O controle judicial das omissões ou falhas legislativas e administrativas

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A tripartição de “poderes” do Estado. 3. A intervenção do poder judiciário na concretização de direitos sociais. 4. Considerações finais.

Analisa-se, de forma meticulosa, a possibilidade de controle judicial diante das omissões dos Poderes Legislativo e Executivo no que tange à efetivação de direitos sociais, abrangendo as respectivas criticas. O enfoque desse estudo é a observação do déficit de efetivação dos direitos sociais fundamentais. Dentre os métodos e técnicas de pesquisa foram realizadas leituras e fichamentos. Nessa pesquisa, numa primeira parte é apresentada a teoria da separação de “poderes” aliada à notícia histórica, numa segunda parte há a avaliação da possibilidade de controle exercido pelo Poder Judiciário diante de omissões ou falhas, em sede de direitos fundamentais sociais, pela administração pública e pelo legislativo.

1 INTRODUÇÃO

Existem três paradigmas constitucionais: o Estado Liberal, o Estado Social e o Estado Democrático de Direito. Estes dois últimos são os que interessam focar neste estudo. Trata-se de analisar um modelo (o do Estado Democrático de Direito) cuja função é transformadora e que tem como ponto de tensão o Poder Judiciário, o qual é entendido como instrumento de evolução que tem por objetivo efetivar direitos fundamentais sociais.

Porém, pretende-se observar se o Estado Social foi ultrapassado no Brasil, a fim de que se torne possível o estabelecimento do Estado Democrático de Direito.

O Brasil, no seu cotidiano, vive uma crise que será solucionada com a incorporação do modelo do Estado Democrático de Direito a partir da implementação de políticas públicas aptas a resgatar as promessas da modernidade descumpridas (direitos fundamentais sociais desrespeitados). Mas essa tarefa não é tão simples quanto aparenta, pois exige que haja superação real dos Estados Liberal e Social.

Pretende-se densificar o estudo, justamente, da intervenção do Judiciário, e, em especial, da jurisdição constitucional, nas hipóteses em que o processo político (Executivo e Legislativo) se omite ou comete dada falha na implementação de políticas públicas, cujo objeto é a realização de direitos fundamentais sociais. O objetivo é verificar essa postura ativa do Judiciário diante da passividade dos demais poderes do Estado.

Dessa forma, este trabalho visa responder os seguintes questionamentos: o Poder Judiciário, em específico a jurisdição constitucional, assumindo uma postura intervencionista no sentido de proibir a administração pública de realizar políticas públicas ou, por outro lado, de obrigá-la a respeitar normas programáticas in concreto, estaria ferindo o princípio constitucional da separação de poderes contido no art 2° da Lei Maior? E o aspecto democrático representativo, ou seja, os juízes, não eleitos, têm legitimidade para controlar e anular leis elaboradas e aplicadas por poderes eleitos (legislativo e executivo, respectivamente)?

2 A TRIPARTIÇÃO DE “PODERES” DO ESTADO

2.1 BREVE NOTÍCIA HISTÓRICA

Traçar o marco histórico relativo à separação de “poderes” do Estado não é uma tarefa simples. A doutrina, como bem pontua Tavares (2005, p. 165), visualiza duas possibilidades: o direito greco-romano antigo e a teoria moderna da constituição mista.

O autor (2005, p. 165) sustenta pela segunda hipótese, já que é nessa concepção que se encontra consagrada a garantia da liberdade individual. Portanto, a separação de “poderes” surgiu no século XVII, na Inglaterra, intrinsecamente relacionada à idéia de rule of law.

Outra dúvida que persiste entre os estudiosos do Direito, dentre eles Tavares (2005, p. 165) e Freire Júnior (2005, p. 36), diz respeito a quem se pode atribuir a criação da teoria da separação de “poderes”.

Para Tavares (2005, p. 166) e Silva (2001, p. 109) a autoria se deve a Montesquieu, pois foi esse teórico que conferiu cientificidade à separação de “poderes”, além de ter abarcado a função judicial e não a meramente política como o fez Locke.

Já no entendimento de Freire Júnior (2005, p. 36) é indiferente que se estabeleça quem seja o criador da teoria, bastando que se tenha em mente que o objetivo é promover “[…] o controle do arbítrio do detentor de poder”.

Nota-se que o constitucionalismo antigo “[…] funcionou sem a separação de funções […]” (TAVARES, 2005, p. 167).

No Estado de Direito Legalista a preocupação referente à separação de “poderes” era com a garantia da lei; não havia qualquer pretensão de promover a harmonia entre os poderes ou, como salienta Tavares (2005, p. 168), “[…] de uma separação funcional efetiva”.

Trata-se de uma idéia inerente ao Estado Liberal, racionalista, fundado na separação de poderes absoluta e no princípio da legalidade (PALU, 2004, p. 37). Era calcado numa “[…] estrutura vertical e hierárquica” (PALU, 2004, p. 59).

Já o constitucionalismo moderno revela uma incessante busca “[…] de limitação do poder por meio de mecanismos constitucionais […]” (TAVARES, 2005, p. 168), mas sem perder de vista a necessária modificação da visão antiga inerente à separação de “poderes”, fundada numa separação absoluta.

No entendimento de Streck (2003, p. 198) e de Palu (2004, p. 61), o Brasil vive a tentativa de construção de um Estado Social e não, verdadeiramente, um Estado Democrático de Direito, já que há a dependência da intervenção do Estado para a efetivação de direitos sociais.

No Estado Social, de acordo com os ensinamentos de Palu (2004, p. 59), “[…] a sociedade não pode ser deixada a seus mecanismos de auto-regulação […]”. É imprescindível a atuação estatal em prol da realização de direitos sociais.

Deve-se perceber a separação de “poderes” do Estado a partir do contexto atual em que ela se insere. O grande norte a ser seguido modernamente é a justiça e, mais especificamente, a realização efetiva dos direitos fundamentais sociais em prol do bem estar social.

Nesse sentido, será demonstrada mais adiante nessa pesquisa a necessária reformulação da separação de “poderes”, a partir de sua observação sob um prisma relativo e que, portanto, se adequa à realidade brasileira atual, que busca a efetividade dos direitos fundamentais.

2.2 A PRECISÃO TERMINOLÓGICA

A melhor doutrina, destacando-se Tavares (2005, p. 162) e Freire Júnior (2005, p. 37), vem fixando o entendimento de que o termo “poder” não é tecnicamente o mais adequado.

Assim, a melhor terminologia seria “função”, já que o poder é uno, indivisível e indelegável, como bem observa Silva (2001, p. 107). É nesse sentido que Freire Júnior (2005, p. 37) ensina:

Há, portanto, em nosso país uma separação de funções e não de Poderes; […] o poder estatal é um só, materializado na Constituição, da qual se extrai que a separação de funções deve viabilizar a máxima efetividade das normas constitucionais […].

Verifica-se que a precisão terminológica é um pressuposto hermenêutico que viabilizará a concepção que se deve ter da separação de funções do Estado.

2.3 A REDEFINIÇÃO DA CLÁSSICA DIVISÃO DAS FUNÇÕES DO ESTADO

O princípio da separação de funções do Estado está consagrado no art 2° do Texto Constitucional brasileiro, que diz: “são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

A clássica visão inerente ao Estado Liberal, no século XVIII, de que as funções do Legislativo, do Executivo e do Judiciário eram estanques e não se tocavam em hipótese alguma, salvo raríssimas exceções de exercício de funções atípicas autorizadas pela própria Constituição Federal, não pode persistir no Estado moderno.

Na percepção atual, a separação de funções do Estado assume uma nova concepção. É assim que entende Streck (2002, p. 101): “a soberania do parlamento cedeu o passo à supremacia da Constituição. O respeito pela separação de Poderes e pela submissão dos juízes à lei foi suplantada pela prevalência dos direitos do cidadão face o Estado”.

