deverá o Advogado-Geral da União fazê-lo, de forma ética, porém aguerrida. Admitir que o causídico constitucional substitua à turma do Egrégio Pretório opinando previamente sobre a procedência ou não do pedido equivaleria, não apenas a inverter a lógica do processo, mas, a contrariar clara exegese do dispositivo da Lei Maior e usurpar a função deferida a outro órgão, o Procurador-Geral da República.
Caso entendêssemos possível que o AGU, ao ser citado para figurar numa ADI, ponderasse que tal lei é, de fato, inconstitucional, e declinasse de sua função, estaríamos subvertendo a lógica da ação e permitindo que o próprio defensor legis desguarneça o bem jurídico tutelado: a vontade popular.
Por óbvio, não desconhecemos os casos aberrantes em que a inconstitucionalidade da norma transparece em sua literalidade. Entretanto, os casos excepcionais devem assim ser tratados, como hipóteses que confirmam a validade da regra num contexto de normalidade. O que não se admite, em nosso sistema constitucional, é a ausência de uma posição de resistência, destinada a fornecer ao órgão julgador subsídios para uma decisão equilibrada, eis que a técnica processual em vigor se assenta num paradigma de composição dialética.
Nesta ordem, a tarefa do Advogado-Geral da União não é falsear a verdade ou desprezar todos os consensos científicos, em nome de um suposto dogma da constitucionalidade. No entanto, sua missão é evitar que uma norma seja expurgada do Ordenamento sem que se pondere sua eventual sobrevivência em face de um novo contexto ou de interpretações diversas daquelas cogitadas na ação de inconstitucionalidade.
Quando o imperativo constitucional confere Advogado-Geral da União a defesa da legislação infraconstitucional, deve fazê-lo da melhor maneira possível, à luz de sua convicção teórica, e não de forma política visando adequar os interesses envolvidos. Ao contrário dos órgãos dotados de amplo poder político, não é da alçada do militar em prol da supressão das leis editadas pelo Poder Legislativo, pois, embora nomeado livremente pelo mais alto órgão político do Poder Executivo – o Presidente da República –, sua tarefa é eminentemente técnica.
Enfim, o dever de posicionar-se em favor do representado – seja ele o Estado ou o indivíduo – é inerente ao jus postulandi. A diferença entre o Advogado-Geral da União e advogado particular, porém, é que este não está obrigado a aceitar qualquer causa, podendo renunciar ao mandato (Lei nº 8.906/94, art. 5º, § 3º); aquele exerce função institucional indeclinável. Assim, ressalvados os casos teratológicos, em que, por ausência de hipóteses válidas de argumentação, não for possível sustentar em sentido contrário, o Advogado-Geral da União deverá sempre se posicionar pela manutenção da norma impugnado.
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