Resumo: Neste artigo aborda-se o relevante tema do direito à saúde, visto como um direito subjetivo de todos os cidadãos e como um dever solidário de todos os entes da federação de promovê-la mediante políticas públicas sociais e econômicas que visem à redução do risco de enfermidades e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Também será tratada a atuação positiva do Judiciário, sobretudo do Supremo Tribunal Federal, nos casos relativos ao fornecimento de medicamentos, deixando de ser um mero aplicador das leis aos casos concretos, para assumir um papel de agente político na efetivação das políticas públicas em prol dos que necessitam.
Palavras-chave: direito à saúde, medicamentos, ativismo judicial.
Abstract: In this article, accomplished through an extensive literature review on the topic, it is intended to address the important issue of the right to health, seen as a subjective right of all citizens and as a supportive duty of all federal entities to promote it through public social and economic policies aimed at reducing the risk of diseases and other health problems and the universal and equal access to actions and services for its promotion, protection and recovery. Also, it discusses the positive role of the judiciary, especially the Supreme Court, in cases relating to the supply of medicines, no longer a mere applier of law in specific instances, to assume a role as political agent in the execution of public policy in favor of those who needs. However, we analyze to what extent this action is legitimate, considering the needs of society as a whole.
Keywords: right to health, medicine, judicial activism.
Sumário: Introdução. 1. Reserva do Possível. 2. Fornecimento de medicamentos pelos SUS. 2.1. O custo da saúde. 3. Mudança de paradigmas. 3.1. Medidas adotadas pelo Estado de São Paulo. 4. Casos polêmicos. 5. Os Tribunais e o direito à saúde. 5.1 Ativismo Judicial. Conclusão. Referências.
Introdução
O objetivo deste trabalho é analisar o direito à saúde e sua aplicação nos tribunais brasileiros, que muitas vezes concedem de forma direita aos jurisdicionados medicamentos que não estão previstos nos documentos orçamentários do Poder Público, gerando um custo à sociedade que não estava previsto nas leis orçamentárias.
A saúde pública será tratada neste artigo como o estado de sanidade, ou o estado fisicamente são, da população de um país, de uma região, ou de uma cidade, em conformidade com os autores do vocabulário De Plácido e Silva (2006, p.1257).
Segundo Rogério Gesta Leal (2006, p.1525) o tema da saúde pública é definido constitucionalmente como direito de todos e dever do Estado (União Federal, Estados Membros e Municípios[1]) – art.196 da Constituição Federal –, devendo ser garantido mediante políticas públicas sociais e econômicas comprometidas à redução do risco de enfermidades e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Segundo o Supremo Tribunal Federal o artigo 196 da Constituição Federal é uma norma programática, mas nem por isso os entes estatais podem furtar-se do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde por todos os cidadãos, e ainda, se uma pessoa necessita, para garantir o seu direito à saúde, de tratamento médico adequado, é dever solidário da União, do Estado e do Município providenciá-lo.
Logo, até que ponto a saúde há de ser tutelada? É possível entender que ela guarda sintonia com a garantia do “mais alto nível possível de saúde”, tal como prescreve o artigo 12 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) de 1966, regularmente ratificado e incorporado pelo Brasil.[2]
Tal concepção também está de acordo com o conceito proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que define a saúde como o “completo bem-estar físico, mental e social”.
O STF também deixa claro que o direito a saúde é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço.[3] E também, que é um serviço público essencial, jamais podendo se caracterizar como temporário[4].
O primeiro jurista de renome a sustentar a possibilidade do reconhecimento de um direito subjetivo à garantia positiva dos recursos mínimos para uma existência digna foi Otto Bachof, no início da década de 1950. O autor considerou que o princípio da dignidade da pessoa humana também garante um mínimo de segurança social, já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana ficaria sacrificada (SARLET e FIGUEIREDO, 2008).
