Resumo: O presente estudo tem por escopo apresentar os mais variados significados do termo cidadania, bem como demonstrar que só se pode falar em cidadania na medida em que houver relações intersocias e um formação adequada para o bem viver em comunidade.
Palavras-Chave: Cidadania, Relações Sociais, Sociedade
Abstract: The scope of this study is to present the most varied meanings of the term citizenship, as well as demonstrating that one can speak of citizenship in that there is a relationship intersocietal and appropriate training for good living in the community.
Keywords: Citizenship, Social Relations, Society
Sumário: 1.Introdução; 2 Cidadania: Conceito e Etimologia; 3 As Individualidades e a Convivência Comunitária; 4 Os Diversos contextos do termo Cidadania; 5 Considerações Finais; 6 Bibliografia.
1 Introdução
Em nosso idioma, cidadania é um vocábulo equívoco, cujo conceito possui abrangência que o torna quase inesgotável, tantas lhes são as aplicabilidades e as situações em que se torna cabível: seus limites não definidos exaustivamente dificultam sua explicação por parte do ensinador, mas, por mais ambíguo que possa parecer, facilita o entendimento àquele que recebe o ensinamento.
Poderá o mestre sentir que a sua sapiência não se faz bastante para esgotar o termo, entretanto, sentir-se-á satisfeito ao perceber que o discípulo apreenderá, com exatidão, os conceitos transmitidos a respeito do que deverá saber para se comportar como cidadão capaz de exercitar e de exercer sua cidadania no seio da comunidade por ele habitada ou freqüentada.
Dessa forma, considerando a necessidade de uma elaboração do conceito, pretende-se com este estudo apresentar algumas considerações acerca do conceito de cidadania e sua abrangência epistemológica.
Neste âmbito, considerar-se-á a cidadania sob o seu aspecto sócio-comunitário, compreendendo-se, nessa conceituação, o viver, o conviver e o interagir de pessoas no seio de um ambiente em que a vida de cada qual se inter-relaciona com as vidas de outrem, situação essa que faz brotar normas de conduta limitadoras da liberdade individual, mas que possibilitam a vivência in comuna, razão pela qual, valorar-se-á, em muito, a lei constitucional, pois, adiante, será tratado o exercício da cidadania como direito fundamental do cidadão que vive no território da República Federativa do Brasil.
2 Cidadania: Conceito e Etimologia
A própria etimologia do vocábulo[1] remete à concepção de vida comunitária, de viver em sociedade, de levar a vida em conjunto com outros indivíduos e com outras comunidades, os quais ― indivíduos e comunidades ― certamente possuirão culturas (modus vivendi) próprias e diferenciadas.
Implícitas no conceito da palavra cidadania encontram-se as idéias de limitação à individualidade e à liberdade pessoal de agir, e também as noções basilares de aceitabilidade das diferenças, de solidariedade, de mútuo respeito, e, ainda, de consideração para com o ambiente e para com a natureza.
Nas relações interpessoais sobressaem outros aspectos subjacentes nos significados etimológicos da palavra: o subjetivo direito individual e coletivo ao exercício do poder político (escolher e ser escolhido); a prática da política em prol da comuna; o cuidado e a boa convivência com os demais concidadãos (aqueloutros que também vivem nas suas cercanias); o respeito aos aparelhos estatais (instituições, regramentos, bens materiais ou imateriais etc.); a cooperação para o bem estar alheio; o resgate daqueles indivíduos e grupos que (por razões econômicas, raciais, étnicas, físicas etc, geralmente alheias à sua vontade) são postos à margem do status que se convenciona denominar-se sociedade; e a consideração para com os valores que o grupo acredita devam ser aceitos e seguidos por todos os seus integrantes.
“A vida em sociedade é condição necessária à sobrevivência da espécie humana. Desde o início os homens têm vivido juntos, formando agrupamentos, como as famílias, por exemplo. Para o sociólogo Karl Mannheim, os contatos e os processos sociais que aproximam ou afastam os indivíduos provocam o surgimento de formas diversas de agrupamentos sociais, de acordo com o estágio de integração social. Tais formas são os grupos sociais e os agregados sociais. […]. Grupo social é a reunião de duas ou mais pessoas, associadas pela interação, e por isso, capazes de ação conjunta, visando atingir um objetivo comum. […]. Existem, além dos grupos sociais, formas diferentes de agrupamentos sociais, chamados em Sociologia de agregados sociais. Agregado social é uma reunião de pessoas frouxamente aglomeradas que, no entanto, mantêm entre si um mínimo de comunicação e de relações sociais. O agregado social não é organizado e as pessoas que dele participam são relativamente anônimas”.[2]
A noção de cidadania, transpostos os cercos etimológicos, possui diversos e amplos aspectos sob os quais poderá ser explorada, explicada, estudada e compreendida, mas, sempre iniciando da noção de que se refere à relação social que põe, frente-a-frente (lado-a-lado), pessoas humanas vivendo em comunidade (entendendo-a como todo e qualquer agrupamento de pessoas que espontaneamente, ou por razões sócio-históricas, ocupe o mesmo espaço geográfico, não se olvidando, no entanto, dos muitos conceitos comportados pelo termo comunidade, inclusive o atualíssimo termo comunidade virtual, o qual evoca os grupos que se comunicam e se inter-relacionam por meio da rede mundial de computadores) e em sociedade. “A sociedade é o conjunto das relações “horizontais” dos indivíduos e dos grupos. Sua estrutura específica é a organização do trabalho da comunidade, a rede das funções sociais”[3].
Não há que se falar em cidadania quando se referir, hipoteticamente, a um só indivíduo humano sobrevivendo isoladamente em um recanto qualquer deste vasto mundo, por mais bem cuidado que seja esse tal recanto, e por mais esmiuçados e bem comportados que sejam as rotinas e os afazeres com que esse tal hipotético indivíduo viva seu cotidiano.
