NUNES, Yuri A.;
LOPES, Cássia S.
Resumo: O presente estudo analisa o processo de expansão penal a partir da persistência da crença na função protetiva do Direito Penal. Após as considerações introdutórias a respeito do atual processo de expansão punitiva, passa a ser abordada a crença na capacidade protetiva do poder punitivo que determina a finalidade do Direito Penal para diversos penalistas. Em seguida, são analisadas pesquisas criminológicas que contestam as premissas dessa função oficial. Por fim, é diagnosticada a blindagem epistemológica que impede a incorporação e o diálogo com as críticas deslegitimadoras e, diante disso, a título conclusivo, ressalta-se a necessidade de abertura como meio de oxigenar as possibilidades de tratamento dos problemas sociais.
Palavras-chave: expansão penal; função protetiva; enclausuramento epistemológico; abertura interdisciplinar.
Abstract: the present study analyses the process of criminal expansion as seen from the persistence of the belief in the protective function of Criminal Law. After the introductory considerations regarding the current punitive expansion process, the study approaches the belief in the punitive power’s protective capacities which determines the Criminal Law finalities to many criminal attorneys. Then, the criminological researches that contests the premises of this official function are analyzed. At last, the epistemological shield that prevents the incorporation and the dialogue with delegitimizing criticism is diagnosed and, after that, to conclude, the need to create an opening as a mean to bring life to treatments for social problems will be highlighted.
Keywords: criminal expansion; protective function; epistemological encasement; interdisciplinary opening.
Sumário: Introdução. 1. As funções do Direito Penal perante seu discurso oficial. 2. O diagnóstico da incapacidade protetiva. 3. A necessária superação do fechamento e da compartimentalização. Considerações finais. Referências.
Introdução
Prevalece na doutrina brasileira a concepção de que o Direito Penal teria a finalidade de proteger os bens jurídicos mais importantes de uma sociedade contra as maiores lesões, sendo indevida a sua incidência quando verificada a aptidão de outra área do direito para atender à necessidade de tutela, justamente em razão do princípio da intervenção mínima.
Ocorre que essa concepção do Direito Penal como protetor dos bens jurídicos mais importantes, quando desacompanhada da necessária revisão de suas restrições, limitações e desdobramentos, pode colaborar justamente para ampliar sua incidência de forma prioritária diante de novas demandas sociais, contribuindo para um processo de expansão punitiva, ao mesmo tempo em que reduz a análise de outros mecanismos e estratégias.[1] Ressalta-se ainda que essa tendência é ampliada na atual sociedade do risco, diante do caráter imprevisível e catastrófico dos perigos da contemporaneidade.
Assim, a crença na função protetiva do Direito Penal aparece como um dos elementos relacionados com a sua utilização prioritária perante novas questões sociais, razão pela qual se torna pertinente repensar a sua atuação, ampliando espaços para políticas criminais mais cautelosas e conscientes. A partir deste horizonte, a presente pesquisa analisará primeiramente, as funções oficiais do Direito Penal, passando, em um segundo momento, à análise dos estudos que abordam as suas dificuldades em cumprir com essas mesmas funções. Por fim, é abordado seu caráter fechado e compartimentado, que funciona como obstáculo aos discursos externos, ressaltando a necessidade de abertura e construção de um saber que dialogue com outras áreas do conhecimento e, consequentemente, com a própria complexidade dos fenômenos e dos problemas que se propõe a abordar.
Bittencourt aponta que o Direito Penal “apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes”.[2] A sua finalidade oficial, para grande parte dos penalistas, está relacionada a um projeto de proteção dos valores essenciais da sociedade através de um mecanismo de punição que assume promessas preventivas, repressivas e corretivas.
Conforme o discurso oficial a respeito da atuação do Direito Penal, essa intervenção do poder punitivo ocorre perante lesões que alcançam grandes proporções, e os demais meios de controle mostram-se insuficientes para manter a ordem e o convívio social. Esses interesses são descritos como bens jurídicos, de forma que a função do Direito Penal seria justamente a proteção dos bens jurídicos fundamentais diante dos maiores danos. Bitencourt ressalta que:
O bem jurídico, no entanto, não pode identificar-se simplesmente com a ratio legis, mas deve possuir um sentido social próprio, anterior à norma penal e em si mesmo decidido, caso contrário, não seria capaz de servir a sua função sistemática, de parâmetro e limite do preceito penal e de contrapartida das causas de justificação na hipótese de conflito de valorações.[3]
Assim, a limitação de determinadas condutas e a criminalização dos comportamentos somente se justificariam enquanto os outros ramos do direito fossem insuficientes para exercer suas tutelas, recorrendo-se ao Direito Penal em caráter excepcional, dado que ele seria a última alternativa, a “ultima ratio”.
