Resumo: A crise do modelo do Estado Social e da inviabilidade da proposta de Estado mínimo dirigiu as reformas para a reconstrução do Estado de modo que este pudesse realizar, além de suas tarefas clássicas (garantia da propriedade e dos contratos), a função de garantidor dos direitos sociais. Nesse contexto reforça-se o papel da sociedade civil organizada por meio da satisfação de necessidades públicas a partir de suas iniciativas, bem como a exigência de que a esfera pública esteja aberta à participação de todos e voltada para o interesse de todos. Esse protagonismo ressalta a importância da esfera pública e da participação dos cidadãos quer na prestação e execução de serviços, quer mediante o controle social, buscando reviver os ideais de democracia, cidadania e participação dos gregos.
Palavras-chave: reforma do Estado – sociedade civil – esfera pública – participação – controle social.
Abstract: The crisis of Welfare State model and the inviability of the Minimum State proposal direct the reform to the State reconstruction that allowed to it realize, beyond its classic functions (property and contracts guarantee) another one that guarantee social rights. In this context the role played by civil society is reinforced by the public necessities satisfaction for its initiatives and the participation requests in public sphere. This role reinforce the importance of public sphere and citizen participation in the services execution or in the social control, desiring revive the Greek ideals of democracy, citizenship and participation.
Keywords: State reform – civil society – public sphere – participation – social control.
Sumário: 1. Introdução; 2. Controle Social e Participação: Resgate do Ideal Grego; 3. Conclusão; 4. Referências Bibliográficas
1. INTRODUÇÃO
A crise do modelo de Estado Social, caracterizado como provedor dos serviços sociais básicos, fez surgir, por volta da década de 70, correntes neoliberais que apregoavam reformas econômicas orientadas para o mercado e visavam à configuração de um Estado mínimo. No entanto, se verificou a inviabilidade da proposta de Estado mínimo e as reformas se dirigiram para a reconstrução do Estado, de modo que este pudesse realizar não somente suas tarefas clássicas de garantia da propriedade e dos contratos, mas também seu papel de garantidor dos direitos sociais.
Neste contexto, a reforma significava a transição de um Estado que promove diretamente o desenvolvimento econômico e social para um Estado que atue como regulador e facilitador desse desenvolvimento. Situada entre as propostas neoliberais e as referentes à manutenção do Estado do Bem-Estar social, a Terceira Via, refletida no Estado Social Liberal, visa à redução do Estado não ao mínimo dos neoliberais, mas a uma posição mais regulatória e menos intervencionista, sob pressupostos de que há atividades exclusivas, pertencentes à esfera pública estatal, atividades não exclusivas relacionadas aos serviços sociais e científicos, pertencentes à esfera pública não estatal, e as atividades relativas à produção de bens e serviços destinados ao mercado, sob o domínio exclusivo da esfera privada.
Cabe neste ponto um esclarecimento acerca da delimitação do conceito de espaço público reconhecendo-o mais amplo do que o estatal, já que pode incluir tanto o aspecto estatal como o não-estatal. Deve-se entender por público o espaço que é de todos e para todos, e estatal uma forma específica de espaço ou de propriedade pública, ou seja, aquela que faz parte do Estado. Assim, a sociedade civil organizada situa-se no espaço público não-estatal, enquanto o Estado ocupa a parcela estatal referida no conceito. É na ruptura desta dicotomia (estatal e não-estatal) onde se pode encontrar uma das maiores potencialidades para a mudança social: a satisfação de necessidades públicas a partir da sociedade, assim como pressionar a partir dela para que a esfera pública estatal se faça real e efetivamente pública, ou seja, esteja aberta à participação de todos e voltada para o interesse de todos, e possa regular adequadamente os centros de poder social e econômico, respeitando concomitantemente os espaços de liberdade constantemente reclamados.
