I). Introdução:
O artigo visa esclarecer um dos
temas mais complexos acerca do crime de resistência, qual seja, a verificação
que se ocorrer à abordagem, logo após o roubo. Cumpre concluir se teremos um
desdobramento do nexo de causalidade ou um caso de desígnios autônomos.
II). Algumas considerações acerca
do crime de resistência:
O atual Código Penal estatui um capítulo destinado à tutela
penal da Administração Pública, protegendo-a da atuação do particular que visar
mediante meios obtusos fraudar as atividades públicas e dessa forma lesar o
desenvolvimento do mecanismo estatal, obtendo um proveito para si ou para
outrem, sendo essa a regra geral.
O tipo penal do artigo 329, do Código Penal diz ser crime o
oferecimento de resistência, ao considerar modalidade típica o ato de: “Opor-se à execução de ato legal,
mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem
lhe esteja prestando auxílio”, estabelecendo pena de detenção, de 2 (dois)
meses a 2 (dois) anos. Se o ato, em razão da resistência,
não se executa, a pena será de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, consoante
determina o § 1º, sendo certo que a teor do doisposto no § 2º, as penas deste
artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.
II.1).
Objetividade jurídica:
A tutela penal
conferida a Administração Pública visa a manutenção da legalidade, licitude,
prestígio, moral e do dever de probidade. O que se verifica ao traçarmos um
paralelo com o direito administrativo é que a proteção penal é conferida justamente
para a concecussão da maioria dos princípios constitucionais administrativos
que regulam o desenvolver estatal. A atividade administrativa é considerada em
todos os níveis e subdivisões inerentes a administração indireta, que dá
tenacidade e vivacidade ao aparato estatal.
Luiz Régis Prado
apresenta boa lição acerca do objeto e objetivos da tutela estatal a si
próprio: “A tutela penal, in casu, visa assegurar o normal funcionamento
da Administração Pública, assegurando o exercício da autoridade estatal, o
prestígio da função pública e a segurança dos agentes públicos, bem como
daqueles que lhe prestam auxílio, para a consecução dos atos de ofício.
Evidentemente, o ilegal insurgimento contra o exercício funcional da
Administração Pública resultaria no desencadeamento do caos social, em face da
degradação do poder estatal; daí a necessidade da proteção penal”[1].
O ilícito penal é
reclamado pelas atividades estatais porque as sanções administrativas e civis
não pareceram ser suficientes para conter as lesões aos interesses públicos
tutelados.
II.2). Sujeitos do crime:
Por se tratar de crimes praticados
por particular contra a Administração, trata-se de crime comum, podendo ser
praticado por qualquer pessoa, inclusive o próprio funcionário público, mas se
praticado durante o exercício de suas funções o delito poderá ser outro.
O sujeito passivo será sempre o
Estado, que é o titular, maior interessado na manutenção da regularidade da
administração pública e no justo cumprimento das ordens dele emanadas. De forma
subsidiária podemos cogitar do funcionário público no exercício de suas
funções, que está incumbido da prática do ato de execução, e aquele que
acompanha o funcionário no cumprimento do comando, o qual o particular
forçosamente visa obstar por via da ameaça ou violência.
Convém a nós lembrarmos que o
conceito de funcionário público restringe-se àquele que possui competência para
a prática do ato executório, na elasticidade do conceito[2]
do artigo 327, do Código Penal. Julio Fabbrini Mirabete lembra que: “É
necessário que o funcionário seja competente para a prática do ato de ofício,
já que o dispositivo se refere a ordem legal, e um dos requisitos desta é que
tenha o executor atribuição para praticá-lo. É necessário para a caracterização
do crime que o funcionário esteja exercendo suas funções quando o agente se
opõe à execução do ato”[3].
Nesse diapasão, lembremos que o
funcionário deve ter competência para o ato, sendo que esta se subdivide em
competência delegada em virtude da atividade pública e competência no momento
da ocorrência da resistência. Assim, carreamos interessante aresto
jurisprudencial do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, que
demonstra esse desdobramento de competências:
Funcionário fora do exercício
de suas funções: crime não caracterizado –
TACRSP – “Resistência. Policial Militar que efetua prisão quando de folga.
