O concurso público e a teoria do fato consumado

Resumo: O presente artigo tem por objetivo discorrer sobre a aplicação da Teoria do Fato Consumado na confirmação de posses precárias de candidatos em concurso público, que não foram aprovados em todas as fases do certame. Em uma pesquisa básica, pelo método hipotético-dedutivo, com abordagem de forma qualitativa, com enfoque interpretativo, com objetivo exploratório e por uma pesquisa bibliográfica, será analisado o prejuízo a terceiros e aos princípios constitucionais da Administração Pública. A nomeação de um particular para cargo público efetivo, mediante confirmação de liminar, atestando que o candidato nomeado não tinha direito para tal, mas por excesso de prazo no julgamento, deve permanecer no exercício pleno da função, ofende aos princípios que regem o concurso público. Também, serão verificados os requisitos que permitem a aplicação da Teoria em questão. Conclui que a convalidação da nomeação de candidato que, por direito, não foi aprovado em concurso público, fere os princípios deste instituto e a própria organização da Administração Pública e do Estado Democrático.


Palavras-chave: Concurso Público. Direito Público. Nomeação precária. Teoria do Fato Consumado.


1 INTRODUÇÃO


O concurso público é a ferramenta legal de seleção dos candidatos a ocupar os cargos públicos efetivos. Visa preencher as vagas com os mais capacitados, evitando a nomeação de pessoas sem qualquer critério.


Às vezes, candidato que não passou em determinada fase de concurso público, recorre ao judiciário para prosseguir no certame. Se o Juiz concede a liminar, o candidato consegue cumprir todas as etapas do concurso e acaba por conseguir mais uma medida liminar que lhe concede posse precária no cargo público pretendido.


Ao final, é possível que o juiz verifique que ele não possuía o direito à nomeação, porque juridicamente não tinha passado naquela fase questionada. Embora ele não tenha o direito, devido à demora na prestação judicial, alguns julgados têm sido favoráveis pela sua permanência na função, com base na Teoria do Fato Consumado.


Diante do contexto apresentado, tem-se como problema de pesquisa: ao adotar a Teoria do Fato Consumado para o caso em questão não estariam sendo contrariados os princípios constitucionais que regem o concurso público?


A hipótese é que a aplicação da Teoria do Fato Consumado para convalidar liminar, que deu a posse precária à pessoa não detentora do direito de ser nomeada para um cargo público, ofende aos princípios constitucionais delineadores dos concursos públicos.


O objetivo geral do trabalho é discutir se a Teoria do Fato Consumado pode se sobrepor aos princípios constitucionais e regras do concurso público. Os objetivos específicos são: apresentar a Teoria do Fato Consumado e a sua aplicação na seara Administrativa; explanar os princípios que regem o concurso público e qual a sua finalidade; abordar a possibilidade da aplicação da Teoria do Fato Consumado para confirmar atos administrativos.


O trabalho justifica-se pela necessidade da exata compreensão da Teoria do Fato Consumado, para evitar que a sua aplicação prejudique os demais candidatos ao cargo, que realmente passaram em todas as fases.


O presente trabalho fará uma pesquisa básica sobre os problemas da aplicação da Teoria do Fato Consumado na confirmação de liminares para nomeação de candidatos a cargos públicos que não foram aprovados no certame. Segundo Kaurk, Manhães e Souza (2010, p.26), a pesquisa básica “objetiva gerar conhecimentos novos e úteis para o avanço da ciência sem aplicação prática prevista. Envolve verdades e interesses universais”.


O problema será abordado de forma qualitativa, tendo em vista que será observado o meio natural, não sendo utilizados métodos e técnicas estatísticas. Terá um enfoque interpretativo, com base na doutrina e jurisprudência sobre o assunto, conforme Gil (1999).