Considera-se como “ultima ratio”, ou também chamado de Princípio da Intervenção Mínima, aquele princípio que orienta e limita o poder punitivo do Estado, aconselhando que a criminalização de uma conduta só deve ocorrer se representar meio necessário e imprescindível para a devida proteção de determinado bem jurídico. Ou seja, para que não ocorra uma indevida ampliação do Direito Penal, antes de se recorrer a este ramo do direito é preciso verificar a possibilidade de utilização de mecanismos jurídicos extra-penais de controle social. E assim, tão somente quando esses meios mostrarem-se insuficientes, é que o Direito Penal deveria ser utilizado.
Ocorre que, diante da crença em sua capacidade de proteger os maiores valores da sociedade, essa perspectiva cautelosa corre o risco ser ofuscada, permitindo que o Direito Penal seja muitas vezes considerado como um mecanismo prioritário, processo que pode impulsionar a expansão punitiva. Apesar de não corresponder a diversos aspectos da atuação concreta do poder punitivo, a crença na sua ampla capacidade de proteção dos bens jurídicos persiste, muitas vezes sem a necessária revisão, fato que obscurece ainda mais o problemático horizonte traçado para a política criminal atual, dado que o modelo punitivo prepondera nos modos de controle social, deixando de lado os demais modelos, que – por serem mais flexíveis – poderiam encontrar melhores soluções aos conflitos. [4]
Dito de outra forma, uma visão mais cautelosa sobre a utilização do Direito Penal pode ser ampliada com a análise concreta de seus limites e desdobramentos. Assim, importante destacar que, enquanto o discurso oficial sustenta a função protetiva do Direito Penal, pesquisas produzidas pela criminologia indicam suas limitações.
A criminologia já produziu diversas pesquisas que apontam as limitações do Direito Penal diante da função oficial de proteger os bens jurídicos mais valiosos da sociedade contra as maiores e mais perigosas ameaças. Essas pesquisas revelam a fragilidade das funções oficiais atribuídas ao poder punitivo, ao mesmo tempo em que denunciam um cenário de desigualdade nos processos de criminalização.
Entre elas está a constatação das cifras ocultas de criminalidade, ou seja, dos fatos criminosos que efetivamente ocorrem no corpo social mas não são apurados ou mesmo conhecidos pelas agências de controle. A constatação dessa cifra oculta permite importantes reflexões a respeito do ideal de eficiência do Direito Penal.
Nesse mesmo sentido, Hessemer e Muñoz Conde destacam que as pesquisas que investigaram essa questão sugerem que: a criminalidade real é aproximadamente o dobro daquela registrada; a cifra oculta diverge conforme o tipo de delito; e a possibilidade de permanecer na cifra oculta depende da classe social a que pertence o delinquente.[5] Ademais, ressaltam ainda que nem todos os delitos cometidos chegam a ser conhecidos; dos conhecidos nem todos são denunciados; entre aqueles denunciados apenas alguns chegam a ser esclarecidos; e entre aqueles esclarecidos nem todos chegam a condenação.[6]
Assim, diante da existência de inúmeros delitos que nem mesmo chegam a ser apurados pelas agências de controle (sem falar naqueles que são ignorados ou não solucionados por elas), a cifra oculta demonstra que, apesar de o Direito Penal se propor a proteger os bens jurídicos mais valiosos da sociedade, sua atuação no âmbito social pode se distanciar dessa atribuição em determinados casos.