Necessidade de que o funcionário esteja exercendo a função no momento da
resistência. Delito não caracterizado. É necessário para a caracterização do
crime do art. 329 do CP que o funcionário esteja exercendo suas funções quando
o agente se opõe a execução de ato legal” (RJDTACRIM 2/144).
II.3). Tipo objetivo:
A conduta encartada como afrontosa a
lei penal é a de oferecer oposição ao ato legal de execução, com a demonstração
de força por via de violência ou ameaça. O foco da conduta ilícita está na
demonstração do agente com a insatisfação na execução do ato e também que esta
provenha de forma comissiva, dirigida diretamente contra o agente público
encarregado do cumprimento do ato.
A ação positiva deve revelar a
violência ou ameaça, pois caso revele somente de forma omissiva, com uma
resistência pacífica, sem as elementares agressivas, nos depararemos com a
figura penal da desobediência (artigo 330, do Código Penal). Assim, nos
remetemos à lição de Julio Fabbrini Mirabete: “A oposição à prática do ato
legal deve ser atuante e positiva, não a configurando a resistência passiva, a
passividade do agente, a atitude que, embora possa ser tendente a impedir o ato
legal, não se configura em violência ou ameaça (RT 509/343, 601/332, 356/307,
JTACrSP 74/261; RF 264/344). Nesse caso poderá ocorrer o crime de desobediência
(RF 225/329)”[4].
A vis corporalis pode se dar
com o emprego de qualquer instrumento ou meio apto a gerar na vítima lesões,
ferimentos, independendo se aconteceu ou não, pois, basta a tentativa. A ameaça
não se reveste aqui da ‘promessa de mal injusto e grave’, característica do
artigo 147, do Código Penal, aparecendo essa vis moraliis por via de
gestos, palavras.
Ainda, interessante é relevarmos que
a resistência deve ocorrer no exato momento da consumação do ato legal, que por
via de sua conduta o particular tenta barrar, impedir, parar, coagir para
infiltrar o temor e afastar a ação estatal lícita. Caso ocorra antes do início
do ato ou a posteriori, com vistas a responder ao ato legal, como via de
represália, teremos um outro crime (desacato, injúria, difamação), mas o certo
é que não teremos a incidência da resistência, justamente pelo ato ter se
consumado.
Se o ato não estiver revestido da mais estrita legalidade, terá o
particular o direito de resistir ao mesmo, pois, haverá frontal violação ao
princípio da legalidade insculpido no artigo 5º, II, CR, segundo o qual
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude
de lei”. Então, surge a norma excludente da antijuridicidade da legítima defesa
(artigos 23, II e 25, do Código Penal) contra ato que foge a legalidade e,
portanto, arrepia a lei e a ordem jurídica como um todo, sempre fazendo a
ressalva de que tudo o que excede os patamares da normalidade para afastar a
infringência estatal, configura o excesso doloso ou culposo, que ganha forma e
capitulação no estatuto repressivo pátrio (artigo 23, § único, do Código
Penal). A conduta é plenamente fundamentada no alicerce basilar da natureza
humana, o de o homem lutar contra tudo aquilo que injustamente reprime. Assim,
colamos a jurisprudência pátria:
Resistência à prisão em
flagrante provocado: crime não caracterizado “TARS: Sendo o flagrante provocado, o que torna
impossível a consumação de um crime, que, assim, não se materializa (Súmula 145
do STF) não se caracterizam os crimes dos arts. 329, 330 e 331 do CP, na
resistência ilegal à prisão. Também não se caracteriza o do art. 129 do CP,
quando, nas mesmas circunstâncias, o agente, repele, ao abrigo do artigo 25 do
CP, a violência física de agente da Administração que, sem esteio legal, o
pretende subjulgar, para conduzi-lo preso” (RT 686/370).
II.4). Tipo subjetivo:
O dolo do agente aqui é o de
resistir, apresentar oposição, defender na tentativa de afastar o ato estatal
lícito mediante violência ou grave ameaça empregada contra o funcionário
público ou seu assistente, sabendo dessa condição e da legalidade do ato, que é
o elemento especial do injusto. O que deixa nítido que a forma culposa nos
conduz ao erro penal do artigo 20 e ss., do Código Penal, afastando a
incidência do tipo.
