O controle de constitucionalidade e a interpretação conforme a Constituição

A Justiça e a Eqüidade surgem onde existe uma certa equivalência de forças, como bem observou Tucídides. Onde a superioridade de uma das partes não é clara, e onde o combate traria apenas inúteis lesões recíprocas, aí surge a idéia de uma composição. A troca é o caráter originário da Justiça. Friedrich Nietzsche

Resumo: A interpretação conforme a Constituição é um método hermenêutico e de controle de constitucionalidade, que tem como fim garantir a compatibilidade da norma ao ordenamento constitucional, devendo ser utilizada, sempre para dar a lei o sentido adequado da Constituição Federal. Deve a interpretação conforme a Constituição ser utilizada quando houver espaço para a decisão, ou seja, quando for possível interpretar de diferentes formas, mas nunca de forma contrária aos princípios constitucionais, quando deverá ser declarada inconstitucional e, assim, portanto, ser expurgada do ordenamento.

INTRODUÇÃO

O ser humano constitui seu conhecimento basicamente pela linguagem, a forma mais utilizada é a interpretação, seja de gestos, idéias ou textos, constituindo uma concepção ou acepção sobre determinado fato.

Na seara do Direito, o estudo da interpretação é fundamental, tornando-se uma forma própria de encarar a doutrina positivista, que tem como princípio basilar a interpretação conforme a Constituição, baseada no fundamento de que nenhuma norma do ordenamento pode ir de encontro aos princípios constitucionais.

O presente estudo faz um paralelo da interpretação conforme da Constituição como forma de controle de constitucionalidade.

O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E A INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO

A interpretação conforme a Constituição é uma das modernas formas de hermenêutica, que visa impedir a retirada precoce do ordenamento jurídico de normas infraconstitucionais que se revelam, num primeiro momento, incompatíveis com o Texto Maior.

A interpretação deixou de ser vista como apenas um procedimento de descoberta da vontade da lei ou do legislador, para ser uma atividade criadora do Direito. O intérprete deixa de ser mero aplicador de regras, construindo a inteligência das normas, respeitando a sua “moldura”.

Por esta interpretação, o intérprete pode alargar ou restringir o sentido da norma supostamente inconstitucional para adequá-la ao ordenamento,  evitando a decretação de nulidade e a conseqüente exclusão do cenário jurídico, configurando-se como uma técnica de salvamento da norma.

Justifica-se a legitimidade desta forma de interpretação pela própria supremacia da Constituição, o que garante a segurança jurídica, evitando a retirada da norma do ordenamento jurídico, o que geraria um vazio normativo.

Não é dado ao intérprete a discricionariedade para subverter o sentido da lei, onde a interpretação conforme a Constituição enfrenta os limites do próprio texto legal. Portanto, se a norma for inevitavelmente incompatível com a Constituição deve ser declarada inconstitucional.

A interpretação conforme a Constituição só é viável em face de normas polissêmicas, com sentido plurissignificativo, onde ao menos um se revele compatível com a Carta Magna, configurando-se, também, como forma de controle de constitucionalidade.

Esta forma de interpretação é prevista legalmente no parágrafo único, do artigo 28, da Lei n.º 9.868/99, juntamente com outras formas de controle da constitucionalidade, referindo ainda que a interpretação realizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública. O Supremo ao dar interpretação compatível com a Constituição à norma afasta a possibilidade de qualquer outra interpretação que o dispositivo eventualmente comporte.

Na concepção moderna afasta-se a existência de uma única interpretação correta, configurando-se a interpretação conforme a Constituição como o estudo das normas constitucionais em si mesmas e perante o conjunto normativo e não no cotejo das normas inferiores, mas tal interpretação não se revela inadequada, eis que verifica se a norma infraconstitucional é compatível com a Carta Magna.

O caráter da interpretação é polissêmico, cognoscitivista, ligado ao positivismo jurídico e a verdade da norma; e o voluntarista, relacionado ao realismo e a interpretação evolutiva do Direito.

O positivismo jurídico vem sofrendo um declínio, eis que confere ao intérprete o papel de construção das normas jurídicas, para adaptá-las à constante evolução social. O realismo jurídico propõe uma interação do Direito com a realidade social e a evolução operada, ofertando ao intérprete um papel significativo, para adaptar e atualizar as normas jurídicas. Sendo o papel da interpretação constitucional um meio ou processo de transformação, não formal, levando à superação do desajuste entre a realidade social e os textos constitucionais.

A interpretação deixou de ser entendida como um mero ato mecanicista dos fatos à norma, possibilitando alargar ou restringir os sentidos das normas infraconstitucionais para torná-las compatíveis com a Constituição.

A interpretação conforme a Constituição assume uma condição privilegiada no plano hermenêutico, tornando-se um mecanismo de “depuração de inconstitucionalidade”, conforme Béguin (apud ANJOS, 2006).