Não existirá qualquer ato ou atitude desse indivíduo que o conduzirá ao contexto de cidadania no conceito que ora se pretende tê-lo. Poderá haver, em alto grau e de forma inegável, a consciente (se lá fôra deixado após conhecer do convívio com outros homens) ou inconsciente (se nascido só, ou se lá largado sem conhecer do convívio com outros semelhantes) noção possuída por esse ser sobre estética, higiene, preservação do meio, segurança pessoal, respeito à natureza, conhecimentos esses que alguns poderão entender (acertadamente ou não) como inatos, ou a priori, a todo humano, e que poderão exteriorizar-se mesmo nas ações e nas rotinas diárias de qualquer ermitão que viva ao largo.
A relação social eu-tu[4], e a interação eu/tu-meio, é imanente à noção de cidadania, pois que sem a vivência comunitária e sem os respeitos de um e de outro para consigo mesmo e para com a natureza (aqui entendida abarcando o ambiente físico no qual os indivíduos e as comunidades habitam e convivem), não haverá como se falar em cidadania, pois que lhe faltará um pressuposto básico, o qual se trata da própria relação social entre as pessoas.
Entre seres humanos poderá se falar em relação social, em convívio/convivência, e em amor/razão; entre seres humanos e seres da natureza somente haverá relação de posse, de propriedade, de uso/conservação, ou de abrigo/abandono. Por maior que seja o sentimento que um humano nutra para um animal (ou para com qualquer outra coisa animada ou inanimada), não se poderá dizer que haja amor entre eles. Que haja sentimentos recíprocos entre humanos e alguns outros seres animados é até aceitável, mas que haja amor é de se questionar, pois o amor é um sentimento que se acredita ser próprio dos seres humanos para com outros seres humanos, e significa, em termos simplistas, que uma pessoa deseja a outra pessoa para que, juntas, sigam uma vida comum e possam compartilhar seus momentos e seus tempos. Quando uma pessoa humana deseja um animal (ou deseja qualquer outra coisa animada ou inanimada) não se pode dizer que a natureza (a fonte, a origem, a motivação emocional) do sentimento seja a mesma do amor, o máximo que se pode entender é que a pessoa deseja tal coisa para tê-la (posse/propriedade) por prazo indeterminado; nessa relação, o outro ser pode possuir, em relação ao seu possuidor/proprietário, reflexos que lhe induzam instintos de segurança, de proteção, de alimentação, ou de carinhos sobre sua pele (penas, pelos).
Não é lúcido entender e partilhar do entendimento de que uma pessoa humana possa amar (em sentido estrito) um animal ou um bem inanimado qualquer, ou que essa tal pessoa possa encontrar-se perdidamente apaixonada por essa tal coisa; pode-se, perfeitamente, aceitar que tal pessoa nutra afeição demasiada pelo objeto do seu querer em grau e em intensidade até mesmo maiores que o sentimento que possa sentir em relação a qualquer outro semelhante da espécie humana, mas, aí, entrar-se-á em discussões psíquico-sociológicas e comportamentais que extrapolam a razão e motivação deste trabalho.
O sentimento do amor, para existir, necessita de, ao menos, dois seres humanos que se conheçam e que, por mínimo tempo, tenham convivido em tempo e espaço aproximados. Da convivência (relação social) havida entre ambos irá sobressair – ou se terá sobressaído ― normas elementares e não formais de partilhamento dos próprios sentimentos e das condições materiais e imateriais – emocionais – de vida comunitária, das quais a urbanidade e a cidadania estarão se materializando e se constituindo.
Essa digressão se fez necessária para reforçar a convicção de que, ao se tratar de cidadania, por mais ilimitada que seja a abrangência do vocábulo, no mundo fático não se deve afastar de quaisquer de suas interpretações as inter-relações sociais e as interações homem-natureza, sejam consideradas entre indivíduos, sejam inter e entre comunidades, pois a própria palavra se correlaciona com a vivência e convivência das pessoas no meio social e no meio-ambiente em que vivem.
Quando se afirma que cidadania está direta e umbilicalmente afeta às relações sociais entre humanos, a remissão ao meio-ambiente e à natureza não se situa fora do contexto, haja vista que as pessoas se relacionam e convivem em um espaço físico (meio-ambiente, natureza) que lhes fôra legado pelos seus antecedentes, e que elas possuem a responsabilidade de bem legá-lo aos descendentes, razão pela qual, no conceito de cidadão, também se encontra subentendido o respeito e a preservação do espaço físico terrestre e das condições ambientais que sejam propícias à continuidade da vida na Terra.
Ao se deixar ao largo as questões etimológicas e conceituais da palavra cidadania, partindo-se para um estudo a respeito daquilo que se entende por, e como se pode praticá-la na vida real, também será possível notar que são incontáveis as circunstâncias e os aspectos em que se poderá inseri-la, sem fugir da sua gênese etimológica latina.
3 As Individualidades e a Convivência Comunitária
Independentemente da corrente filosófica que se professe, o certo é que as pessoas são individuais. Mesmo quando em turba, cada uma das pessoas que formam a multidão age por razões próprias, mesmo que a motivação seja coletiva. Essa individualidade, essa pessoalidade característica do ser humano, se mostra e se ressalta em vários aspectos da vida cotidiana, mas pode ser melhor visualizada (e até mesmo melhor entendida e estudada) no ambiente familiar: não quantos filhos nascidos e criados em uma mesma família, em condições sociais, econômicas e emocionais assemelhadas, que estudaram e freqüentaram lugares também assemelhados, e que possuíram amizades com as quais também conviveram assemelhadamente, possuem e desenvolvem personalidades díspares, algumas díspares em tal intensidade que não raro se verifica o descaminho de algum dos irmãos para além da própria legalidade jurídico-social.
