Na sessão do último dia 23 de maio, o Supremo Tribunal Federal voltou a discutir um assunto tormentoso: quem tem competência para dirimir um conflito de atribuições entre o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual (e, por força de raciocínio, entre órgãos de Ministérios Públicos de Estados diversos).
Esta questão ficou sem uma solução adequada durante anos. Evidentemente que estavam excluídos o Procurador-Geral de Justiça respectivo e o Procurador-Geral da República, pois ambos chefiam instituições independentes (inclusive do ponto de vista constitucional) e não há falar-se em hierarquia entre elas, de modo que o chefe de uma não poderá impor ao membro da outra o seu posicionamento. Tampouco o Superior Tribunal de Justiça teria competência para dirimir este tipo de controvérsia, primeiro porque não se trata de um conflito de competência e, segundo, porque não se encontra esta competência elencada no art. 105 da Constituição Federal. E “a competência expressa determinada pela Constituição Federal não pode ser ampliada ou estendida, uma vez que o poder constituinte originário assim o pretendia”, como bem afirma Luiz Flávio Gomes.[1]
Uma terceira via alvitrada, considerando que, in casu, estaríamos possivelmente diante de um conflito federativo instaurado entre a União (via Ministério Público Federal) e o Estado (através do respectivo Ministério Público Estadual), seria entender o Supremo Tribunal Federal como competente para dirimir este conflito, pois a ele cabe processar e julgar originariamente “as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta” (art. 102, I, “f”).[2]
Esta, aliás, já era uma posição antiga da doutrina: conferir Paulo Cezar Pinheiro Carneiro[3] e Afrânio Silva Jardim[4]. Depois de muita celeuma e muitos erros, decidiu o Supremo Tribunal Federal que, efetivamente, a ele cabia esta tarefa. O julgamento ocorreu na Petição nº. 3.528-3, originária do Ministério Público do Estado da Bahia, que teve como relator o Ministro Marco Aurélio. Nesta decisão, proferida na sessão do dia 28 de setembro de 2005, consignou-se:
“Este processo veio à Corte ante pronunciamento do Procurador-Geral de Justiça Adjunto do Ministério Público do Estado da Bahia, de folha 119 a 123, sobre os seguintes fatos: a) o inquérito policial visa a elucidar a prática de crime de roubo – artigo 157, § 2º, inciso I, do Código Penal; b) o processo revelador do inquérito foi enviado à Promotoria de Justiça de Feira de Santana, que se manifestou pela incompetência da Justiça Estadual da Bahia, em face de conexão com crime da competência da Justiça Federal – o descaminho, presentes os objetos roubados; c) a Juíza de Direito da 2ª Vara Criminal de Feira de Santana assentou a inexistência de conexão, acionando o disposto no artigo 28 do Código de Processo Penal; d) o Procurador-Geral de Justiça, após consignar a ausência de conflito negativo de competência, ante a fase do processo – simplesmente investigatória –, entendeu competir a atuação à Procuradoria da República na Bahia; e) o Ministério Público Federal refutou tratar-se, no inquérito, do crime previsto no artigo 334 do Código Penal, tendo em conta as balizas subjetivas e objetivas da espécie; f) o Juízo federal, corroborando a conclusão do Juízo estadual, rechaçou o que se poderia enquadrar como conflito virtual de jurisdição e, apontando o procedimento como única solução, devolveu o processo de inquérito à 2ª Vara Criminal de Feira de Santana; g) a Procuradoria-Geral de Justiça do Estado da Bahia considerou configurado o conflito entre órgãos integrantes da União e de um Estado federado, a atrair a incidência da norma da alínea “f” do inciso I do artigo 102 da Carta da República. Determinei a remessa do processo ao Procurador-Geral da República, que se pronunciou em peça que tem a seguinte síntese: Conflito de atribuições entre membros do Ministério Público Estadual e Federal. Possível conexão entre os crimes previstos no art. 157, § 2º, I e art. 334, ambos do Código Penal. Inocorrência (sic). Investigações voltadas exclusivamente para o delito de roubo. Conflito decidido para determinar a remessa dos autos ao Ministério Público Estadual. O Fiscal da Lei remete à jurisprudência desta Corte e do Superior Tribunal de Justiça. Na Petição nº 1.503/MG, o Supremo, ante virtual conflito de jurisdição entre os juízos federal e estadual, conferira interpretação ao artigo 105, inciso I, alínea “d”, da Constituição Federal, decidindo pela competência do Superior Tribunal de Justiça para apreciar a matéria – Plenário relator ministro Maurício Corrêa, com acórdão publicado no Diário da Justiça de 14 de novembro de 2002. No Conflito de Atribuição nº 154, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, reportando-se a precedentes, proclamara, na dicção do ministro José Delgado – acórdão publicado no Diário da Justiça de 18 de abril de 2005: PROCESSO CIVIL. CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL X MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. NÃO CONHECIMENTO. PRECEDENTES. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de que não se conhece de conflito de atribuições, por incompetência da Corte, em que são partes o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual, por não se enquadrar em quaisquer das hipóteses previstas no art. 105, I, “g”, da CF/1988”. (…) O Procurador-Geral da República alude à circunstância de o Conflito de Atribuição nº 154 haver sido remetido pelo Superior Tribunal de Justiça ao Órgão, concluindo o então Subprocurador-Geral Cláudio Lemos Fonteles pela competência do Procurador-Geral da República para dirimi-lo. Daí haver Sua Excelência passado ao julgamento do conflito, retornando-me o processo. É o relatório. V O T O: O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – De início, tem-se a impossibilidade de se adotar a solução que prevaleceu quando o Plenário apreciou a Petição nº 1.503/MG. É que aqui não é dado sequer assentar um virtual conflito de jurisdição entre os juízos federal e estadual. Ambos estão uníssonos quanto à atribuição do Ministério Público Estadual. Assim, cabe expungir o envolvimento de órgãos investidos no ofício judicante em conflito, quer presente a configuração do fenômeno, quer a capacidade intuitiva e, portanto, a presunção de virem a discordar sobre a matéria. Afasta-se, assim, a interpretação analógica que prevaleceu quando do pronunciamento anterior e que girou em torno do preceito da alínea “b” do inciso I do artigo 105 da Constituição Federal, a revelar competir ao Superior Tribunal de Justiça processar e julgar originariamente os conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no artigo 102, inciso I, alinea “o”, da Carta da República bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos. Eis o precedente, sendo que não compus o Plenário quando formalizado, ante ausência justificada: EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÕES. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL E ESTADUAL. DENÚNCIA. FALSIFICAÇÃO DE GUIAS DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. AUSÊNCIA DE CONFLIT! O FEDERATIVO. INCOMPETÊNCIA DESTA CORTE. 1. Conflito de atribuições entre o Ministério Público Federal e o Estadual. Empresa privada. Falsificação de guias de recolhimento de contribuições previdenciárias devidas à autarquia federal. Apuração do fato delituoso. Dissenso quanto ao órgão do Parquet competente para apresentar denúncia. 2. A competência originária do Supremo Tribunal Federal, a que alude a letra "f" do inciso I do artigo 102 da Constituição, restringe-se aos conflitos de atribuições entre entes federados que possam, potencialmente, comprometer a harmonia do pacto federativo. Exegese restritiva do preceito ditada pela jurisprudência da Corte. Ausência, no caso concreto, de divergência capaz de promover o desequilíbrio do sistema federal. 3. Presença de virtual conflito de jurisdição entre os juízos federal e estadual perante os quais funcionam os órgãos do Parquet em dissensão. Interpretação analógica do artigo 105, I, "d", da Carta da República, para fixar a competência do Superior Tribunal de Justiça a fim de que julgue a controvérsia. Conflito de atribuições não conhecido. Também não é possível assentar-se competir ao Procurador-Geral da República a última palavra sobre a matéria. A razão é muito simples: de acordo com a norma do § 1º do artigo 128 do Diploma Maior chefia ele o Ministério Público da União, não tendo ingerência, considerados os princípios federativos, nos Ministérios Públicos dos Estados. Todavia, diante da inexistência de disposição específica na Lei Fundamental relativa à competência, o impasse não pode continuar. Esta Corte tem precedente segundo o qual, diante da conclusão sobre o silêncio do ordenamento jurídico a respeito do órgão competente para julgar certa matéria, a ela própria cabe a atuação: CONFLITO DE JURISDIÇÃO – 1. No silêncio da Constituição, que não estabelece o órgão para decidir conflitos de jurisdição entre Tribunais Federais e Juizes, a competência cabe ao Supremo Tribunal Federal. 