 A pesquisa será exploratória, quanto aos objetivos gerais, pois visa tornar explícitos os princípios que envolvem o concurso público, para a nomeação de um particular como servidor público. Também, os preceitos que regem a Teoria do Fato Consumado, desenvolvendo conceitos e idéias para modificar concessão de liminares para a nomeação de candidatos a cargo público que não superaram todas as etapas do certame (GIL, 1999).


O trabalho seguirá uma pesquisa bibliográfica, quanto ao procedimento técnico, sendo feita uma pesquisa de material já publicado como: julgados do Supremo Tribunal Federal, acórdãos do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, de medidas liminares concedidas em primeira instância no judiciário e doutrina de Direito Administrativo sobre o tema (VILAS-BÔAS, 2006).


A pesquisa será abordada pelo método hipotético-dedutivo, partindo da formulação de uma hipótese para discutir o tema. Segundo Gil (1999, p.30): “para tentar explicar as dificuldades expressas no problema, são formuladas conjecturas e hipóteses. Das hipóteses formuladas, deduzem-se conseqüências que deverão ser testadas ou falseadas”.


Assim, serão expostos os princípios que regem o concurso público, a Teoria do Fato Consumado e a aplicação desta na confirmação de posse precária em concurso público, com intuito de verificar se estariam sendo feridos os fundamentos do concurso.


2 O CONCURSO PÚBLICO E A TEORIA DO FATO CONSUMADO


Neste capítulo, serão mostrados os princípios específicos que regem o concurso público, ferramenta utilizada para evitar o apadrinhamento de pessoas e a escolha dos mais capacitados para os cargos a serem desempenhados em prol do Estado. Bem como, o que se entende por teoria do fato consumado, visando discutir, ao final, sobre a consumação de uma nomeação precária em um cargo da Administração Pública, que deveria ser provido por concurso público.


2.1 Princípios dos concursos públicos


A nova formação do Estado Brasileiro em 1988, após um período de amadurecimento e desenvolvimento da democracia, mostrou a necessidade dos Governantes e Administradores não tratarem a res pública como sua propriedade, não sendo correto gastar o dinheiro do Estado como se fosse próprio.


Várias mudanças foram promovidas nessa Assembléia Constituinte, como a introdução dos princípios que devem reger a Administração Pública, previstos no art. 37, caput da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Eles são essenciais para a manutenção de um Estado Democrático, não sendo permitida a imoralidade e a confusão do patrimônio estatal.


A forma de provimento dos cargos na administração do Estado foi uma das mudanças necessárias para efetivar os princípios expostos. Mostrou e determinou a necessidade de concurso público para o provimento de cargos públicos efetivos:


Art. 37. (…)


I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;


II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;


III – o prazo de validade do concurso público será de até dois anos, prorrogável uma vez, por igual período;” (www.planalto.gov.br)


O concurso público é uma forma de seleção mais justa, para garantir que as vagas sejam preenchidas pelos mais capacitados, evitando a nomeação de pessoas sem qualquer critério, ficando ao arbítrio dos governantes e dos Administrados com cargos mais elevados, dando espaço ao nepotismo e à nomeação de amigos para os cargos públicos efetivos.


Para atingir tal necessidade, o concurso público baseia-se em vários princípios, entre eles destacamos: moralidade, isonomia, impessoalidade, razoabilidade, vinculação ao edital, seletividade, competitividade e publicidade.


De acordo com o princípio da moralidade, o agente público deve ser justo e honesto, devendo suas atitudes atenderem os anseios da sociedade. Não deve se prevalecer da condição de servidor público, pois é remunerado para o desempenho de tal função, não sendo necessário utilizar-se da máquina administrativa para trazer outros benefícios além dos previstos em lei. Visa evitar favorecimentos pessoais ou qualquer tipo de vantagem ilícita durante o preenchimento das vagas dos servidores efetivos.


O servidor não deve aproveitar-se do cargo público para nomear parentes e amigos incapacitados para o desempenho de funções e que não tiveram um tratamento isonômico com os demais interessados em ocupar a vaga. O concurso seria a forma mais idônea de prover os cargos. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou uma resolução, na qual veda a prática do nepotismo dentro do judiciário.


