Resumo: O presente artigo tem por finalidade a justificação da efetividade do princípio do contraditório no inquérito policial, seja pela interpretação extensiva de sua previsão constitucional, ou pela nova ótica da sua natureza jurídica, considerando a fase investigativa como processo. Fator necessário na atual conjuntura do Estado de Direito.
Palavras-chaves: Inquérito Policial. Princípio do Contraditório. Devido Processo Legal.
Abstract: This article aims to justify the effectiveness of the adversarial principle in the public enquiry, either by extensive interpretation of its constitutional provision, or the new light of their legal nature, considering the investigative phase and process. Necessary factor in the current rule of law situation.
Keywords: Public Enquiry. Contradictory Principle. Due Process of Low.
Sumário: Introdução. 1. O contraditório e o devido processo legal: conceitos. 2. Fundamentos da efetiva aplicação do contraditório no inquérito policial. 2.1. Interpretação extensiva do art. 5º, LV, da CF: presença do contraditório no Inquérito Policial. 2.2 O inquérito policial com natureza jurídica de processo administrativo. 2.3. Aceitação do contraditório na investigação criminal: análise jurisprudencial do STF. Conclusão.
Introdução
O estudo, ora em tela, tem a finalidade de abordar, através de uma reflexão crítica, uma efetiva aplicação do uso do princípio do contraditório no inquérito policial, utilizando como fundamentos uma interpretação extensiva de sua previsão constitucional (art.5º, LV), além da consideração da sua natureza jurídica como processo.
O objetivo principal do aludido estudo será deparado, conceituando o princípio do contraditório e do devido processo legal, como garantias constitucionais necessárias para o hodierno Estado de Direito, destacando suas utilizações a todo o momento no processo penal, para parte da doutrina e inclusive fora dele, para outra.
1 O contraditório e o devido processo legal: conceitos
Antes de adentrar no objetivo propriamente dito do presente capítulo, é de suma importância conceituar o contraditório e o devido processo legal, além de apontar suas previsões na Constituição Federal.
Gaio Júnior (2007, p.84) traz a lume o conceito de contraditório: “Tal princípio possui uma relação estreita com princípio da igualdade, porém trata, especificamente, da garantia constitucional que assegura ao réu ampla oportunidade de defesa (art. 5º, inciso LV, da CF), contrapondo-se à tese exposta pelo autor (tese à antítese).”
Diante do referido conceito, observa-se que este princípio é, também, uma garantia fundamental assegurada no art. 5º, LV, da Constituição Federal: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os recursos a ela inerentes.”
O contraditório, numa primeira análise, deve ser entendido como uma forma de confrontar as provas e corroborar a verdade, tomando por base o conflito entre acusação e defesa, tornando-se essencial para a dialética processual.
É uma forma de se dar oportunidade de fala para as partes, para que elas a usem como estratégia durante o desenvolvimento do processo, mesmo que as mesmas optem por não utilizar tal oportunidade, já que podem alegar o nemo tenetur se detegere (direito de silêncio) (LOPES JR, 2005).
Hodiernamente, o contraditório envolve, não apenas o direito da dialética entre as partes, mas também da atuação ativa do magistrado replicando às petições e requerimentos dos sujeitos, afastando, assim, as possíveis surpresas em sua atuação (LOPES JR, 2005).
Pelo exposto, eis a definição de Lopes Jr (2005, p.227): “Assim o contraditório é, essencialmente, o direito de ser informado e de participar no processo. É o conhecimento completo da acusação, o direito de saber o que está ocorrendo no processo, de ser comunicado de todos os atos processuais. Como regra, não pode haver segredo (antítese) para a defesa, sob pena de violação ao contraditório.”
Outra forma de exercer o contraditório, além de contraditar as provas produzidas e conhecer as alegações da outra parte, é a possibilidade de tomar conhecimento e impugnar as decisões dos magistrados (CARVALHO, 2006).
