Gabriel Freire de Barros Vieira[1]
Bel. Thomas Victor Crisóstomo Greenhalgh[2]
Resumo: Este artigo tem por objetivo a análise e compreensão acerca do fomento do medo enquanto instrumento de controle social dos comuns pelas elites políticas do Brasil, especificamente em se tratando do controle do uso das armas de fogo. Para tanto, foi realizado um apanhado dos discursos dos membros das elites intelectual e econômica, componentes da elite política, em momentos distintos e distantes no tempo. Isto a fim de analisar, não só o fomento do medo, mas também sua evolução temporal no debate público, este especialmente dominado por uma elite com acesso a prestigiados locais de fala, ao passo que a voz dos comuns ecoa fracamente nos corredores do poder.
Palavras-chave: Medo. Armas de Fogo. Desarmamento. Controle Social
Abstract: This paper aims for the analysis and comprehension about the promotion of fear as an instrument of social control of the commoners by the Brazilian political elites, specifically when it comes to gun control. For such, speeches from the members of the intellectual and economic elites, components of the political elite, in distinct and distant moments within the public debate’s timeline evolution, specially owned by an elite with access to privileged exposure, but when it comes to the voices of the commons, theirs eco fades away in the halls of power.
Keywords: Fear. Fire arms. Disarmament. Social control.
Sumário: Introdução 1. O Impacto do Medo 1.1. Uma perspectiva histórico-legal 1.2. As elites e o medo do povo 1.3. A mácula do medo. Conclusão. Referências.
Introdução
Este artigo trata do medo relacionando-o às políticas públicas de controle de armas, se e como a narrativa emocional é utilizada para induzir aceitação ou rejeição do público alvo destas narrativas. Para tanto se fez necessária breve análise da legislação pertinente à matéria e especialmente dos discursos das figuras públicas responsáveis por influenciar o favor do povo e de, efetivamente, introduzir tal política ao ordenamento jurídico pátrio.
Parte-se de um pressuposto de conflito entre a autonomia individual, especialmente dos mais vulneráveis, perante o poder estrutural das elites políticas do país, que não raramente utilizam os instrumentos democráticos apenas para aumentar sua influência e esmagar quem quer que esteja abaixo de si na estrutura da hierarquia social. Por isso, toda a análise será feita a partir de um referencial onde todo exercício de liberdade do indivíduo se justifica por si só, ao passo que todo exercício de poder de um grupo sobre outro requer sólida justificativa técnica para tanto.
Foram escolhidos dois momentos de narrativa para comparação e análise: o primeiro é o debate ocorrido no programa Roda Vida, da TV Cultura, quando do referendo de 2005, que foi ao ar em 17 de outubro do mesmo ano; já o segundo momento é a sessão plenária deliberativa do Senado Federal, ocorrida em 18 de junho de 2019. Por se tratar, esta última, de sessão com vários temas de deliberação, restringimo-nos à análise apenas das falas que tocam no tema do desarmamento dos comuns.
Para além disso, foi realizado um apanhado histórico do desarmamento, de suas narrativas e de suas consequências, para que confrontando o passado, o presente possa se tornar mais compreensível. Por tanto, fez-se pesquisa com caráter majoritariamente bibliográfico e documental, utilizando o método dedutivo, a fim de compreender o uso do medo enquanto instrumento de legitimação do poder e de controle sobre as massas.
Para expor, ou tentar expor, com o máximo de precisão o real impacto que as narrativas de medo impõem sobre as políticas de controle de armas, faz necessário um estudo sobre alguns aspectos bem definidos: os aspectos da legislação de controle de armas; a narrativa adotada pelos influenciadores de massa, sejam políticos, instituições públicas e/ou privadas; a reação da população. Tais aspectos sendo, então, relacionados às estatísticas acerca do tema que podem ser encontradas.
Sendo utilizada uma perspectiva de liberdade, visto que a liberdade individual é pressuposta e sua restrição é que requer justificativa, como enuncia David Boaz[3].