Assim, conclui-se que prevalece na jurisprudência do Supremo que a saúde é um direito universal e igualitário, conforme o Ministro Celso de Mello: “O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.”[5]
No entanto, ao tratar da saúde pública e dos mecanismos e instrumentos para atendê-la, é essencial que se visualize a demanda social e universal existente, isto porque, atendendo-se somente aqueles que recorrem de pronto ao Poder Judiciário, pode-se correr o risco de esvaziar a possibilidade de atendimento de todos aqueles que ainda não tomaram a iniciativa de procurar o socorro público, por absoluta falta de recursos para fazê-lo.
É claro que não se pode resolver tal matéria em termos de tudo ou nada pelo fato de que ela envolve outro universo de variáveis múltiplas e complexas, a saber: disponibilidade de recursos financeiros alocados preventivamente, políticas públicas integradas em diretrizes orçamentárias, possibilidade econômica do paciente, etc. Todas estas condicionantes, por sua vez, encontram-se dispersas em diferentes atores institucionais, com competências e autonomias reguladas também pela Constituição.
1. Reserva do Possível
Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, em seu artigo intitulado – Os direitos sociais como direitos fundamentais: seu conteúdo, eficácia e efetividade no atual marco jurídico-constitucional brasileiro -, todos os direitos fundamentais podem implicar um custo, de tal sorte que esta circunstância não se limita aos direitos sociais na sua dimensão prestacional (p. 234).
O autor continua sua explanação (SARLET, p. 235) ao pontuar a problemática da efetiva disponibilidade dos direitos sociais, isto é, se o destinatário da norma se encontra em condições de dispor da prestação reclamada ou se está na dependência da real existência dos meios para cumprir com sua obrigação.
Neste aspecto, os direitos sociais passaram a ser analisados sob o aspecto da reserva do possível. A construção teórica da “reserva do possível” tem origem na Alemanha, especialmente a partir do início dos anos de 1970 (CANOTILHO, 2003, p. 108). De acordo com a noção de reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. A partir disso, a “reserva do possível” passou a traduzir a ideia de que os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público (KRELL, 2002, p. 52).
Mesmo que o Estado disponha dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável. Assim, poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos suficientes para seu sustento[6]. O que, contudo, corresponde ao razoável também depende – de acordo com a decisão referida e boa parte da doutrina alemã – da ponderação por parte do legislador (WIEGAND, 1974. p. 657 apud SARLET e FIGUEIREDO, 2008).
A partir do exposto, há como sustentar que a reserva do possível apresenta pelo menos uma dimensão tríplice, que abrange a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos; c) e a proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade (SARLET e FIGUEIREDO, 2008).
O que tem sido, de fato, falaciosa, é a forma pela qual muitas vezes a reserva do possível tem sido utilizada para a omissão estatal no campo da efetivação dos direitos sociais. Assim, levar a sério a “reserva do possível” significa também que cabe ao poder público o ônus da comprovação da falta efetiva dos recursos indispensáveis à satisfação dos direitos a prestações, assim como da eficiente aplicação dos mesmos.
José Reinaldo de Lima Lopes (2008) enfrenta o tema da reserva do possível com a ajuda de três outras instituições jurídicas: conceito de obrigação impossível, por impossibilidade do objeto; como questão exclusivamente política e por último como cláusula potestativa.
O autor (2008, p. 178) afirma que fomenta-se uma anomia tola por parte da sociedade, de modo que o discurso é sempre a transferência para o Estado de uma obrigação que seria de qualquer um ou de todos. Quando as necessidades são financeiras, parece também fácil debitar ao Estado uma conta que jamais fechará e não se fala mais nisso, como se o Estado fosse imortal e jamais falisse. Isso tudo alimenta a ideia de que é impossível cumprir as generosas promessas da Constituição de 1988.
Assim, poderíamos ter uma impossibilidade jurídica e uma impossibilidade econômica. Segundo Lopes (2008, p.179), a primeira ocorre quando o Poder Executivo é chamado a juízo para discutir o orçamento público. É impossível que se mude o orçamento por ordem judicial, a não ser que haja espaço para remanejamento ou contingenciamento, pois as mudanças nas regras que determinam a competência pública para criar custos e bens públicos são definidas constitucionalmente.