Essa peculiaridade se torna ainda mais aguçada quando se verifica que o mesmo acontece quando se trata de famílias com irmãos gêmeos univitelinos, os quais, muito embora aparentem fisionomia em tudo semelhante, podem, também, ser dotados de personalidades totalmente diferentes: sociável/retraído, afável/brusco, fraternal/celerado.
Muitos foram os cientistas e pensadores que gastaram seus saberes na tentativa de demonstrar como? e por que? cada um possui essa pessoalidade que o torna único e diferenciado, muito embora oriundo e vivendo no mesmo meio – na mesma comunidade – que tantos outros. Existem correntes de conhecimento que tentam explicar a personalidade humana pela genética, pela gênese/essência do homem, ou como sendo produto do próprio meio, mas o certo, mesmo não se sabendo tudo, é considerar que nada é por total, nem nada deve ser excluído. A pessoa humana é individual não por uma ou outra causa, nem por um ou outro fator, tampouco por um ou outro aspecto considerado isoladamente, mas o é pelo somatório de cada momento em que sua história foi sendo construída por ela própria e pelas circunstâncias (pessoais, familiares, sociais, políticas etc) passadas e presentes que, direta ou indiretamente, a afetaram, ou ainda estejam a afetá-la, tanto física quanto emocionalmente. A individualidade humana é um eterno devir.
Essa força individual é tão marcante na vida de cada indivíduo humano que mesmo que o Estado ofereça e empreenda aparato, treinamento e doutrinação voltados à uniformização de pensamento e de procedimentos do seu povo, haverá sempre um querer pessoal que se sobreporá ao desejo estatal e às normas uniformes estabelecidas. A literatura e a filmografia de ficção estão repletas de obras que tratam da tentativa vã do Estado de aparelhar sua população com um jeito único de pensar e de agir: porém, em determinado momento, o cordão se rompe por ato de alguém que se conscientiza e se contraria com aquele modus et forma vivendi, e termina por desmantelar toda a organização estatal, fazendo com que todos os demais se revoltem e se voltem para as díspares vidas que cada qual poderá viver doravante. Pode-se concluir, sem a necessidade de estudos sócio-antropológicos mais aprofundados, que o homem, muito embora seja voltado para a vida social, possui sua própria individualidade, a qual é única, pois cada um é individualmente diferente de seu próximo e de seu par. O subjacente a essa individualidade é aquilo que caracteriza e se denomina dignidade da pessoa humana.
“É ela, a dignidade, o último arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional. […] A dignidade humana é um valor já preenchido a priori, isto é, todo ser humano tem dignidade só pelo fato já de ser pessoa. Se ― como se diz ― é difícil a fixação semântica do sentido de dignidade, isso não significa que ela possa ser violada. Como dito, ela é a primeira garantia das pessoas e a última instância de guarida dos direitos fundamentais. Ainda que não seja definida, é visível sua violação, quando ocorre. Ou, em outros termos, se não se define a dignidade, isso não impede que na prática social se possam apontar as violações reais que contra ela se realizem”.[5]
Para estudar e tentar oferecer explicativas sobre as individualidades humanas e sobre as forças que exercem no proceder de cada um, muitos já se debruçaram e já trouxeram à luz diversas teorias, as quais se encontram expressas em obras de cunho antropológicas ou sócio-filosóficas que mostraram o entendimento de cada estudioso a respeito. Aqui não se tem o intuito de voltar às raízes desse tema, mas abordar, superficialmente, os limites que se impõem a essas individualidades em prol da convivência social e da vida em sociedade, derivando, por lógica, para as noções de cidadania, a qual será entendida e estudada como o viver individual responsável pela harmonia da vida sócio-comunitária e para o respeito, preservação e conservação do meio ambiente saudável como direito inalienável das gerações futuras. Nesse sentido, encontra-se previsão expressa na Constituição da República Federativa do Brasil, contida no Título VIII, Da Ordem Social, no Capítulo VI, dedicado ao Meio Ambiente:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (…) § 2º – Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. § 3º – As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. § 4º – A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. § 5º – São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais […].”
O homem, desde que se tem memória, sempre viveu em bandos, até mesmo quando de seus ancestrais ainda não sapiens. Não se tem notícias, nem grafismos em paredes de cavernas nem restos mortais (fósseis) que permitam afirmar que, em alguma época – mesmo nos seus primórdios mais longínquos – o homem tenha sido um animal solitário, a viver isolado e apenas se agrupando em épocas específicas; mesmos fósseis encontrados aleatoriamente em diversos cantos do planeta não induzem à certeza da vida solitária da espécie humana, sendo muito mais coerente o entendimento de se tratarem, tais fósseis, de um ou outro indivíduo que por motivos diversos tenha se desgarrado do seu bando, ou preferido se isolar. O homem, pela sua história conhecida, pode ser considerado com um animal voltado ao convívio com seus semelhantes: a vida em grupo lhe é peculiar.
Sobre o homem e o seu estado natural muitos já escreveram (Jean-Jacques Rousseau – 1712/1778; Thomas Hobbes – 1588/1679; John Locke – 1632/1704; dentre tantos), com cada pensador propondo sua teoria sobre como, quando, e por qual razão o homem voltou-se à vida em sociedade. Por ora, importa que por qualquer que tenha sido sua primeva motivação, os seres humanos preferem viver comunitariamente, pois se sentem inexistentes, diminuídos, enfraquecidos e inseguros se isolados dos seus pares. A presença e a proximidade com seus iguais são fatores para sua vontade de viver: a relação social eu-tu insere-se e não se dissocia do viver humano. Cada pessoa humana possui a individualidade que a torna única, no entanto, essa pessoalidade não lhe é suficiente para viver a sós e isolada consigo mesma, necessitando, para a complementação da sua própria vida, do contato e do convívio com seus semelhantes.