Apresentam-se como métodos clássicos de interpretação jurídica, a forma gramatical, sistemática, histórica e teleológica, próprias do positivismo jurídico, que não permitem qualquer flexibilização de sentido nas normas, mas procura averiguar a vontade (objetiva) da norma ou à vontade (subjetiva) do legislador, segundo Hesse (apud ANJOS, 2006).

As modernas formas de interpretação se inserem na interpretação evolutiva, na qual se atualiza o sentido das normas constitucionais e infraconstitucionais em face do desenvolvimento da sociedade.

A interpretação conforme a Constituição contrapõe-se a interpretação juspositivista, pois as técnicas modernas de interpretação são fundamentadas pela segurança jurídica, a supremacia da Constituição e a presunção de constitucionalidade das leis.

A segurança jurídica é a necessidade de se evitar a retirada do ordenamento jurídico de uma lei ou ato normativo, o que ocasionaria um vazio, buscando a interpretação compatibilizada a norma tida como inconstitucional com a Lei Maior, eis que a inconstitucionalidade da norma vai dar lugar a um vazio legislativo, que produziria sérios danos ao ordenamento jurídico.

A supremacia da Constituição por não estar sujeita a nenhuma limitação de natureza jurídica, eis que esta delimita a estrutura da organização político-administrativa do Estado, não é somente um objeto, mas também um critério de interpretação que deve ser sempre observado na construção da inteligência das normas.

A presunção de constitucionalidade das leis impede a concentração dos poderes estatais em apenas um único órgão, o que geraria o arbítrio e o excesso.

A lei deve ser preservada ao máximo, devendo ser expulsa do âmbito normativo, apenas, quando não houver como harmonizá-la com a Constituição.

O princípio da presunção de constitucionalidade possui duas regras, a primeira reporta que não sendo evidente a inconstitucionalidade, deve o órgão competente abster-se da declaração de inconstitucionalidade; a segunda, havendo interpretação possível que permita afirmar-se a compatibilidade da norma com a Constituição, deve-se optar pela interpretação legitimadora, mantendo o preceito em vigor.

Não é possível uma interpretação sem critérios e limites que subverta o sentido da lei, existem limites formais e substanciais para que se dê vida socialmente adequada à ordem jurídica, com a máxima cautela.

O apego excessivo e incondicional a literalidade da lei pode inviabilizar a operacionalização do Direito, mas a total indiferença à norma pode importar em ofensa ao próprio Direito.

A interpretação conforme a Constituição é um método de salvamento da norma infraconstitucional, pela qual o intérprete alarga ou restringe o sentido dela, para colocá-la em consonância com a Constituição, evitando o descompasso com os preceitos da Carta Maior e a sua conseqüente decretação de nulidade.

Conforme Canotilho (apud ANJOS, 2006), a finalidade da interpretação conforme a Constituição é descobrir o “o conteúdo intrínseco da lei”.

Atualmente não se compreende mais a interpretação sem aplicação, não se pode interpretar uma norma sem se ter em vista um fato concreto, eis que não se consegue interpretar em abstrato.

O Poder Judiciário condiciona a validade da lei a uma determinada interpretação ou declara que certas aplicações não são compatíveis com a Constituição, declarando a inconstitucionalidade de outras possibilidades de interpretação.

A Corte Constitucional não pôde proferir decisão sobre todas as possíveis interpretações, pois a aplicação da norma é variável, os casos serão sempre diferenciados; entrando no processo interpretativo, o que faz variar as possibilidades de interpretação da norma.

O efeito vinculante das decisões proferidas fere diversos princípios constitucionais, como o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a dupla instância, o livre acesso do cidadão ao Judiciário, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, a separação de Poderes, sendo considerado um instituto inconstitucional, impedindo a evolução da interpretação na compreensão da norma.

Denota Hesse (apud ANJOS, 2006) que a interpretação constitucional é a sua concretização, proporcionando a atualização das normas jurídicas e colocando o Direito em sintonia com a realidade social que regula. A interpretação faz a ordem jurídica funcionar, tornando o Direito operativo.

As regras jurídicas são feitas para regular a vida em sociedade, também devem acompanhar a evolução nela ocorrida. Havendo uma mutação constitucional informal, sem alterar o texto.

A interpretação conforme a Constituição é uma técnica de julgamento e uma via concentrada de controle de constitucionalidade, realizado pelo Supremo Tribunal Federal, o guardião da Constituição.

O jurista Luis Henrique Martins dos Anjos (2006) aponta para os requisitos da aplicação da interpretação conforme a Constituição:

1) Deve ser respeitado o instituto jurídico que está em questão. Normalmente, o ato questionado vai estar envolvido com alguma matéria de um instituto jurídico, e os princípios deste instituto jurídico devem ser respeitados. Se for uma lei sobre tributos, por exemplo, o instituto dos tributos tem toda uma principiologia, implicando o respeito à natureza do instituto que está em discussão.

2) Deve ser respeitado o Princípio da Razoabilidade, isto é, há que ser uma interpretação razoável, não se podendo forçar uma interpretação. Deve ser uma interpretação auto-sustentada e sem artificialismos.