Pela análise do referido princípio, deduz-se que, se há para o autor o direito de ação, deve haver para o réu o direito de defesa, visto que o processo é um instrumento de garantia constitucional. Não obstante o necessário cumprimento dos prazos legais.
Além de ser uma forma de equilibrar a relação processual, garante o direito à liberdade e à preservação do estado de inocência do réu frente à pretensão punitiva do Estado.
João Batista Lopes (2005 apud GRINOVER, 2007, p. 320) lembra que: ”O contraditório abrange (a) o direito de ser ouvido; (b) o direito de acompanhar os atos processuais; (c) o direito de produzir provas; (d) o direito de ser informado regularmente dos atos praticados no processo; (e) o direito à motivação da sentença; (f) o direito de impugnar as decisões.”
Diante de todo o exposto, verifica-se que a importância do contraditório, advindo do princípio político da participação democrática, é justamente a oportunidade de influir de maneira eficaz na formação da decisão judicial aplicada.
Já o devido processo legal, também designado de due process of law, é o conjunto de normas preestabelecidas, que regulam uma eficaz tutela jurisdicional, observando as garantias presentes na Constituição, nos procedimentos em sua totalidade, mesmo que não jurisdicionais.
É de grande valia trazer o conceito de Gaio Júnior (2007, p. 80): “[…] é entendido como o conjunto de garantias constitucionais que, por um lado, asseguram às partes o pleno exercício de suas faculdades e poderes processuais e, por outro, indispensáveis são a total coerência na aplicação do exercício da jurisdição. Pressupõe que tal princípio repouse em um procedimento regular, previamente estabelecido, com atos sem vícios insanáveis ou insupríveis, contraditório com real igualdade de “armas” e tratamento, juiz natural, investido na forma da lei, coerente, competente e imparcial, sendo de advertir-se que nele não se pode falar quando meramente formal ou em relação àquele que, pela sua demora, permite o sacrifício do direito do autor, considerando que o processo deve ser visto como uma espécie de contrapartida que o Estado oferece aos cidadãos diante da proibição da autotutela.”
Juntamente com o acesso à justiça, o devido processo legal é o princípio constitucional que informa tanto a justiça penal quanto a civil, dando origem a diversos outros postulados que garantem a ordem jurídica justa (GRINOVER, 2006).
Com o objetivo de tornar mais específico o devido processo legal, foi ratificada pelo Brasil, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, passando, a mesma, a pertencer ao ordenamento jurídico pátrio, por força do art. 5º, §2º, da Constituição Federal, expressando que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” (GRINOVER, 2006).
Esta é a redação do art. 8º da referida convenção: “1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independentemente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos e obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal; b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livre e em particular, com seu defensor; e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio ou não nomear defensor dentro do prazo estabelecido por lei; f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a declarar-se culpado; h) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior. 3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza. 4. O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos. 5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça.”
Com a ratificação da referida convenção, passa a fazer parte das garantias constitucionais, o direito ao processo em um prazo razoável, que logrou fazer parte da Constituição Federal com a vigência da emenda constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, fazendo parte das garantias do devido processo legal (GRINOVER, 2006).
O due process of law, como garantia constitucional, serve de escopo para a racionalização de questões processuais controvertidas e, como mesmo menciona Afrânio Silva Jardim (2002, p.320), “serve até mesmo como farol para interpretar extensivamente outros preceitos encontrados na Carta Magna”.
2 Fundamentos da efetiva aplicação do contraditório no inquérito policial
Observando a hodierna Carta Magna, são nítidos os inúmeros dispositivos garantidores que possuem a incumbência de adaptar o processo penal a essa nova realidade constitucional, ou seja, os valores democráticos. Já que o momento sociopolítico e a busca pelo Estado de Direito inspiraram o legislador em questão a adotar uma nova ordem instrumental penal.
O inquérito policial, notadamente, é um dos pontos de maior ineficácia das garantias processuais constitucionais, visto que se trata de uma fase, considerada pela doutrina majoritária, administrativa e inquisitória, onde se trata o sujeito passivo como mero objeto da investigação.