1.1 Uma perspectiva histórico-legal
A saga do controle de armas no Brasil tem início mesmo antes de seu status de Estado independente, segundo Quintela e Barbosa (2015, p. 30), já no Brasil colônia, fabricar armas poderia levar à pena de morte, com o evidente objetivo de evitar a formação de milícias capazes de resistir aos interesses imperialistas de Portugal. No entanto, período mais assemelhado ao nosso é o varguista na década de 1930, haja visto que após a ascensão do ditador, a maior preocupação era manutenção de seu poder contra as ameaças, tanto dos coronéis que dominavam os cenários políticos locais e, não raramente, até resistiam aos interventores nomeados por Vargas para impor o centralismo, como nos traz Resende (2008, p. 96):
“[…] o coronel, de quem todos dependem, tem sua base de poder local estruturada a partir de alianças com “pequenos coronéis” […] além de uma guarda pessoal, formada por capangas e cabras. Em caso de necessidade, ele não hesita em formar milícias privadas temporárias, mobilizadas em situações de confronto armado com coronéis rivais e mesmo contra governantes de seus estados. Parte do sistema, a capangagem e o cangaço desempenham um enorme papel nas lutas políticas municipais.”
Não se olvide ainda que era comum que os cangaceiros fossem parte integrante das milícias organizadas pelos coronéis. Verificando a necessidade de limitar o poder bélico destes dois grupos, hora aliados, hora inimigos, Getúlio Vargas empreendeu em campanha de desarmamento, disseminado a narrativa de que as armas utilizadas pelos cangaceiros seriam oriundas das armas dos coronéis, pelo roubo, inclusive transformando o desarmamento em política de estado através do Decreto nº 24.602 de 6 de julho de 1934 que impunha rígidos parâmetros, além do poder discricionário do governo, para que fosse autorizada a instalação de fábricas de armas no país. Sobre este momento, aliás, nos informa Machado apud Quintela e Barbosa (2015, p. 34):
“Lampião estava muito grato a uma atitude tomada pelo major Távora, que determinara o desarmamento geral dos sertanejos, vendo aí talvez uma solução para o fim do cangaço. Lampião agradeceu “a bondosa colaboração” que lhe foi prestada, porque poderia agir mais à vontade no sertão.”
Desarmar para controlar, aliás, assemelha-se muito à conduta empreendida pelo Terceiro Reich, que exigia comprovação de efetiva necessidade do indivíduo para ter direito a uma arma, e como leciona Halbrook (2017, p. 105 e 190) “as autoridades de um local, apenas algumas semanas após Hitler subir ao poder, decidiram revogar licenças de armas de fogo e confiscar armas baseados em simpatias políticas”, aliás “o desarmamento de judeus aconteceu em toda a Alemanha. Deixando-os indefesos, o regime preparou o terreno para um pogrom[4] de grande magnitude e esperava apenas pelo incidente ideal que o detonasse”.
Aparentemente, os governos ditatoriais percebem a política de controle de armas como, essencialmente, uma política de controle.
Desta primeira legislação, que seria base legal para o atual R-105, através dos Decretos nº 55.649/65, 2.998/99, 3.665/00 e 9.493/18, o discurso favorável ao desarmamento da sociedade é bastante assemelhado nos diferentes momentos brasileiros, de acordo com a Folha de Londrina (1999) Fernando Henrique Cardoso quando presidente ressaltou “o choque provocado por notícias de “mortandade entre jovens” veiculadas nos meios de comunicação” e o então ministro da justiça, Renan Calheiros, completou “que 96% das pessoas armadas ao reagir a assaltos são assassinadas”.
Podemos avançar no tempo até o primeiro grande conflito de narrativas que se pode chamar de contemporâneo, o referendo de 2005[5] que buscava proibir o comércio de armas de fogo no Brasil. Cujo resultado segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (2005) foi de 63.94% da população contrária à proibição da possibilidade de legítima defesa, suficiente para eleger um presidente em primeiro turno.