É perceptível que os anseios atuais de justiça não são mais compatíveis com uma visão de que a cada Poder do Estado corresponde uma função específica que lhe impede de atuar em situações de extrema relevância, em prol da efetividade dos direitos fundamentais e, em especial, dos direitos sociais.

Tavares (2005, p. 169) afirma que a separação absoluta de funções é “inaceitável e impraticável”. Devem-se conciliar a especialização da função com a movimentação em outras funções quando imprescindível à promoção das garantias fundamentais. É nesse aspecto que o autor (2005, p. 170) diz: […] o objetivo de uma repartição de funções seja realmente permitir o controle dos ‘poderes’ […]”.

Assim, Freire Júnior (2005, p. 37) reitera que a separação de funções não é um fim em si mesmo, mas um instrumento promovedor da efetividade dos direitos fundamentais consagrados na Constituição.

Não se pode conceber uma visão que leve a inefetividade dos direitos fundamentais, até porque não seria compatível com os próprios objetivos da República Federativa do Brasil, dentre os quais se destaca a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art 3°, I).

Por outro lado, a revisão da separação de funções não pode proporcionar a invasão, por exemplo, da discricionariedade administrativa. Deve haver proporcionalidade e razoabilidade quando se pensa nessa redefinição das funções. No mesmo sentido, pela redefinição da separação de funções, é Palu (2004, p. 63):

A separação Executivo-Legislativo fez parte de um momento histórico bem definido, de combate ao absolutismo. Insistir em tal separação, hoje, é, além de equívoco histórico, um notável erro de perspectiva, inviabilizando uma fundamental função estatal, a função de governo.

Nota-se a facilidade de defender a intervenção judicial nas demais funções quando se está diante de um direito fundamental social como a saúde. A solução estaria no estabelecimento de direitos fundamentais prioritários? A observação acerca desse assunto é bem esclarecida por Freire Júnior (2005, p. 42):

Uma postura mais ativa do Judiciário implica possíveis zonas de tensões com as demais funções do Poder. Não se defende, todavia, uma supremacia de qualquer uma das funções, mas a supremacia da Constituição, o que vale dizer que o Judiciário não é um mero carimbador de decisões políticas das demais funções.

A idéia que se deve ter é que o argumento da invasão ou usurpação de competência não pode ser tido como entrave à efetivação de direitos fundamentais, pois esses dizem respeito ao mínimo existencial de uma vida digna.

Bonavides (2004, p. 584) sustenta que o surgimento da teoria constitucional fundada, principalmente, nos direitos fundamentais se sobrepõe ao positivismo baseado na separação de poderes e distribuição de competências. Trata-se exatamente da transposição do Estado Liberal para o Social.

Corroborando esse entendimento, Palu (2004, p. 69) diz que um Estado calcado na estrita divisão de funções é extremamente deficiente e o princípio da legalidade deixa de ser tido como garantista, afinal se instala a tirania. Nessa perspectiva, deve-se privilegiar o princípio da constitucionalidade e não mais a legalidade.

É notório que o grande foco do constitucionalismo moderno consiste nos direitos fundamentais. É nesse contexto que Bonavides (2004, p. 587) adverte:

[…] faz-se mister introduzir talvez, nesse espaço teórico, o conceito de juiz social, enquanto consectário derradeiro de uma teoria material da Constituição, e sobretudo da legitimidade do Estado Social e seus postulados de justiça, inspirados na universalidade, eficácia e aplicação imediata dos direitos  fundamentais.

Trata-se, portanto, da necessidade de um controle exercido pelo Judiciário em relação aos demais poderes a fim de promover a efetividade dos direitos fundamentais e, sobremaneira, dos direitos sociais, que vêm sendo flagrante e reiteradamente desrespeitados.

Desse modo, verifica-se a insuficiência da hermenêutica clássica e o advento de uma nova hermenêutica, que na visão de Bonavides (2004, p. 589) é: “[…] inclinada a fortalecer abusivamente o poder judicial, propiciando a usurpação das competências políticas de ordinário reservada aos demais Poderes, a saber, o Legislativo e o Executivo”.

No entanto, frise-se mais uma vez, a imprescindibilidade de observar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade nessa intervenção, tendo em vista a disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado e mesmo a idéia de justiça distributiva, evitando-se o privilégio de algumas pessoas desfrutarem direitos fundamentais em detrimento de outras.

Bonavides (2004, p. 591) traz com clareza os pontos distintivos entre as hermenêuticas clássica e moderna:

Na Velha Hermenêutica, regida por um positivismo lógico-formal, há subsunção; em a Nova Hermenêutica, inspirada por uma teoria material de valores, o que há é concretização; ali, a norma legal, aqui, a norma constitucional; uma interpretada, a outra concretizada.

Nota-se que muito mais relevante que a consagração de dogmas é a sua concretização no mundo fenomênico. Retorna-se, portanto, aos ensinamentos de Lassale (2003, p. 52) no sentido de que a Constituição real/verdadeira deve suplantar a Constituição enquanto mera folha de papel.

É amplamente perceptível que o positivismo formal está em declínio, pois não atende mais aos anseios da sociedade moderna, que busca pela efetivação de direitos fundamentais sociais, os quais a despeito de estarem inseridos no Texto Constitucional não possuem efetividade.

O déficit garantista dos direitos fundamentais sociais, muitas vezes justificado na programaticidade de suas normas, cede espaço à busca pela eficácia imediata e juridicidade. Nesses moldes, ensina Bonavides (2004, p. 597), inspirado em Haberle:

A eficácia real dos direitos fundamentais para todos os cidadãos substituiu a eficácia formal clássica dos direitos civis. Novos direitos fundamentais, sociais e culturais, estabelecidos em numerosas Constituições e textos internacionais de direitos humanos resultaram deste impulso.

Nesses termos, há que se ter em vista a idéia de separação de funções inspirada pela teoria dos direitos fundamentais e não mais atrelada à limitação absoluta do poder do Estado.  É assim que conclui Freire Júnior (2005, p. 45): “tal postura é ínsita à nova leitura da separação de poderes, adequada ao nosso tempo de globalização e falta de paradigmas”.

No mesmo sentido, entendendo pela flexibilização e relatividade do princípio da separação de funções é o entendimento de Ferraz (1994, p. 46). A autora (1994, p. 45) corrobora, inclusive, a sustentação acima realizada, ao concluir o seguinte: “[…] pode-se admitir a viabilidade constitucional de delegação de poderes (ou da acumulação de funções) em casos outros que não os previstos expressamente na Constituição”.

Segundo a doutrinadora (1994, p. 21) essa flexibilização do princípio se deve à inovação da Constituição Federal de 1988, que, ao proclamar a independência e a harmonia entre os poderes, não faz qualquer restrição, como faziam os Textos Constitucionais anteriores.

Tal restrição podia ser observada, por exemplo, no art 6° da Constituição de 1967, introduzido pela EC 1/69, cujo p.u. dizia: “salvo as exceções previstas nesta Constituição, é vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições; quem for investido na função de um deles não poderá exercer a de outro”.

Porém, não consta referida limitação do Texto Constitucional de 1988. De sorte que foram suprimidas as cláusulas de indelegabilidade e de inacumulatividade (FERRAZ, 1994, p. 45), consagradas tradicionalmente nas Constituições brasileiras anteriores.

Assim, é perfeitamente possível a realização de uma interpretação mais ampla do princípio da separação de funções, sem esbarrar na argumentação do conflito de competências.

O que se deve ter em mente é que o princípio da supremacia da Constituição deve guiar todas as funções do Estado. Nesse sentido, pode-se afirmar que tanto o Legislativo quanto o Executivo, por exemplo, têm competência para exercer a guarda da Constituição e não somente o Judiciário.

E não será por isso que se poderá dizer, desde logo, que estará sendo transgredido o princípio da separação de poderes. E as razões para tanto passam a ser expostas.