Já não há mais espaço para tal consideração, visto que a Carta Constitucional preza pela dignidade da pessoa humana, fazendo como que o acusado (no sentido amplo) seja considerado como sujeito de direitos em todos os momentos da persecução penal: “Ainda em decorrência dessa premissa, deve-se concluir que a dignidade da pessoa humana como fundamento maior do sistema implica a formação de um processo banhado pela alteridade, ou seja, pelo respeito à presença do outro na relação jurídica, advindo daí a conclusão de afastar-se deste contexto o chamado modelo inquisitivo de processo, abrindo-se espaço para a edificação do denominado modelo acusatório. Fundamentalmente aí reside o núcleo da expressão que afirma que o réu (ou investigado) é sujeito de direitos na relação processual (ou fora dela, desde já na investigação), e não objeto de manipulação do Estado”. (CHOUKR, 2006, p.08).
Isto posto, torna-se necessária a constitucionalização da investigação preliminar.
Vislumbram-se algumas posições acerca da efetiva utilização do contraditório na perquirição penal. Dentre elas, tem-se a que considera referida fase com natureza jurídica processual, e como tal, devendo respeitar todas as garantias processuais constitucionais. A outra linha, o considera como fase pré-processual, não discutindo sua natureza jurídica, todavia, não obstando, por isso, a efetiva utilização do contraditório, através da interpretação extensiva do art. 5º, LV, da Constituição Federal, já que a mesma é garantista.
2.1 Interpretação extensiva do art. 5º, LV, da CF: presença do contraditório no Inquérito Policial
A posição, defendida por Lopes Jr. (2005), considera a investigação preliminar como fase administrativa e inquisitória, contudo, não se deve, por isso, afastar a incidência do contraditório e do direito de defesa na referida fase. Devendo sim, haver um ajuste do código de processo penal ao art. 5º, LV, da carta magna, para que, com isso, haja uma maior eficácia da referida garantia.
Analisando a Constituição Federal, suas garantias processuais e principalmente o art. 5º, LV, é cristalina a tendência garantidora do legislador ordinário, e como assevera Lopes Jr. (2005, p. 245), “a confusão terminológica (falar em processo administrativo quando deveria ser procedimento) não pode servir de obstáculo para sua aplicação no inquérito policial” (grifo nosso).
Isto porque através de uma análise do código de processo penal, observa-se uma falta de método na intitulação “dos processos em espécie”, “do processo comum”, entre outros. Onde na verdade o termo mais adequado seria “dos procedimentos em espécie”, “do procedimento comum” (NUCCI, 2007).
No mesmo sentido lecionam Lauria e Tucci e Cruz e Tucci (2002 apud LOPES JR, 2005, p.245): “[…] de modo também induvidoso, reafirmou os regramentos do contraditório e da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, estendendo sua incidência, expressamente, aos procedimentos administrativos… ora, assim sendo, se o próprio legislador nacional entende ser possível a utilização do vocábulo processo para designar procedimento, nele se encarta, à evidência, a noção de qualquer procedimento administrativo e, consequentemente, a de procedimento administrativo-persecutório de instrução provisória, destinado a preparar a ação penal, que é o inquérito policial.”
Outro fundamento analisado é o aludido no termo “acusados em geral” referido na Constituição. Pelo fato da não previsão do termo “indiciados”, não se pode obstar sua aplicação no inquérito policial, já que o indiciamento está implícito no termo “acusados em geral”, que é muito mais amplo e protecionista do que simplesmente “acusados”, que levaria a uma interpretação formal.
O indiciamento é uma imputação em sentido amplo, pois ser indiciado é sofrer uma imputação determinada, já que uma notitia criminis que imputa um fato criminoso a certa pessoa, pressupõe uma agressão à mesma e gerará no âmbito processual uma resistência.