Mesmo organizações de esquerda marxista se posicionaram contrárias ao desarmamento como traz Schlichting (2005), comparando o movimento brasileiro ao Terceiro Reich:
“A história, mais uma vez, está por se repetir: Diário de Berlim, 15 de abril de 1935: Este ano entrará para a história, pois pela primeira vez uma nação civilizada tem um registro completo de armas! Nossas ruas serão mais seguras, nossa política mais eficiente, e o mundo seguirá nossa liderança no futuro.”
E mesmo o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado, como traz Cruz (2005), se posicionou contrário com discurso na seguinte linha:
“O argumento que justifica a defesa do Sim com uma defesa do Estado de Direito não é sério. No Brasil da impunidade convocar a esquerda a confiar na Polícia, na Justiça, no Parlamento, enfim, nas instituições do Estado, confessa um grau de alienação para além do aceitável. Confiar na Justiça que conviveu com o juiz Lalau durante décadas? Confiar no Congresso Nacional que elegeu Severino e se auto-protege? Confiar nas Polícias que têm no seu ventre dezenas de quadrilhas especializadas nas mais variadas formas de furto, roubo e extorsão?”
Evidente em ambas as narrativas, sejam a favor ou sejam contrárias ao armamento, o fomento da absoluta sensação de terror nas almas dos indivíduos. O medo de sofrer massacres tanto por parte da criminalidade, quanto por parte de governos e agentes estatais opressores, faz parte do imaginário populacional. Este preconceito que prefere ignorar os dados que existem hoje, a não ser aqueles que já corroboram com o posicionamento previamente adotado, é o que parece determinar o favor da população.
Já o atual Estatuto do Desarmamento, Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003 sofre severas críticas por condicionar o acesso às armas ao arbítrio do delegado de polícia federal, isto porque os arts. 6º e 10 do referido diploma legal, trazem, para além dos critérios objetivos, um critério subjetivo que é comprovação de efetiva necessidade, tal como no Terceiro Reich.
É o delegado que vai avaliar se a causa de efetiva necessidade apresentada é suficiente ou não. Isto depois de os requerentes efetuarem gastos com teste psicológico e curso de tiro para comprovar aptidão técnica. Critica-se ainda a dificuldade de pessoas mais pobres e necessitadas, moradoras de locais remotos, como os rincões do estado do Amazonas, conseguirem ir à Polícia Federal para ter armas legalizadas.
Em 2019, o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro editou o Decreto nº 9.785, de 7 de maio de 2019 com vistas a tornar a comprovação de efetiva necessidade menos arbitrária, aumentando a segurança jurídica e reduzindo o arbítrio dos delegados de polícia. Este movimento gerou novo momento de intenso debate público sobre o tema, nesta esteira é que tanto os discursos quando do referendo de 2005, quanto os discursos atuais serão analisados a seguir.
1.2 As elites e o medo do povo
O referendo de 2005 provocou intenso debate sobre o tema do armamento populacional, ganhando destaque na mídia e nas conversas do cotidiano. Para este primeiro momento foi escolhido o debate ocorrido em 17 de outubro de 2005, promovido pelo programa Roda Viva na TV Cultura, tratando justamente da temática do desarmamento dos cidadãos não vinculados ao Estado e da ralé brasileira[6].
O programa inicia com um cenário composto por bonecos, com pele de pano marrom, amontoados ao centro. Algumas falas são especialmente relevantes, isto porque se percebe a absoluta semelhança com os discursos atuais, quatorze anos depois. Os argumentos utilizados ao longo do programa foram resumidos em algumas assertivas demonstradas na tela no início do programa.
São elas (I) as armas de fogo são a primeira causa de morte entre jovens no Brasil e matam mais que os acidentes de trânsito, AIDS e outras doenças; (II) em caso de assalto, a chance de morrer ao reagir é 180 vezes maior; (III) as armas compradas legalmente correm o risco de cair nas mãos de assaltantes por meio de roubo ou perda; (IV) as brigas de trânsito ou de bar e os conflitos entre vizinhos estão entre as situações que mais aparecem na origem dos homicídios.