O princípio da isonomia mostra que todos devem ser tratados igualmente. Dessa forma, todos que almejam determinados cargos devem ter o mesmo tratamento. Por isso, a lei deve ser clara nas exigências necessárias para ocupar determinado cargo, sendo as etapas do concurso coerentes com as funções a serem desempenhadas. Não pode haver um privilégio para determinada classe, apenas requisitos necessários à aferição das características para o desempenho do cargo, de acordo com a sua natureza e complexidade.


A isonomia estaria traduzida nas condições iguais de acessibilidade aos cargos de agente público efetivo. A ampla acessibilidade aos cargos públicos, está garantida na Carta Magna de 1988, no art. 37, II, desde que o candidato possua os requisitos previstos em lei para o cargo e seja aprovado em concurso.


A impessoalidade surge com a isonomia. A administração deve voltar-se para o interesse público, sendo necessário escolher os mais capacitados para a função. A escolha dos agentes da administração deve ser impessoal, não sendo considerados os laços de amizade e afeição. Nesse ínterim, as provas foram dotadas de métodos que possibilitem a correção sem associação ao nome do candidato.


As provas objetivas são corrigidas por programas de computador automaticamente. Nessas, o candidato apenas escolhe entre uma das alternativas colocadas pelo examinador. Na prova subjetiva é estabelecido um código, para que o nome de quem respondeu não seja conhecido pelo examinador, possibilitando uma correção imparcial. É de extrema importância que as provas sejam tratadas de forma impessoal.


Outro princípio que rege a administração pública e deve ser bem observado no certame do concurso é o da razoabilidade. Não podendo assim o poder público exigir requisitos desnecessários para o desempenho da função, deve ser observado um senso comum a sociedade ao se tomar as decisões legais.


Parece ser irrazoável exigir bacharelado em direito para um soldado da polícia militar, pois a função dele é operacional. Com certeza um soldado com conhecimento jurídico é muito bom para o Estado, mas isso não pode ser traduzido em curso superior em direito e sim em constar no curso de formação do militar os conhecimentos jurídicos necessários para o desempenho de sua função. Várias carreiras necessitam de conhecimento legais para o desempenho das funções, por isso vários editais contém matérias de direito que são assunto de prova, como o próprio regimento do servidor público, e no curso de formação possuem disciplinas gerais de direito.


O edital vincula o concurso, mas deve atender a razoabilidade. Veja o seguinte exemplo: edital que exigia altura mínima de 1,65 metros. Este requisito é razoável? É adequada a exigência de altura mínima quando o cargo a ser desempenhado necessita de tal característica física, como a função de policial, de militar das Forças Armadas, de Bombeiro na atividade típica (não será exposto o motivo de tal assertiva, por não ser objetivo deste trabalho).


Mas, se o concurso for para o cargo de Advogado do Bombeiro Militar essa discussão muda de enfoque, porque a atividade do advogado do Bombeiro não está relacionada com a atividade típica dos combatentes do Corpo de Bombeiros Militares. Ele desempenhará funções processuais, que independem da altura, estando vinculada ao conhecimento jurídico. Nesse sentido, decidiu o STF em concurso para escrivão de polícia civil:


“EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. CONCURSO PÚBLICO. ESCRIVÃO DE POLÍCIA. REQUISITO. ALTURA MÍNIMA. I. – Em se tratando de concurso público para escrivão de polícia, é irrelevante a exigência de altura mínima, em virtude das atribuições do cargo. Precedentes. II. – Não se admite o exame de cláusulas de edital em sede extraordinária. Precedentes. III. – Agravo não provido.” (AI 384050 AgR, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 09 set. 2003, DJ 10 out. 2003, PP-00030 EMENT VOL-02127-05 PP-00925.) (www.stf.jus.br)


A seletividade irá prever que os agentes públicos devem ser selecionados de acordo com suas capacidades físicas e intelectuais. Para ser feita essa seleção, o Administrador deve verificar a natureza e a complexidade da função a ser desempenhada. Os requisitos devem estar expressos em lei, cumprindo o princípio da legalidade da Administração Pública. O julgamento da prova deve ser objetivo, evitando que algum candidato seja “escolhido” durante a correção.