O art 66, §1° do Texto Constitucional é categórico ao proclamar que o Executivo pode vetar projeto de lei nas hipóteses de interesse público ou inconstitucionalidade. Nesse cenário, é a segunda situação (a da inconstitucionalidade) que se torna relevante para o presente estudo.

Pois bem, Binenbojm (2004, p. 227) ensina que esses dois casos que viabilizam o referido veto possuem naturezas jurídicas diversas, de forma que o primeiro constitui ato de índole estritamente política e, portanto, trata-se de uma discricionariedade insuscetível de intervenção judicial.

E o segundo possui natureza jurídica a ensejar, portanto, o controle judicial. Assim, reitera Binenbojm (2004, p. 227):

[…] a maioria parlamentar que aprovou o projeto de lei e que entenda que o veto por inconstitucionalidade não é fundado, tem o direito de instaurar a controvérsia perante o Poder Judiciário e de obter um pronunciamento que anule aquele veto. E que permita, enfim, que aquele projeto se converta em lei.

Nessa situação, percebe-se que a doutrina não questiona haver invasão de competência do executivo no legislativo, talvez porque haja norma constitucional expressa nesse sentido. E mais, permite-se o controle pelo Judiciário.

Mas pela moderna visão do constitucionalismo deve-se privilegiar o construtivismo e, nesse sentido, viabilizar-se que em situações não positivadas, mas devidamente fundamentadas, haja, também, o controle do Judiciário em outros poderes e em outras situações, como as que envolvem os direitos sociais.

A outra questão diz respeito à possibilidade do Executivo deixar de aplicar uma determinada lei quando entendê-la inconstitucional. Nesse mesmo sentido é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme julgado constante da obra de Binenbojm (2004, p. 235), sob o fundamento de que não permitida essa situação estaria sendo automaticamente legitimada uma postura de repúdio.

Pois bem, mais uma vez se verifica que o Poder Executivo estaria atuando em esfera que tradicionalmente seria atribuível ao Judiciário. Porém, pela nova jurisdição constitucional isso se torna perfeitamente possível e até mesmo salutar no âmbito da democracia.

Nota-se que o ordenamento jurídico confere aos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário a tarefa de zelar pela supremacia constitucional. Nesse aspecto, corrobora Binenbojm (2004, p. 235):

É preciso desmitificar a idéia de que ao Poder Judiciário esteja reservado um monopólio sobre o controle de constitucionalidade. Na verdade, todos os Poderes devem reverência à Constituição e, mais ainda, têm o dever de impedir, dentro do seu elenco de competências, qualquer atentado à Lei Fundamental.

Não se pode atribuir ao princípio da separação de poderes a culpabilidade de haver controle entre eles, até porque a Constituição Federal consagra no art 2° que deve existir harmonia, o que é inconcebível diante do desrespeito da Lei Maior.

Assim, ensina Reis (2003, p. 234) a importância de se compreender esse princípio “[…] como verdadeiro fundamento para uma viva atuação do Poder Judiciário no controle dos atos do Estado”.

Bonavides (2003, p. 634) traça um paralelo muito interessante acerca das duas perspectivas inerentes ao princípio da separação de poderes:

Tocante ao princípio da separação de Poderes, enquanto inspirado pela doutrina de limitação do poder do Estado, é uma coisa; já, inspirado pela teoria dos direitos fundamentais, torna-se outra, ou seja, algo distinto; ali exibe rigidez e protege abstratamente o conceito de liberdade desenvolvido pela relação direta indivíduo-Estado; aqui ostenta flexibilidade e protege de maneira concreta a liberdade, supostamente institucionalizada na pluralidade dos laços e das relações sociais.

É de se perceber que o Estado atual não é mais compatível com um princípio da separação de poderes sem que haja entre eles a possibilidade de controle da constitucionalidade, em benefício da efetivação dos direitos fundamentais.

Trata-se da mudança de perspectiva, que não mais pode se ater à visão do Estado Liberal, cuja preocupação era com a estrutura formal, mas sim compatibilizar o princípio a partir do seu significado no Estado contemporâneo (REIS, 2003, p. 233). Traçada essa premissa, Coelho (2002, p. 137) esclarece:

Importa, portanto, entender a doutrina de separação de poderes não de um ponto de vista rígido e estático, senão dinâmico, dialético e histórico, com referenciabilidade a outros princípios constitucionais de igual dimensão axiológica, como, por exemplo, o princípio da conformação dos atos estatais à Constituição.

Deve-se perceber que os poderes estatais não podem, de forma absoluta, autojulgar-se, autolegislar-se ou autoadministrar-se; é imperioso que seja exercido um controle, de forma a viabilizar o respeito aos direitos fundamentais.

2.4 TEORIA DAS FUNÇÕES DO ESTADO E A RELEVÂNCIA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

É quase unânime na doutrina o entendimento de que a clássica divisão de funções traçada por Montesquieu está superada, devendo ser revista. Nesse sentido, afirma Tavares (2005, p. 171):

A evolução que sofreu a teoria separatista de Locke e Montesquieu, quanto à atual realidade, longe de propugnar seu fim, na verdade, aponta para um dos grandes problemas constitucionais do presente, que é a denominada ‘multifuncionalidade do Estado contemporâneo’.

Como dito anteriormente é preciso que se perceba a separação de funções no contexto do constitucionalismo brasileiro atual, que não mais se satisfaz com o cumprimento de funções por órgãos estanques do Estado, mas sim pela interligação entre eles, promovendo a efetivação dos direitos fundamentais.

Seguindo essa linha de pensamento, Tavares (2005, p. 172) sugere a atuação do Tribunal Constitucional enquanto um “[…] novo ‘poder’ na efetivação da supremacia constitucional”.

O autor (2005, p. 175) argumenta que ao Tribunal Constitucional cabem as funções não somente judiciais, mas também de governo e legislativa, diante de sua postura de fiscal da obediência da Constituição.

Nessa perspectiva, não é mais possível atribuir a cada órgão uma função, pois deve imperar o compartilhamento de funções. Isso se dá em virtude do controle político inerente ao Tribunal Constitucional.

Tavares (2005, p. 187) diz não ser mais possível diferenciar as funções do Estado tão somente no âmbito material, ou seja, em legislativa, executiva e jurisdicional. É imperioso que se estabeleça a distinção no âmbito formal e que se perceba a existência de uma nova função, ou seja, a de fiscalização e aplicação da Constituição, atribuível ao Tribunal Constitucional.

Torna-se de extrema relevância distinguir, ainda, a função cabível ao Tribunal Constitucional e ao Poder Judiciário. Quanto ao assunto ensina Tavares (2005, p. 190): “[…] o Judiciário existe, basicamente, para resolver as situações de conflito social-concreto, enquanto o Tribunal Constitucional […] está ordenado para a defesa da Constituição (como representação abstrata da vontade social)”.

Os Tribunais Constitucionais, portanto, seriam o centro jurídico do governo de um Estado, na medida em que são os fiscais da compatibilidade dos atos normativos editados pelo Estado com a Constituição.

No Direito brasileiro não existe um Tribunal Constitucional, ou seja, um órgão constitucional com a participação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com mandato transitório.

O Brasil possui, ao menos em tese, uma Corte Constitucional federal, isto é, o Supremo Tribunal Federal, porém trata-se de órgão do Poder Judiciário, com membros nomeados pelo Presidente da República, pelo critério da vitaliciedade, não havendo qualquer participação dos demais poderes constituídos, pois compete exclusivamente ao executivo a nomeação do juiz integrante do Supremo. Ao Senado compete exclusivamente o papel de aprovar ou rejeitar o nome proposto pelo Presidente.

Toda esta estrutura faz com que alguns autores, dentre eles, Nery Junior (2002, p. 25), afirme que o Supremo Tribunal Federal é ilegítimo como Corte Constitucional, ou seja, a ele caberia tão somente a decisão de casos concretos de competência originária ou recursal quanto à interpretação da Constituição Federal; como ocorre com os juízes singulares e tribunais inferiores.