O uso puramente retórico do medo pode ser avaliado através da correspondência dos discursos da elite política e intelectual brasileira e dos dados efetivamente verificados. Busca-se verificar o uso retórico do medo porque o uso do medo, em si, não é necessariamente algo ruim. Isto porque provocar medo quando ao alertar sobre conduta realmente perigosa não é uso do medo, mas consequência dos fatos, ao passo que induzir o terror ao turvar a compreensão sobre algo, é instrumento de dominação através de um estado de ignorância.
Passamos, então, a evidenciar os elementos que buscam inibir o pensamento crítico da população, ao passo que acentuam o passional.
A afirmativa I traz a morte de jovens como elemento passional e o referencial das mortes de trânsito como indutor de terror. A morte do jovem é comumente trazida à baila para tratar do assunto de armas, precisamente por tocar profundamente os ouvintes como no debate do Roda Vida sobre o referendo de 2005 e o atual debate sobre armas de fogo, que tem como fonte principal de pesquisa a Sessão Deliberativa do dia 18 de junho de 2019 no Senado Federal. Naquele debate, Sérgio Adorno afirma então que “eu tô plenamente convencido de que a facilitação do acesso à arma aumentou em proporção escandalosa o número de homicídios no Brasil, particularmente o homicídio de jovens”.
No mesmo debate, Raul Jungmann argumenta, repetindo à exaustão, que “quem tem uma arma em casa precisa ter o acesso a essa arma, fica ao acesso da criança curiosa, do adolescente atrevido, da mulher humilhada[7] e do marido ciumento”.
O Senador Eduardo Girão traz, mais de uma década depois, argumento semelhante ao enunciar “a minha filha, há pouco mais de um ano, estava numa escola nos Estados Unidos […], onde entrou um atirador que comprou uma arma legal, entrou numa escola, surtou, atirou nos alunos, matou dezesseis crianças e um professor dela dentro da sala de aula.[…] Nós tivemos Suzano agora em janeiro”.
Portanto, a chacina e o acidente envolvendo jovens está presente, a despeito da passagem do tempo e dos dados, como argumento passional para emplacar terror. Isto porque a simples observação dos dados acerca de acidentes fatais com jovens, bem como um exercício simples de lógica sobre da proibição é capaz de demonstrar que o discurso não se sustenta, senão, na própria emoção.
O caso trazido pelo Senador Eduardo Girão, é típico dos locais onde há proibição de armas, as chamadas gun free zones, tais como escolas e templos religiosos, aliás, como foi o caso de Suzano, uma escola num país cuja norma desarma os cidadãos. Quanto a isto, nos informa Patrick Tyrrell (2016)
“Pesquisa realizada pela Heritage Fountation descobriu que cinquenta e quatro dos 153 incidentes (35%) envolveram um atirador vitimando pessoas aleatoriamente, não considerados parentes ou adversários da tentativa de homicídio.
Dos 54 incidentes que se encaixam neste critério, o atirador escolhe locais onde armas foram proibidas em 37 vezes (69%). Alternativamente, tiroteios só ocorreram 17 vezes (31%) onde as armas era legalizadas.[…]
Dos 17 tiroteios que ocorreram onde cidadãos podiam estar legalmente armados, 5 (29%) foram interrompidos quando o atirador foi neutralizado ou atrasado pela intervenção de alguém com porte legal de arma.”
Portanto, o discurso acerca de evento ocorrido nos EUA, quando confrontado a um estudo daquele país, demonstra a incongruência entre causa, efeito e conclusão que o Senador Eduardo Girão tenta passar.
Quando tratamos das mortes causadas por armas de fogo entre jovens, é possível chegara tais números, como nos evidenciam Quintela e Barbosa (2015, pp. 92 e 95), com dados da ONG Criança Segura e do Ministério da Saúde.