A competição é necessária para possibilitar a seleção dos mais capacitados. As regras dessa “competição” devem estar bem delineadas no edital, que não deve incluir requisitos não previstos em lei. As regras de como serão todas as etapas do concurso serão previstas antecipadamente, antes da inscrição, para que o candidato saiba exatamente como deve se preparar.


Ao final de todas as etapas impostas no edital, os candidatos são classificados conforme os resultados obtidos, nas fases classificatórias e eliminatórias. Com isso, forma-se uma lista que deve ser seguida, não podendo um candidato melhor colocado ser preterido por outro.


Junto com a classificação vem a importância da publicidade de todos os atos, permitindo aos candidatos acompanharem os desempenhos de todos, cumprindo a transparência que deve existir nos atos que compõe o complexo processo do concurso público. A publicidade permitirá uma fiscalização de todo o processo seletivo.


2.2 A teoria do fato consumado


A teoria do fato consumado objetiva manter situações que não têm a proteção da legalidade, mas que beneficiam o autor sob o argumento da demora do Estado em solucionar uma lide.


Na seara da Administração Pública, visa manter os efeitos de decisões administrativas inválidas, na qual o particular age de boa-fé e tem uma expectativa positiva em relação ao fato. Caso a Administração demore na solução da questão e deixe a situação perpetuar no tempo, deixando até mesmo o particular esquecer que havia uma controvérsia administrativa, pode, a própria Administração, aplicar a teoria para confirmar a situação em favor do particular, argumentando a boa-fé do administrado e a segurança jurídica necessária.


O art. 53 da Lei 9784/99 prevê, administrativamente, a convalidação de atos administrativos defeituosos, desde que inexista lesão a terceiros, ao interesse público, haja boa-fé, legalidade aparente e não configure nulidade absoluta. Visa consolidar situações fáticas, para a permanência da confiança no Estado, na chamada segurança jurídica.


Há indícios que a aplicação no judiciário iniciou-se na década de 60, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou algumas situações pleiteadas na justiça a respeito de notas nas universidades.


O caso, resumidamente, era o seguinte: os estudantes peticionavam na justiça para ter a nota mínima para aprovação abaixada, em relação ao regimento interno das universidades. Alegavam que não era válida a previsão de nota nos regimentos das instituições universitárias, devendo valer a previsão mínima de quatro pontos, prevista em lei. Com esse argumento, os alunos conseguiam provimento de medidas liminares na primeira instância, conseguindo o prosseguimento do curso.


Devido à demora do judiciário, o estudante cumpria todas as disciplinas do curso de graduação e se formava. As demais instâncias acabavam por confirmar a decisão liminar, mesmo que esta fosse contrária ao entendimento de súmula vigente a época, que dizia que era válida a exigência, nos regimentos internos das universidades, de média superior a quatro pontos para aprovação na disciplina. A justificativa para validar a liminar era puramente social, pois eram contrárias ao entendimento dos tribunais superiores e a súmula.


O judiciário valia-se da teoria do fato consumado para confirmar tal situação, sob o argumento do prejuízo que seria causado ao particular, se a decisão fosse de acordo com o direito. Se o tribunal seguisse o entendimento legal, deveria não dar provimento a medida liminar e julgar reprovado o estudante que não tinha atingido a média do regimento da universidade. Com isso, o aluno não poderia ter cursado as matérias que dependessem do pré-requisito da disciplinada questionada, ou seja, não poderia ter completado o curso e se graduado.


Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu em favor de aluno de curso de graduação:


DIREITO PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. INSCRIÇÃO. EXAME SUPLETIVO. APROVAÇÃO NO VESTIBULAR. DETERMINAÇÃO JUDICIAL.