Assim, para o referido doutrinador (2002, p. 27), o controle em abstrato pelo Supremo é ilegítimo por ofensa à harmonia e independência entre os poderes (art 2º da Constituição Federal), ou seja, “as ações declaratórias de constitucionalidade e direta de inconstitucionalidade são institutos absolutamente ilegítimos dentro do ordenamento constitucional brasileiro”.

Todavia, a despeito dessas argumentações, Tavares (2005, p. 378) considera o Supremo Tribunal Federal um Tribunal Constitucional. O autor (2005, p. 371) sustenta que os aspectos morfológicos dos Tribunais Constitucionais podem variar de país para país, em razão da diversidade de critérios existentes.

Dentre os critérios referidos, Tavares (2005, p. 371) elenca os seguintes: “[…] (i) forma de composição subjetiva; (ii) forma de mudança de seus integrantes; (iii) forma de composição orgânica (fracionamento) interna do Tribunal; (iv) forma de distribuição interna de tarefas; (v) forma de representação (externa) do Tribunal”.

Quanto à forma de composição subjetiva existem diversas variantes. Assim, a indicação dos membros do Tribunal Constitucional poderia se dar por nomeação de autoridades políticas; eleição pelo voto popular; concurso público de provas e/ou títulos; promoção de carreira por merecimento ou idade. Enfim, percebe-se uma variação possível de se estabelecer.

Tavares (2005, p. 374) sustenta que a realização de eleições é inadequada e justifica sua assertiva concluindo que:

[…] o princípio democrático não se reconduz ao princípio majoritário, ultrapassando-o e revelando-se em elementos diversos. Realmente o princípio majoritário não é absoluto e nem poderia sê-lo, caso contrário a atuação do Legislativo e do Executivo – órgãos reconhecidamente eleitos segundo o princípio da maioria – estaria resguardada inclusive nas eventuais violações que promovessem à Constituição, com o que se produziria insuportável imunidade da atividade desses ‘poderes’ e a conseqüente ruína do sistema jurídico e, com ele, de qualquer segurança ou justiça possível.

Nota-se que à composição do Executivo e do Legislativo se confere a participação democrática pelo voto, mas nem por isso esses órgãos estão a salvo de praticarem atos contrários à democracia.

Observa-se que o exercício da democracia não se restringe à possibilidade de eleição pelo voto popular. E, portanto, esse motivo não pode ser visto como promovedor da ilegitimidade do Tribunal Constitucional. Assim, corrobora Tavares (2005, p. 517) que “[…] o Tribunal Constitucional não só se assume como órgão legítimo, como também sua legitimidade é, em certa medida, democrático-majoritária e representativa”.

Tavares (2005, p. 497), argumentando sobre o tema, utiliza uma expressão muito precisa, ou seja, “democracia e representatividade para além das urnas”. Observa-se que existem inúmeras formas de legitimação democrática e não somente a eletiva.

O Tribunal Constitucional apresenta uma vertente popular, na medida em que representa a soberania popular ao proteger e aplicar a Constituição. Ademais, quando a Constituição estabelece expressamente a forma de composição desse Tribunal está sendo refletido o desejo da vontade majoritária da época de sua elaboração.

É nesse sentido que Tavares (2005, p. 504) retrata com bastante propriedade a idéia de legitimidade democrática indireta. Diz o autor (2005, p. 504):

[…] o Poder Judiciário não necessita de legitimidade popular direta ou de caráter representativo, pois sua legitimidade democrática encontrar-se-ia nítida na exclusiva sujeição às leis emanadas da vontade popular. Haveria, dessa sorte, uma legitimidade democrática indireta, pois a instituição (o que valeria para o Tribunal Constitucional) atuaria apenas na exata medida franqueada pelas leis (Constituição no caso do Tribunal Constitucional), estas sim carregadas com a legitimidade democrática direta.

É de se notar que a mesma argumentação feita acerca da frágil representatividade do Tribunal Constitucional poderia ser feita em relação ao Executivo e ao Legislativo, tentando-se demonstrar o melhor exercício da democracia pelo critério estritamente técnico e não o eletivo. De toda sorte, o sistema jurídico impulsiona a se seguir os mandamentos constitucionais e a questão se torna pacificada.

Além disso, um outro argumento favorável à representatividade do Tribunal Constitucional é a possibilidade desse órgão defender minorias, a partir da proteção de direitos fundamentais, em desfavor de eventuais maiorias parlamentares que estejam desrespeitando a Constituição.

O acesso à justiça em relação ao Tribunal Constitucional é outro ponto que reforça a sua representatividade democrática.

Assim, se verifica a importância que um verdadeiro Tribunal Constitucional exerceria no Brasil. Talvez a inefetividade de grande parte dos direitos fundamentais se deva justamente a sua inexistência no âmbito nacional.

Outras condicionantes relativas ao Tribunal Constitucional dizem respeito às idades mínima e máxima de seus integrantes, o que se revela importante na primeira hipótese, em razão da experiência de vida que o cargo exige e na segunda hipótese, pela perda de vitalidade e dinamicidade, daí o estabelecimento da aposentadoria compulsória.

A capacitação técnica e a diversidade cultural são outros dois pontos ressaltados por Tavares (2005, p. 380). Quanto à forma de mudança dos componentes do Tribunal, Tavares (2005, p. 385) esclarece que existem duas possibilidades: o mandato fixo e o cargo vitalício, porém dentre ambas a mais justificável é a primeira.

O ideal seria o mandato fixo atrelado às mudanças parciais, de forma que não saíssem simultaneamente todos os ministros, em razão da necessidade de serem transferidas e trocadas informações com os novos membros que ocuparem o cargo. Isso também é relevante pela manutenção da segurança jurídica, evitando-se que haja uma modificação brusca das orientações do Tribunal.

Outros aspectos destacados por Tavares (2005, p. 366) dizem respeito à viabilidade de se impossibilitar a recondução de quem já foi integrante do Tribunal e a possibilidade de seus membros sofrerem impeachment, diante da cumulatividade de funções que exercem, abarcando, inclusive, a política.

É de se verificar o alargamento do campo de atuação do Tribunal Constitucional, pois exerce o controle dos atos, em geral, emanados pelo Estado e não somente das leis.

Na percepção de Tavares (2005, p. 214), os Tribunais Constitucionais implicam em duas possibilidades: quando eles existem no Estado e estão em superatividade, pensa-se que está diante do descumprimento concreto da Constituição ou de um consenso contrário à norma; quando não existem ou estão inativos, vige o receio de que haja o cumprimento ou o descumprimento total da Constituição. Assim, o que se espera é a sua existência e de maneira adequada.

De acordo com Tavares (2005, p. 199), fundado em Valdés, o Tribunal Constitucional possui uma tríplice finalidade, qual seja, a de controlar a constitucionalidade dos atos do Poder Público; a de proteger direitos fundamentais e a de solucionar conflitos entre os órgãos do Estado e entes autônomos.

Mas cabe frisar que a função-matriz consiste na aplicação da Constituição. Assim, percebe-se a importância da existência desse Tribunal Constitucional, nos moldes acima estabelecidos, no Brasil, para a efetivação dos direitos sociais; a implementação de políticas públicas.

3. A INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS SOCIAIS

3.1. O CONHECIMENTO JURÍDICO TRADICIONAL E A TEORIA CRÍTICA DO DIREITO

A concepção do Estado moderno é incompatível com o conhecimento jurídico tradicional, fundado no formalismo e no dogmatismo, em que o intérprete se utiliza de um processo dedutivo a partir do qual realiza a subsunção dos fatos apresentados à norma jurídica.

Aliado a isso, há a análise rígida de princípios e conceitos, inclusive, os constitucionais, sendo impensável a realização de qualquer ponderação a fim de promover a justiça.

