É justo que se diga que nestes sete anos de vigência do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor-CDC, as chamadas relações de consumo, entre nós, passaram do estágio selvagem ao estágio civilizado; é claro que há muito ainda por fazer, contudo poucos setores da vida dos brasileiros evoluiu tão depressa. Evolução esta que começou em nível nacional desde meados de 1985, com o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (CNDC), órgão de assessoria da Presidência da República na formulação da política específica e encarregado de fomentar e colaborar na instalação dos Procons (estaduais e congênere municipais), Promotorias de Justiça e Delegacias policiais ambas especializadas, juizados de pequenas causas e entidades civis e por fim, preparar os estudos iniciais e o próprio anteprojeto do Código.
Alguns registros merecem ser relembrados porque expressivos desta aceleração histórica. A idéia reinante até então era, com raras exceções, o absoluto império do modelo liberal-individualista (cada um por si e efetivamente ninguém por todos); o mercado (conjunto despersonalizado dos consumidores, última análise) e o velho ato de comércio (relação do profissional do comércio com seu cliente – ente sem rosto, despersonalizado) eram os alvos da legislação regente da matéria, até então, difusamente perdida no medieval Direito Comercial (mais do comerciante que propriamente do comércio). Com efeito, as máximas desta ideologia eram: o consumidor é a sua excelência dos negócios, ele é o fiel do mercado, e este tende a proteger-lhe (a tal mão invisível) no médio e longo prazo (ora a médio e longo prazo todos estaremos mortos!), eis as “avançadas concessões” em direção ao inconsciente e frágil último elo da cadeia econômica, ou seja, aquele que nada pode repassar.
Um historieta de bastidores bem simboliza tal estágio. Em fevereiro de 1982 entregávamos para publicação, conforme encomendado pelo Governo Federal, o resultado de uma pesquisa de três anos acerca da legislação comercial brasileira, que logo restou restrita ao que, então, chamamos de “ato (ou relação) de consumo” (o velho ato de comércio visto pelo lado de fora do balcão). Trabalho este cujo título “Defesa do Consumidor” foi muito mais escolha da imprensa da época, tamanha a repercussão dos “achados legislativos”(textos normativos alguns risíveis, outros de atual relevância, todavia esquecidos, como p.ex.: desconto progressivo na mensalidade escolar para cada filho, norma do “Estatuto da Família Brasileira” de 1941). Ocorre que tal título fora vetado pelo Ministro da Indústria e do Comércio (um dos co-editores) ao argumento de que “defesa do consumidor” pressupõe agressão, ou algo assim deplorável no ramo tutelado pelo MIC. Como o título não era tão importante quanto à publicação do trabalho (que se constituiria num marco desta evolução) sugeri a permuta para ‘Proteção do Consumidor’, também vetada; já descrente, ocorreu-me a denominação de ‘Relações de Consumo’, pronta e felizmente aceita pelo Ministro. Esta obra mesmo em sua segunda edição, anos depois, manteve a emblemática erronia dos títulos das seções, em que se divide, não condizerem com o da capa. Também desta quadra histórica, são as significativas indagações que freqüentemente ouvíamos: “isto não é movimento de massa, subversão ? Ou ainda, “o Sr. é candidato a deputado ?”
Nesta época, no silêncio da omissão, era comum : lingüiça recheada com jornais, remédios com farináceos, quilo de 800 gramas, latas amassadas e enferrujadas e perecíveis com validade vencida nas gôndolas de supermercados (explicação: se o senhor não quer outro leva!), publicidade enganosa até do BNH, contratos-arapucas, chuveiros eletrocutantes, falta de onde e como reclamar…, tudo isto e muito mais era então objeto de denúncias numa surrealista Feira da Fraude (onde comprador e vendedor expunham suas alegações em murais) realizada pela primeira em fevereiro de 1986, no mezanino da rodoviária de Brasília (depois se espalhou pelo Brasil afora) e com repercussão internacional; também digna de registro foi pioneira coluna do Correio Braziliense Tire a prova (teste de produtos) inaugurada, em 309/87. Tudo isto azeitou o motor das mudanças sociais, não sem críticas e prognósticos catastróficos. Um comentarista muito em voga ainda hoje vaticinou que quando o CDC estivesse vigorando um padeiro poderia ser preso sem direito a defesa se o pãozinho não tivesse o peso certo, tudo em função da inversão do ônus da prova. Outra ameaça era o fim da profissão de publicitário, pois o CDC proibia a mentira na publicidade; ou ainda que as dívidas ficariam incobráveis depois do CDC, dentre outras apressadas e irresponsáveis opiniões veiculadas, como técnicas, pela mídia de então.