Lopes (2008, p. 180) afirma que a impossibilidade econômica diz respeito à escassez e a escassez sempre quer dizer desigualdade. Bens escassos são bens que não podem ser usufruídos por todos. Requer-se, pois, que sejam distribuídos por regras que pressupõem direito igual ao bem e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de uso igual e simultâneo. Logo, há escassez quando se verifica que um determinado medicamento (ou tratamento) existe, mas seu custo é tal que sua provisão impedirá o fornecimento de outros medicamentos ou mesmo que exigirá o corte de outras despesas.
Impossibilidade econômica existe quando o custo de um medicamento já testado e comercializado faz dele um remédio para poucos. E impossibilidade técnica existe quando se exige a distribuição de um medicamento ainda em fase experimental.[7]
Também existe a doutrina da questão política, que equivale à da reserva do possível e pode ser invocada para excluir do judiciário a apreciação da questão sobre medicamentos dado seu caráter político. O argumento neste caso seria que a decisão judicial é impossível porque a matéria é, por definição, outorgada à definição política, ou seja, à decisão de conveniência e de hierarquização de prioridades cujos critérios não são exclusivamente legal-normativo (LOPES, 2008).
Conclui Lopes (2008) que um fator importante na análise da reserva do possível e na litigância de direitos sociais diz respeito ao caráter do pedido. Pois quando se pedem coisas que podem e talvez devam se converter em programas universais, aí também a análise da reserva do possível deve ser feita sob a ótica da real necessidade da nova política. E oferece como solução em vez de uma decisão tudo ou nada, uma decisão progressista, pela qual o juiz permite as partes chegarem a um acordo em que aos poucos se ajustaria a conduta do Estado ao pedido.
Assim, permite que o Estado se adeque durante algum tempo, fixando a decisão os prazos e as metas a serem atingidas, pois a escassez pode ser transitória ou temporária. Já quando o pedido requer um programa inexistente ou a inclusão de um procedimento de saúde, não haverá perigo de tratamento desigual, porque a decisão se aplicará não a uma pessoa, mas a todos que se encontrarem nas circunstâncias tipificadas.
E baseado no mínimo existencial, interpretado como o conjunto de garantias materiais para uma vida digna, tem prevalecido o reconhecimento tanto de um direito negativo quanto de um direito positivo a um mínimo de sobrevivência condigna, como algo que o Estado não apenas não pode subtrair ao indivíduo, mas também como algo que o Estado deve positivamente assegurar, mediante prestações de natureza material (SARLET e FIGUEIREDO, 2008).
Juliana Yumi Yoshinaga (2011), procuradora do Estado de São Paulo, citou Octávio Luiz Motta Ferraz e Fabiola Supino Vieira para demonstrar os custos financeiros de uma situação hipotética, em que para tratar duas enfermidades, hepatite viral crônica C e artrite reumatoide, caso o sistema público de saúde decidisse abandonar a lista de medicamentos (escolhidos por razões de segurança, eficácia e custo-benefício), oferecendo a todos os portadores dessas doenças os medicamentos mais recentes disponíveis no mercado (interferon peguilado para a hepatite viral crônica c einfliximabe, etanercepte e adalimumade para a artite reumatoide).
De acordo com a estimativa desses estudiosos, para atender os pacientes portadores dessas duas doenças, estimados em 1,9 milhões de pessoas com base nos dados epidemiológicos (aproximadamente 1% da população), seriam gastos 99,5 bilhões de reais.
Comparando esse valor com o custo total das ações e serviços públicos de saúde dos Munícipios, Estados e União, o estudo chegou à impressionante conclusão de que os recursos financeiros necessário para implementar a mencionada política seriam superiores ao gasto total de todas as esferas de governo com o conjunto de ações e serviços de saúde (85,7 bilhões de reais).
Assim, Juliana Yumi Yoshinaga (2011) afirma que a escassez de recursos, somada à complexidade das escolhas na seara da saúde, indica que o fornecimento individualizado de medicamentos via Poder Judiciário pode facilmente conduzir o sistema público de saúde ao colapso.
Segundo Sarlet (p. 244) a ausência de preocupação registrada em muitas decisões judicias, com as consequências do provimento jurisdicional, parece desvincular questões de fato e de direito. Ao aferir a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito o juiz não deve esquecer a realidade em que se encontra e também analisar o impacto da decisão no sistema de políticas públicas.