Corroborando o conceito de acusados em geral, no sentido amplo do termo, é o magistério de José Torres Pereira Júnior (1991 apud GRINOVER, 2007, p. 312): “O conceito dos “acusados em geral”, aludida pela constituição (art. 5º, LV), não está associado ao processo e é referido de modo indeterminado. O que se quer é por o cidadão a recato também quando defrontado com o arbítrio de outras instâncias de poder, cujos atos sejam dotados de cogência suficiente para submetê-los unilateralmente a seus desígnios”.
Quando se defende o contraditório na fase da investigação preliminar, o objetivo, no primeiro momento, é a informação, que é uma de suas faces, pois, em sentido estrito, o contraditório é afastado da fase pré-processual, devido a não existência da dialética e da relação jurídico-processual. Todavia, é através desse direito à informação que será exercida a defesa.
Na investigação preliminar, o que se exige é o dito contraditório mínimo, garantidor da comunicação e participação do indiciado em certos atos, já que, nesse momento, um contraditório pleno seria um contra senso ao fim investigatório. Sua efetividade seria resguardada quando o segredo da investigação não se justificasse. Desse modo, Lopes Jr. (2006, p. 294) defende como garantias mínimas, além daquelas previstas na Constituição Federal: “a) comunicação imediata da existência de uma imputação […] b) Direito de silêncio e de solicitar diligências […] c) Duração de segredo interno […] d) Produção antecipada de provas e provas técnicas irrepetíveis […] e) Fase intermediária contraditória […] f) Valor probatório limitado dos atos de investigação e exclusão de peças […].”
Convalidando o que foi exposto, defendendo, também, um contraditório mínimo, ou seja, utilizado somente em determinados momentos possíveis, destaca-se as ideias de Choukr (2006, p. 11): “Colocada a proposta nesses termos, a inserção das garantias constitucionais desde logo na investigação criminal, naquilo que for possível e adequado à sua natureza e finalidade, aparece como um “passo adiante” na construção de um processo penal garantidor, entendida esta expressão como sendo o arcabouço instrumental penal uma forma básica de proteção da liberdade individual contra o arbítrio do Estado. Mais ainda, preconiza uma nova postura ética do Estado para com o indivíduo submetido à constrição da liberdade, elevando sua condição de pessoa humana independentemente do feito cometido e colocando pautas mínimas de materialização dessa nova “condição humana” no processo.” (grifo nosso)
Por esses fundamentos, o art. 5º, LV, da Constituição Pátria deve ser interpretado extensivamente, fazendo com que o código de processo penal sofra uma adequação em relação à mesma. Tornando, então, efetiva a utilização do contraditório e do direito de defesa no inquérito policial, todavia com um alcance restritivo comparado ao da fase processual, respeitando as nuanças da referida fase investigatória (LOPES JR, 2006).
2.2 O inquérito policial com natureza jurídica de processo administrativo
Uma outra forma de garantir a efetividade do contraditório no inquérito policial é, justamente, a concepção da natureza jurídica do mesmo como processo administrativo, tornando-o então, parte de uma das modalidades processuais previstas no art. 5º, LV, da Constituição Federal, afastando, sobremaneira, seu enquadramento como simples procedimento.
Para fundamentar essa posição, faz-se necessário o apontamento de alguns conceitos acerca do processo.
O primeiro ponto a ser observado é o conceito de processo como procedimento em contraditório e a possibilidade de existência de processo fora do judiciário, que pode ser concluído através do magistério de Dinamarco (2000 apud KLIPPEL, 2005, p. 233): “O conceito moderno de processo, envolvendo o procedimento e o contraditório (processo é todo procedimento realizado em contraditório), não é privativo do sistema jurisdicional do exercício do poder; daí, as diversas espécies de processos: a) estatal, que é jurisdicional (civil, penal, trabalhista) ou não-jurisdicional […].”
Conforme explicita Gaio Jr. (2007, p.73), “processo é a síntese (somatório) dos atos que lhe dão corpo e da relação entre eles (procedimento), juntamente com as relações jurídicas entre os seus sujeitos (relação jurídica processual)”.