Tabela 1
Crianças até 12 anos | Maiores de 12 anos | |||
Posição | Causa | Incidência | Causa | Incidência |
1 | Acidente de Trânsito | 39,7% | Acidente de Trânsito | 62,5% |
2 | Afogamento | 25,8% | Quedas | 15,5% |
3 | Sufocamento | 14,2% | Outros | 13% |
5 | Queimaduras | 6,4% | Armas de fogo | 1,4% |
8 | Armas de fogo | 0,7% | Sufocamento | 0,1% |
Afirmativa portanto, não apenas equivocada, pois equivoco seria no caso de números próximos que pudessem efetivamente ser confundidos ou ocorrer intercâmbio de posição entre si a depender da metodologia, mas de efetivo e deliberado obscurantismo dos dados, por parte de uma elite, a favor e uma narrativa com forte apelo emocional, objetivando implantar um terror evidentemente desmotivado, haja visto que, apesar da lastimável perda da vida humana, a morte por arma de fogo se encontrar distante dos primeiros lugares e em incidência inferior a 2% dos acidentes fatais.
A afirmação II traz claro paternalismo das elites sobre o povo, mas diferente do pai cuja autoridade se legitima pelo amor e efetivo bem querer por seus filhos, a autoridade do Estado e dos grupos que o dominam raramente ocorrem no sentido de zelo, de proteção dos cidadãos, mais facilmente ocorre como simples forma de cabresto. A exemplo disso está o desarmamento promovido por Getúlio Vargas, para minar o poder dos coronéis nordestinos, cujo discurso, como já dito, seguia o mesmo raciocínio.
Já a chance de sobrevivência na reação a um assalto deve passar por dois pontos de observação. O primeiro é que a quase totalidade dos latrocínios são registrados em virtude precisamente do resultado morte, enquanto que os assaltos evitados em virtude de uma vítima armada são sempre subnotificados justamente em virtude do tratamento criminoso que o Estado dá à vítima que se defende[8], preferindo a vítima, uma vez evitado o crime sem sequer um tiro disparado, simplesmente se omitir de registrar o fato junto ao Estado que presume sua condição criminosa.
Além disso, dos dados possíveis de se conferir nos trazem Quintela e Barbosa (2015, p.87) “em 215 ataques criminosos onde a vítima reagiu com uma arma de fogo, apenas 15 vítimas terminaram mortas e 25 feridas, enquanto que 191 criminosos acabaram presos e 177 morreram”. Portanto, das reações armadas coletadas, considerando que houvesse apenas uma vítima por ocasião, o percentual mínimo de sucesso nas chances de sobrevivência foram de 85,67%.
Não obstante, mesmo os dados não justificam a ingerência do Estado sobre o exercício ou não da legítima defesa do particular, assumindo equivocadamente, claro, que o Estado e suas elites teriam alguma legitimidade em determinar se o cidadão deve ou não reagir para proteger sua vida, a vida de sua família e, eventualmente, seus bens[9], cuja verificação de possibilidade cabe apenas ao cidadão que tem a experiência singular do momento. Assim, a informação de uma suposta chance de morte em escandalosa proporção de 180 vezes, efetivamente inauferível, mas cujos escassos dados já indicam o contrário, pode ser considerada como meramente narrativa com intuito de provocar o terror. Submetendo as pessoas comuns à criminalidade, à insegurança, o medo faz com que os indivíduos estejam dispostos a barganhar a própria liberdade em troca de um pouco de segurança, não raramente, ficando sem ambos, como é o caso brasileiro.
Esta vontade de mera ingerência sobre a vida do cidadão é bastante evidenciada na fala da Senadora Kátia Abreu (PDT-TO), na 99ª sessão deliberativa ordinária da 56ª legislatura do Senado Federal, ao dizer que “nós não podemos permitir que as pessoas sejam autocuidado [sic.] de suas vidas”. Esta senadora, que já afirmou em entrevista dormir com uma arma embaixo da cama, traz do alto de sua visão elitista, que ao povo não deve ser garantido o direito, visto que o direito em tese há, de exercer a própria defesa. É manifesta da vontade de controle das elites sobre as vidas dos comuns, em prejuízo, inclusive, destas vidas.
A afirmativa III traz a ideia de que as armas legais são as armas do crime em virtude do roubo. Este argumento até hoje utilizado, que vem desde a época de Getúlio Vargas, ao dizer as armas do cangaço seriam provenientes das armas dos coronéis, igualmente não se conecta à realidade. Da mesma maneira que Lampião se sentiu grato ao desarmamento dos sertanejos por ter sua segurança garantida quando de suas investidas contra populações desarmadas, o governo federal getulista também sentiu-se grato por ter seu poder sobre os cidadãos nordestinos, inclusive sobre as oligarquias políticas locais, aumentado em virtude de um controle do poder bélico.