Estes métodos empregados devem ser
aptos para tentar embargar a ação estatal sob o agente. Conforme elucida Julio
Fabbrini Mirabete, ao cuidar da conduta praticada por pessoa embriagada:
“Quanto à resistência de pessoa embriagada, há duas posições: a primeira é a de
que o embriagado não age com o dolo específico do delito; a segunda é a de que,
além de tudo, basta o dolo genérico para a caracterização do crime. Deve
prevalecer aquela que não exclui o dolo ou a culpabilidade a embriaguez
voluntária ou culposa, como expressamente o prevê o artigo 28, II, do CP”[5].
Não se exige aqui o dolo específico,
como pugna uma parte da doutrina, mas sim o dolo genérico, dessa sorte, o
indivíduo embriagado poderá ser sujeito ativo do crime. Interessante
ponderarmos que essa embriaguez restringe-se àquela voluntariamente procurada
pelo agente, afastando aqui a embriaguez fortuita ou proveniente de força
maior, que configurara causa excludente da culpabilidade, nos termos do artigo
28, do Código Penal, como demonstramos com as decisões abaixo:
Agente Embriagado: crime
caracterizado “Suficiente à
configuração do delito de resistência conduzir-se o agente com dolo genérico.
Assim, irrelevante à consumação do crime, encontrar-se o agente em estado de
ebriedade” (JTACRIM 74/385).
“TACRSP: Dispondo a lei penal que a
embriaguez voluntária ou culposa do agente não exclui a responsabilidade penal,
não se pode, com base nela, absolver o acusado do delito de resistência. Mesmo
porque nem dolo específico exige o crime, contentando-se com o genérico”
(JTACRIM 46/270)
II.5). Consumação e tentativa:
Segundo a lição de Luiz Régis Prado:
“O delito é formal e se consuma no momento em que o agente pratica a violência
ou ameaça contra o funcionário ou seu eventual assistente, com o escopo de que
não seja realizado o ato de ofício, não se exigindo que o agente alcance a meta
optata, bastando que a conduta seja apta a atingir tal fim”[6].
A tentativa, por se tratar de crime
formal, somente será possível nos casos em que a ameaça se dê por escrito,
sendo interceptada antes de chegar ao conhecimento do funcionário público
incumbido da tarefa ou seu auxiliar, mas nunca será possível na hipótese de
violência, pois o ato de tentar praticar a violência física já configura o
delito, que é formal.
III). A questão do roubo:
O roubo é um crime contra o
patrimônio descrito nas linhas do artigo 157, do Código Penal. Neste delito, o
agente se vale do emprego de violência, da grave ameaça ou de meio que
impossibilite a defesa do ofendido para alcançar a inversão da posse e ter a
coisa alheia móvel como sua, mediante subtração.
Destarte, verificamos que o crime de
roubo tem como elementar a violência (em sentido amplo), o que o diferencia do
furto qualificado, onde esta é empregada contra a coisa (em algumas hipóteses).
Ao contrapormos com o delito de resistência, verificamos o emprego da violência
em ambos, mas com finalidades diferentes, pois, neste último ela é utilizada
para contrariar a prática de ato legal, e no primeiro para que o medo eive os
sentimentos da pessoa e esta entregue a coisa ao agente.
O problema surge quando a
resistência é empregada após a consumação do roubo. Seria esta um desdobramento
do nexo de causalidade ou um delito autônomo?
Os defensores da primeira teoria
entendem que há um desdobramento no uso da violência, com esta resistência se
dando para manter a posse da coisa e não autonomamente, com a resistência sendo
absorvida pelo roubo, pois foi meio para o fim.
Nos ensina Damásio E. de Jesus que:
“Ocorre à relação consuntiva, ou de absorção, quando um fato definido por uma
norma incriminadora é meio necessário ou normal fase de preparação ou execução
de outro crime, bem como quando constitui conduta anterior ou posterior do
agente, cometida com a mesma finalidade prática atinente àquele crime”[7].
O mais grave vai absorver todos os crimes que ocorreram antes do mais grave,
durante o Iter Criminis.
