“Em justiça, qual é a causa impura e corrupta a que uma voz persuasiva não possa, apresentando-a com habilidade, dissimular o odioso aspecto? Em religião, qual o erro detestável que não possa, sacrificado por uma fronte austera e apoiado em textos adequados, esconder a grosseria debaixo de belos ornamentos?”
William Shakespeare, ao dar vida a seus personagens, em O Mercador de Veneza, demonstrou a falibilidade humana, quer no sentido legal, com descumprimento de acordos e traições, quer no sentido moral, pois a justiça de cada um depende em muitos casos de como vemos e ouvimos a história, além dos valores que adquirimos e prezamos ao longo da vida.
Para garantir a satisfação dos interesses de seu amigo Bassânio, Antônio, mercador na cidade de Veneza, tornou-se devedor de Shylock, um rico judeu, na quantia de três mil ducados, estando convencido que dentro de dois meses já teria o suficiente para quitar a dívida. Ocorre que os navios de Antônio se perderam no mar e como parte do acordo firmado, Shylock teria então o direito de retirar-lhe uma libra de carne de onde bem entendesse caso a dívida não fosse paga. Quando chegou o momento para o cumprimento do contrato, o sentimento de que uma enorme injustiça estava sendo levada adiante, mas não aos olhos de Shylock, cuja palavra do homem era mais valiosa que o dinheiro, tomou conta dos que presenciaram o acordo. O que era justo para um judeu não era justo para os venezianos.
O desenrolar desse julgamento passado em Veneza dá-nos a noção do processo de execução, naquela época um jus vitae et necis, ou seja, o direito de vida ou morte que tem o credor para com seu devedor, à exemplo das regras romanas, muito cruel e pouco satisfatório para as pretensões do credor. Tem-se, também, um exemplo de obrigação personalíssima, onde somente Antônio poderia cumprir com o trato, embora a obrigação se resumisse apenas em pagar a quantia devida. A bela Pórcia oferecera três vezes o dobro do valor devido e nem isso foi capaz de amolecer o coração do judeu. Estava, pois, convencido de que se Antônio não o fizesse suas pretensões jamais estariam satisfeitas. Graças às habilidades advocatícias de Pórcia (Baltasar) Antônio se livra do cumprimento da sentença tão inexoravelmente rude.
Hoje, a execução do próprio devedor por suas dívidas não mais existe. Com o fortalecimento da atividade estatal, coibindo abusos existentes nas vontades privadas, esse processo cruel de execução desapareceu, dando lugar à sub-rogação estatal no patrimônio do executado. Uma garantia maior de satisfação para o credor, até porque de nada adiantaria uma libra de carne humana como pagamento de dívidas.
O atual Código de Processo Civil, em seu art. 475, “i”, arrola modalidades obrigacionais que podem ser pedidas pelo autor. Nestes casos, envolvendo, na maioria das vezes, a satisfação de sua necessidade com o pagamento do débito em pecúnia, o Estado, por intermédio do órgão jurisdicional, ao intervir nesta relação, garante que o autor da demanda seja atendido em seu pedido por atingir o patrimônio da parte executada, no caso do não cumprimento da ordem judicial para pagar. Tais medidas executivas atingem seus objetivos com o desapossamento de bens do executado, como no caso da apreensão judicial de bens destinada a garantir o pagamento do débito, na exata proporção de sua dívida para com o credor exeqüente. Existem, no entanto, outras modalidades de se cumprir a sentença determinada pelo Estado-juiz que não envolverão a satisfação pecuniária do autor. A regra geral é que as obrigações de fazer e não fazer não comportam execução para satisfação pecuniária do pedido, apenas comportando a tutela específica pretendida ou, no caso de obrigações não personalíssimas, onde pode ser atendida por terceiro, a busca do resultado prático equivalente.
As obrigações de fazer se resumem a um ato pessoal do credor, como um exemplo clássico, pode ser a pintura de um quadro. Apesar da aparente natureza singela da obrigação, onde a pintura de um quadro geralmente pode ser feita por qualquer pintor, independentemente de sua notória especialização ou fama, o ato em si, de pintar, não é levado em conta, pelo menos num primeiro momento. São chamadas obrigações personalíssimas, que só atingirão a satisfação do exeqüente se a pintura for feita pelo próprio pintor contratado. Por estranho que pareça, tais obrigações não serão efetivamente satisfeitas com o pagamento de quantia em dinheiro, ainda o montante, como no caso do livro de Shakespeare, atinja o triplo do valor real. O autor, quando propõe tal ação, não visa o recebimento de valor em dinheiro, ele quer, tão somente, que se cumpra a obrigação pelo pintor, que este entregue o quadro da forma como pretendida.