Nessa perspectiva ultrapassada, direito e política não se interligam nunca. É assim que explica Barroso (2004, p. 277): “o direito é concebido como uma ciência, como objeto específico e acentuado grau de auto-suficiência. Rigorosamente separado da política […]”. Trata-se da neutralidade científica.

O Estado, percebido a partir de suas peculiaridades atuais, ou seja, que tem em vista a promoção do bem estar social, está intrinsecamente focado no alcance da justiça.

Visando ultrapassar as idéias consagradas pelo saber jurídico tradicional, Barroso (2004, p.278) ressalta a importância da teoria crítica do direito. Nesse sentido, ensina que esse movimento desprende-se dos discursos típicos do direito, que incluem o normativismo, o jusnaturalismo e mesmo o sociologismo, procurando demonstrar a sua insatisfatoriedade na compreensão e na prática do fenômeno jurídico. É a crítica da teoria.

A teoria crítica propõe que o conhecimento não seja atrelado somente à interpretação do mundo, mas também a sua transformação. Isso se concilia exatamente com o papel do Estado, e mesmo dos particulares, em promover a transformação social, oferecendo o mínimo de condições para uma existência digna.

A teoria crítica questiona basicamente três pontos: o caráter científico do direito; a neutralidade política e científica (BARROSO, 2004, P. 281).

Entende que o direito não é ciência, porque não há objetividade na aplicação do fato à norma, além dos princípios e conceitos não serem válidos de forma absoluta.

Sustenta que a neutralidade política é uma farsa, em razão do intérprete estar impregnado de ideologias e proporcionar a sua disseminação nas diversas relações sociais que lhe são apresentadas.

Quanto à neutralidade científica, essa se revela impossibilitada diante da irrefutável interdisciplinaridade enquanto meio formador do saber jurídico.

Segundo Barroso (2004, p. 284), o método jurídico tradicional, calcado na objetividade plena, não vislumbra a possibilidade de uma atuação ativa do Judiciário.Mas o autor (2004, p. 287) traça uma ponderação de elevada relevância:

A racionalidade do conhecimento procura despojá-lo das crenças e emoções subjetivas, puramente voluntaristas, para torná-lo impessoal, na medida do possível. A medida do possível variará imensamente, em poucas áreas enfrentará dificuldades como no direito. É que a ciência jurídica, ao contrário das ciências exatas, não lida com fenômenos que se ordenem independentemente da atividade do cientista. E assim, tanto no momento de elaboração quanto no de interpretação da norma hão de se projetar a visão subjetiva, as crenças e os valores do intérprete.

Nota-se que é praticamente impossível que o juiz implemente uma objetividade plena na realização de sua função, porém isso não o impede de buscar pela objetividade dentro do possível.

A subjetividade do julgador se revelará precisamente quando tiver em vista proferir uma decisão justa, afinal ele estará lidando com a sua própria sensibilidade, a partir do seu conceito de justiça.

E verifica-se que a justicialidade, demonstrada por Palu (2004, p. 264) é uma realidade no Estado atual. Retrata o doutrinador (2004, p. 264):

Se era possível que a concepção da função jurisdicional no Estado de Direito se limitasse a ser vista como ‘a boca que pronunciava as palavras da lei’, que era como Montesquieu definia os juízes, eis que a lei era justa, com a deturpação havida e o desvio para o Estado legal, tal quadro altera-se profundamente.

Hoje isso não é mais possível, afinal o juiz não é mero repetidor da lei, mas sim aquele que realiza o Direito promovendo a justiça. Nesse aspecto, afirma Barroso (2004, p. 291):

O juiz não pode ignorar o ordenamento jurídico. Mas, com base em princípios constitucionais superiores, poderá paralisar a incidência da norma ao caso concreto, ou buscar-lhe novo sentido, sempre que possa motivadamente, demonstrar sua incompatibilidade com as exigências de razoabilidade e justiça que estão sempre subjacentes ao ordenamento.

Percebe-se que o Direito não pode ser visto de maneira rígida, mas deve ser observado de forma flexível para que o juiz possa realizar justiça, tendo em vista os princípios constitucionais e a supremacia da Constituição, ou seja, sem perder de vista o sistema jurídico, sob pena de serem perpetradas arbitrariedades. Assim, há que estarem presentes a justiça e a razoabilidade.

Essa nova percepção do direito é fundamentada por Barroso (2004, p. 292) diante da necessidade histórica. O autor sustenta não ser mais coerente ver o direito constitucional brasileiro como uma miragem, ao dizer que “[…] as honras de uma falsa supremacia […] não se traduz em nenhum proveito para os cidadãos. Sobretudo os que, já desamparados de fortuna, ficam também desprovidos da proteção das normas jurídicas”.

Nesses moldes, observa-se a importância da efetividade das normas consagradoras de direitos sociais e, portanto, a relevância do ativismo judicial, a fim de que isso se implemente na realidade prática.

Acrescente-se ainda, que para o alcance desse fim, o mais sensato é conferir um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais, tal qual o de Reis (2003, p. 184), ao interpretar o §2° do art 5° da Constituição. Para o autor (2003, p. 185) existem direitos fundamentais fora do catálogo do título II, pois basta estarem “[…] ligados à ordem de valores dominante e às circunstâncias sociais, políticas, econômicas e culturais de nossa ordem constitucional”.

3.2. POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DO TEMA

Traçadas essas premissas, passa-se, especificamente, ao enfrentamento das correntes doutrinárias quanto à possibilidade ou não de intervenção judicial para a efetivação de direitos sociais.

Há um posicionamento da doutrina que nega a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário no controle de implementação dos direitos sociais, ou mesmo, que percebe essa atuação judicial com reservas, ou seja, possível de se realizar em situações bem delimitadas.

Na esteira desse último pensamento, isto é, aprovando esse controle em situações específicas, é o entendimento de Appio (2005, p. 140), segundo o qual há que se distinguir duas questões; uma referente à formulação e outra à execução das políticas públicas viabilizadoras dos direitos sociais.

No que diz respeito ao controle judicial na formulação dessas políticas públicas, o autor (2005, p. 151) é enfático em afirmar que “as conseqüências da adoção de um modelo ilimitado de jurisdição dos direitos sociais e de implementação das políticas econômicas pelo Poder Judiciário, além de inconstitucional, traria conseqüências políticas importantes”.

E o fundamento desse posicionamento é que a autorização desse controle na formulação das políticas públicas implicaria em substituição da discricionariedade do administrador pela do juiz (APPIO, 2005, p. 151). Portanto, na visão do autor haveria usurpação de competência do Judiciário, o que, segundo ele (2005, p. 151), é inadmissível, sob pena de se admitir “[…] a intervenção dos Poderes Legislativo e Executivo na atividade judicial”.

Além disso, a inconstitucionalidade estaria alicerçada, de acordo com Appio (2005, p. 156), na ofensa à democracia representativa, mas esse argumento já foi refutado nessa pesquisa ao se afirma que a democracia representativa não se resume às urnas.

Nesses termos, prega Appio (2005, p. 157) a seguinte ponderação: “muito embora o Poder Judiciário possa proceder a um exame acerca da constitucionalidade destas leis, sempre que demandado, a formulação da política pública compete ao Poder Legislativo”.

O doutrinador (2005, p. 157) sustenta que essa formulação de políticas, por seu caráter político, é uma atribuição única e exclusiva de governos eleitos, porque decorreriam do sistema representativo. Mas, como já afirmado nesse estudo, o Judiciário não deixa de ser representativo pelo simples fato de não ser eleito. Nesse aspecto, não parece correta a conclusão de Appio (2005, p. 167):

O grau de sucesso de uma política pública depende, portanto, da combinação dos modelos representativo e participativo de democracia, os quais devem funcionar de modo complementar, garantindo a legitimidade das decisões governamentais através de mecanismos que aproximem governantes e governados em torno do núcleo da Constituição, os direitos fundamentais.