Sarlet conclui citando Jorge Reis Novais (p. 250) que a reserva do possível deve viger como um mandado de otimização de eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, impondo ao Estado o dever fundamental de, tanto quanto possível, promover as condições ótimas de efetivação da prestação estatal em causa, preservando, além disso, os níveis de realização já atingidos, o que aponta para a proibição do retrocesso.
Logo, fica claro que mesmo os recursos públicos sendo escassos, devem sempre ser utilizados de modo a ampliar as prestações sociais que implementem os direitos sociais previstos em nossa constituição.
Scaff (2011) afirma que o SUS não pode se tornar um segurador universal da saúde de cada indivíduo, o que seria idílico. A reserva do possível limita este tipo de procedimento, pois não há recursos públicos para custeio desse ideal de saúde individual, infelizmente.
Mesmo porque, as necessidades da saúde são infinitas, mas os recursos para atendê-las não o são, e a saúde apesar de ser um bem fundamental, não é o único bem que a sociedade tem interesse em usufruir.
2. Fornecimento de Medicamentos pelo SUS
O fornecimento de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde por força de decisões judiciais começou a aumentar depois que ações debateram sobre o fornecimento de tratamento para portadores da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (HIV)[8] – política pública que já fora legalmente consagrada, em 1996, mas que, por alguns anos, não foi integralmente cumprida pelos poderes públicos. Decidiu o Ministro Celso de Mello, relator, que “A interpretação da norma programática [direito à saúde] não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente”[9], acolhendo os pleitos judiciais de concessão dos medicamentos necessários para o tratamento da moléstia.
Em seguida passaram a surgir e a se multiplicar julgados tratando das mais diversas prestações – medicamentos padronizados ou não, tratamentos experimentais ou no exterior, internações, cirurgias, transplantes e outras medidas do gênero. Embora não se possa dizer que as decisões tenham sobrevindo com entendimentos uniformes ou gerais, o que se verificou, nesse momento, foi que, na maioria delas, como em algumas até hoje, a análise feita era praticamente só jurídica e individual – aplicando diretamente o direito à saúde, por força de seu regime jusfundamental, rejeitando as alegações (em sua maioria, genéricas e sem comprovação) de ausência de recursos e reserva do possível e reconhecendo, em consequência, o dever de os entes públicos alcançarem a maioria das prestações e dos tratamentos pedidos.
Hoje o incremento no número de ações sobre a matéria, a atuação judicial no âmbito das prestações públicas de saúde atingiu patamar tal que se tornou ponto de tensão na estabilidade e na sustentabilidade das políticas administrativamente planejadas e na própria organização do Sistema.
Elival da Silva Ramos – professor titular da Faculdade de Direito da USP, em entrevista ao jornal do CREMESP (2005) afirmou que existe uma falta de critério e distorções nas decisões judiciais. Por isso propõe uma legislação específica sobre o assunto.
2.1. O Custo da Saúde
A revista Época online[10] divulgou um estudo norte americano em que se analisou a eficiência dos sistemas de saúde feito recentemente pela consultoria norte-americana Bloomberg. O levantamento colocou o Brasil em último em uma lista com 48 países. Foram levados em consideração os custos da saúde e a expectativa de vida da população. O ranking não trata dos melhores serviços de saúde do mundo, porque outros itens precisariam ser avaliados, mas oferece uma medida geral da qualidade em função do custo.
Segundo o estudo, o Brasil investe na área mais que o dobro que a Venezuela (26ª posição), mas a expectativa de vida é semelhante – a média por aqui é de 73,4 anos e na Venezuela é, 74,3. Líder em gastos (17,2% do PIB per capita), os Estados Unidos estão na 46ª posição, perdendo apenas para a Sérvia e o Brasil. A expectativa de vida dos americanos é de 78,6 anos.
No topo da lista está Hong Kong que, investindo 3,8% do PIB per capita, consegue oferecer um bom sistema público de saúde. Segundo o governo, além de procurar garantir a qualidade dos serviços a toda população, os serviços privados são controlados de perto para manutenção dos altos padrões.