O juiz, ao proferir a sentença executiva neste tipo de obrigação, não determina a procura de um bem no patrimônio do devedor. Mas pode se converter em perdas e danos se o autor assim a requerer, ou, na redação do art. 461, § 1°, se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. Haverá, então, a mudança da obrigação; exigia-se, inicialmente, o fazer ou não fazer e transformou-se em pagamento de pecúnia.
A antecipação da tutela, prevista pelo legislador no art. 273, havendo a plausibilidade da parte nas suas razões, fundada justificativa em suas alegações, o juiz determinará que se cumpra o que foi pedido ou que o executado se abstenha de fazer. A busca do resultado prático equivalente ocorre quando a obrigação puder ser feita por terceiro. Como no exemplo anterior, se somente o pintor contratado e executado puder cumprir a obrigação, não há que se falar em busca de resultado equivalente, até porque se assim o fizesse as pretensões do autor não seriam satisfeitas. Não se tratando de cumprimento de obrigações personalíssimas, as fungíveis podem ser executadas por terceiro às expensas do obrigado original, sem prejuízo de multa fixada pelo juiz.
Quando pretendido pelo exeqüente o cumprimento ou abstenção de sua satisfação, o Poder Judiciário deve, necessariamente, impor multas severas. Se assim não o fizer, o executado, ainda mais quando tratar-se de personalidade pública e notória, possuidora de muitas posses, poderá não cumprir o trato e sujeitar-se à multa, o que, para ele, trata-se de quantia ínfima. Para ilustrar, se uma grande construtora, condenada a abster-se de produzir poluição sonora durante o período de 16h as 18h, for impelida a pagar, como multa, pelo descumprimento, a quantia de R$ 1.000,00 por dia, poderia simplesmente não obedecer e, inclusive, numa atitude pernóstica, desfazer do autor, deixando que ele escolha se quer receber em dinheiro, cheque etc. Por outro lado, essa construtora, se condenada à multa de R$ 100.000,00 por dia por desobediência, terá motivos maiores para se preocupar. Por mais bem estrutura econômica e financeiramente que seja, esta quantia fará falta. Agora que seu patrimônio sofreu ameaça ficará receosa em desobedecer. Pode-se dizer que essas medidas coercitivas constituirão uma conditio sine qua non à real satisfação da pretensão do autor. Tem-se, pois, a melhor forma de se compelir uma pessoa, quer física ou jurídica, ao cumprimento da obrigação.
Noutro aspecto, haverá necessidade de razoabilidade do juiz quando do cumprimento dessas duas modalidades de obrigação, fazer e não fazer, como dispõe o § 4° do art. 461. Em alguns casos a dilatação do prazo será necessária, em razão de circunstâncias reais, assim como nas obrigações de entregar coisa. Como hipótese, se aquele mesmo pintor se encontre em viagem pela Europa e, como amplamente divulgado pelos jornais, houvesse atrasos nos aeroportos, cancelamento de vôos, ou seja, um caos de enorme magnitude que o impedisse de voltar ao Brasil em tempo hábil, seria desarrazoada a imposição de cumprir a obrigação em um prazo tão curto. O mesmo não se aplicando, obviamente, em se tratando quando se configura uma atitude protelatória do executado.
William Shakespeare, que era mestre em sensibilizar seus leitores, revelou que a clemência, refletida nos atos cotidianos da vida, é a melhor forma de se evitar conflitos desnecessários e conseqüências desastrosas. Com proficiência, demonstrou uma possibilidade de se usar a própria lei que condenou Antônio ao pagamento da dívida com sua carne em seu próprio benefício. Embora ser clemente com os devedores contribuirá para que continuem agindo contra a lei, evitará, por outro lado, que conflitos de interesses de pequena monta cheguem ao Judiciário e atravanquem ainda mais o sistema estatal.
É possível encontrar solução onde talvez considere impossível. Ou talvez veja outras possibilidades, que não a judicial, e aprenda a aplicá-las de um modo benéfico para ambas as partes. Vale lembrar que as pessoas também podem mudar, um devedor pode retroceder de seu caminho e procurar o credor para quitar seu débito. Essa é uma esperança que será bom que seja a última a esvaecer nos dias tão complexos e intolerantes que vivemos. Mais do que a sugestão da obra de Shakespeare em sermos clementes e respeitarmos a dignidade humana na cobrança de dívidas, temos a obrigação de fazer isso.
Acadêmico do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Oeste de Minas – FADOM/Divinópolis/MG
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