Isso porque, como bem salienta Tavares (2005, p. 505), o que deve prevalecer é a soberania popular, mas esclarece: “contudo, nada impede que um órgão não investido a partir de eleições diretas seja capaz de assegurar as decisões materiais da sociedade”.

E o Poder Judiciário é legítimo na medida em que representa a democracia indireta, haja vista a sua atuação ser autorizada pela Constituição, que, por sua vez, representa a democracia direta (TAVARES, 2005, p. 504).

Mas Appio (2005, p. 167) tem entendimento diverso no que se refere à execução de políticas públicas realizadoras de direitos sociais. Diz o autor (2005, p. 167):

Ao mencionar os deveres do Estado, o constituinte está, em verdade, erigindo uma obrigação estatal que deverá ser cumprida pelo Poder Executivo, motivo pelo qual a intervenção positiva do Poder Judiciário se revela como excepcional e vinculada aos casos previstos na Constituição.

Esse argumento, ao revés do anterior, parece sensato, haja vista possibilitar a atuação judicial nas situações em que não haja prerrogativa constitucional fixada para o Poder Executivo. É nessa perspectiva que Appio (2005, p. 168) elenca os casos passíveis de controle judicial, quais sejam:

1°) a política social já se encontra abstratamente prevista na lei ou na Constituição e corresponde à outorga de direitos coletivos; 2°) o Poder Executivo ainda não implementou a política social prevista na Constituição; 3°) o Poder Executivo, ao implementar a política social, rompeu com o princípio da isonomia (atendimento parcial de um dever constitucional).

Ademais, o autor (2005, p. 168) sustenta a imprescindibilidade de demonstração da “fonte de financiamento de implantação ou extensão de um programa social” bem como o respeito pela lei orçamentária anual.

Porém, no que se refere ao respeito pelo orçamento pré-fixado em Lei há que se verificar, também, a possibilidade do Judiciário realocar recursos de áreas flagrantemente inessenciais para aquelas que realmente possuem aquela necessidade básica.

Nesses moldes, o próprio Appio (2005, p. 176) faz a seguinte sugestão: “as estimativas do governo podem não corresponder à realidade, o que conduzirá à necessidade de apresentação de uma emenda à lei orçamentária anual, com o objetivo de atender a uma situação contingencial […]”.

Trata-se da verificação, pelo Poder Judiciário, do caráter fantasioso do orçamento, visando aproximá-lo da realidade brasileira.

No que diz respeito ao direito fundamental à saúde, Appio (2005, p. 184) defende a intervenção do Poder Judiciário, tendo em vista a preservação do direito à vida. E mais, entende que os direitos sociais têm aplicação imediata. Diz Appio (2005, p. 184):

A negativa da pretensão de compra de um medicamento especial ou o pagamento de uma despesa com tratamento médico específico pode representar a negativa do direito à vida do cidadão, o qual é garantido pela Constituição, sendo que os direitos sociais têm aplicabilidade imediata […] Neste caso, o juiz estará determinando o cumprimento de uma prestação positiva sem o correspondente amparo em lei, apenas com respaldo num dever genérico do Estado em determinada área de atuação social.

Tal assertiva está correta e condizente com o papel do Estado de implementador de direitos sociais.

Nesse mesmo sentido, Appio (2005, p. 189) defende a possibilidade de intervenção do Judiciário na realização do direito à educação, possibilitando, inclusive, a realocação de verba pública. Assevera o autor (2005, p. 191):

Um dos exemplos mais marcantes de controle de políticas sociais através das ações civis públicas é o da busca de garantia dos repasses obrigatórios previstos na Constituição, quando então o Poder Judiciário estará interferindo na prática de um ato administrativo, como, por exemplo, sucede em relação aos recursos previstos na DRU (Desvinculação das Receitas da União).

Nota-se que o orçamento fixado em lei não pode ser impeditivo da realização do mínimo existencial, preservador da dignidade da pessoa humana.

Na mesma linha de pensamento, mas defendendo uma posição mais radicalmente contrária a intervenção judicial em políticas públicas realizadoras de direitos sociais, é o entendimento de Barroso (2004, p. 232). O autor (2004, p. 232) afirma:

É preciso ter em linha de conta que, em um Estado Democrático, a definição das políticas públicas deve recair sobre os órgãos que têm o batismo da representação popular, o que não é o caso dos juízes e tribunais […] a última palavra poderá ser sempre do Legislativo […] que […] poderá ele, no exercício do poder constituinte derivado, emendar a norma constitucional e dar-lhe o sentido que desejar.

Deve-se refutar esse entendimento, na medida em que o Legislativo não pode ser tido como um superpoder, apto a realizar desmandos e arbitrariedades. A atuação do Judiciário é justamente fiscalizar os demais poderes para coibir esse tipo de conduta e promover o bem estar social.

O autor (2004, p. 233) é contrário à possibilidade do Judiciário intervir no mérito dos atos dos Poderes Públicos, sob pena de substituição da conveniência e oportunidade da Administração Pública ou do Legislativo pela do Judiciário. E fundamenta esse posicionamento com um julgado do Supremo Tribunal Federal de 1970, o qual se transcreve abaixo:

Harmonia dos Poderes. Art 6° da Emenda Constitucional n. 1. A decisão recorrida invadiu área de estrita competência da Administração Pública ao mandar reabrir e equipar uma enfermaria de hospital fechada por conveniência do serviço público. Inadmissibilidade da apreciação de tal providência pelo Poder Judiciário. Recurso conhecido e provido.

Mas há que se contextualizar essa decisão com a realidade pátria atual. Esse julgado foi proferido sob a égide da Constituição de 1967 que, como já dito, previa expressamente a vedação de interferência entre os poderes do Estado.

E, como amplamente fundamentado no capítulo anterior dessa pesquisa, não se pode conceber o princípio da separação de funções de forma rígida, sob pena de não se realizar o Estado moderno e, conseqüentemente, os direitos sociais consagrados em seu Texto Constitucional.

Também defendendo uma intervenção moderada do poder Judiciário em relação ao controle dos atos dos demais poderes públicos é o entendimento de Reis (2003, p. 223), ao dizer que:

O controle exercido pelo Poder Judiciário sobre os atos do Estado restringe-se aos seus aspectos de legalidade, não se podendo imiscuir em questões políticas, isto é, não podendo haver interferência em atos norteados por uma opção política ou discricionária do administrador ou do legislador, ligada a critérios de oportunidade e conveniência.

Porém, desenvolvendo melhor esse pensamento, Reis (2003, p. 227) desconstrói esse entendimento, ao diferenciar a análise pelo Judiciário de questões políticas abstratas e concretas.

Essas questões políticas analisadas concretamente são aquelas que afetam diretamente a realização de direitos fundamentais. Nessa hipótese, surge a inafastabilidade de apreciação pelo Judiciário de lesão ou ameaça a direito, consagrada no art 5°, XXXV da Constituição.

É nesse sentido que o autor (2003, p. 227), inspirado em Eros Roberto Grau, afirma que: “[…] o exame da discricionariedade pelo Poder Judiciário, uma vez provocado, sempre se impõe, de modo que falta com o seu dever aquele juiz que, liminarmente, de plano, recuse-se a fazê-lo.

O que se deve ter em mente é que o ato discricionário tem uma vinculação mínima à judicialidade, ou seja, vinculação à lei, à Constituição e, mais, ao ordenamento jurídico.

O ato discricionário é o espaço reservado à autoridade para tomar a decisão ótima no caso concreto que analisa. De forma que, qualitativamente, não há distinção entre atos discricionários e vinculados, o que só se estabelece quantitativamente, ou seja, diante da maior ou menor proximidade com a juridicidade.