Diante de tal conceito e pela análise de Dinamarco (2000 apud KLIPPEL, 2005), o procedimento e a relação jurídica processual são unidos para a formação do processo e não existem independentemente deste, tornando impossível a existência, pura e simples, tanto de procedimento quanto de relação jurídica processual, ou seja, não existe procedimento isolado que não esteja vinculado a um processo.
Aludidas posições contribuem, significativamente, para o afastamento do entendimento da investigação preliminar como procedimento, já que nela existe o somatório de procedimentos, previstos no código de processo penal, conjuntamente com uma relação processual, ou seja, “um liame gerador do agir em todo e qualquer processo que se formate para o desempenho ou desenrolar de atividades legislativas e administrativas do Estado” (KLIPPEL, 2005, p. 236).
Tal entendimento corrobora com o conceito de Klippel (2005, p.236) a respeito do processo, dizendo que nele “há partes e há bens juridicamente tutelados, que se tencionam e digladiam, em termos anteriormente prescritos, no intuito de finalizar a atividade para o qual foram gerados”, ficando nítida a natureza jurídica de processo da perquirição penal.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, é o que leciona Marcello Caetano (1994 apud KLIPPEL, 2005, p. 236): “Já sabemos que a Administração Pública é o conjunto de pessoas colectivas que actuam através de órgãos aos quais pertence exprimir uma vontade funcional. Se os órgãos cujo funcionamento e actuação são disciplinados, com vista à formação ou à execução dessa vontade funcional, são órgãos da Administração, temos o processo administrativo; se os Tribunais incluídos na esfera própria do Poder Judicial, temos o processo judicial; se são órgãos com competência legislativa, temos o processo legislativo.”
Diante do conceito de Fazzalari (2006, p. 118), também se torna cristalino o entendimento da investigação preliminar como processo, já que o mesmo possui procedimento próprio, participantes cujos efeitos do ato final recaem diretamente sobre eles, ou seja, quando indiciados poderão sofrer uma demanda de natureza penal, capaz de destruir seu patrimônio moral, além do contraditório, que pode ser evidenciado, v.g., na reconstituição do crime, onde o indiciado terá oportunidade de dizer os fatos que realmente ocorreram e o modo como foram praticados. Assim conceitua, o referido autor: “O processo é um procedimento do qual participam (são habilitados a participar) aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos: em contraditório, e de modo que o autor do ato não possa obliterar as suas atividades.”
Um outro fundamento é o entendimento de que toda atividade estatal é realizada através de um processo e elas estão sempre vinculadas a este. Isto posto, o inquérito policial, como se trata de atividade estatal deve ser entendido como processo, restando assegurada as garantias processuais constitucionais a ele inerentes. Nesse sentido, são os dizeres de KLIPPEL (2005, p.237): “Nestes termos, todo e qualquer processo, entendido como método de desenvolvimento de uma atividade estatal, tem um substrato que liga aqueles atos que exteriorizam o processo, substrato esse que se identifica na relação que se trava entre o Estado, como necessário partícipe de qualquer relação pública e os particulares que com ele se relacionem na situação concreta, seja pessoalmente, seja por meio de representantes.”
Duas são as características que se sobressaem no tocante ao conceito de processo e corroboram os já analisados, são elas, o caráter organizacional e a procura por um fim, demonstrando a existência de uma relação jurídica (KLIPPEL, 2005, p.236).
Grinover (2007, p.323) traz a lume que: “Se é verdade que as garantias do contraditório e da ampla defesa (integrantes do devido processo legal) aplicam-se a todas as formas de exercício de poder, da qual possam resultar decisões passíveis de interferir na esfera jurídica ou patrimonial de determinadas pessoas, então é certo que o impedimento a que se aludiu no item imediatamente precedente não deve se limitar à prova ilicitamente produzida no âmbito judicial. Vale dizer: no exercício de poder – no âmbito estatal e no dos demais pólos existentes na sociedade – há que se exigir, se não imparcialidade, quando menos o atributo da impessoalidade, para que o resultado da atividade estatal não acabe resultando em desvio de poder e de finalidade.”