Trazem Quintela e Barbosa (2015, p. 68) que “de acordo com uma pesquisa extensa, realizada com apoio de organizações desarmamentistas como a Viva Rio, apenas 25,6% das armas apreendidas com criminosos, entre 1951 e 2003, eram armas legalmente registradas que foram roubadas”, ao passo que “outros trabalhos feitos por órgãos estaduais de polícia resultam em números ligeiramente menores, da ordem de 22%”. Ou seja, muito menos da metade das armas legalizadas são utilizadas pelo crime e ao neutralizarmos 100% vítimas, inibindo sua possibilidade de defesa, ainda assim teremos que aproximadamente 75% das armas dos criminosos sendo utilizadas.
Mais uma vez, um discurso que apenas busca amedrontar as classes mais baixas da sociedade, retirando-lhes a possibilidade de autodefesa contra as elites políticas estatais e toda as castas políticas do crime. Como bem nos aponta Marcelo Yuka, no debate do Roda Viva:
“Nesse país a gente já tem uma longa tradição de repressão por meio das armas de fogo […] o status quo de uma pessoa que porta uma arma dentro de uma comunidade carente é totalmente diferente daquele que não porta. Ele já tá num nível que ele pode ser assassinado a qualquer momento porque ele representa um perigo para o próprio crime organizado dentro da favela. Então essa opção da população pobre ter uma arma, eu acho que é um equívoco tremendo.”
O debatedor menciona dois exemplos em que o cidadão pobre, mais vulnerável, é vítima de elites armadas. O primeiro exemplo é uma alusão à repressão de agentes opressores do Estado, que se voltam especialmente contra as pessoas pretas e pobres, deste país, bem como traz o fato de que o pobre armado é um perigo para o crime organizado que o tiraniza em seu cotidiano, onde o Estado não chega.
Contudo, seguindo o mesmo raciocínio da Senadora Kátia Abreu, ele acredita que ao cidadão, especialmente o mais pobre e já vítima de toda uma estrutura segregacionista que visa esmagar suas liberdades, sua autonomia enquanto indivíduo em si bastante, não pode ser dada a faculdade de autodefesa. O miserável, nesta linha de raciocínio, não tem o direito de escolher submissão à opressão ou proteção de sua existência física e moral e, sem direitos, é nivelado aos bárbaros, aos bichos, como aponta Ihering (2013).
A afirmação IV, corroborada até mesmo pelo discurso das elites, exemplificado pelo depoimento do, então, diretor do Instituto Sou da Paz, Denis Mizne, durante o debate do Roda Viva de 2005, ao dizer que a origem dos homicídios está nas brigas de bar e de trânsito, ignora completamente a relação custo benefício do armamento na medida em que, como já dito, não há como auferir os casos em que as armas são utilizadas de forma defensiva, haja visto que o tratamento de criminoso empreendido pelo Estado, faz com que o uso defensivo, onde tiros não foram disparados, não sejam, em absoluto, notificados, com ampla exemplificação na obra de Quintela e Barbosa.
1.3 A mácula do medo
“A convicção de que o demônio engana continuamente os homens com seus encantamentos atravessou toda a literatura […] até científica, da Renascença” leciona Delumeau (2009, p. 381), fazendo alusão a momento em que uma fonte mística de desgraças tomou conta até mesmo dos estudos científicos, tudo em virtude do medo fomentado por uma elite político-religiosa, que levou à perseguição de centenas de inocentes, tudo em prol do aumento de “um poder ao mesmo tempo religioso e civil, cada vez mais anexionista e centralizador” (DELUMEAU, 2009, p. 593). Muito similar ao que se vê na contemporaneidade, quando o medo macula pesquisas científicas, discursos intelectuais, discursos estritamente políticos e acaba por impregnar-se também nas mentes dos comuns.