A contradição dialética que se apresenta ao se ter juntos e convivendo socialmente tantos seres humanos possuidores de características e personalidades próprias e individualizadas é a seguinte: se cada um é conforme sua história, e se todos o são por direito, como (e por qual régua) delimitar para cada ser os limites da liberdade individual que poderão permitir a harmonia na convivência comunitária interpessoal, sem que se firam os direitos e as individualidades pessoais, e sem que se torne a vida em comunidade extremamente egoísta, a ponto de inviabilizar a própria convivência comunitária?
Pode-se entender que nos tempos primevos a convivência grupal foi determinada também pela fragilidade física do indivíduo primitivo em comparação com as agressividades do meio natural em que vivia, seja em vista de outros animais predadores daquela pré-história, seja pelas próprias intempéries da natureza então reinante.
É óbvio que os seres viventes naquele ambiente hostil foram induzidos a se adaptarem àquele meio, adaptando suas condições individuais de autopreservação e de preservação da própria espécie (daí o valor da teoria evolucionista, na qual Charles Darwin e seguidores teceram o pano de fundo da seleção natural que, segundo seus defensores, possibilitou o aperfeiçoamento e a adaptação de cada espécie devido ao aperfeiçoamento e adaptação dos indivíduos dessa espécie ao meio[6]).
O homem, por necessidade e também por instinto, e como uma das formas de se adaptar para sobreviver, decidiu por se agrupar em bandos. Naqueles tempos iniciais, a força física bruta impôs os primeiros limites à individualidade de cada qual. Ao se dar um salto na história, transpondo as épocas em que o homem não passava de simples animal, para se pousar em tempos em que ele já se encontrava formado como hoje se o conhece – homo sapiens – também se verifica que apesar de nômade, ainda assim o era em grupo de indivíduos ligados, ao menos, pela consangüinidade.
Ao deixarem a suas condições de vagantes para deitarem raízes em determinados locais (por já terem dominado as técnicas do plantio agrícola, da domesticação de animais, do fabrico de armas e de instrumentos), os indivíduos se viram então com novos problemas a lhes fazer frente: se antes, quando nômades, a cata diária de alimentos e a fuga constante dos predadores eram-lhes os acontecimentos cotidianos mais preocupantes da sua vivência, a partir de enraizados em espaços geográficos delimitados e definidos, outras foram as preocupações que lhes achegaram: as noções rudimentares de propriedade (da terra, do abrigo, das colheitas, da animália, dos instrumentais e ferramentais); de intimidade (com os seus companheiros/as, descendentes e ascendentes), internando os fundamentos iniciais de família; da convivência diária com os demais indivíduos e famílias do grupo (criando rusgas outrora inexistentes).
Ainda nessas primeiras épocas, o poder do líder de cada família ou de cada agrupamento pode ser tido como a fonte da limitação individual em razão da harmonia do viver comunitário. Entretanto, com o natural crescimento populacional proporcionado pela tranqüilidade de uma vida sedentária (somado com a fixação de várias famílias em determinadas áreas, formando os primeiros agrupamentos que evoluíram, com o tempo contado em séculos, para as aldeias e para as polis), a força física do líder familiar ou tribal já não era suficiente para se harmonizar as individualidades e as liberdades individuais. Algo mais forte que a própria força física bruta se fazia necessário para esse mister.
Intuitivamente, os próprios indivíduos se aperceberam de que a vida sedentária em grupo – e entre grupos – exigiria que cada um seguisse um padrão mínimo de comportamento público para o seu bem, para o bem do grupo, e para o bem da própria liberdade individual de agir. Por paradoxal, o indivíduo mais livremente poderia agir quanto mais agisse em conformidade com o padrão médio das regras sociais propostas e aceitas pelos costumes do grupo – ou dos grupos – no qual convivia. Têm-se, então, que a liberdade individual de agir delimita-se pelo padrão das normas sociais de comportamento aceitas pela comunidade então referenciada.
Tais normas de condutas sociais, conforme a época histórica e faceta estudadas, poderão ser entendidas como normas jurídicas, ou como valores/princípios, ou como simples normas sociais lato sensu. Entre as comunidades de viventes humanos, várias instituições foram se formando e se “materializando” com o contar do tempo em centenas e milhares de anos, e se encarregaram de normatizar a convivência comunitária; cada uma dessas instituições se formou por motivos distintos e com finalidades distintas, mas cada qual procurou, a seu modo e para seus fins, tranqüilizar a vida intra e extra comunitária (a Família – a perpetuação dos grupos pela descendência, a moradia-lar, a disciplina e a harmonia entre os consangüíneos; o Estado – o poder, as instituições públicas e o direito positivado; a Igreja – a salvação espiritual e a moral religiosa; a Política – as agremiações e o acesso ao poder; a Sociedade – as classes e as divisões sociais, a propriedade, o direito privado, a divisão social do trabalho e a acumulação de bens materiais).
Nesse contexto, pode-se entender cidadania como o conjunto de normas e de regras de condutas individuais que se projetam para a boa e harmônica convivência em sociedade, considerada a harmonia não somente em relação às relações interpessoais, mas também em face do ambiente saudável. Essas normas e regras poderão advir de instituições ou dos costumes do povo da terra.
“As condições sociais não permitem, muitas vezes, dar livre vazão à liberdade; assim, a melhor solução para este problema é oferecida pela visão de que a sociedade não é uma mera soma de indivíduos, senão algo assim como uma síntese, uma unidade dinâmica, determinada pelo processo de interação do todo com suas partes constituintes”[7].
4 Os Diversos contextos do termo Cidadania
Conforme visto, o vocábulo cidadania comporta inúmeras definições, tantas são as possibilidades e oportunidades de se aplicá-lo corretamente, desde que, por coerência etimológica, se o empregue sempre com o sentido ou a intenção de se referir às relações de convivência social e ou à interação homem-meio-ambiente, pois que não se pode alhear-se à sua gênese etimológica. Hodiernamente, agrega-se a significação social do termo, a ditar que a sociedade, como um todo, é responsável pelo resgate e valoração da dignidade humana de cada um de seus membros.