Ora, por todo o exposto, observa-se mais um fundamento de efetividade do contraditório na perquirição penal, qual seja, o de utilizar tal garantia em qualquer forma de poder que interfira na esfera jurídica de determinada pessoa, justamente por ser uma forma de manifestação do poder estatal através da autoridade policial e o indiciamento tendendo a afastar diversas garantias e direitos dos sujeitos envolvidos, agindo diretamente em suas esferas jurídicas.
2.3 Aceitação do contraditório na investigação criminal: análise jurisprudencial do STF
Através da análise jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, e pelas próprias palavras do Relator do HC 92.599-5/BA, Ministro Gilmar Mendes, no inteiro teor do acórdão, fica evidente que a jurisprudência dessa Suprema Corte tem caminhado com o intuito de garantir algum direito de defesa e o contraditório na fase pré-processual: “Habeas Corpus. 1. "Operação Navalha". Inquérito no 544/BA, do Superior Tribunal de Justiça. 2. Alegação de indispensabilidade da juntada de laudo pericial encomendado e de cópia de reportagem. 3. A defesa não reinvindica a produção de prova extemporânea ou providência que implique tumulto processual, mas apenas a juntada de elementos que entende pertinentes à elucidação dos fatos e ao convencimento do Ministério Público. 4. Ausência de razão jurídica plausível para que a Corte Especial do STJ indefira pedido de juntada do laudo pericial já produzido pela defesa do paciente. 5. Ordem deferida para, mantidos os efeitos da medida liminar, determinar a juntada dos expedientes 00127270/2007 e 00126577/2007 aos autos do Inquérito no 544BA, em trâmite perante o STJ NECESSIDADE, PROTEÇÃO, DIREITO CONSTITUCIONAL DE DEFESA, INVESTIGADO, INDICIADO, GARANTIA, REGULARIDADE, APURAÇÃO, FATO, DOCUMENTO, OBJETIVO, DESENVOLVIMENTO, AÇÃOPENAL. EXISTÊNCIA, TENDÊNCIA INTERPRETATIVA, JURISPRUDÊNCIA, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, GARANTIA, AMPLA DEFESA, CONTRADITÓRIO, DEVIDO PROCESSO LEGAL, ÂMBITO, INVESTIGAÇÃO CRIMINAL, INQUÉRITO POLICIAL.” (STF – HC 92599/BA – 2ª Turma – Rel. Min. Gilmar Mendes – DJe 074 – 25,04.2008).
Justificando o referido acórdão, é imperiosa a colocação de excerto do acórdão onde figurou como relator o Ministro Gilmar Mendes, trazendo significantes argumentos para a efetiva utilização do contraditório no inquérito policial: “No que concerne à plausibilidade jurídica do pedido (fumus boni iuris), a impetração sustenta: “ao requerer a juntada do laudo pericial ao inquérito, objetivava o Paciente subsidiar o próprio convencimento do Ministério Público que, diante de tais provas, pode, até mesmo, deixar de oferecer denúncia contra si. […] Assim, em que pese possuir o inquérito característica inquisitorial, o Acusado pode, efetivamente, requerer diligências ou mesmo juntar provas a este. […] Assim, não resta a menor dúvida que, em pese a natureza inquisitorial do caderno investigatório, o Indiciado tem direito de nele se manifestar, requerendo providências e juntando documentos, como no caso presente de inegável pertinência. É que os documentos cuja juntada foi requerida pelo Paciente demonstram, de maneira clara, não serem verdadeiras as suposições extraídas do inquérito pela Polícia Federal e reproduzidas pelo Ministério Público em sua manifestação anterior a ordem de prisão de todos os envolvidos. O indeferimento de tais medidas, portanto, caracteriza flagrante coação ilegal que atinge o direito de ir e vir do Paciente, já que o sujeita a ser denunciado, em decorrência da mutilação dos dados informativos constantes do inquérito.”