O levantamento levou em consideração 3 critérios: expectativa de vida, custo relativo da saúde per capita (porcentagem do PIB per capita investido em saúde) e custo absoluto per capita da saúde.
Segundo dados de 2009, os mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os gastos públicos em saúde representaram 3,6% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto os gastos privados alcançaram 4,9%.
Em publicação feita pela Agência Brasil[11] Lígia Giovanella, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública afirmou que
“Não alcançamos uma universalidade completa com o Sistema Único de Saúde. A criação do SUS possibilitou a melhoria do acesso da população, mas essa melhoria do acesso ainda não é suficiente para cobrir as necessidades de saúde. Mais da metade dos gastos totais em saúde no país são gastos privados. Os gastos públicos não alcançam 50%. Nos países que têm realmente sistemas universais de saúde, os gastos públicos correspondem a 80%”.
Segundo ela, além de gastar menos do que as famílias, o Estado brasileiro também gasta menos do que outros países que possuem sistemas públicos universais, como a Espanha, o Reino Unido e a Suécia, que investem em torno de 7% a 9% do PIB.
Aquilas Mendes[12], professor da Faculdade de Saúde Pública da USP esclarece que isso mostra que o Brasil, mesmo tendo mudado seu perfil econômico, ainda está longe de ter o status de desenvolvimento no setor da saúde.
Afirma ainda que o Brasil gasta muito pouco com saúde pública. Em 2010, gastou 4% do PIB, uns R$ 127 bilhões. Nós teríamos que chegar a gastar mais 2% [do PIB] para nos igualarmos a esses países. Pelo menos tínhamos que investir mais R$ 83 bilhões.
Somando o setor privado (planos de saúde e gastos particulares), o total dos gastos com saúde no Brasil chega a 8,4% do PIB. No entanto, isso representa metade do índice investido pelos Estados Unidos (16%) e ainda abaixo da média dos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – que aplicam 9% de suas riquezas na área.
Segundo dados do IBGE que analisou dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar e estima que a cobertura de plano de saúde no Brasil é de 24,7%. Esta cobertura está concentrada regionalmente, com 64% dos planos no Sudeste, em 2012. Os estados com maior cobertura de plano de saúde são São Paulo, com 43,6%, Rio de Janeiro, com 36,6% e Espírito Santo, com 32,6%. Em contrapartida, apresentam a menor cobertura os estados das regiões Norte e Nordeste, como Piauí (7,4%), Tocantins (7,0%), Maranhão (6,6%), Roraima (6,6%) e Acre (5,6%).
Neste contexto, observa-se que aumentou a discussão sobre a interpretação do direito à saúde à luz de noções de justiça, questionando-se sobre o prejuízo criado pelas ordens judiciais para o atendimento de outras pessoas no âmbito do Sistema e o efetivo alcance do princípio da integralidade de atendimento.
Ainda se somou aos debates a verificação de fraudes perpetradas por meio de ações judiciais, em que poucos advogados buscavam, em nome de muitos pacientes, medicamentos não necessários ou excessivos, utilizando-se do dinheiro levantado para sua compra ou mesmo prejudicando a saúde dos pacientes pela ingestão de medicamentos descabidos ou excessivos.[13]
Na operação Garra Rufa, realizada pelo Estado de São Paulo, foram feitas detecções de fraudes que envolviam governo do Estado de São Paulo, no ano de 2003, diante do aumento irracional dessas demandas.
Referida atuação iniciou-se com uma parceria entre a Secretaria da Saúde e a Procuradoria-Geral do Estado. O primeiro passo foi a implementação de um “software” onde foram registradas informações relacionadas à pacientes, moléstias, médicos prescritores e o serviço de advocacia utilizado para provocar as ações judiciais.
Através do controle das demandas que condenavam o Estado ao fornecimento de determinados medicamentos, identificou-se alguns pontos que eram passíveis de, no mínimo, uma nova análise. As ações apresentavam identidade de advogados, identidade de médicos prescritores, dirigentes de organizações não-governamentais e medicamentos prescritos, muitas vezes, por marcas. Partindo dessa análise, o Núcleo de Inteligência utilizou outros filtros, tendo agora como parâmetro o valor das drogas prescritas, sempre drogas fora dos procedimentos preconizados pelo SUS. Os maiores gastos do Estado de São Paulo foram identificados nas drogas Infliximab, Efalizumab e Etanercept.