APLICAÇÃO.  TEORIA DO FATO CONSUMADO.


1. De acordo com a Lei 9.394/96, a inscrição de aluno em exame supletivo é permitida nas seguintes hipóteses: a) ser ele maior de 18 anos e b) não ter tido acesso aos estudos ou à continuidade destes, no ensino médio, na idade própria, de sorte que é frontalmente contrária à legislação de regência a concessão de liminares autorizando o ingresso de menores de 18 anos em curso dessa natureza.


2. É inadmissível a subversão da teleologia do exame supletivo, o qual foi concebido com o escopo de contemplar aqueles que não tiveram acesso ao ensino na idade própria ou, mesmo o tendo, não lograram concluir os estudos, não sendo por outra razão que o legislador estabeleceu 18 (dezoito) anos como idade mínima para ingresso no curso supletivo relativo ao ensino médio.


3. Lamentavelmente, a excepcional autorização legislativa, idealizada com o propósito de facilitar a inclusão educacional daqueles que não tiveram a oportunidade em tempo próprio, além de promover a cidadania, vem sendo desnaturada dia após dia por estudantes do ensino médio que visam a encurtar sua vida escolar de maneira ilegítima, burlando as diretrizes legais.


4. Sucede que a ora recorrente, amparada por provimento liminar, logrou aprovação no exame supletivo, o que lhe permitiu ingressar no ensino superior, já tendo concluído considerável parcela do curso de Direito.


5. Consolidadas pelo decurso do tempo, as situações jurídicas devem ser respeitadas, sob pena de causar à parte desnecessário prejuízo e afronta ao disposto no art. 462 do CPC. Aplicação da teoria do fato consumado. Precedentes.


6. Recurso especial provido.” (REsp 1262673/SE, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/08/2011, DJe 30/08/2011) (www.setj.jus.br).


Observa-se que a sua aplicação deriva de um ato administrativo ou decisão judicial precária (liminar) que se consolidou no tempo. É uma situação em que o particular será beneficiado sob o ponto de vista social, mas não abarcado pelo direito. Ou seja, o indivíduo não tem o direito jurídico ao pedido feito, mas lhe será concedido, devido à estabilidade social criada pela demora na solução do fato.


A segurança jurídica é necessária para a estabilidade social, “é preciso evitar que situações jurídicas permaneçam por todo o tempo em nível de instabilidade, o que, evidentemente, provoca incertezas e receios entre os indivíduos” (FILHO, 2008, p. 29). Por outro lado, “por mais que se esforçassem os intérpretes, a fundamentação do fato consumado não se afigurava muito convincente” (FILHO, 2008, p. 30).


Nesse mesmo sentido, comenta Di Pietro (2001, p. 85):


“o princípio se justifica pelo fato de ser comum, na esfera administrativa, haver mudança de interpretação de determinadas normas legais, com a conseqüente mudança de orientação, em caráter normativo, afetando situações já reconhecidas e consolidadas na vigência de orientação anterior. Essa possibilidade de mudança de orientação é inevitável, porém gera insegurança jurídica, pois os interessados nunca sabem quando a sua situação será passível de contestação pela própria Administração Pública.”


Desses apontamentos, retiram-se alguns requisitos importantes para o conhecimento do fato consumado: a boa-fé, o grande lapso temporal, a certeza do direito, a legalidade pelo menos aparente e o não prejuízo à terceiros ou ao interesse público.


A boa-fé representa o desconhecimento sobre a ilegalidade do ato e a certeza do direito. O indivíduo tem a certeza de possuir o direito, pois desconhece totalmente a ilegalidade. Quando há uma discussão judicial, o impetrante não tem a certeza do direito, ele discute o fato, colocando uma tese jurídica, desejando que esta seja a vencedora. Na verdade, há uma total incerteza jurídica. Em caso de má-fé, o poder público pode anular o ato a qualquer tempo, pois nem o particular e nem o administrador podem ter proveito da sua própria torpeza.