Outra importante perspectiva que se junta à ideia de cifra oculta é aquela que decorre do diagnóstico da seletividade penal, evidenciada pelas pesquisas relacionadas à teoria do etiquetamento, como aquela desenvolvida por Howard Becker. Além de romper com inclinação etiológica da criminologia ao demonstrar que o rótulo de desviante é uma categoria interativamente criada e atribuída a pessoas específicas, Becker demonstrou que a atividade do próprio impositor da regra (que é criada pelo esforço de um empreendedor moral) parte de critérios seletivos: este impositor deve decidir “que pessoas, cometendo quais atos, devem ser rotuladas como criminosos”.[7]
Diante dessas pesquisas, percebe-se que a não apuração de fatos criminosos é uma realidade e, além disso, o processo de criminalização está sujeito à seletividade. Nesse sentido, Salo aponta que:
A cifra oculta da criminalidade corresponderia, pois, à lacuna existente entre a totalidade dos eventos criminalizados ocorridos em determinado tempo e local (criminalidade real) e as condutas que efetivamente são tratadas como delito pelos aparelhos de persecução criminal (criminalidade registrada). E os fatores explicativos da taxa de persecução penal são inúmeros e dos mais distintos, incluindo desde sua incapacidade operativa ao interesse das pessoas em comunicar crimes dos quais foram vítimas ou testemunhas. Como variável, obtém-se o diagnóstico da baixa capacidade de o sistema penal oferecer resposta adequada aos conflitos que pretende solucionar, visto que sua atuação é subsidiária, localizada e, não esporadicamente, filtrada de forma arbitrária e seletiva pelas agências policiais (repressivas, preventivas ou investigáveis).[8]
Logo, observa-se que a função protetiva do Direito Penal apresenta incompatibilidades com a sua atuação concreta no meio social, uma vez que as limitações e inclinações das agências de controle revelam sua dificuldade para lidar com o fenômeno do desvio de forma apta a cumprir com as promessas de proteção relacionadas com as suas funções oficiais. Dito de outra forma, a existência da cifra oculta e o diagnóstico da seletividade penal representam significativos prejuízos a ideia de um Direito Penal capaz de exercer de forma ampla e eficiente a tutela dos bens jurídicos.
Por outro lado, além da denúncia relativa à desigualdade dos processos de criminalização, verifica-se a existência de críticas que recaem especificamente sobre a suposta capacidade preventiva da pena, as quais proporcionam importantes reflexões a respeito do papel do Direito Penal.
Como é sabido, o Estado faz uso da pena na sociedade como forma de controle social, vendo no Direito Penal uma maneira de regulamentar a convivência dos indivíduos na sociedade. Não obstante, diversas finalidades e fundamentos são atribuídos à pena, variando conforme os meios e objetivos da intervenção do Direito Penal em cada sociedade. No contexto pátrio, as perspectivas a respeito das funções da pena incorporam, para diversos penalistas, expectativas/funções de prevenção. Assim, a título de contextualização, passa-se agora a uma breve exposição das teorias da pena que se estruturam a partir de sua suposta capacidade preventiva, ressaltando algumas das críticas existentes.
Nas teorias preventivas o objetivo da pena seria impedir novos crimes. Hessemer e Muñoz Conde ressaltam que são “aquelas teorias que atribuem à pena a capacidade e a missão de evitar que, no futuro, se cometam delitos”.[9] Elas são tradicionalmente divididas em geral e a especial, as quais são subdivididas em positiva e negativa.
A teoria da prevenção geral negativa elenca como objetivo da pena a intimidação da coletividade. Mais importante que a pena é a ameaça da pena, ou seja, a possibilidade de ser punido deve servir como desestímulo para o criminoso. Contudo, estudiosos contestam essa teoria, destacando que não há clara demonstração empírica de sua eficácia. Além disso, ela tem como premissa um indivíduo extremamente racional, que pesa os custos e benefícios antes de agir, ofuscando a complexa subjetividade que interfere no agir humano. A respeito dessa concepção de prevenção geral através da coação psicológica, ressaltam-se as críticas de Hessemer e Muñoz Conde, os quais apontam que:
Do ponto de vista empírico, está mais do que demonstrado que as reformas penais que continuamente são produzidas nas cominações penais aplicadas às formas mais graves de criminalidade (terrorismo, narcotráfico em grande escala), aumentando a gravidade das penas, não produzem o esperado efeito intimidador nos que intervêm nestes fatos. E de um modo geral está comprovado que os cidadãos, geralmente, só conhecem as cominações penais através de suas formulações em normas sociais. É bastante improvável, portanto, que em amplos setores da criminalidade e tendo em vista os conhecimentos criminológicos existentes sobre o efeito neutralizador das normas sociais emanadas de algumas subculturas nos delinquentes potenciais, as normas penais motivem os cidadãos para atuar conforme o Direito, inclusive ainda que as conheçam. Do ponto de vista empírico, somente de forma simplista pode-se afirmar que a ameaça de uma pena e sua aplicação são meios idôneos para motivar o comportamento dos cidadãos.[10]
Já em sua perspectiva positiva, a teoria da prevenção geral trabalha com a ideia de que o papel da pena seria o de reforçar valores sociais que são trabalhados simultaneamente por outros mecanismos de controle. No entanto, autores entendem que esse objetivo da pena é prejudicado quando se verifica “um forte distanciamento, ou até oposição, entre normas penais, que preveem a cominação e a execução da pena para o caso do cometimento de um delito, e as normas emanadas de outras instâncias de controle social (familiares, profissionais, religiosas, ideológicas, políticas, culturais, econômicas, etc)”[11].