2. É competente o Tribunal Regional Eleitoral para processar e julgar mandado de segurança contra atos de sua Presidência ou dele próprio (Conflito de Jurisdição nº 5.133, relator ministro Aliomar Baleeiro, DJ de 22 de maio de 1970). C.J. – I. Compete ao S.T.F., no silêncio da C.F., na redação da Emenda nº 1/1969, decidir conflitos de jurisdição entre um Tribunal e um juiz.II. Cabe à Justiça Federal, nos termos do art. 110 da C.F. e Emenda nº 1/1969, processar e julgar reclamações trabalhistas contra o INPS (Conflito de Jurisdição nº 5.267, relator ministro Aliomar Baleeiro, DJ de 4 de maio de 1970). Esse entendimento é fortalecido pelo fato de órgãos da União e de Estado membro estarem envolvidos no conflito, e aí há de se emprestar à alínea “f” do inciso I do artigo 102 da Constituição Federal alcance suficiente ao afastamento do descompasso, solucionando-o o Supremo, como órgão maior da pirâmide jurisdicional. Aliás, pela propriedade, cumpre ressaltar o que citado na manifestação do Ministério Público do Estado da Bahia, na óptica proficiente do ex-Subprocurador de Justiça e professor da Faculdade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ – Dr. Paulo Cézar Pinheiro Carneiro: O juiz quando determina o encaminhamento dos autos do inquérito para outro órgão do Ministério Público, o faz exercitando unicamente atividade administrativa, como chefe que é dos serviços administrativos do cartório… O despacho de encaminhamento tem natureza simplesmente administrativa… Não existe nenhuma atividade jurisdicional e mesmo judicial na hipótese. Uma vez que, na prática, existe um despacho administrativo, lacônico que seja, não podemos transformá-lo de uma penada, sem o exame mais cauteloso de cada hipótese em declinação da competência de um juízo, sob pena de subvertermos toda ordem processual, além dos demais e gravíssimos inconvenientes e ilegalidades que tal medida acarretaria. Então, a seguir, em análise da problemática versada neste processo, o autor da consagrada obra ”O Ministério Público no Processo Civil e Penal” – Rio de Janeiro – Forense, 5ª Edição, 1995, página 212, observa:(…) Não há nada de estranho, de anormal, em conferir a órgão judiciário da nação o poder de dirimir conflitos de atribuições entre órgãos autônomos e independentes entre si. Pelo contrário, a relevância das questões em jogo exige que o órgão encarregado de dirimir estes conflitos tenham os predicados que atualmente só a magistratura tem, de sorte a garantir julgamento técnico e isenção total. Não é o STF que, originariamente, julga as causas judiciais entre Estados membros? Como, então, se poderia afirmar que haveria quebra de independência e autonomia dos Estados membros se a ele fosse também conferido o poder de decidir os conflitos de natureza administrativa entre estes mesmos entes? Não existe, até o momento, no nosso sistema constitucional, nenhum órgão ou ente superior que tenha o poder de decidir a que Estado competiria determinado tipo de atribuição. Transporte-se o enfoque para o conflito de atribuições entre o Ministério Público Estadual e o Ministério Público Federal. A solução há de decorrer não de pronunciamento deste ou daquele Ministério Público, sob pena de se assentar hierarquização incompatível com a Lei Fundamental. Uma coisa é atividade do Procurador-Geral da República no âmbito do Ministério Público da União, como também o é atividade do Procurador-Geral de Justiça no Ministério Público do Estado. Algo diverso, e que não se coaduna com a organicidade do Direito Constitucional, é dar-se à chefia de um Ministério Público, por mais relevante que seja, em se tratando da abrangência de atuação, o poder de interferir no Ministério Público da unidade federada, agindo no campo administrativo de forma incompatível com o princípio da autonomia estadual. Esta apenas é excepcionada pela Constituição Federal e não se tem na Carta em vigor qualquer dispositivo que revele a ascendência do Procurador-Geral da República relativamente aos Ministérios Públicos dos Estados. Tomo a manifestação do Procurador-Geral da República, Dr. Antônio Fernando Barros Silva de Souza, contida à folha 130 à 137, não como uma decisão sobre o conflito, mas como parecer referente à matéria. A