A opressão (assim como a exclusão e a não-inclusão) social é contrária a qualquer vocação cidadã da comunidade considerada: exemplo maior e tão conhecido é a condição dos judeus em tempos do nazismo alemão, quando tais pessoas não eram nem ao menos consideradas como pessoas quanto mais como cidadãs. Hodiernamente, os refugiados políticos gerados por conflitos étnico-religiosos atingiram a espantosa cifra aproximada de vinte milhões de pessoas em todo o mundo, segundo dados do relatório “2005 Global Refugee Trends”, elaborado pela UNHCR- United Nations High Commissioner For Refugees, o órgão das Nações Unidas para as questões relativas aos refugiados. No entanto, não se deve buscar somente alhures exemplos quando se os tem no próprio Brasil, pois, a despeito dos dizeres contidos na Constituição Federal (art. 1°, II e III; e art. 3°), ainda existem parcelas da população excluídas das condições mínimas que lhes garanta a existência e o exercício dos seus direitos de cidadãos brasileiros.
Entre os vários contextos em que se poderá abordar a cidadania, há o aspecto social e o social-inclusivo, o político, o jurídico, o ecológico, o educacional, o filosófico, dentre outros tantos, os quais não são exaustivos nem quanto a si próprios, nem quanto aos limites temáticos por eles abordados.
A cidadania considerada sob a ênfase social enfoca os indivíduos convivendo harmonicamente em sua comunidade, cada qual contribuindo com ações individualizadas voltadas a possibilitar que a vida comunitária não se abale por práticas que venham causar o desvirtuamento da paz social. Essa harmonia é – e será – obtida pela observação e pelo seguimento das normas de condutas abstratamente estabelecidas desde antanho pelos costumes ou pelas instituições estatais: não matar semelhantes, salvo em legítima defesa; não ofender patrimônio alheio; lhaneza no trato com os demais; e a educação dos descendentes, são exemplos das citadas normas.
O contexto social-inclusivo busca trazer para o convívio natural, e para a vida comunitária, por meio de implementação de ações individualizadas ou coletivas (e de projetos e políticas públicas ou sociais), pessoas que por motivos étnicos, físicos, mentais, etários, ou geopolíticos, possam encontrar-se apartadas da vivência cotidiana da comunidade, e enfrentando preconceitos, discriminações e ofensas subjetivas aos seus direitos: a inclusão social objetiva resgatar os valores, direitos, dignidade e auto-estima das denominadas minorias, as quais são apartadas – e se apartam – das maiorias por traços de que são possuidoras extravontade (necessidade especial física, mental ou intelectual; pigmentação da pele; local de nascimento e moradia; idade aquém ou além da média de idade da comunidade considerada), e sobre os quais o indivíduo não possui poder de ação para suprimi-los.
Referidas ações conjuntas, projetos e políticas públicas e sociais tanto podem ser originados das instituições oficiais ou de parcelas da própria comunidade que, incomodadas com essa situação discriminatória, se põem a campo para resgatar o direito à cidadania (direito de cada pessoa integrar-se e de ser integrada ao grupo) de todos aqueles que, injusta e irracionalmente, foram postos à margem da vida comunitária.
A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantir o desenvolvimento nacional com a erradicação da pobreza e da marginalização, com a conseqüente redução das desigualdades sociais e regionais (aí incluída a promoção do bem de todos sem quaisquer formas de preconceitos ou formas de discriminação), são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, nos termos postos no artigo 3° da Constituição Federal. Entretanto, sabe-se que tais vontades do legislador constituinte de 1988 ainda se encontram no mundo das idéias, posto que a sociedade brasileira ainda não conseguiu torná-las reais no mundo dos fatos.
A integração e inclusão dos indivíduos e dos grupos excluídos ou apartados da rotineira vida social são pressupostos elementares da cidadania, pois ninguém deveria ser excluído: as práticas inclusivas e integrativas não mais são do que o resgate do erro social cometido a priori.
Sob o aspecto político, pode-se dizer que a cidadania compõe a consciência coletiva dos indivíduos que vivem sob as égides de determinado Estado, de modo a que participem e formulem opções à vida e à perenização desse Estado, e para que se mantenha a sua unidade territorial, política, jurídica e, principalmente, para que sua população bem viva como integrantes de uma coletividade. Posto que essa instituição ― Estado ― é imaterial, jurídica e política, sua existência se concretiza pelo respeito e reconhecimento que as outras instituições similares lhe prestam, e pelo envolvimento do povo que lhe habita o território com suas tradições culturais, jurídicas e políticas. Imaterial em si mesma, sua concretude no mundo fático se faz por suas instituições (administrativas, jurídicas, políticas, sociais) e pela atuação das pessoas que as comandam e que traçam suas diretrizes e direções. O contexto político da cidadania envolve fortalecer o sentimento de unidade e de responsabilidade dos indivíduos do povo para com a eternização desse Estado.
“A cidadania é […] um status ligado ao regime político. Assim, é correto incluir os direitos típicos do cidadão entre aqueles associados ao regime político, em particular, entre os ligados à democracia. Nas democracias como a brasileira, a participação no governo se dá por dois modos diversos: por poder contribuir para a escolha dos governantes ou por poder ser escolhido governante. Distinguem-se, por isso, duas faces na cidadania: a ativa e a passiva. A cidadania ativa consiste em poder escolher; a passiva em, além de escolher, poder ser escolhido. Essa distinção importa porque, se para ser cidadão passivo é mister ser cidadão ativo, não basta ser cidadão ativo para sê-lo também passivo. Veja-se o caso do analfabeto, que inscrito como eleitor, se torna cidadão ativo, mas não pode se tornar cidadão passivo, por não ter elegibilidade[8].”