O reconhecimento de situações consolidadas no tempo ocorre devido ao valor social que adquirem os atos inválidos com o decurso do tempo, em detrimento da contrariedade à lei.


O lapso temporal deve ser resolvido através do não provimento de cargos públicos com medidas liminares. O procedimento tem suas fases, não podendo ser diferente em relação ao indivíduo. Se há processo judicial, não há certeza do direito. Assim, consolida-se a ilegalidade, alegando que a aplicação da lei seria mais prejudicial à situação fática.


2.3 A aplicação da teoria do fato consumado nos concursos públicos


Observa-se que a teoria do fato consumado foi criada para beneficiar o particular de boa-fé que foi agraciado, ou atendido, pela prática de ato administrativo eivado de vício insanável. Decorre do direito líquido e certo que o particular e a Administração consolidaram, pelo excesso de prazo.


Quando decorre de uma decisão liminar em um processo, o candidato não tem o direito líquido e certo à nomeação, por isso foi necessário entrar com um processo judicial e pleitear uma medida cautelar. Nesse caso, se o particular for nomeado, pode perdurar anos o processo, mas ele tem plena consciência que o seu direito está sendo discutido, cumprindo as garantias constitucionais. Ele tem conhecimento que não tem o direito pleno a ocupar o cargo público.


Em algumas decisões o judiciário tem confirmado liminares, concedidas em primeira instância, mesmo que estejam contra o sistema jurídico, apenas pelo excesso de prazo no processo judicial, utilizando-se da Teoria do Fato Consumado, o que pode  prejudicar aqueles que conseguiram vencer todas as etapas do certame, atendendo a todos os requisitos solicitados pela banca examinadora no tempo correto, sem necessidade de provimento judicial. Filho (2008) salientou que não é muito convincente a fundamentação da decisão baseada exclusivamente no fato consumado.


Como pode ser observado no julgado a seguir:


MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. EDITAL. EXIGÊNCIA. CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO. NÃO COMPROVAÇÃO NA DATA DA POSSE. TEORIA DO FATO CONSUMADO. ORDEM CONCEDIDA.


1. Segundo a teoria do fato consumado, a situação fática consolidada pelo decurso do tempo deve ser preservada, sob pena de causar à parte desnecessário prejuízo e afronta ao disposto no art. 462 do CPC.


2. Apesar de a impetrante não preencher todos os requisitos exigidos pelo edital quando nomeada, atualmente ela já se encontra apta a assumir o cargo público.


3. Ordem concedida para manter a impetrante no concurso, confirmando-se, assim, a liminar anteriormente deferida”. (TJDFT – Classe do Processo: 2010 00 2 009235-7 MSG – 000923573.2010.807. 0000 – DF – Data de Julgamento: 15/02/2011 – Órgão Julgador: Conselho Especial – Relator: J.J. COSTA CARVALHO) (www.tjdft.jus.br)


Em outras decisões, o judiciário demonstra que não existe o instituto da posse precária no serviço público, tendo em vista os cargos serem efetivos e de provimento após aprovação em concurso, seguindo os princípios que regram a matéria. Com essa posição, observe o julgado abaixo:


ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. PAPILOSCOPISTA DE POLÍCIA FEDERAL. EXAME PSICOLÓGICO. CANDIDATO “NÃO-RECOMENDADO”. PERFIL PROFISSIOGRÁFICO. PARTICIPAÇÃO NO CURSO DE FORMAÇÃO. DECRETO N. 6.944/2009. APLICAÇÃO. NOMEAÇÃO E POSSE PRECÁRIAS. IMPOSSIBILIDADE.