competência para dirimir o conflito de atribuições envolvendo o Ministério Público do Estado da Bahia e o Federal são realmente do Supremo, conforme decidido no Mandado de Segurança n° 22.042-2, relatado pelo ministro Moreira Alves e assentado sem discrepância de votos: Mandado de segurança. Questão de ordem quanto a competência do supremo tribunal federal. – Tendo sido o presente mandado de segurança impetrado, por se tratar de ato complexo, contra o governador e o Tribunal do Estado de Roraima, bem como contra o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, e versando ele a questão de saber se a competência para a constituição da lista sêxtupla e do impetrante – o Ministério Público desse Estado – ou de um dos impetrados – o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios -, não há duvida de que, nos termos da impetração da segurança, há causa entre órgão de um Estado-membro e órgão do Distrito Federal, configurando-se, assim, hipótese prevista na competência originária desta corte (artigo 102, i, "f", da Constituição Federal), uma vez que o litígio existente envolve conflito de atribuições entre órgãos de membros diversos da Federação, com evidente substrato político. – Correta a inclusão do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios no polo passivo do mandado de segurança, pois, em se tratando de ato complexo de que participam, dentro da esfera de competência própria, órgãos e autoridades sucessivamente, mas que não estão subordinados uns aos outros, para a formação de ato que só produz efeito quando o último deles se manifesta, entrelaçando-se essa manifestação as anteriores, esses órgãos e autoridades, a partir daquele de que emanou o vício alegado, devem figurar, como litisconsortes, no polo passivo do mandado de segurança. Reconhecimento da competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar originariamente o presente mandado de segurança, com fundamento na letra "f" do inciso i do artigo 102 da Constituição Federal.
Após este leading case, vários foram os conflitos de atribuições enviados ao Supremo Tribunal Federal pelo Ministério Público sempre tombados sob a epígrafe de Ação Cível Originária, pois, conforme afirmou o Ministro Celso de Mello, “o Supremo Tribunal Federal tem a posição de tribunal da federação, com poder de dirimir controvérsias criadas no seio do Estado Federal. Ele citou o autor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que aponta o STF como órgão de equilíbrio do sistema federativo: ´O Supremo tem um caráter nacional que o habilita a decidir, com independência e imparcialidade, as causas e conflitos de que sejam partes, em campos opostos, a União e qualquer dos Estados federados.” (Ação Cível Originária nº. 625, onde se discutia um conflito federativo entre a União e o Estado do Rio de Janeiro). Conferir: ações cíveis originárias nºs. 1156, 1382 e 1013 (relator Ministro Eros Grau); 853-5 (relator Ministro Cezar Peluso); 889 (relatora Ministra Ellen Gracie); 1233 (Ministro Carlos Alberto Menezes Direito); 1213 e 971 (relator Ministro Joaquim Barbosa); 1142, etc., etc.
O próprio Superior Tribunal de Justiça, que nunca admitiu esta solução jurídica, reconheceu ser competente a Suprema Corte nestes casos: Processo CAt 169/RJ; CC 2005/0070615-4 – Relatora: Ministra Laurita Vaz, Relator p/ Acórdão: Ministro Hélio Quaglia Barbosa, Órgão Julgador – 23/11/2005 – DJ 13.03.2006 p. 177.
Agora a questão voltou a ser discutida pela Suprema Corte na Ação Cível Originária 924, de relatoria do Ministro Luiz Fux, cujo julgamento foi interrompido por um pedido de vista do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Joaquim Barbosa. Antes de entrar no mérito da ação, o Ministro Luiz Fux levantou uma questão preliminar por meio da qual sugeriu que o Supremo Tribunal Federal não deve analisar esse tipo de processo, uma vez que, em sua opinião, não há conflito federativo, e sim um conflito de atribuições a respeito do qual o Ministério Público Federal deveria ter a palavra definitiva (!). De acordo com o relator, “a opinião do Ministério Público Federal sobrepõem-se à manifestação do Ministério Público Estadual, assim como prevê a súmula 150 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual cabe ao juiz federal dizer se há ou não interesse da União em determinado processo”. O relator explicou que a aplicação dessa súmula do Superior Tribunal de Justiça se daria por analogia. (!!!)