Embora o conceito de cidadania, na acepção política, seja único para todos os habitantes do Estado, não se deve olvidar de que a realidade mostra castas privilegiadas entocadas em posições de poder, que se auto-excluem da média da convivência social por se acreditarem superiores e diferenciadas, assim como também existem aquelas já mencionadas minorias que são apartadas do convívio. Ao Estado (às suas instituições, às classes dirigentes, aos “formadores de opinião”, à sociedade como um todo) compete oportunizar condições mínimas para a mantença da dignidade humana de todo o seu povo, pois o Estado não possui um fim em si mesmo, mas se trata de uma instituição elaborada ― pensada, formada ― para que o homem possa, sob diversas formas, proteger-se e viver em paz. Em termos políticos, cidadania também pode ser entendida como a atuação do Estado para democratizar ao povo que o habita as oportunidades que possui condições de oferecer.
“[… ] comunidade política caracteriza-se, pois, por dois traços fundamentais. O primeiro é que os cidadãos reconhecem a autoridade de uma mesma lei, e não mais o poder pessoal de um indivíduo família ou casta. A fonte da autoridade está na lei, princípio impessoal, e é por reconhecer antes de tudo a autoridade desse princípio que o cidadão é livre: não está sujeita a ninguém em particular. Se for obrigado a obedecer às ordens do magistrado ou do funcionário, será na medida em que este exerce sua função explicitamente definida pela legislação: não está sujeito ao indivíduo como tal. […]. O segundo traço fundamental da comunidade política é que sua unidade não depende da unicidade ou da dominação exclusiva de uma tradição. Ela provém do tipo de relações, quase sempre conflituosas e polêmicas, que as diversas tradições coexistentes na comunidade estabeleceram no decurso de uma história comum […]”[9]
Maria Helena Diniz, entendendo a cidadania como afeta à seara da Ciência Política, a descreve como sendo a qualidade “ou estado de cidadão; vínculo político que gera para o nacional deveres e direitos políticos, uma vez que o liga ao Estado. É a qualidade de cidadão relativa ao exercício das prerrogativas políticas outorgadas pela Constituição de um Estado democrático”[10].
Sob o enfoque jurídico, deve-se considerar, primeiramente, que cada Estado, por decorrência de sua soberania, possui seu próprio feixe de normas jurídicas abrangentes dos assuntos sobre os quais deita interesse: cada Estado possui legislação específica sobre cada aspecto para o qual considera importante elaborar norma cogente; muito embora haja corrente doutrinária e filosófica que professa a existência de determinados direitos subjetivos inerentes à condição de pessoa humana (direitos naturais), os quais, somente pelo fato de ser humano, já são existentes para e em cada pessoa humana (direito à vida, à liberdade, ao nome, à personalidade, à educação etc), e caberia simplesmente ao Estado declará-los ou reconhecê-los, pois que são existentes a priori.
Esses tais direitos existiriam mesmo se não existisse – ou se extinguisse – a pessoa política Estado. Tais direitos naturais, no entendimento dos denominados jusnaturalistas, são existentes desde que o homem se conscientizou de sua condição, e se prolongarão valendo enquanto viver o homem, pois que eles são inerentes (imanentes) ao ser humano e ao indivíduo humano. Entretanto, na vida fática, há Estados que não reconhecem tais direitos, muito embora os declarem formalmente em suas constituições.
Claro que tais Estados não possuem viés humanitário, são Estados despóticos, autoritários, ditatoriais, sanguinários, são um fim em si mesmos e em favor de sua casta dirigente: em tais Estados não se pode dizer que, no aspecto jurídico e político mais amplo, hajam cidadãos, pois lhes faltam – aos habitantes, ao povo – a autonomia e a liberdade de agir conforme suas consciências e arbítrio: faltam-lhes, em síntese, pressupostos que lhes assegurem a dignidade humana.
“[…] a teoria das formas de governo, na filosofia, tem demonstrado que o homem não é confiável no poder e tende a identificar-se com ele, tornando o povo não o destinatário final de seu serviço, mas servidor de seus interesses. […]. À evidência, o homem, no exercício do poder termina por governar, sempre que possível, em benefício do povo, mas necessariamente em seu próprio benefício […][11]”
Cada Estado, por seu ordenamento interno, define quem são seus naturais e, dentre esses, quem são os seus cidadãos. A Constituição brasileira assegura que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, dentre tantos outros direitos explícitos e implícitos nela contidos (art. 5º, caput). E é a própria Constituição Federal que estabelece as condições para que as pessoas sejam ou não consideradas brasileiras (natas ou naturalizadas):
“Art. 12. São brasileiros:
I – natos:
a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país;
b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil;
c) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira;
II – naturalizados:
a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;
b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira.”
Nos parágrafos do artigo 12 do texto constitucional, encontra-se assegurado que, aos portugueses com residência permanente no País, se houver reciprocidade em favor de brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro, salvo excepcionalidades que especifica, sendo que a lei ordinária não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, ressalvadas as condições que declara. Ainda se encontram expressas na Constituição as situações em que se poderá declarar a perda da nacionalidade do brasileiro que: I – tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional; II – adquirir outra nacionalidade, salvo nos casos de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira; ou de imposição de naturalização, pela norma estrangeira, ao brasileiro residente em estado estrangeiro, como condição para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis (art. 12, § 4º).
Muito embora a Constituição Federal brasileira (CF∕88) não defina o que seja cidadania, ela assevera tratar-se ela de um princípio fundamental da República Federativa do Brasil, assim como também o é a dignidade da pessoa humana (art. 1°, II e III), sendo objetivo fundamental dessa República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, onde sejam erradicadas a pobreza e a marginalização, e reduzidas as desigualdades sociais e regionais, com a promoção do bem de todos, sem quaisquer preconceitos ou discriminação (art. 3°, I, III e IV).