Há entendimento no sentido de que “a resistência
oposta pelo agente de roubo aos policiais que, o tendo surpreendido em plena
execução desse crime, passaram a persegui-lo constitui mero desdobramento da
violência empregada para a violação patrimonial, e, conseqüentemente, o delito
do art. 329 fica absorvido pelo do art. 157, do CP, em virtude do concurso
aparente dessas duas normas, só aplicável, entretanto, à hipótese de tentativa”
(TACrimSP, RT 704/358 e TACRimSP, JTACRIM 67/344), sendo certo que a
“resistência subseqüente a roubo, mormente o impróprio previsto no art. 157, §
1º, CP, é desdobramento da violência, caracterizadora do delito inicial, não
merecendo, assim apenação autônoma” (JTACRIM
58/275).
A outra corrente, a qual entendemos ser correta,
defende que há um desdobramento no nexo de causalidade, uma vez que a inversão
da posse se operou com o agente empregando a violência ou grave ameaça contra
autoridade, com vistas a manter a sua posse, mas primordialmente para a
manutenção do status libertatis, que se encontra em vias de ser perdido
com a sua prisão em flagrante delito.
O desdobramento ocorre porque a violência visa
evitar a autuação em flagrância delitiva e a manutenção da coisa, e não como no
roubo, onde se objetiva a obtenção da posse. Com a consolidação da posse em
suas mãos, ocorrendo após a subtração e a violência posterior contra a
imposição policial, denota o dúplice caráter da violência utilizada e o cúmulo
das penas, nos termos do artigo 69, do Código Penal, como acórdãos do Tribunal
paulista:
Resistência após roubo – TJSP: “A violência empregada pelo assaltante para
resistir à prisão não se confunde com a utilizada para a prática do roubo,
configurando-se, pois, o delito do art. 329, § 1º, do CP e justificando a
aplicação de penas cumulativas” (RT
560/352). TACRSP: Se a ação do infrator, resistindo à intervenção da Polícia, teve lugar muito tempo depois da
subtração da res, quando com ela procurava fugir, evitando sua prisão,
configurado resulta o delito do art. 329 do CP” (RT 577/389).
IV –
Conclusão:
A absorção do crime de resistência, ao nosso ver,
não se opera aqui porque são lesadas duas objetividades jurídicas distintas, a
saber: a administração pública e o patrimônio; em momentos diferentes e por
razões diversas, embora seqüenciais no tempo. Assim, entendemos que havendo
resistência de molde a configurar a conduta típica, após o crime de roubo, a
questão jurídica proposta se resolve pela regra do concurso de crimes, segundo
a regra do cúmulo material, indo além do permitido no artigo 329, § 2º, do
Código Penal.
Bibliografia:
JESUS, Damásio Evangelista de; Direito Penal, vol
I, Parte Geral; 22a Edição; Editora Saraiva;
São Paulo/SP; 1999.
______________________; Código Penal Interpretado.
1ª Ed; Atlas. São Paulo/SP. 1999.
MIRABETE,
Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, vol. III. 16ª Ed. Atlas. SP/SP. 2001.
PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal
Brasileiro, vol. IV. 3ª Ed. RT. SP/SP. 2001.
SIQUEIRA, Flávio Augusto Maretti. O Funcionário
Público visto pelo Direito Penal (Artigo). www.direitonet.com.br. Dezembro/2002.
Notas:
[1] PRADO, Luiz
Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. IV. 3ª Ed. RT. SP/SP. 2001. p. 516.
[2] Sobre o
conceito de funcionário público vide nosso artigo: “O Funcionário Público visto
pelo Direito Penal”, in www.direitonet.com.br,
onde dissertamos sobre o tema.
[3] MIRABETE,
Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, vol. III. 16ª Ed. Atlas. SP/SP. 2001. p. 361.
[4] MIRABETE,
Julio Fabbrini, Op. cit. p. 362.
[5] MIRABETE,
Julio Fabbrini; Código Penal Interpretado; 1ª Ed; Atlas; São Paulo/SP; 1999; p.
1765.
[6] PRADO, Luiz
Régis; Op. cit. p. 520.
[7]
JESUS, Damásio Evangelista de; Direito Penal, vol I, Parte Geral; 22a
Edição; Editora Saraiva; São Paulo/SP; 1999; p. .
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).
Defensor Público Substituto em Minas Gerais, Especialista em Direito e Processo Penal pela UEL e Mestre em Direito Penal pela UEM. Professor de Direito Ambiental da UNIFENAS – São Sebastião do Paraíso/MG e de Direito Constitucional e do Consumidor nas Faculdades Integradas Libertas.
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