A exemplo, temos o depoimento coletado em debate pelos pesquisadores em 10 de fevereiro de 2017, de B.R. que segue “mas Thomas, eu não discordo totalmente de você, eu só não acredito que isso vai resolver nesse momento e TALVEZ até piore…” e a despeito de o depoente concordar com as estatísticas apresentadas, o medo das armas ainda assim levanta uma vaga sombra de uma distante piora da situação que o faz acreditar que a proibição é o melhor caminho.
O medo, portanto, demonstra sua capacidade de inibir uma crítica ponderação de custo-benefício, as emoções normalmente são capazes de inviabilizar a precisão científica nas mais diversas áreas, como suscita Ingold (2007, p. 130), ao tratar sobre animalidade, “existe um forte conteúdo emocional subjacente em nossas idéias sobre animalidade […] essas idéias, quando submetidas ao escrutínio crítico, revelam aspectos altamente sensíveis e bastante inexplorados da compreensão sobre a nossa humanidade”.
O medo aqui pode ser compreendido quando a facilitação do acesso às armas parece aumentar a presença do outro, “os outros são sentidos como aqueles que trafegam pelas ruas, que habitam diferentes locais e, mesmo que sejam vizinhos, são desconhecidos. E como desconhecidos habitam o imaginário via ameaça potencial à segurança e ao conforto” (KOURY, 2009, p. 407). Fato possivelmente oriundo de uma complexificação das relações sociais, reduzindo a proximidade relacional entre membros, apenas fisicamente próximos, de uma mesma localidade.
Apesar de as cidades terem surgido, parcialmente, como resposta à insegurança da vida selvagem, também ela permite o uso deste instrumento adorado pelas elites donas do poder. Os “horrores de uma época onde a incerteza, a insegurança e a falta de proteção deixam marcas profundas no imaginário da população” (ARAÚJO, 2009, p.96), tais horrores são o exato estímulo que a elite reconhece como capazes de levar a população a abdicar de si, entregando-se à servidão voluntária, aumentando o domínio daquela.
As elites políticas (Senadores), não abdicam, porém, de sua proteção mesmo quando, apenas vinte e quatro horas depois aprovarem a derrubada da regulamentação de armas editada pelo Presidente da República, requisitaram escolta armada para sua proteção particular, sendo este fato público e notório.
Aqui vale ressaltar os ensinamentos de Beccaria (2003, pp. 94-95) sobre a disposição dos legisladores em editar normas contrárias à própria lógica da condição humana:
“É ter ainda ideias falsas de utilidade sacrificar mil vantagens verdadeiras ao receio de uma desvantagem imaginárias ou pouco importante.
Não teria certamente ideias justas aquele que pretendesse tirar aos homens o fogo e a água, pois esses dois elementos provocam incêndios e inundações, a quem só soubesse obstar o mal pela destruição.
Podem igualmente considerar-se como contrárias ao fim de utilidade as leis que proíbem o porte de armas, porque apenas desarmam o cidadão pacífico, enquanto que deixam a arma nas mãos do criminoso, muito habituado a violar as convenções mais sagradas para respeitar aquelas que são somente arbitrárias.”
Conclusão
Percebe-se que todo o debate acerca do controle das armas de fogo, que ocorre no Brasil aos moldes contemporâneos ao menos desde a década de 1930, tem sido marcado por uma forte inclinação passional, notadamente pela emoção do medo. A restrição às armas que desde o período do Brasil colônia garantiu à Coroa Portuguesa domínio por séculos do continental território colonial, mantém na atualidade uma relação assemelhada à relação metrópole-colônia, que é, em termos agora nacionais, a relação entre cidadãos de primeira classe, com todos os direitos e garantias civis resguardados e cidadãos servis, curioso paradoxo da modernidade.
Nesta relação, estabelecem-se cidadãos cuja vida e liberdade podem e devem ser preservadas a qualquer custo, inclusive através das armas, contra aqueles que incorrem contra os direitos e fundamentais à vida, à liberdade e à propriedade, e, em termos lockianos, possuem o direito de propriedade sobre o próprio corpo assegurado. Na outra ponta, estão os cidadãos servis que possuem tais direitos fundamentais de forma meramente relativa, isto porque apenas assegurados quando o Estado pela simples fortuna consegue impedir sua lesão, nas raras ocasiões em que os agentes de segurança estão presentes para e por estes cidadãos.