Essa investigação foi oficializada junto à região de Marília em função da circunscrição e do grande número de ações existentes naquela região e recebeu o nome de “Garra Rufa”. Logo no início dessa investigação, confirmaram-se todas as informações e verificou-se que elas não correspondiam à verdade dos autos. Ficaram comprovadas falsidades e outros delitos, bem como a existência de uma organização criminosa articulada e em plena atividade.
Não obstante os vários crimes cometidos, observa-se que o maior prejuízo não se trata do prejuízo financeiro causado ao Tesouro, mas o prejuízo causado à vítima dessa organização criminosa, o paciente, muitas vezes que sequer era portador de psoríase, por exemplo, ou, se a portava, não portava em grau que justificasse a ministração de medicamento de droga tão forte, expondo a risco de morte essas pessoas. A organização obrigou a Secretaria de Estado da Saúde a montar uma verdadeira força-tarefa para reavaliar todos os beneficiários dessas doenças e poder adequá-la à boa prática de medicina.
3. Mudança de Paradigmas
Diante de tais dados, do crescimento do volume de ações judiciais em matéria de saúde e do contato com os demais Poderes, a conscientização do Poder Judiciário, dos seus membros e da sua cúpula a respeito da influência da atuação judicial sobre o SUS e sobre a coletividade motivou uma nova mudança de paradigma e a busca por mais informações, dados e estudos, bem como por decisões mais consentâneas com a sistemática pública de atendimento à saúde.
Marco de tal momento histórico foi a convocação, pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, então Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), da Audiência Pública nº 4, no ano de 2009, a fim de, diante das inúmeras suspensões de segurança e suspensões de tutela antecipada que chegavam à Presidência daquela Corte, bem como dos recursos extraordinários sobre a matéria, ouvir gestores do SUS, especialistas, profissionais da área da saúde e do direito, usuários e a sociedade como um todo a respeito da matéria, colhendo dados técnicos e opiniões jurídicas e leigas, buscando a fixação de parâmetros mais objetivos para a resolução de demandas judiciais em saúde, a ampliação do princípio da participação e a legitimação das decisões judiciais.[14]
Denise Dias de Castro Bins (2013) afirma que como resultado das frutíferas discussões e manifestações produzidas em tal audiência, adveio a fixação de uma posição mais crítica do STF sobre a exigibilidade do direito à saúde, pelo menos com a imposição de critérios técnicos e fáticos para a concessão de tratamentos requeridos e a valorização primeira das políticas já estabelecidas no âmbito do SUS, da medicina baseada em evidências, dos protocolos clínicos e das diretrizes terapêuticas.[15] Com efeito, fixou-se, a partir daí, um caminho a ser seguido na verificação do direito a medidas de saúde judicialmente postuladas, a fim de coadunar o direito fundamental à saúde, de análise e garantia inafastáveis do Poder Judiciário, e a necessidade de superação, na medida do possível, da interferência judicial desmedida no Sistema.
De acordo com tal posicionamento, é relevante, em um primeiro momento, verificar se a prestação pleiteada em juízo está ou não abrangida por política estatal já existente e simplesmente não cumprida pelo ente responsável: uma vez existindo a previsão administrativa de tal medida, o direito do postulante é evidente e deve ser concedido; se a resposta for negativa, deve-se analisar se a inexistência da política decorre de vedação legal ou de omissão ou decisão de não fornecimento da medida ou do tratamento.
Para obtenção de medicamento pelo SUS, não basta ao paciente comprovar ser portador de doença que o justifique, exigindo-se prescrição formulada por médico do Sistema.[16] Em se tratando de omissão ou decisão administrativa de não dispensação, cumpre verificar se o Sistema fornece tratamento alternativo ou não tem qualquer tratamento específico para a patologia em debate.