Em outro sentido, as teorias da prevenção especial pretendem atingir especificamente a pessoa do condenado. Nesse sentido, a teoria da prevenção especial negativa propõe a neutralização do desviante. Esta teoria almeja a incapacitação do condenado diante de um provável “prognóstico de periculosidade criminal”,[12] ou seja, em razão da probabilidade de que ele volte a delinquir. No entanto, além de fundamentar uma política criminal incompatível com postulados do Estado Democrático de Direito, a existência da cifra oculta da criminalidade e o diagnóstico da seletividade penal (como anteriormente abordados) fragilizam significativamente a crença na capacidade protetiva das penas neutralizadoras.
Por fim, ressalta-se a teoria da prevenção especial positiva, a qual elege como objetivo da pena a reintegração social do condenado. A principal perspectiva dessa teoria gira em torno da ressocialização do desviante, evitando que, após o cumprimento da pena, ele volte a delinquir. Além da dificuldade em delimitar a meta dessa ressocialização, Hessemer e Muñoz Conde questionam sua eficácia diante das elevadas taxas de reincidência, as quais demonstram empiricamente a incapacidade da pena em cumprir com essa missão de reinserção social.[13] Ademais, os autores ressaltam que as péssimas condições de vida no cárcere não são compatíveis com um projeto ressocializador do condenado, e “por isso, não é estranho que, ao final de sua estada no cárcere, saia dela muita vezes pior do que quando entrou, dessocializado e estigmatizado, incapaz de levar em liberdade uma vida sem delitos”.[14]
Em suma, as perspectivas criminológicas analisadas revelam as limitações do Direito Penal quando pretende proteger os principais bens jurídicos da sociedade, colocando em evidência a desigualdade dos processos de criminalização e questionando a aptidão preventiva da pena. Mas apesar desse diagnóstico a respeito das carências de sua função protetiva, o Direito Penal muitas vezes é considerado com prioridade diante de novas demandas sociais, com base capacidades que os estudos criminológicos aqui referidos fragilizam. Ademais, a persistência na sua capacidade de tutelar os maiores valores sociais representa compreensão comum na produção científica e na crença de diversos penalistas, o que indica a existência de uma espécie de fechamento epistemológico, impedindo que essa função oficial venha a dialogar com os estudos oriundos de outras áreas do saber. Logo, a reivindicação prioritária do Direito Penal (baseada na sua função protetiva) guarda, em certa medida, relação com um fechamento teórico, com a resistência a estudos externos, o que impõe uma reflexão acerca de sua estrutura compartimentada.
Salo de Carvalho ressalta que a análise do estatuto científico do direito e das ciências criminais demonstra o caráter fechado das disciplinas dogmáticas, sendo assim autorreferentes, ou seja, “produzem conhecimento e operam voltadas para si mesmas, dialogando com espelhos”.[15] Segundo o autor, essa estrutura deriva do processo de fragmentação dos fenômenos crime e criminalização que se deu no século XX, “separando em ciências dogmáticas autônomas o direito penal e o processo penal e deslocando a criminologia e a política criminal ao campo das ciências médicas (criminologia etiológica) ou sociais (criminologia crítica e política criminal),”.[16]
Conforme as lições de Edgar Morin, essa maneira compartimentada de compreender o mundo e construir o conhecimento representa elemento típico do paradigma simplificador, termo utilizado pelo autor para ilustrar a forma desajustada de aplicação determinados preceitos herdados da ciência clássica.
Morin entende que os postulados desse paradigma podem ser encontrados na obra de Descartes,[17] ressaltando que o movimento de separação/redução esteve presente em seus princípios do método, mais especificamente no segundo e no terceiro, [18] sendo estes, respectivamente: dividir cada uma das dificuldades examinadas em quantas parcelas fosse possível e necessário para melhor resolvê-las; e conduzir por ordem os pensamentos, começando pelos objetos mais simples e fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus até o conhecimento dos mais compostos.[19] Morin entende que “no segundo princípio encontra-se, potencialmente, o princípio de separação, e no terceiro, o princípio da redução; esses princípios vão reger a consciência científica”.[20]
É evidente que as operações de separação e redução foram determinantes para diversos avanços e descobertas científicas, mas a sua aplicação desajustada em determinados campos do saber (como o Direito Penal) pode gerar efeitos simplificadores na produção do conhecimento, especialmente diante de objetos que não se mostram compatíveis com seus postulados.