Após o voto do relator, o Ministro Teori Zavascki apresentou seu voto: “não se mostra apropriada a intervenção do Poder Judiciário em controvérsia estabelecida no âmbito interno do Ministério Público para definir qual deles tem atribuição para investigar determinado fato”. Ele explicou que somente depois de ficar demonstrada a existência de conduta irregular é que se decidirá se a ação será penal ou civil, ou ambas, e só então se indicam os demandados, os fundamentos da demanda e o pedido correspondente. “Somente depois de efetivamente tomadas essas providências é que será possível identificar o órgão judiciário competente para processar e julgar eventual demanda, bem como avaliar se o representante do Ministério Público que a propôs está ou não investido de atribuições institucionais para oficiar perante esse órgão judiciário”, afirmou. Ele ainda destacou que esta é uma divergência estabelecida interna corporis numa instituição que a Constituição Federal subordina aos princípios de unidade e indivisibilidade. “Divergência dessa natureza não se qualifica como conflito federativo apto a atrair a incidência do artigo 102, parágrafo 1º, letra “f”, da Constituição”. Ainda de acordo com o Ministro cumpre ao próprio Ministério Público, e não ao Judiciário, identificar e afirmar ou não as atribuições investigativas de cada um dos órgãos em face do caso concreto. “Há um modo natural de solução dessa espécie de divergência que independe da intervenção do Judiciário”, disse ele ao destacar que se o Ministério Público da União afirmar sua competência para investigar determinado fato, isso, por si só, o autoriza a tomar as providências correspondentes: “Se, ao contrário, entender que não há interesse federal a justificar a sua intervenção, como é o caso, cumpre ao Ministério Público da União promover o arquivamento ou, se entender cabível, encaminhar o processo ao Ministério Público Estadual. Caso o Ministério Público Estadual entenda que não há razão ou fundamento para investigar o ilícito no âmbito da sua competência, nada impede que também promova o arquivamento. (!!!) O que não se mostra compatível com o sistema federativo é supor que a manifestação de um órgão estadual possa ser vinculante para fixar atribuição do órgão da União”, finalizou.
O Ministro Marco Aurélio, obviamente, abriu divergência ao lembrar que a Corte vem decidindo casos semelhantes porque chamou para si a competência para dirimir o conflito de atribuições ao constatar que a Constituição Federal não prevê órgão competente para tanto: “Ante esse silêncio, só caberia ao Supremo Tribunal Federal, como guardião da Carta, atuar”. Para ele, “não cabe ouvir a União para saber se ela tem interesse ou não em uma futura ação. Deve o próprio Supremo, em prol da sociedade, resolver esse conflito para que o inquérito civil prossiga sob os auspícios do Ministério Público, que deverá atuar na espécie, considerada até mesmo uma futura competência jurisdicional”. Os demais Ministros votarão após o Ministro Joaquim Barbosa apresentar seu voto-vista.
Apesar de concordamos em termos com a posição já consolidada do Supremo Tribunal Federal, nada obstante entendermos que, efetivamente, não estamos in casu, diante de um típico conflito federativo, o certo é que as posições adotadas pelo Ministro Luiz Fux e Teori Zavascki são absurdas: a primeira por desconhecer a autonomia constitucionalmente assegurada ao Ministério Público Estadual em relação ao Ministério Público da União; a segunda pelo fato de admitir (ainda que não explicitamente) a possiblidade da impunidade do caso penal (e se não for o caso de arquivamento do procedimento investigatório?).
Pois bem.
Como é sabido, antes de se iniciar a ação penal, com o oferecimento da denúncia, não se pode falar em conflito de competência ou de jurisdição, mas, tão-somente, em conflito de atribuições entre membros do Ministério Público a ser dirimido pelo Procurador-Geral de Justiça (ou pela Câmara de Coordenação e Revisão – art. 62, VII da Lei Complementar n. 75/93, conforme o caso). Aliás, pouco importa que tenha o Juiz de Direito exarado nos autos da peça informativa qualquer despacho neste ou naquele sentido, pois, nesta primeira fase da persecutio criminis não há falar-se em competência e sim em atribuição do Promotor de Justiça (ou Procurador da República).