1. A exigência de exame psicotécnico em concurso público para ingresso na Academia Nacional de Polícia é legítima, consoante jurisprudência consolidada na Súmula 239 do extinto TFR. 2. Aplicação, ao caso, do Decreto n. 6.944/2009 (art. 14, §§ 1º e 2º), consoante os quais o exame psicotécnico deve limitar-se “à detecção de problemas psicológicos que possam vir a comprometer o exercício das atividades inerentes ao cargo ou emprego disputado no concurso” (§ 1º), não sendo admitida “a realização de exame psicotécnico em concurso público para aferição de perfil profissiográfico, avaliação vocacional ou avaliação de quociente de inteligência” (§ 2º). 3. Ao candidato sub judice não se reconhece direito à nomeação e posse, antes do trânsito em julgado da decisão, já que inexiste, em Direito Administrativo, o instituto da posse precária em cargo público. Precedente. 4. Sentença reformada em parte. 5. Apelação e remessa oficial parcialmente providas.”


(TRF1 – APELAÇÃO CIVEL: AC 27979 DF 0027979-15.2004.4.01.3400) (www.trf1.jus.br)


Os julgados são fundamentados pela excepcionalidade do fato, com a maior prevalência da finalidade social das leis em detrimento da legalidade imposta pelo Estado Democrático de Direito.


A Constituição Federal expõe expressamente a necessidade da aprovação em concurso público para a investidura em cargo público, segundo o disposto no artigo 37, inciso II da Carta Magna, citado anteriormente.


Observa-se, que o concurso público é regra para nomeação de cargos efetivos, conforme o texto constitucional e os princípios que regem a sua necessidade, como mostra decisão do STJ:


ADMINISTRATIVO. PROFESSORA. CONTRATAÇÃO EM REGIME TEMPORÁRIO APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO À ESTABILIDADE NO SERVIÇO PÚBLICO.


1. Inexiste direito líquido e certo à estabilidade no serviço público para aqueles que, após a Constituição de 1988 e sem aprovação prévia em concurso público, são contratados por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público. Precedentes do STJ. 2. Agravo Regimental não provido.” (AgRg no RMS 34.160/PA, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 06/09/2011, DJe 12/09/2011) (www.stj.jus.br).


Concurso público é o procedimento administrativo para escolher aqueles que ocuparão as funções públicas, de acordo com a verificação de suas aptidões e capacidade para desempenhar o cargo, sendo isso demonstrado através das provas que devem ser superadas pelos candidatos (FILHO, 2008).


Mas, contrariando entendimento citado e a Carta Magna, em 29 de junho de 2010, uma notícia veiculada no portal do Ministério Público Federal, mostrou a insatisfação do Sub-Procurador da República com as contratações feitas pelo governador do Estado de São Paulo sem concurso Público. Ele afirmou ser uma regra na Administração a contratação de servidores por meio de concurso. Para o Sub-Procurador da República, houve improbidade administrativa na atitude do governador.


A realização do concurso público serve para evitar fatos como a deplorável venda de cargos públicos, o apadrinhamento de pessoas que ajudaram na campanha de políticos, a nomeação de parentes de pessoas que ocupam posições mais privilegiadas na sociedade ou a nomeação de amigos de quem ocupa cargo de direção nos órgãos, tudo isso sem nenhum mérito de quem é beneficiado.


É uma ferramenta para avaliar o mérito daquele que quer ocupar o cargo. O candidato participará do certame nas mesmas condições que os outros, para que sejam escolhidos os melhores.


De acordo com o exposto, os princípios constitucionais que regem o concurso público no Brasil são demasiadamente contrariados de inúmeras formas, malogrando a aspiração igualitária de acesso aos cargos, empregos e funções públicas, quando um candidato que não conseguiu superar os obstáculos impostos em um certame público, consegue a nomeação para o cargo que tantos outros almejam.


Diferente é a nomeação de um candidato por erro da banca examinadora ao corrigir sua prova dissertativa. Ele, a princípio, não teve acesso à correção, não teve acesso aos membros da banca examinadora, apenas ficou feliz em ter sido aprovado. Caso a Administração, após um período de tempo considerável (por exemplo 15 anos), venha a descobrir a sua própria falha, poderemos estar diante de uma aplicação da Teoria do Fato consumado.