A implantação do programa de publicização[1] visou transferir para o setor público não-estatal (terceiro setor) a produção dos serviços competitivos ou não-exclusivos de Estado, estabelecendo-se um sistema de parceria entre Estado e sociedade para seu financiamento e controle. Destarte, o Estado abandona o papel de executor/prestador direto de serviços, mantendo o papel de regulador, provedor e promotor destes, especialmente na seara dos serviços sociais. Na qualidade de promotor desses serviços o Estado continua a subsidiá-los, buscando, ao mesmo tempo, o controle social direto e a participação da sociedade.
O setor público não-estatal, representado pelo terceiro setor, pode ser entendido como ente de cooperação, constituído por organizações sem fins lucrativos com objetivos eminentemente públicos[2]. Inseridas no contexto do terceiro setor, as Organizações Sociais constituem um modelo de organização pública não-estatal destinada a absorver atividades publicizáveis mediante qualificação específica.
O acompanhamento e avaliação do contrato de gestão[3], uma vez implementados, são extremamente relevantes sob o ponto de vista do Poder Público, uma vez que constituem efetivo instrumento de controle sobre a execução das políticas públicas colocadas sob a responsabilidade das entidades parceiras. Além do controle interno da Administração, é imprescindível que a sociedade também participe desse processo tendo em vista ser ela a destinatária final das políticas públicas. Para tanto, indivíduos e grupos devem se organizar em associações e movimentos sociais caracterizados pela participação nos assuntos públicos e revelando a necessidade de controle social direto sobre a administração pública e o próprio Estado.
2. CONTROLE SOCIAL E PARTICIPAÇÃO: RESGATE DO IDEAL GREGO
O indivíduo busca na vida em sociedade a concreção do valor da dignidade humana, por meio do exercício dos direitos sociais, saúde, educação, lazer, moradia, trabalho, assistência e previdência, dentre outros, os quais protegidos pelo Estado fortalecem o conceito de cidadania[4].
As premissas do Estado Social Liberal (Terceira Via) acentua, como dito anteriormente, a importância da esfera pública e ressalta a participação dos cidadãos tanto na prestação de serviços públicos não-exclusivos, quanto no que diz respeito ao seu controle.
A reforma do Estado requer alcançar à renovação do sistema político incorporando a participação cidadã mediante o controle social. A democracia deve ser aperfeiçoada para tornar-se mais participativa, mais direta. A renovação da institucionalidade política é colocada em dupla dimensão: a “accountability” [5], como demanda expressa sobre as instituições públicas; e a cidadania, como sujeito político direto. Essa reforma pressupõe cidadãos e para eles deve estar voltada. Exige-se que estes estejam mais maduros politicamente, mais conscientes dos seus direitos e mais solidários na medida em que reconhece na cidadania a função coletiva, a qual é acompanhada da responsabilidade e da implicação de todos os envolvidos; pressupõe a participação popular de modo livre, autônomo, independentemente de pressões, manipulações e outras formas de interferência e controle de lideranças e instituições.
Contudo, a postura individualista que caracteriza as sociedades atuais dificulta essa participação que deve ser entendida como um instrumento estratégico para a consolidação e o aprofundamento da democracia, condição indispensável para a elaboração, deliberação e controle social das políticas públicas, assim como para as grandes transformações sociais. Destarte, faz-se necessário o resgate do ideal comunitário, participativo e político dos gregos em sua atuação na polis[6]. É evidente que esse resgate não se dará simplesmente com a retomada e aplicação imediata de conceitos específicos e inseridos naquela sociedade e naqueles tempos, mas o conhecimento de seu conteúdo pode facilitar as adaptações necessárias às exigências modernas, bem como inspirar reflexões acerca do que vem a ser cidadania e participação e em que medida elas podem determinar a questão do controle social do Estado Social Liberal em sua configuração de parcerias.