Com efeito, o que diferencia o conflito de atribuição do conflito de jurisdição ou competência não são exatamente as autoridades em confronto, mas o tipo de ato a ser praticado. Assim, o fato de dois Juízes declararem em seus respectivos despachos não serem competentes para determinado feito, não implica necessariamente que tenha surgido entre eles um conflito negativo de jurisdição ou competência, pois o que importa para a perfeita identificação do problema é visualizarmos em cada caso concreto qual a natureza do ato a ser praticado e não a autoridade que o venha a praticar.
Ora, quando se está diante de um inquérito policial não há, ainda, evidentemente, processo instaurado, sequer ação penal iniciada. Nestas condições, os despachos exarados em um procedimento investigatório se revestem de caráter eminentemente administrativo (salvo as medidas de natureza cautelar), não podendo ser considerados atos jurisdicionais, nem gerar, por conseguinte, qualquer vinculação do ponto de vista da competência processual.
Aliás, admitindo-se o contrário estaria ferida de morte a autonomia dos membros do Ministério Público, pois a atribuição ministerial seria ditada pelo despacho do Juiz oficiante, o que é inconcebível em nosso sistema processual penal, estruturalmente acusatório, no qual estão perfeitamente definidas as funções de acusar, de defender e de julgar, sendo vedado ao Juiz proceder como órgão persecutório.
Pelo sistema proíbe-se “al órgano decisor realizar las funciones de la parte acusadora”[5], “que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregue do julgamento”[6]. A propósito, sobre o sistema acusatório, assim escreveu Vitu: “Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale. “Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré. Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la défense.”[7]
Dos doutrinadores pátrios, talvez o que melhor traduziu o conceito do sistema acusatório tenha sido o mais completo processualista brasileiro, José Frederico Marques: “A titularidade da pretensão punitiva pertence ao Estado, representado pelo Ministério Público, e não ao juiz, órgão estatal tão-somente da aplicação imparcial da lei para dirimir os conflitos entre o jus puniendi e a liberdade do réu. Não há, em nosso processo penal, a figura do juiz inquisitivo. Separadas estão, no Direito pátrio, a função de acusar e a função jurisdicional. (…) O juiz exerce o poder de julgar e as funções inerentes à atividade jurisdicional: atribuições persecutórias, ele as tem muito restritas, e assim mesmo confinadas ao campo da notitia criminis. No que tange com a ação penal e à função de acusar, sua atividade é praticamente nula, visto que ambas foram adjudicadas ao Ministério Público.”[8]
Ora, sendo persecutório o ato a ser praticado, e exclusivo do Ministério Público, não pode se admitir que o órgão jurisdicional, antes de iniciada a ação penal, decida sobre sua competência, visto que a análise de tal matéria ainda lhe é defesa. Bem a propósito, vê-se que o art. 109 do Código de Processo Penal refere-se a processo quando determina que o Juiz se declare incompetente. E inquérito não é processo…
Assim, impossível enxergar em tais hipóteses as feições de um conflito negativo de jurisdição (ou competência), pois os pronunciamentos judiciais proferidos em inquérito policial (ou em qualquer outra peça informativa) não têm o condão de caracterizar decisões de positivação ou negação de suas respectivas competências.