Os cidadãos servis, no entanto, possuem o direito a portar armas e defender os direitos fundamentais, contudo, apenas quando os direitos daqueles de primeira classe, na condição de seguranças particulares ou estatais. De qualquer modo, seu serviço de segurança possui muito mais valia para o empregador, Estado ou empresário, do que para o próprio segurança que, às custas da própria vida, defende os bens da vida dos contratantes. Contratantes estes que podem ser categorizados como pessoas de bens.
Nesta luta de classes que personaliza os abastados e objetifica os miseráveis, que servem apenas como portadores descartáveis de segurança, o medo possui fundamental importância. Como visto, a narrativa capaz de incutir o mais profundo terror no imaginário populacional, está apta a tornar miseráveis contra miseráveis numa guerra de extermínio, quase que um controle populacional, ao passo que blinda as elites sociais/políticas. Apropriada é a famosa citação de Simone de Beauvoir quando exprime que o opressor só possui a força que tem, por ter como cúmplice parcela dos oprimidos.
Assim, o terror é o cabresto que garante ao opressor o controle mental, este muito mais eficaz do que o físico, sobre os indivíduos. O medo, no entanto, costuma atingir apenas os cidadãos que via de regra cumprem as leis, como informa Beccaria, já mencionado.
Portanto, legando o bom cidadão, apesar de miserável, à condição de vítima da repressão estatal ou do crime organizado, como bem apontou Marcelo Yuka. Neste sentido, é que se demonstra o perigo do efeito inibidor do escrutínio crítico, especialmente na literatura científica, que ao longo da história tem trabalhado em favor das elites que opressoras, como trouxeram Ingold e Delumeau, respectivamente, ignorando ou turvando, deliberada ou inconscientemente, os dados em favor de uma narrativa de terror em detrimento da libertação das classes oprimidas. É pois, o terror, instrumento de controle desde o princípio das sociedades humanas, é pois, a narrativa de terror sobre as armas, muito mais instrumento de controle, do que instrumento de controle de armas.
Referências
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[1] Licenciando em Ciências Sociais pela Universidade de Pernambuco. E-mail gabriel2.leo@gmail.com
[2] Bacharel em Direito pela Faculdade de Olinda, Licenciando em Ciências Sociais pela Universidade de Pernambuco e especializando em Direito Penal e Processo Penal Aplicados pela Escola Brasileira de Direito. E-mail greenhalgh_tvc@hotmail.com.
[3] Vice-presidente do Cato Institute.
[4] Entendido como perseguição de grupos étnicos/religiosos com a permissividade das autoridades locais. Pode-se mencionar como prelúdio, a prisão de judeus que cometeram o crime de ter a posse legal de armas, como foi o caso do reconhecido ginasta Alfred Flatow.
[5] Valendo ressaltar que desde a Lei 9.437/97 já havia um protótipo do que seria o atual estatuto do desarmamento, este muito mais rigoroso.
[6] A expressão desarmamento civil não parece apropriada, haja visto que o desarmamento não se limita aos civis meramente, isto porque seguranças particulares de pessoas com patrimônio suficiente para arcar com o custo, membros do Ministério Público, magistrados e componentes da elite política e econômica brasileira, mesmo sendo civis, têm acesso facilitado ao armamento ou à proteção armada.
[7] Aqui cabe relembrar famosa frase de autoria desconhecida que diz “Deus fez os homens, mas Colt os tornou iguais”.
[8] Como foi o caso do cadeirante que após ter sofrido diversas vezes nas mãos de bandidos resolveu se armar para defesa, situação que pode ser vista no processo criminal nº 0027041-27.2017.8.19.0038, da 1ª vara criminal da comarca de Nova Iguaçu/RJ.
[9] Isto num país que figura no 55º lugar, entre 131 países, no International Property Rights Index de 2018, disponível em https://www.internationalpropertyrightsindex.org.
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