3 CONCLUSÃO


Conforme visto, há candidatos que durante um concurso público ficam reprovados pela banca examinadora em alguma das fases e entram com ações judiciais alegando direito ao prosseguimento no certame, por falha da comissão organizadora.


Em alguns casos, o candidato consegue liminar para prosseguir no concurso e chega até a fase final. Posteriormente, em grau de recurso, o tribunal verifica que a banca examinadora estava certa juridicamente na reprovação do candidato naquela fase. Embora o acórdão fale sobre a legalidade das atitudes da banca, a decisão termina ratificando a liminar e mantendo o candidato no cargo, aplicando a Teoria do Fato Consumado, mesmo sem preencher todos os requisitos.


A aplicação dessa teoria para confirmar essas nomeações precárias, concedidas em sede liminar, quando é verificado ao fim do processo que o candidato não tinha o direito a nomeação, prejudica os demais concorrentes ao cargo público que superaram todas as fases, mas não foram nomeados por falta de vaga.


Neste trabalho não há crítica ao direito do candidato peticionar em defesa da sua tese, mas sim uma crítica a confirmação no cargo de particulares que não passaram no certame, exigência constitucional para o provimento de cargos públicos efetivos.


Restou comprovado que a utilização da Consumação do Fato em detrimento do Concurso Público fere vários princípios, que ofendem a própria organização da Administração Pública e, por fim, o Estado Democrático de Direito. A democracia não permite tratar o Estado como patrimônio de suas autoridades ou governantes, devendo prevalecer o princípio da isonomia.


Assim, o candidato que não cumpriu a exigência constitucional de ser aprovado em concurso público não deveria tomar posse em cargo efetivo, pois prejudicaria várias outras pessoas que foram aprovadas em todas as etapas, mas não nomeadas, e a própria credibilidade do instituto do concurso para provimento de cargos públicos efetivos.


 


Referências

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______. Superior Tribunal de Justiça. Ementa: Direito processual civil e administrativo. Inscrição. Exame supletivo. Aprovação no vestibular. Determinação judicial. Aplicação.  Teoria do fato consumado. REsp 1262673/SE, Relator Ministro CASTRO MEIRA, Segunda Turma, julgado em 18 ago. 2011, DJe 30 ago. 2011. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/ revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=17180433&sReg=201101359772&sData=20110830&sTipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 7 set. 2011.

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______. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Ementa: Administrativo. Concurso público. Papiloscopista de polícia federal. Exame psicológico. Candidato “não-recomendado”. Perfil profissiográfico. Participação no curso de formação. Decreto n. 6.944/2009. Aplicação. Nomeação e posse precárias. Impossibilidade. Apelação civel: AC 27979 DF 0027979-15.2004.4.01.3400. Relator Desembargador Federal Daniel Paes Ribeiro, Sexta Turma, julgado em 17 jan. 2011, e-DJF 24 jan. 2011. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/ default.php?p1=279791520044013400>. Acesso em: 15 set. 2011.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 17. ed. inteiramente revista, vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. 528 p.

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DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Ementa: Mandado de segurança. Concurso público. Edital. Exigência. Curso de especialização. Não comprovação na data da posse. Teoria do fato consumado. Ordem concedida. Classe do Processo: 2010 00 2 009235-7 MSG – 0009235-73.2010.807.0000 – DF – Relator : J.J. Costa Carvalho, Conselho Especial, Julgado em 15 fev. 2011, DJe 10 mai. 2011. Disponível em: <http://tjdf19.tjdft.jus.br/cgi-bin/tjcgi1?NXTPGM=plhtml06&ORIGEM=INTER&NUPROC 20100020092357MSG>. Acesso em: 2 out. 2011.

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Informações Sobre o Autor

Érica Beatriz Silva dos Santos Telles

Especialista em Direito Público pela Faculdade Projeção. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Euro-Americano (UNIEURO)


Equipe Âmbito Jurídico

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