Diante da interpretação do RE, n. 201.819-8, vislumbra-se essa forte tendência do Supremo Tribunal Federal, na atual conjuntura, em um Estado de Direito, em atuar conforme o devido processo legal, respeitando os direitos fundamentais, até mesmo, nas relações privadas, assegurando assim, a ampla defesa e o contraditório (GAIO JÚNIOR, 2007): “SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTERPÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal.” (STF – RE 201.819-8/RJ – 2ª Turma – Rel. Gilmar Mendes – DJ 27.10.2006)
Diante do aludido acórdão, resta necessário relatar a interpretação de Gaio Júnior (2007, p. 72): “Em síntese, portanto, ainda que as relações jurídicas que se relacionam em processos administrativos, o direito das associações privadas não é absoluto e comporta restrições, que dão lugar ao prestígio dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal. No caso concreto, decidiu-se pela não concessão de recurso à União Brasileira de Compositores (UBC) que exclui um de seus sócios do quadro da entidade sem o amplo direito à defesa. A ideia do processo como entidade democrática e instrumento de perquirição pela busca do justo, deve refletir como fundamento principal, seja em quaisquer ambientes em que busque através do mesmo, a solução de pretensões relativas a direitos resistidos ou não.”
Perante o referido julgado e a interpretação de Gaio Júnior, não se pode imaginar a não presença do contraditório na perquirição penal, sendo que o Supremo Tribunal Federal, até mesmo, tem aceitado a efetividade de referido princípio nas relações privadas, onde se encontra ausente a figura do Estado, quiçá na investigação preliminar, onde a presença do Estado é intensa e inúmeros direitos estão sendo assistidos.
O assunto, de tanta importância, foi tema de Súmula Vinculante 14: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”
Com essa Súmula Vinculante, o STF adere à utilização do contraditório mínimo, defendido por Aury Lopes Júnior.
Conclusão:
Perante todo o exposto nesse breve estudo, há de se observar que na atual conjuntura, na incessante busca pelo Estado Democrático de Direito, faz-se imperiosa a extração, do púbere texto constitucional, do máximo que ele possa oferecer, concedendo ao processo penal uma maior efetividade, inclusive restringindo o poder punitivo estatal.
Torna-se altamente atraente a ideia de implantação de princípios e garantias constitucionais, como o contraditório, desde o momento em que o Estado “ergue a mão” de seu poder persecutório, fazendo com que haja um contrapeso ao referido poder, minimizando, assim, o arbítrio Estatal e o cerceamento injusto da liberdade.
Para tanto, é inimaginável a anosa consideração inquisitorial do inquérito policial, momento em que a vantagem processual obtida pelo parquet torna-se desproporcional. Todavia, o que deve buscar-se é um contemporâneo entendimento flexível e garantista do inquérito, por uma ampla utilização dos princípios e garantias constitucionais, principalmente do contraditório, justamente pela sua natureza jurídica processual ou até mesmo por uma interpretação extensiva do art. 5º, LV, da Constituição Pátria.
A partir do momento da efetiva utilização de tais princípios e garantias, ocorrerá uma valorização do ser humano ora investigado, tratando-o como sujeito da relação e não como mero objeto de investigação, privado dos direitos e garantias constitucionais. Já que é por meio da perquirição penal que a Polícia Judiciária aclara os delitos praticados e, com o respeito aos princípios processuais constitucionais, eivará todos seus atos investigatórios de ampla confiabilidade.
Com tudo isso, a busca pelo due process of law restará bem sucedida, e abalizará
o processo penal, garantindo, assim, o Estado Democrático de Direito. Abrandando, ao extremo, o risco de falha e o agonia injusta, derivados do referido processo.
Assistente Judiciário assessoria jurídica Tribunal de Justiça de São Paulo, Especilista em Ciências Penais – Universidade Federal de Juiz de Fora
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