Afrânio Silva Jardim, discorrendo sobre o tema, assim se pronunciou: “Como se sabe, o inquérito policial tem natureza administrativa, sendo atividade investigatória do Estado-Administração, destinada a dar lastro probatório mínimo a eventual pretensão punitiva. Se tal é a natureza do procedimento policial, outra não pode ser a natureza dos diversos atos que o compõem. Mesmo os atos praticados pelo Juiz no curso do inquérito têm a natureza administrativa, sendo, por isso, chamados pelo professor Fernando da Costa Tourinho Filho de anômalos, tendo em vista o sistema acusatório. Não são jurisdicionais, pois sem ação não há jurisdição.” (…) “Inexiste possibilidade de conflito de competência ou jurisdição na fase inquisitorial, pela própria natureza dos atos que aí são praticados. Ficam expressamente ressalvadas as hipóteses de jurisdição cautelar, como, por exemplo, a decretação de prisão preventiva ou concesão de liberdade provisória (contracautela). (…) “O simples fato de os Juízes, no inquérito, terem encaminhado os respectivos autos, a requerimento do MP, para outro órgão judicial não implica em afirmar ou negar a sua competência, tratando-se de despachos de mero expediente ou ordinatórios. Note-se que o art. 109 do CPP permite que o Juiz declare sua incompetência ‘em qualquer fase do processo’, não do inquérito policial.”[9]
Vejamos o ensinamento de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro: “O juiz, quando determina o encaminhamento dos autos do inquérito para outro órgão do Ministério Público, o faz exercitando unicamente atividade administrativa, como chefe que é dos serviços administrativos do cartório. (…) o despacho de encaminhamento tem natureza simplesmente administrativa (…). Não existe nenhuma atividade jurisdicional e mesmo judicial na hipótese. Uma vez que, na prática, existe um despacho administrativo, lacônico que seja, não podemos transformá-lo de uma penada, sem um exame mais cauteloso de cada hipótese, em declinação da competência de um juízo, sob pena de subvertermos toda a ordem processual, além dos demais e gravíssimos inconvenientes e ilegalidades que tal medida acarretaria.”[10]
Agora estes julgados, bem elucidativos:
“Conflito de competência – Inexistindo denúncia, não tendo sido instaurada a ação penal, não há conflito de competência de juízes, mas conflito de atribuições do MP, que será decidido pela douta Procuradoria Geral de Justiça.” (Conflito de Jurisdição nº. 163, Comarca do Rio de Janeiro). “Conflito de Jurisdição – (…) Conflito suscitado antes do oferecimento da denúncia. Inadmissibilidade – Improcedência decretada – Remessa dos autos à Procuradoria Geral de Justiça, nos termos do art. 28, do CPP.” (Conflito de Jurisdição nº. 32.572, de São Paulo, RT 192/568). “Conflito de Jurisdição. Hipótese de conflito de atribuições. Conflito de jurisdição. Não se configura quando o desacerto sobre o juízo competente só existe no plano do MP e antes da denúncia. Sem o pedido inicial não se instaura a jurisdição. Caso de simples conflito de atribuições a ser dirimido pelo Procurador-Geral de Justiça.” (Ac. unânime da 3ª. Câmara Criminal, Rel. Des. Vivalde Couto, Conflito de Jurisdição nº. 592/81, Ementário de Jurisprudência do TJERJ, ano 04, p. 352). “Não é caso de conflito de jurisdição, mas de conflito de atribuições entre órgãos do MP (a ser resolvido pelo Procurador-Geral), quando, antes de intentado o procedimento penal, se manifesta divergência ou dúvida entre os órgãos da acusação sobre qual a ação penal que no caso deve ser intentada.” (Acórdão da 2ª. Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal – Conflito de Jurisdição n. 468, Rel. Des. Romão Lacerda). No mesmo sentido, conferir decisões citadas por Damásio de Jesus, no seu livro “Código de Processo Penal Anotado, São Paulo: Saraiva, 8ª. ed., 1990” (p. 109).
Diante do exposto, nada obstante entendermos que este posicionamento já consolidado no seio de nossa Corte Suprema é o melhor entendemos (de lege ferenda) que seria mais adequado, seja do ponto de vista do sistema acusatório (art. 129, I, da Constituição Federal), seja sob o prisma institucional (art. 127, §§ 1º. e 2º., da Carta Magna), seja sob o aspecto constitucional (art. 130-A, § 2º. da Constituição Federal), que tais conflitos de atribuição fossem decididos pelo Conselho Nacional do Ministério Público, órgão constitucionalmente legitimado para o controle do “cumprimento dos deveres funcionais de seus membros”. Para tanto, acrescentar-se-ia ao art. 130-A, § 2º. da Constituição Federal, o inciso VI, com a seguinte redação: “dirimir conflitos de atribuições entre membros do Ministério Público de Estados diversos e entre estes e os membros do Ministério Público da União”. Fica a sugestão para um Projeto de Emenda à Constituição.
Procurador de Justiça no Estado da Bahia. Foi Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). É Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador-UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm e do Curso IELF. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria com Isaac Sabbá Guimarães) e “Juizados Especiais Criminais”– Editora JusPodivm, 2009, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.
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