Assim, o Judiciário pode analisar todos os elementos do ato administrativo, inclusive, o mérito. Trata-se da releitura do Estado Democrático de Direito. Uma vez possibilitada essa atuação, a intervenção judicial se reduz a própria discricionariedade administrativa.

Reis (2003, p. 229) sustenta, com precisão, que “o próprio conceito de ato político tem que ser interpretado restritivamente, em virtude dos princípios da supremacia da Constituição e da inafastabilidade do controle jurisdicional”. O mesmo deve ser aplicado quanto aos atos discricionários de maneira ampla.

O autor (2003, p. 230) cita, corroborando seu entendimento, mas em relação a atos do Legislativo, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, numa decisão em mandado de segurança (23.585) de 17/12/1999, cujo relator foi o Ministro Celso de Mello, que diz:

[…] a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal jamais tolerou que a invocação da natureza política dos atos emanados das Casas Legislativas pudesse constituir – naquelas hipóteses de lesão atual ou potencial de direito de terceiros – um ilegítimo manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários.

Nota-se que o controle exercido pelo Poder Judiciário é de extrema relevância, na medida em que se manifesta “[…] um importante veículo para a concretização dos direitos fundamentais” (REIS, 2003, p. 242).

Assim, Reis (2003, p. 264) acaba por defender o exercício, pelo Poder Judiciário, de funções políticas, tendo em vista o respeito pelos direitos fundamentais, inclusive, os direitos sociais. Nesse sentido, diz:

A política deixa, assim, de circunscrever-se aos Poderes Legislativo e Executivo, submetendo-se à apreciação do Judiciário, até mesmo em virtude da aplicação do princípio da razoabilidade, expressão material do devido processo legal consagrado na Constituição (CF, art 5°, inc. LIV).

No Estado moderno verifica-se que o juiz não tem somente uma responsabilidade processual, mas também, e principalmente, política, enquanto realizador dos objetivos da República Federativa do Brasil fixados na Constituição.

Defendendo a intervenção judicial na realização de direitos sociais de forma ampla e incontroversa, na esteira do pensamento desenvolvido nessa pesquisa, são os autores que se passa a estudar.

Comparato (1997, p. 355), em obra coordenada por Mello, defende “a irrecusabilidade do juízo de constitucionalidade de políticas governamentais”, afastando, de plano, a idéia de que o princípio da clássica separação de funções seja um entrave no exercício da competência fiscalizadora do Judiciário.

O doutrinador (1997, p. 356) ressalta a importância de intervenção judicial tanto nas hipóteses de inconstitucionalidade por ação quanto por omissão. Destaca ainda, a relevância dessa atuação estatal de forma preventiva, quando reitera:

Assim, antes mesmo de se realizar em pleno um programa de atividades governamentais contrário à Constituição, seria de manifesta utilidade pública que ao Judiciário fosse reconhecida competência para impedir, preventivamente, a realização dessa política.

De acordo com os ensinamentos de Comparato (1997, p. 358), a sobrecarga vivenciada pelo Supremo Tribunal Federal na análise dessa matéria enseja “[…] a criação de um órgão judiciário encarregado exclusivamente de julgar litígios constitucionais, diretamente ou em última instância”. Tal se assemelha à defesa aqui realizada quanto ao Tribunal Constitucional.

Na mesma obra coordenada por Mello, Ferreira (1997, p. 564) defende a intervenção do Judiciário no exercício do controle externo de fiscalização nos demais poderes, afinal isso seria manifestação do próprio Estado Democrático de Direito.

Contudo, o doutrinador rejeita a possibilidade de controle externo em sentido próprio, ou seja, o controle direto, pois implicaria em ingerência mais aprofundada, a configurar a co-participação.

Ao mesmo tempo em que realiza essa argumentação, Ferreira (1997, p. 554) prega a superação da clássica divisão de funções do Estado, o que torna a sua discussão problemática, afinal há a ampliação da função jurisdicional, por ele mesmo (1997, p. 571) defendida.

Quanto à atuação judicial na discricionariedade do ato administrativo, Ferreira (1997, p. 584) entende ser perfeitamente possível, pois quem irá fixar a reserva administrativa será o próprio Judiciário.

Assim, ensina Ferreira (1997, p. 584) se referindo ao Judiciário: “é que ele, afinal, dá a última palavra quanto a se saber se aquela área, que está sendo questionada judicialmente, é uma área que deve ficar reservada ao administrador, ou se é um aspecto que ele deva, também apreciar”.

Outro autor que segue essa linha de pensamento é Coelho (2002, p. 6) ao entender que os Poderes Públicos devem respeito aos vetores axiológicos constitucionalmente consagrados. Assim, Legislativo e Executivo devem respeito aos preceitos e princípios traçados pela Constituição; quando houver transgressão cabe a intervenção do Judiciário. Nesse sentido, esclarece:

[…] ousaria dizer que, quando os Poderes Legislativo e Executivo falharem e se acovardarem no implemento desses vetores, o Poder Judiciário deve ter a coragem de fazer concretizar, nas hipóteses submetidas a seu exame, as normas constitucionais, independentemente de prévia atividade legislativa ou administrativa.

Mais uma vez fica reforçada a idéia de eficácia plena e imediata dos direitos sociais, a ponto de proporcionar que o Judiciário dê efetividade às normas que os consagre. Essa intervenção judicial decorre de sua competência na guarda da Constituição.

Coelho (2002, p. 7) rompe a barreira relativa às normas programáticas, pretensas inviabilizadoras da efetivação de direitos sociais, afirmando que: “[…] como guardião da Constituição, o Poder Judiciário deve aplicá-la sem restrições, diretamente que seja, sem a intermediação da Lei, no tocante inclusive a sua principiologia e às normas que conduzem carga programática”.

O autor (2002, p. 37) defende, ainda, a possibilidade do Judiciário controlar tanto os atos administrativos vinculados quanto os discricionários. No que diz respeito aos discricionários, vislumbra o controle judicial amplo e irrestrito, sempre que houver provocação, em obediência ao princípio da inafastabilidade da jurisdição contido no art 5°, XXXV do Texto Constitucional (COELHO, 2002, p. 47).

Ao tratar especificamente do controle jurisdicional na discricionariedade administrativa e legislativa, Coelho (2002, p. 84) revela a importância do princípio da proporcionalidade em sentido amplo, para que seja possível viabilizar o respeito ao princípio da igualdade, o qual, no que se refere aos direitos sociais, deve ser visto a partir da imprescindibilidade do estabelecimento de distinções.

Nessa tarefa, o julgador deve guiar-se pelo ordenamento constitucional, o que refuta, de pronto, o argumento de que se estaria diante do governo de juízes, por se entender haver subjetivismo nessa análise. Nesses termos, afirma Coelho (2002, p. 89):

A segurança jurídica só se justifica e se legitima diante da consagração de uma ordem jurídica que respeite a dignidade humana, os direitos fundamentais, os direitos sociais e os valores tutelados pela Constituição. E nesse contexto, na busca do equilíbrio entre a unidade e a diversidade, entre as dimensões individual e social do Homem, o princípio da proporcionalidade tem missão incomum a realizar.

Outro ponto destacado por Coelho (2002, p. 99) são os conceitos jurídicos indeterminados. Mas o autor entende que a existência deles no ordenamento é de vital importância diante da função projetiva das normas (possibilidade de alcançaram os destinatários no futuro).

Segundo o autor (2002, p. 105) nessas situações se está diante de atos vinculados, passíveis de controle jurisdicional, a despeito de se argumentar pela discricionariedade técnica. Nesse sentido, Coelho (2002, p. 106) prega “a submissão integral da administração pública ao controle jurisdicional”.

Coelho (2002, p. 107) traça uma distinção de extrema relevância entre conceitos jurídicos indeterminados e poderes administrativos. No sentido de que em relação aos primeiros, na análise concreta, só há uma possibilidade de solução justa, já no que se refere aos segundos, há uma variedade de soluções justas, dentre as quais o administrador terá que fazer a opção.