No âmbito das ciências criminais, esse movimento de redução e disjunção fomentou não apenas o isolamento do objeto em relação a elementos externos, mas também a compartimentalização das disciplinas que, ao se ocuparem separadamente de diferentes objetos, acabam construindo uma visão unidimensional dos fenômenos estudados, ao mesmo tempo em que fracionam os problemas que se propõem a compreender. O que resulta dessa estrutura de pensamento é a formação de saberes de baixa comunicação entre si, uma vez que, segundo Morin:
[…] a instituição disciplinar acarreta, ao mesmo tempo, um perigo de hiperespecialização do pesquisador e um risco de “coisificação” do objeto estudado, do qual se corre o risco de esquecer que é destacado ou construído. O objeto da disciplina será percebido, então, como uma coisa auto-suficiente; as ligações e solidariedades desse objeto com outros objetos estudados por outras disciplinas serão negligenciadas, assim como as ligações e solidariedades com o universo do qual ele faz parte. A fronteira disciplinar, sua linguagem e seus conceitos próprios vão isolar a disciplina em relação às outras e em relação aos problemas que se sobrepõem às disciplinas. A mentalidade hiperdisciplinar vai tornar-se uma mentalidade de proprietário que proíbe qualquer incursão estranha em sua parcela de saber.[21]
Assim, observa-se que o fechamento disciplinar potencializa a formação de saberes autorreferenciais, ou seja, incapazes de dialogar com as outras áreas do conhecimento e que, dessa forma, deixam de considerar elementos importantes para a compreensão do objeto estudado. E “cada vez mais as disciplinas se fecham e não se comunicam umas com as outras. Os fenômenos são cada vez mais fragmentados, e não se consegue conceber a sua unidade”.[22] Nesse sentido, pertinente destacar ainda a crítica feita por Edgar Morin, no sentido de que:
[…] os desenvolvimentos disciplinares não só trouxeram as vantagens da divisão do trabalho, mas também os inconvenientes da superespecialização, do confinamento e do despedaçamento do saber. Não só produziram o conhecimento e a elucidação, mas também a ignorância e a cegueira.[23]
A aplicação indevida das ideias de disjunção e redução contribui para a formação de disciplinas penais fechadas e compartimentadas, incapazes de dialogar com as esferas da realidade – operadas por outros campos do conhecimento – que não cabem em seu recorte. A relativa incompreensão produzida por este pensamento reflete na sua incapacidade para tratar dos problemas sociais que pretende enfrentar, tendo em vista que a inteligência que só sabe separar “atrofia as possibilidades de compreensão e reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo”.[24] Ademais, como bem adverte Morin, “quanto menos um pensamento for mutilador, menos ele mutilara humanos. […] Milhões de seres sofrem o resultado dos efeitos do pensamento fragmentado e unidimensional”.[25]
Portanto, além da necessidade de repensar a aptidão do Direito Penal para funcionar como um instrumento de tutela de bens jurídicos, reflexão já tão abordada pela criminologia, mostra-se imprescindível que os estudos que apontam suas limitações consigam dialogar com o saber penal. A comunicação entre os estudos criminológicos e o Direito Penal poderá permitir a construção de saberes mais capacitados para dialogar com o complexo fenômeno social do desvio, resultando em políticas criminais mais conscientes e responsáveis a respeito de seus limites e desdobramentos. Essa conscientização representa ponto de grande importância para uma revisão do processo de expansão punitiva, bem como para uma visão mais contida e cautelosa a respeito do Direito Penal, abrindo espaços inclusive para o eventual desenvolvimento de outras estratégias para lidar com os problemas sociais emergentes.
Considerações Finais
Assim, a presente pesquisa abordou o fenômeno da expansão punitiva a partir do fechamento e da compartimentalização do Direito Penal. Observou-se primeiramente que, apesar do discurso oficial ressaltar sua função de proteção dos bens jurídicos mais importantes contra as mais graves lesões, a pesquisa criminológica diagnosticou um cenário em que o Direito Penal apresenta significativas dificuldades para realizar de forma eficiente e satisfatória esse objetivo.
