Na mesma proporção que avança a criminalidade, proliferam pelo país os “disque-denúncias”, números de telefones para receber “denúncias”, identificadas ou não, acerca de atos infracionais.
Muito embora, a nossa Constituição Federal vede o anonimato (art. 5º, IV), parte considerável dos operadores do Direito tem admitido a prática, sob a justificativa de que esta, apenas dá ensejo a uma investigação preliminar e qualquer indiciamento ou acusação posterior será devidamente formalizada e arrimada em provas carreadas na investigação. Naturalmente, que existem inúmeros questionamentos acerca da validade do anonimato dessas “denúncias”, mas, predomina a sua admissão sob o argumento de ser “um mal necessário” para combater o avanço da criminalidade.
A justificativa para aceitação da denúncia, apócrifa e sem rosto, encontra lastro, especialmente, na luta para reduzir a impunidade, facilitando a apuração de fatos e a indicação de seus autores por parte de pessoas que provavelmente deixariam de assim proceder se a identificação fosse indispensável.
É verdade, que a acusação anônima, por si, não serve de prova válida no processo, nem pode embasar uma condenação, que neste caso, deve assentar-se em provas admitidas e submetidas ao contraditório.
Nem há que se dizer que a denúncia anônima tenha o condão de proteger as testemunhas, porque o anônimo delator não será visto como tal e nenhuma proteção lhe será concedida, senão a própria razão de não se exigir a sua identificação.
O que mais preocupa, porém, não é a própria acusação apócrifa, mas o ato que a sucede e como ela é recebida pelos agentes investigadores.
Considerando o anonimato, indispensável seria recebê-lo com extrema cautela, de forma que as investigações não desprezassem a igual possibilidade de tratar-se de acusação inverídica e da tentativa de manipular o aparelho repressor para agir contra determinada pessoa que esteja contrariando interesses do delator.
Não se pode desenvolver uma ótica parcial, adotando-se como premissa verdadeira o conteúdo da acusação sem rosto, dedicando esforço, apenas, para arrecadar provas que robusteçam o teor daquela “denúncia”.
Quando isto acontece, e não são raras vezes, os investigadores acreditam no conteúdo da acusação anônima, e ante esse juízo de valor, toda e qualquer observação que realizam fica influenciada pela concepção prévia de ser verdadeira a denúncia, limitando seu trabalho a conquistar elementos probatórios que corroborem essa conclusão.
A temeridade do anonimato está, essencialmente, na natural incapacidade de muitos investigadores, explicável pelo triste contexto da criminalidade e o afã de reprimi-lo, de igualmente duvidarem da veracidade do conteúdo acusatório, e assim cuidar para que as observações que irão proceder não se deixem contaminar por conclusões precipitadas e concepções prévias incriminatórias. Estas dão ao investigador e ao futuro operador do direito que atuará no caso, a percepção falsa de que simples fatos da vida, sem significado infracional, sejam vistos como se fossem partículas de uma conduta irregular.
Seria possível notar este equívoco, se aqueles mesmos fatos fossem observados por pessoas que não tiveram qualquer conhecimento da acusação anônima, vistos com ótica imparcial, como atos da vida, sem qualquer compreensão ou conotação pejorativa.
Desta forma, a influência que a concepção prévia pode exercer no trabalho de investigação, acusação formal e futuro julgamento, é bastante maléfica e deve ser objeto de profunda reflexão, para evitar incomensuráveis injustiças.
Embora, sob o ponto de vista estatístico, a visão macro de injustiças, em número talvez não expressivo, justificasse prosseguir no procedimento, sem o devido treinamento e orientação dos investigadores, para alertá-los da possibilidade de que algumas “denúncias” anônimas poderiam estar desejando a manipulação do aparelho repressor para atingir pessoas que estejam contrariando interesses dos delatores sem rosto.
Sob o ponto de vista singular, o que deve preponderar em matéria penal, uma única injustiça bastaria para demonstrar a necessidade de um treinamento mais eficaz e uma orientação mais efetiva. Afinal, a máxima é: “melhor um culpado absolvido que um inocente condenado”.
Essa preocupação deve ocupar a definição das estratégias de investigação, acusação e julgamento, assim como das academias de formação profissional, para o aperfeiçoamento do sistema.
Advogado, sócio da Asdrubal Júnior Advocacia e Consultoria S/C, pós-graduado em Direito Público pelo ICAT/UniDF, Mestre em Direito Privado pela UFPE, Professor Universitário, Presidente do IINAJUR, organizador do Novo Código Civil da Editora Debates, Coordenador do Curso de Direito da UniDF, Diretor da Faculdade de Ciências Jurídicas da UniDF, Consultor das Nações Unidas – PNUD, Editor da Revista Justilex, integrante da BRALAW – Aliança Brasil de Advogados.
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