3) Também há que se respeitar o Princípio da Aplicação Restritiva, ou seja, quando houver dúvidas, não se faz à interpretação conforme a Constituição. Se houver dúvidas, o Supremo deve declarar a inconstitucionalidade.

O Supremo Tribunal Federal utiliza a interpretação conforme a Constituição quando existe certeza de que trata-se de matéria constitucional; entendendo o Supremo, que não precisa ser declarada a inconstitucionalidade da norma, na medida em que se possa dar uma interpretação adequada com o que está estabelecido na Magna Carta.

Denota, Gilmar Ferreira Mendes (apud ANJOS, 2006) que: “oportunidade para interpretação conforme a Constituição existe sempre que determinada disposição legal oferece diferentes possibilidades de interpretação, sendo algumas delas incompatíveis com a própria Constituição.”. Assim, dada a presunção de constitucionalidade das normas, deve prevalecer a interpretação constitucional.

Reporta, ainda, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes (1996, p.196) que a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto “refere-se, normalmente, a casos não mencionados no texto, que, por estar formulado de forma ampla ou geral, contém, em verdade, um complexo de normas.”.

A doutrina de Dworkin (apud ANJOS, 2006) denota o esforço em legitimar a atividade jurisdicional e a tentativa de dar uma interpretação coerente ao Direito; o que, na esfera do Direito Constitucional, torna-se mais difícil em razão da abstração de seus princípios. A interpretação dos princípios varia a cada época, oportunizando maior legitimidade nas decisões judiciais e a garantia da proteção dos direitos morais.

Entende-se que a interpretação conforme a Constituição é uma declaração de nulidade sem redução do texto, na medida em que restringe as possibilidades de interpretação, reconhecendo a validade da lei com a exclusão da interpretação considerada inconstitucional.

Trabalha-se, assim, conforme o pensamento “favor legis” (SUXBERGER, 2000), no qual o legislador não pode ter pretendido votar lei inconstitucional, havendo uma presunção de constitucionalidade, como resultado de seu controle.

A interpretação conforme a Constituição vai além da escolha dos vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito, para distender-se até o limite da inconstitucionalidade.

Segundo Alexandre de Moraes (MAFRA FILHO, 2006), controlar a constitucionalidade é verificar a compatibilidade de uma lei ou de um ato normativo à Constituição, examinar seus requisitos formais e materiais. Assim, no sistema constitucional Brasileiro, somente as normas constitucionais positivadas podem ser utilizadas como paradigma para a análise da constitucionalidade de leis ou atos normativos estatais (bloco de constitucionalidade).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O operador do Direito trata da constitucionalidade da norma ou do texto legal, constantemente, devendo ser auferida analisando-se as possibilidades de interpretação e aplicação, tornando-se, a interpretação, inerente à própria atividade jurisdicional.

Para tanto, a interpretação conforme a Constituição caracteriza-se como uma forma flexível de concretização e aplicação das normas, pois renuncia ao formalismo jurídico, tornando-se mais próxima dos ideais da Justiça, em sua concepção material e de segurança jurídica.

A interpretação conforme se constitui num mecanismo de controle, pois a principal função é assegurar razoável grau de constitucionalidade das normas no exercício da interpretação.

Interpretar conforme a Constituição, entretanto, não significa alterar o conteúdo da lei, eis que todo intérprete está obrigado a interpretar segundo os princípios fundamentais da Constituição.

 

Referências bibliográficas
AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Da necessária distinção entre a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto. Jus Navigandi. Teresina. Ano 2. N.º 24. Abril. 1998. Disponível em: <http://jus2.uol.co m.br/doutrina/texto.asp?id=132>. Acesso em: 29 ago. 2006.
ANJOS, Luís Henrique Martins dos. A Interpretação conforme a Constituição enquanto técnica de julgamento do Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre. Disponível em: <http://www.direito.ufrgs.br/processoeconstituicao/cursos/arquivosdocurso/InterpretaCfConst.doc>. Acesso em: 29 ago. 2006.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antônio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Luiz Eduardo Alves de Siqueira. 25. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2000.
MACIEL, Silvio Luiz.Controle de Constitucionalidade e a Interpretação conforme a Constituição. Revista de Direito Constitucional e Internacional. N.º 53. Ano 13. Outubro/Dezembro de 2005. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2005.
MAFRA FILHO, Francisco de Salles Almeida. O Controle de Constitucionalidade: Conceito. Pressupostos. Requisitos. Espécies. Efeitos. Juristas. João Pessoa. Ano 3. N.º 63.  28/02/2006. Disponível em: <http://www.juristas.com.br/revista/coluna.jsp?idColuna=1376>. Acesso em: 29 ago. 2006.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996.
SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano. Interpretação conforme a Constituição. Jus Navigandi. Teresina. Ano 4. N.º 39. Fevereiro. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id=133>. Acesso em: 29 ago. 2006.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Tatiana Poltosi Dorneles

 

advogada. Graduada em Direito pela Universidade Regional Integrada (URI – Santiago); Mestranda em Educação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Especializanda em Direito de Família e Sucessões na ULBRA – Santa Maria.

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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