A Constituição brasileira ainda assegura, em vários outros de seus artigos, direitos e garantias fundamentais aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, possuindo, também, capítulos dedicados aos direitos sociais e políticos, e à organização político-partidária (Título II, Capítulos I a V, artigos 5° a 17). Essa Carta Magna ainda traça condições para o exercício e para a cassação dos direitos políticos. Para votar e para poder ser votado o cidadão brasileiro deverá se alistar perante a Justiça Eleitoral, alistamento esse obrigatório para os maiores de dezoito anos, e facultativo para os analfabetos, para os maiores de setenta anos, e para os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos (art. 14).
Em tese, a República Federativa do Brasil garante a todos os seus naturais, e aos estrangeiros residentes no país, o pleno exercício da cidadania política e jurídica, obedecidas as emanações contidas na Constituição Federal e nas leis infraconstitucionais. A soberania popular no país será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para cada e qualquer cidadão, mediante plebiscito, referendo, ou lei de iniciativa popular (CF/88, art. 14 e ss.).
O texto constitucional ainda assevera ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227). A despeito de tão claros dizeres, é imperioso dizer que democracia brasileira não foi capaz de estabelecer, para a maioria do seu povo, as condições mínimas da isonomia pretendida no texto da Constituição, posto que o país ainda se insere dentre aqueles em que as desigualdades sociais são patentes no seio de sua sociedade.
“Em um Brasil mais justo, as oportunidades poderiam ser distribuídas de modo mais igualitário e o mesmo poderia ocorrer com a riqueza, a saúde e a qualidade de vida. Apesar dos esforços consideráveis, o Brasil ainda é, como sabemos, uma sociedade de grandes desigualdades: antes das transferências sociais, a parcela de 1% correspondente à população mais rica recebe os mesmos 10% da renda total de que desfrutam os 50% mais pobres. Os índices de pobreza na região Nordeste equivalem a duas vezes a média brasileira. As reformas na previdência social e as mudanças no sistema de impostos indiretos poderiam reduzir de modo significativo essas desigualdades. A eqüidade também é prejudicada pelo alto índice de criminalidade, que afeta mais profundamente os pobres. O aumento da credibilidade da polícia e do Judiciário, mediante reformas institucionais, poderia levar à redução da criminalidade. Os serviços e os empregos públicos, a infra-estrutura e a assistência social poderiam ser alocados de forma mais transparente, de modo a cumprir metas que atendessem a todos com eqüidade. Finalmente, a solução de longo prazo para reduzir a desigualdade no Brasil se encontra no sistema de ensino médio. Um recente estudo regional do Banco Mundial estima que, no Brasil, em 1998, o índice de matrícula no ensino médio ficou 36% abaixo da média para países com renda similar.” (BRASIL: Justo•Competitivo•Sustentável – Contribuições Para Debate: Banco Mundial/Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento, Washington-D.C, dezembro de 2002[12])
Para Patrice Canivez, as democracias modernas não se coadunam com as classificações tradicionais da filosofia política, pois que algumas mais se assemelham a feudos das suas elites políticas, as quais, usando e manuseando institutos democráticos (eleições livres, voto direto), açambarcam o poder político e o utiliza em prol de si mesmas:
“A prova é que consideramos democracias Estados que são monarquias (como a Espanha ou a Inglaterra), ao passo que, nas democracias, em geral, tomo mundo sabe que o poder pertence ao que se costuma chamar de classe política, que se recruta por meio de canais bem definidos: carreira feita num partido ou na administração pública, em universidades de prestígio etc. De modo que as democracias modernas são de fato aristocracias, se considerarmos que são governadas pela elite dos cidadãos mais competentes; ou então oligarquias, se forem dirigidas pela minoria dos mais abastados, ou pela dos “decisores” oriundos do mundo dos negócios. Maurice Duverger[13] define as democracias ocidentais contemporâneas como “tecnodemocracias” estreitamente controladas por uma oligarquia econômica”[14]
E retomando o entendimento anteriormente exposto, diga-se que o homem é em seu meio, não apenas no aspecto filosófico de se tentar explicar o ser humano, mas no aspecto material propriamente dito do local onde ele vive. Não é possível dissociar o homem do meio-ambiente (meio-ambiente não considerado apenas como representativo da natureza original, mas de qualquer locus onde vivam ou sobrevivam seres animados), pois, sob qualquer aspecto que se queira estudar, as pessoas vivem em um meio social (convívio e relações com outros humanos) e em um meio físico (espaço físico em que habita: matas, casas, vilas, cidades, países etc).
Os bens produzidos e acrescentados pelo homem à natureza o são a partir de bens coletados, encontrados ou derivados na e da própria natureza, pois que o ser humano não possui poder de produzir algo por geração espontânea.
Os bens naturais (ar, água, fósseis combustíveis, plantas, animais), por mais que pareçam infindáveis são finitos, e até mesmo não renováveis (petróleo) ou não substituíveis (ar, água, ou espécies vegetais ou animais já extintos). Os bens naturais não substituíveis o são hodiernamente assim como também o foram no passado e, certamente, o serão no futuro, razão pela qual a sua preservação se impõe como imperativo para a própria vida humana na Terra.
O homem depende da Terra para sua vida, mas o inverso não é necessariamente verdadeiro, motivo esse de ser imprescindível a adoção de fórmulas para a correta exploração dos recursos naturais não substituíveis, para que se garanta o direito subjetivo à vida das gerações futuras.
E, sob a forma ecológica, a cidadania diz respeito à conscientização e ação de cada indivíduo, comunidade e Estados, em favor da preservação dos recursos naturais não renováveis, e com o comprometimento das gerações presentes com a vida e sobrevivência das gerações futuras neste planeta.