Diante disso, foi ressaltado que a persistência da crença na função protetiva do Direito Penal – utilizada muitas vezes para justificar sua utilização prioritária diante de demandas sociais – não decorre propriamente da inexistência de estudos que fragilizem suas premissas, mas está relacionada, em certa medida, com o seu relativo fechamento diante de críticas externas.
Por fim, demonstrou-se a incapacidade desse conhecimento fragmentado para orientar a elaboração de políticas responsáveis e conscientes para tratar das novas demandas sociais, o que revela a necessidade de abertura interdisciplinar, como meio de ampliar a análise do fenômeno examinado, justamente a partir da integração de elementos estudados em outras áreas do conhecimento.
Essas lições, quando aplicadas ao Direito Penal, além de destacarem os riscos da incomunicabilidade disciplinar, contribuem para a construção de uma visão mais cautelosa a seu respeito. O reconhecimento de seus limites e desdobramentos concretos, a partir do diálogo com as pesquisas criminológicas e da consequente revisão de sua capacidade protetiva, representa uma perspectiva importante para uma política criminal mais contida e responsável, permitindo inclusive que, eventualmente, outras formas de resolução dos problemas sejam pensadas, refletidas e implementadas.
Referências:
BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de Sociologia do Desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, v. I. Ed. 16. São Paulo: Saraiva, 2011.
CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. Ed. 4. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011.
DESCARTES, René. Discurso do Método. Ed. 3. São Paulo: Martin Fontes, 2001.
HASSEMER, Winfried & MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. 18. Rio de Janeiro: Bertrant, 2010.
MORIN. Edgar. Ciência com Consciência. Ed. 13. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Ed. 5. Porto Alegre: Sulina, 2015.
ZAFFARONI, Raúl. Nilo Batista, Alejandro Alagia, Alejandro Slokar. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Ed. 3. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
[1] Nesse sentido, Salo de Carvalho aponta que, dado que o Direito Penal deve atuar de forma residual quando bens essenciais sofrem perigo ou ameaça de dano, surge uma indagação: “se cabe ao direito penal proteger os principais bens jurídicos da humanidade, como poderia eximir-se do enfrentamento de (possíveis) ações que colocam em risco a sua própria existência, que geram perigo ao seu futuro?”. CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. Ed. 4. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p.99.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, 1 / Cezar Roberto Bittencourt. – 16. ed. – São Paulo: Saraiva, 2011.p.32.
[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, 1 / Cezar Roberto Bittencourt. – 16. ed. – São Paulo: Saraiva, 2011. p. 36-37.
[4] Zaffaroni ressalta que “o modelo punitivo não é muito adequado para combinações com os demais modelos, ao passo que estes são mais flexíveis para serem combinados com vistas a solução de um único conflito. Por outro lado, o modelo punitivo é pouco apto a solucionar o conflito: quando prisoniza alguém não resolve o conflito, mas suspende, ou seja, deixa-o pendente no tempo, de vez que, por definição, exclui a vítima (ao contrário dos modelos reparados ou conciliador)”. ZAFFARONI, Raúl. Nilo Batista, Alejandro Alagia, Alejandro Slokar. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal.Ed. 3. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 87
[5] HASSEMER, Winfried & MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.98..
[6] HASSEMER, Winfried & MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.104.
[7] BECKER, Howard. Outsiders: Estudos de Sociologia do Desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 164.
[8] CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. Ed. 4. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p. 89.
[9][9] HASSEMER, Winfried & MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.170.
[10] HASSEMER, Winfried & MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.270-271.
[11] HASSEMER, Winfried & MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.271.
[12] HASSEMER, Winfried & MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.224.
[13] HASSEMER, Winfried & MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.184-185.
[14] HASSEMER, Winfried & MUÑOZ CONDE, Francisco. Introdução à criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.187.
[15] CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. Ed. 4. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p. 48.
[16] CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. Ed. 4. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p. 48.
[17] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Ed. 5. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 11.
[18] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. 18. Rio de Janeiro: Bertrant, 2010. p. 87.
[19]DESCARTES, René. Discurso do Método. Ed. 3. São Paulo: Martin Fontes, 2001. p. 23.
[20] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. 18. Rio de Janeiro: Bertrant, 2010. p. 87.
[21] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. 18. Rio de Janeiro: Bertrant, 2010. p. 106.
[22] MORIN. Edgar. Ciência com Consciência. Ed. 13. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p.135.
[23] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. 18. Rio de Janeiro: Bertrant, 2010. p. 15.
[24] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. 18. Rio de Janeiro: Bertrant, 2010. p. 14.
[25] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Ed. 5. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 83.
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