Este era o quadro antecedente ao Código, um passado recente!
Vigente o Código, há um notável esforço de adequação de todos setores às suas novas e modernas regras (algumas ainda esperam os ventos pós-modernos para maior eficácia social: convenções de consumo, facilitação da defesa, em juízo, dos direitos). A partir daquele dia 11/03/91, um dado iogurte já não valia por um bifinho; um famoso conhaque de alcatrão já não era a solução para o velho em sua lua de mel com a jovem; logo as indústrias, sobretudo as automobilísticas, passam a preferir a convocação dos consumidores para substituição gratuita de peças deficientes ao invés de riscos (antes, bem improváveis) de responsabilizações por danos ao consumidor. O cadastro das más empresas (antítese do SPC) cada vez mais orienta o ato de consumo, para desespero dos maus empresários. Hoje é comum nas empresas os serviços de atendimento ao consumidor.
O Código, em linhas gerais, trouxe ao consumidor brasileiro: a proteção da saúde, a educação p/o consumo, a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, a proteção contratual (destaque das cláusulas desfavoráveis, controle judicial da boa-fé, da transparência da plena consciência do sentido e alcance das cláusulas), substituição da igualdade formal pelo o princípio da vulnerabilidade do consumidor, o acesso à justiça, a indenização, a facilitação da defesa dos seus direitos, a qualidade dos serviços públicos, dentre outros direitos.
Este é o presente do Código Brasileiro Defesa do Consumidor, cujo potencial ainda resta pouco explorado. A educação para uma efetiva cidadania (inclusive no campo econômico), a organização social, melhor aproveitamento judicial do potencial protetivo do Código.
Contudo, onde mais se faz sentir a necessidade de melhor adequação entre o potencial do Código e sua aplicação é, por certo, na fase judicial. Os valores de ontem não devem turvar a contemporaneidade do Código. Afinal, toda norma jurídica deve ser reconduzida aos valores constitucionais vigentes. Uma coisa é ler um código (o de processo civil, p. ex.), uma lei sob a ótica da velha ordem constitucional; outra coisa bem diferente é relê-los à luz da nova opção ideológico-jurídica inaugurada pela Lei suprema e o juiz não pode ser mero imitador servil da norma, de modelos decisórios incompatíveis com aqueles valores constitucionais. Os consumidores brasileiros que logram vencer o duelo inicial do processo (fase cognitiva) ainda têm outro e insensato duelo para fazer sentença valer mais que mero papel timbrado do Poder Judiciário. É neste campo, o das relações de consumo, em que a segunda (sem contar com os infindáveis recursos, impunemente protelatórios) fase processual (a executiva) é mais tortuosa.
É comum nas execuções de sentenças (por quantia certa e pior se for incerta) contra empresas não se acharem bens disponíveis/viáveis para penhora (até a sede da executada é da propriedade de outra empresa do grupo ou não) e os meio para se superar tais complicações procedimentais são, ilogicamente, sempre mais demorados e sacrificantes para o consumidor-exeqüente, cuja defesa de seus direitos deverá ser facilitada. Quando se logra penhorar um bem a praça é impiedosa contra o credor (carro p.ex.: pagará multas, impostos, etc. e não raro após anos esta garantia nada garantir ou só parte do crédito). Há execuções que levam anos, tudo segundo um planejamento de protelação e cansaço do hipossuficiente. Aliás, o duplo grau de jurisdição (os recursos) que é mais questão de conveniência que uma imposição e por isso deveria, neste casos, contar com um contra-incentivo econômico que preveniria a protelação recursal. Conquanto extremamente mau aproveitada, entre nós, a multa diária (hoje enclausurada nas obrigações de fazer e de não fazer, negada nas de dar, embora estes conceitos não sejam seguros porque, essencialmente, se confundem) bem poderia ser o remédio contra tais disfunções (tempo x dinheiro).