A Filosofia, como ciência acadêmica, tem por objeto o conhecimento humano sobre o próprio conhecimento humano. Ela não é laboratorial nem exata, e nem industrial; não se perpassa nos laboratórios entre tubos de ensaio e produtos químicos, nem, tampouco, se realiza intramuros de uma unidade fabril de produção. Ela não pode e não deseja ser comprovada por lógicas matemáticas irrefutáveis. Ela é intuitiva e dedutiva, mas, principalmente, intelectual, derivada do exercício mental crítico e analítico.
Essa ciência questiona o saber do homem sobre si mesmo e sobre os fenômenos que acompanham sua vida terrena, e se posiciona relativamente ao saber então questionado; não se contenta apenas em duvidar ou em comprovar determinado conhecimento, antes deseja entendê-lo, explicá-lo e conhecê-lo, sobre ele teorizando.
A Filosofia possui o conhecimento humano como seu foco; a ela desinteressa o modus como qualquer outro ser vivo pense ou conheça a vida, interessa-lhe, sim, conhecer o homem, suas relações e o seu meio. Uma vez que possui esse objeto como centro do seu interesse, a cidadania aparece naturalmente a ela, posto que à Filosofia também interessa entender, explicar e conhecer o fenômeno da convivência social entre os seres humanos, para, então, oferecer sua contribuição subjetiva à compreensão e melhoria das relações homem-homem e homem-meio: o aprendizado sobre tais relações interessa tanto a ela, Filosofia, como objeto de estudo, quanto à própria cidadania, como inerente ao seu conceito e idéia etimológicos.
A educação, grosso modo, e não adentrando às diversas correntes filosóficas e doutrinárias que tentam explicá-la, mas tomando-a apenas pelo senso comum que possibilita entendê-la perfeitamente para os fins aqui requeridos, visa à formação da geração presente para a vida social futura, por isso muitos a têm como conservadora e não revolucionária (no sentido de que agrega e preserva os valores e princípios passados e presentes, não instigando a consciência crítica dos educandos).
No entanto, qualquer que seja o entendimento individualmente professado, não há como dissociá-lo da idéia mor contida no conceito de educação, qual seja, oferecer às pessoas dos formandos, por meio das pessoas dos educadores, alguns conhecimentos que as instituições da comunidade acreditam importantes para a paz social e para o desenvolvimento (material e/ou imaterial) da coletividade.
Educa-se para a vida social e para que o indivíduo se conscientize da sua importância tanto para o convívio harmonioso intracomunidade, como para a preservação e continuidade das condições necessárias à vida na Terra. Não se trata, no entanto, de incorporar de forma inconteste a visão durkheiniana de que a educação seja resultado de ações interventivas de uma geração de adultos em face de uma geração de jovens (crianças, adolescentes), ou seja, não se assume que a educação seja unicamente uma relação entre gerações. Em palavras outras, a educação é ação presente com objetivos, resultados e reflexos também presentes, os quais se prolongarão no futuro, pois que ela — educação —se volta não somente à transmissão de conteúdos práticos, programáticos ou pragmáticos: ela também se interessa pela formação de cidadãos aptos à sociedade, tanto quanto se interessa por incluir os eventuais excluídos.
Salvo pontuais ou específicos desvios de conduta — individuais ou mesmo de determinadas coletividades —, não se educa para o mal nem, tampouco, para o errado. Não é do mister do educador transmitir aos seus educandos os princípios conformadores do mal ou do erro: pode-se, sim, educar malmente ou erroneamente, mas isso mais por desinformação, desconhecimento ou sectarismo daquele(s) que se propõe(m) a educar, do que por norma educadora ou pelo desejo do educando.
“No âmbito da escola, a criança escapa em parte aos pais como aos professores; ela desenvolve o embrião de uma vida privada. (…). Por isso, na escola como na sociedade, as exigências do trabalho e as relações de autoridade aplicam-se aos atos e não aos sentimentos e idéias. O que significa que elas se referem ao indivíduo na medida em que ele tem certo papel a desempenhar, e não ao indivíduo em particular. Isso não implica que a psicologia esteja ausente das relações professor/aluno, que professores estáticos dirijam-se a alunos congelados. Significa que a psicologia e a afetividade estão sujeitas às exigências da função”[15].
Enfim, o professor Moacir Gadotti afirma que a cidadania é uma categoria a ser considerada ao se pensar a “educação do século XX”. No seu entendimento, o pensar e estudar a categoria cidadania “implica tratar do tema da autonomia da escola, de seu projeto político-pedagógico, da questão da participação, da educação para e pela cidadania”. Para ele, a “partir dessa categoria podemos discutir particularmente o significado da concepção de escola cidadã, e de suas diferentes práticas. Educar para a cidadania ativa tornou-se hoje projeto e programa de muitas escolas e de sistemas educacionais[16]”.
5 Considerações Finais
A guisa de conclusão, os contextos ora enfocados não exaurem, nem, tampouco, definem exaustivamente o plexo de enfoques a que se pode submeter o vocábulo-tema cidadania, mas já são suficientes para clarificá-lo.
A cidadania diz algo a mais que ser membro de uma comunidade, mas diz que sendo parte dela, em sua plenitude, o cidadão têm direitos e deveres. A consciência jurídica desta condição e a disposição de encorajamento a fazê-la viva na ordem jurídica, ética e moral, poderá ser intitulada como civismo.
Evidentemente o termo cidadania não se resume tão somente nos aspectos ora levantados, mas se vale destes para uma noção maior, ampla e significadora da racionalidade jurídica inerente a todo e qualquer direito e dever, seja de cada individuo, ou de todos por todos e a favor e contra todos num mesmo processo civilizatório.
Bacharel em Filosofia e em Ciências Jurídicas e Sociais,
Mestre em Direito.
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