Acerca do ideal comunitário, vale lembrar que “a superior força do espírito grego depende do seu profundo enraizamento na vida comunitária, e os ideais que se manifestam nas suas obras surgiram do espírito criador de homens profundamente informados pela vida superindividual da comunidade. O Homem que se revela nas obras dos grandes gregos é o Homem Político” [7]. E ainda: “no melhor período da Grécia era tão inconcebível um espírito alheio ao Estado como um Estado alheio ao espírito” [8].
Para os gregos, o homem político alcançava a perfeição através da perenidade da sua memória na comunidade pela qual viveu e morreu, ou seja, o ideal antigo e livre da Arete heróica dos heróis homéricos converte-se em rigoroso dever para com o Estado, ao qual todos os cidadãos, sem exceção, estão submetidos. A identidade total de um grego exigia não só o seu nome e o de seu pai, mas também o da sua cidade natal.
Ainda estudando o fenômeno grego, verifica-se que na medida em que o Estado aproxima o homem de seu cosmos político, dá a ele uma segunda existência ao lado da vida privada. Assim, todos os homens pertencem a duas ordens de existência e na vida do cidadão há uma distinção rigorosa entre o que lhe é próprio e o que é comum: “o homem não é só idiota, é político também. Precisa ter, ao lado da habilidade profissional, uma virtude cívica genérica, pela qual se põe em relações de cooperação e inteligência com os outros, no espaço vital da polis” [9].
Retomando as premissas do Estado Social Liberal, a participação cidadã consubstanciada no controle social é um dos pilares básicos do programa de Reforma do Estado, e demanda ações destes cidadãos, que podem estar reunidos em associações ou movimentos sociais, além daquelas decisões de foro privado. A exigência de participação ativa de todos os indivíduos no Estado e na vida pública e a aquisição da consciência de seus deveres cívicos refletem bem o ideal de cidadão, o mesmo que pode ser extraído do ensinamento de Fênix a Aquiles: “estar apto a proferir belas palavras e a realizar ações” [10].
O controle social deve ser entendido como a possibilidade de atuação da sociedade civil por meio de qualquer uma das vias de participação democrática no controle das ações do Estado e dos gestores públicos, bem como o de opinar sobre as questões que irão influenciar diretamente o seu próprio destino.
O controle social tem como objetivos: possibilitar o envolvimento da sociedade nos assuntos de governo, constrangendo os responsáveis a prestarem contas das suas ações (transparência e responsabilização), zelar pela utilização dos recursos públicos, considerando que são recursos da sociedade pagos direta ou indiretamente e que devem retornar à sociedade em forma de serviços e democratizar a gestão das políticas públicas.
A questão do controle social traz algumas considerações importantes: a adequação das instituições políticas capazes de intermediar interesses dentro do Estado e na sociedade civil, a existência de mecanismos de responsabilização (“accountability”) dos políticos e burocratas perante a sociedade e a capacidade de a sociedade limitar suas demandas e do governo de atender essas demandas.
O controle social exercido por meio da democracia direta (participativa) é o mecanismo mais democrático e difuso e no âmbito das organizações públicas pode ocorrer de duas maneiras: de baixo para cima, quando a sociedade se organiza politicamente para controlar ou influenciar instituições sobre as quais não tem poder formal; ou de cima para baixo, quando o controle social é exercido formalmente através de conselhos diretores de instituições públicas não-estatais.
Outra possibilidade de controle social repousa na democracia representativa pela qual a sociedade se faz representar através de políticos eleitos dotados de mandato que exercerão o controle em seu nome.
Dentre os mecanismos de controle e participação, destacam-se os conselhos gestores de políticas públicas que são espaços públicos de composição plural e paritária entre Estado e sociedade civil, de natureza deliberativa (atribuição às decisões dos conselheiros poder direto e vinculador) e consultiva (de não vinculam diretamente a Administração Pública, mas exercem controle político sobre o governo), cuja função é formular e controlar a execução das políticas públicas setoriais, constituindo o principal canal de participação popular encontrada nas três instâncias de governo.