Não é só. Em que pese o reconhecimento legal, constitucional, doutrinário, da vulnerabilidade geral do consumidor, daí a facilitação da defesa dos seus direitos, ainda há consumidor brasileiro impedido de embargar execução por falta de bens que assegurem o juízo. Ora, esta cega exigência faz-nos lembrar de lei tão criticada por Anatole France: “Fica proibido dormir sob as pontes de Paris”. Tratar desiguais como iguais é a suma injustiça! Por outro lado, as empresas executadas, que jamais obedecem a ordem legal na nomeação de bens à penhora, já dispõem invariavelmente de um bem (sempre o mais complicado possível p/o caso) reservado (encalhado) e não raro apenas um papel livre da existência material da garantia (D.U.T. de automóvel já inexistente, p.ex.). Com efeito, despejar, desapossar, comprometer o orçamento familiar de consumidor-assalariado, tem sido mais fácil que p.ex. desconsiderar-se a personalidade jurídica de empresas (direito-instrumento de progresso do homem, jamais de abuso e fraude) para ir buscar a satisfação do consumidor (no mais das vezes, também de uma sentença), a quem o Estado garante defender.
Outra perversa inversão da lógica social, no caminho do consumidor brasileiro, é o fato da força atrativa dos concursos de credores indistintamente considerados como se todos fossem iguais (bancos e assalariados, fisco e consumidor). Por que o concurso de credores falência ou não (arts. 762/CPC e 24/Lei de Quebras) terá o condão de prejudicar, retardando, protelando (se pior não for), como convém aos devedores-espertalhões e empedernidos, a satisfação do direito do credor-consumidor (cuja ‘culpa’ de estar em juízo é menor que a do devedor) pelo fato da genérica “conveniência” (de quem ?) daquela fila de credores (a implorar cumprimento de sentença.). É vexatória realidade do “ganhou, mas não levou!” Quando a Justiça decide quem deve vencer a demanda, esta vitória pode, até com muita facilidade e ar de correção técnica, se converter em sucumbência prática, tal a perversão do hipersuficiente contra o hipossuficiente, tudo a despeito de mandamentos constitucionais e do Código do Consumidor.
Com efeito, uma visão conservadora – que obsta o progresso das relações sociais – aliada à uma razão preguiçosa, no dizer de Kant, é tudo que o obscurantismo carece para alcançar a infelicidade pública, mas há, ainda, a má-fé, invariavelmente muito bem paga, para sustentar teses que não seriam defendidas sem a alta remuneração é daí que alguns setores de nossa economia tentam e tentarão muito ainda fugir do CDC porque ele atrapalha quem pretende lucrar com o dano dos hipossuficiente. Por outro lado, o nosso sistema atual (aliás, a cultura judicial atual) de responsabilidade civil (reparação de danos em geral) ainda toleras a economicidade do dano, ou seja, a vantagem, para o agente causador do dano, na reparação. È que a reparação tarifada, pré-limitada (ié, 100, 400 salários mínimos) pode não refletir a boa lição de justiça tendente a prevenir (e não estimular), pelo valor da indenização, o dano. O critério de ouro neste tema não deve ser a situação econômica do indenizado (ié, da vítima do dano), mas sem dúvida, a situação econômica do indenizador (ié, causador do dano). Em suma, se aquele fica rico com a indenização, isso não é necessariamente mal se esse (o indenizador) pode razoavelmente assumir o valor da indenização. Quanto maior a indenização maior o cuidado para prevenir a sua reincidência., isso tanto mais verdadeiro, quanto maior o fosso entre hiper e hipossuficiente. Temos ainda que desenvolver essa cultura de justiça econômica e prevenção geral de abusos e injustiças (sociais, difusos e individuais).
Esse é, ainda, o lado negativo na vigência do Código, cujo futuro próximo indica adequações para que o potencial de proteção constitucional (e legal) garantido ao consumidor brasileiro não seja letra morta, sobretudo em juízo.
Nossos dias, quiçá mais que em outros tempos, são dias de intensas e radicais mudanças. Contudo, é o vendaval da globalização – para Alain Touraine, verdadeira ideologia – o fato mais preocupante nestes nossos dias. É de se ponderar, por exemplo, que este verdadeiro colonialismo pós-moderno (segundo a socióloga do Direito americano Susan Silbey), pode fazermos retroceder em setores socialmente sensíveis, como o Direito do Consumidor (dentre outros), tais os novos e fortes focos de poder e influência que já empalidecem o conceito tradicional de soberania. Sucede, todavia, que a globalização conquanto fenômeno irreversível, não é necessariamente incontrolável em seus subprodutos e efeitos eventualmente deletérios para certos países. No Mercosul, por exemplo, é de justo progresso que nossos parceiros logrem alcançar o estágio das relações de consumo reinante entre nós, estágio este ainda longe do ideal.
Advogado em Brasília/DF
Ex-Professor de Direito da UNB e da UDF
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