Em razão disso é que se afirma que os conceitos jurídicos indeterminados revelam seu caráter vinculado, passível, portanto, de controle jurisdicional. É assim que enfatiza Coelho (2002, p. 111): “[…] o ato de concretização de um conceito jurídico indeterminado não envolve um juízo de conveniência e oportunidade, mas sim de interpretação e legalidade […]”. O doutrinador (2002, p. 132) revela a importância dessa assertiva, ao dizer que:

No exercício do controle dos conceitos jurídicos indeterminados reclama-se agora um ir além, com um Poder Judiciário que garanta o Estado de Direito, mas que seja ainda partícipe do processo político, garantidor e concretizador, na dimensão ativa dos reclamos do Estado Social de Direito.

Percebe-se a defesa do autor em relação ao ativismo judicial e sua importância na efetivação dos direitos sociais, tão necessária no estágio de Estado pelo qual vem passando o Brasil. Quanto ao tema em debate, Coelho (2002, p. 183) é categórico:

[…] todo e qualquer ato praticado pelo Governo – seja político ou não […] – sujeita-se à Constituição; subordina-se aos requisitos formais e materiais nela postos. Em conseqüência, como cabe ao Pode Judiciário velar pela constitucionalidade das ações estatais, nenhuma questão, mesmo política pode ser subtraída de sua apreciação.

Essa postura é de suma importância para que o Brasil alcance o Estado Democrático de Direito e demonstre à população o respeito pelos direitos fundamentais, em especial, os direitos sociais, tão flagrantemente desrespeitados cotidianamente.

Outro doutrinador defensor da intervenção judicial na efetivação de direitos sociais é Freire Junior (2005, p. 61) ao declarar que “a atuação do juiz deve ser na efetivação das normas constitucionais, especialmente dos direitos fundamentais, mesmo que isso implique desagradar maiorias ocasionais”.

O autor (2005, p. 62) concorda com o ativismo judicial tanto na formulação de políticas públicas quanto na execução. Ele (2005, p.71) argumenta que nas hipóteses de omissão dos Poderes Públicos não há que se falar em discricionariedade e sim em arbitrariedade, a ser corrigida pelo Judiciário. Assim, ensina (2005, p. 70):

Frise-se que, em nenhum momento pretende-se colocar o Judiciário acima dos demais poderes. Ao contrário, em regra, o Executivo e o Legislativo devem proporcionar a efetivação da Constituição; contudo, quando tal tarefa não foi cumprida, não pode o juiz ser co-autor da omissão e relegar a Constituição a um nada jurídico.

Nota-se que a função do juiz é nitidamente a de promovedor da efetividade da Constituição, quando provocado e verificando a imprescindibilidade de sua atuação para o alcance dos objetivos da República Federativa do Brasil.

No que tange ao conflito entre orçamento e efetivação de direitos fundamentais, Freire Junior (2005, p. 78) defende a prevalência da segunda hipótese, pois a reserva do possível não pode ser a justificativa para o descumprimento reiterado da Constituição.

Há ainda, o posicionamento, no mesmo sentido, de Streck (2002, p. 128), segundo o qual deve-se redimensionar a clássica tripartição de funções do Estado e observar que, nesse cenário, o Judiciário assume um novo papel, na tentativa de resgatar as promessas da modernidade descumpridas.

De acordo com Streck (2002, p. 156), o Judiciário deve assumir uma postura ativa na seara política a fim de realizar direitos sociais. Nesses moldes afirma, com fundamento em Krell, que:

Quando falo em ‘intervencionismo substancialista’, refiro-me ao cumprimento dos preceitos e princípios ínsitos aos Direitos Fundamentais Sociais e ao núcleo político do Estado Social previsto na Constituição de 1988. Ou seja […] onde o processo político (Legislativo, Executivo) falha ou se omite na implementação de políticas públicas e dos objetivos sociais nela implicados, cabe ao Poder Judiciário tomar uma atitude ativa na realização desses fins sociais através da correição de prestações dos serviços sociais básicos.

Trata-se do Poder Judiciário atuando na defesa dos direitos sociais essenciais à preservação da qualidade mínima da vida humana. Essa linha de pensamento é mais condizente com a observação do Direito enquanto realização do justo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De todo o exposto, verifica-se a imprescindível observação do paradigma que o Brasil está vivenciando. Isso é facilmente constatado a partir da percepção de que há um déficit na efetivação de direitos sociais, direitos mínimos a possibilitar uma vida digna.

Na visão de Streck (2002, p.62), “[…] a minimização do Estado em países que passaram pela etapa do Estado Providência ou Welfare State tem conseqüências absolutamente diversas da minimização do Estado em países como o Brasil, onde não houve o Estado Social”.

Nota-se que o autor deixa claro, o que é extremamente coerente, que o Brasil precisa, na atualidade passar e realizar o Estado Social, portanto, de cunho intervencionista e buscando a efetivação de direitos sociais, diante da falha ou omissão dos demais Poderes para que se possa imaginar o enfrentamento de um Estado Democrático de Direito.

Em razão disso, ainda não é possível o estabelecimento, no Brasil, de um Estado mínimo, mas, ao contrário, é imperioso que se sustente um Estado que intervenha, a fim de viabilizar mudanças na qualidade de vida da população, em respeito à dignidade da pessoa humana.

Essa estruturação só será concretizada quando houver a desconstrução do constitucionalismo clássico e o alcance do constitucionalismo moderno, promovedor dos direitos fundamentais bem como dos valores e objetivos traçados na Constituição.

No mesmo sentido é a sustentação de Ferreira (1997, p. 554) ao declarar: “cumpre romper estruturas mentais; abrir novos horizontes; superar preconceitos processuais e tabus judiciários, para que o Estado Democrático de Direito se efetive neste campo, o que lhe é fundamental”.

A grande questão da modernidade é a realização da justiça, tendo como parâmetro o Texto Constitucional e não mais uma visão arcaica calcada no formalismo exacerbado, em desprestígio do próprio bem estar social.

É preciso perceber o Direito e, em especial, o Direito Constitucional, enquanto instrumento de promoção do bem comum e não transgressor de direitos fundamentais, essenciais numa verdadeira democracia. Essa argumentação é resumida por Coelho (2002, p. 211) num questionamento que merece ser transcrito:

Na periferia da globalização, as perversas elites brasileiras e um sem-número de equivocados intelectuais e políticos pretendem minar o Estado Social de Direito desenhado na Constituição Federal. Que importam valores como justiça, igualdade, solidariedade, dignidade da pessoa humana, se o que se busca é apenas e tão-somente a produtividade, a acumulação de capital, justamente na contramão dos grandes vetores constitucionais?

O foco do debate, portanto, é o cumprimento, pelo Estado, de seu papel de formulador e executor de políticas públicas, implementadoras de direitos sociais, e a possibilidade de intervenção judicial, diante da inércia ou falha dos Poderes Executivo e Legislativo. Trata-se da defesa do ativismo judicial na construção de um Estado de justiça.

Referências
APPIO, Eduardo. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005.
BARROSO,      Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e instrumento de realização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
_________  Curso de direito constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
COELHO, Paulo Magalhães da Costa. Controle jurisdicional da administração pública. São Paulo: Saraiva, 2002.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
_________ O juízo de constitucionalidade de políticas públicas. In Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. Mello, Celso Antonio Bandeira de Mello (org). São Paulo: Malheiros, 1997.
FERRAZ, Ana Cândida da Cunha. Conflito entre poderes: o poder congressual de sustar atos normativos do poder executivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994.
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Informações Sobre o Autor

Fernanda Silva Tose

Mestranda em Políticas Públicas e Processo pela Faculdade de Direito de Campos (FDC – RJ), pós-graduada em Direito Público pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV – ES) e advogada.

Equipe Âmbito Jurídico

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