3. CONCLUSÃO
A questão da publicização dos serviços sociais e científicos situa-se no âmbito das decisões estratégicas e políticas de governo, aderindo a este modelo diversos países, inclusive o Brasil. Esse modelo deve estar alicerçado na compreensão dos papéis dos setores civil e governamental dentro da postura de colaboração, de modo a conduzir ao aperfeiçoamento da situação atual e permitir à sociedade a retificação de rumos e a ratificação da sua posição participativa, livre e autônoma. Pretende ainda favorecer a ampliação da participação política, por meio da aproximação das associações civis prestadoras de serviços sociais com os grupos de pressão, conscientizando e orientando o indivíduo no que tange ao exercício da cidadania.
Diante dessa nova configuração da ação estatal, é necessário retomar o ideal de cidadão que na tradição grega pressupunha a polis como fonte dos bens supremos da vida e das normas mais elevadas, a participação ativa de todos os indivíduos no Estado e na vida pública e a aquisição da consciência de seus deveres cívicos.
Do mesmo modo, a participação cidadã consubstanciada no controle social e identificada como um dos pressupostos e sustentáculos da Teoria de Reforma do Estado necessita reconhecer a importância da esfera pública e, mais do que isso, da imprescindível condição de ser agente neste espaço. Péricles, ao traçar a imagem da politéia ateniense, englobava o conteúdo total da vida pública e privada: economia, moralidade, cultura, educação; e só nesta plenitude concreta que ganhava cor e forma a idéia do Estado como poder. Assim, o renascimento do Estado não se pode conseguir pela simples implantação de um forte poder exterior, mas tem de começar pela consciência de cada um.
A partir disso, impõe-se aos cidadãos considerarem-se ativos na vida comunitária, colocando-se em relação de cooperação e inteligência com os outros na esfera pública e orientando-se pelo conceito de bem comum e interesse público. Ao Estado não cabe tão somente garantir liberdades individuais, mas também fornecer condições para o exercício dos direitos políticos, especialmente aqueles que dizem respeito à participação, bem como aqueles que vão tratar especialmente da justiça social e dignidade humana, ou seja, os direitos sociais.
A expressão grega “fazer bem” que designa o bem-estar encerra uma sabedoria mais profunda no sentido de “agir bem”, no qual todas as energias do indivíduo e do Estado deveriam ser dedicadas a alcançar o bem comum e não a satisfazer os seus desejos. Desta forma, indivíduo e comunidade formam um todo. Contudo, para a consciência atual a política e a moral pertencem a reinos distintos e as normas de ação não são as mesmas em ambos os domínios. Nossa ética provém da religião cristã, enquanto nossa política tem suas raízes no Estado antigo. Por essa razão, a ética do Estado se opõe à moral individual. No entanto, para os gregos do período clássico era impensável conceber a existência de outra ética que não a do Estado, isto é, as leis da comunidade em que o homem vive. Uma moral privada diferente dela era idéia inconcebível para os gregos.
O controle social, exercido na esfera pública e entendido como a possibilidade de atuação da sociedade civil por meio de qualquer uma das vias de participação, deve ser cunhado na expressão da democracia, precisamente reconhecida como símbolo de um regime que concede ao juízo de cada um, igual participação na resolução dos problemas supremos do Estado. Pressupõe, assim, cidadãos ativos que, a par de seus interesses privados, exercem também função de interesse público na medida em que se encontram engajados nas Organizações Sociais que prestam os serviços públicos não exclusivos ou utilizam-se deles, avaliando e exigindo melhores e universais condições de usufruí-los. Também podem estar presentes nos conselhos gestores de políticas públicas com atuação na sua formulação e execução. Portanto, esse controle social pode ser praticado tanto no âmbito da democracia direta (participativa), quanto no da democracia indireta (representativa), mas não prescinde da efetiva participação dos cidadãos na vida comunitária (esfera pública).
Mestranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
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