No caso de haver tratamento alternativo viável oferecido, deve ele ser adotado, em atenção aos protocolos clínicos e às diretrizes terapêuticas fixadas no Sistema, à luz da medicina baseada em evidências, sem o alcance da prestação alternativa postulada; do contrário, se o tratamento alternativo não for viável ao paciente (por ineficácia no caso concreto ou inadequação por razões específicas do organismo da pessoa, como geração de efeitos colaterais intoleráveis por concomitância de outra moléstia), ou se não houver opção prevista, cabe apreciar se o tratamento requerido é puramente experimental ou consiste em novo tratamento simplesmente ainda não incorporado pelo SUS.
Na hipótese de medida experimental, o Estado não está obrigado ao seu fornecimento. Já em caso do tratamento contar com registro na Anvisa e ser o único adequado e eficaz para o caso, a omissão pode ser objeto de impugnação judicial, individual ou coletiva, com ampla produção de provas.[17]
Desta forma, pode-se concluir que o recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá-los com recursos próprios, além dos fatores acima apontados. Isso por que, uma vez satisfeitos tais requisitos, o ente federativo deve se pautar no espírito de solidariedade para conferir efetividade ao direito garantido pela Constituição, e não criar entraves jurídicos para postergar a devida prestação jurisdicional[18].
Fora do âmbito estritamente jurisdicional, também o Conselho Nacional de Justiça passou a tomar medidas na tentativa de aprofundar os debates sobre o tema e sobre as formas mais adequadas de resolução das lides fundadas no direito à saúde, constituindo um grupo de trabalho cujos estudos culminaram na aprovação da Recomendação nº 31/2010, que traça diretrizes aos tribunais, magistrados e operadores do Direito quanto às demandas judiciais que envolvem a assistência à saúde, em que se pode ressaltar:
“a) até dezembro de 2010, celebrem convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico composto por médicos e farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo de valor quanto à apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes das ações relativas à saúde, observadas as peculiaridades regionais;
b) orientem, por meio das suas corregedorias, aos magistrados vinculados, que:
b.1) procurem instruir as ações, tanto quanto possível, com relatórios médicos, com descrição da doença, inclusive CID, contendo prescrição de medicamentos, com denominação genérica ou princípio ativo, produtos, órteses, próteses e insumos em geral, com posologia exata;
b.2) evitem autorizar o fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela Anvisa, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei;
b.5) determinem, no momento da concessão de medida abrangida por política pública existente, a inscrição do beneficiário nos respectivos programas;(…) II. Recomendar à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho – Enamat e às Escolas de Magistratura Federais e Estaduais que:
a) incorporem o direito sanitário nos programas dos cursos de formação, vitaliciamento e aperfeiçoamento de magistrados;”(GN)
Também foi instituído, pela Resolução nº 107/2010, o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde – Fórum da Saúde, coordenado por um Comitê Executivo Nacional e constituído por Comitês Estaduais, com a atribuição de “elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas para o aperfeiçoamento de procedimentos, o reforço à efetividade dos processos judiciais e à prevenção de novos conflitos”[19]. Hoje, tal fórum trata também de saúde suplementar e ações resultantes das relações de consumo.
3.1 Medidas adotadas pelo Estado de São Paulo
Yoshida (2011) também esclarece que a Secretaria Estadual de Saúde investiu na criação de uma equipe multidisciplinar: a Coordenação de Demandas Estratégicas do Sistema Único de Saúde (CODES), que funciona junto ao gabinete do Secretário Estadual de Saúde.
Também foi implantado o Sistema de Controle Jurídico (SCJ). Esse software concentra um banco de dados com várias informações, o que permitiu ao Estado de São Paulo uma visão panorâmica da judicialização da saúde.
A adoção das medidas acima descritas possibilitou aos Estados uma melhor defesa, pois os médicos e farmacêuticos do CODES informam, por exemplo, se o medicamento requerido é registrado na ANVISA, se é comercializado no país, se realmente apresenta benefícios ao tratamento da enfermidade e se existe alternativa terapêutica disponível na rede pública.
4. Casos Polêmicos
No mês de dezembro de 2011, o jornal “Estadão” fez uma matéria intitulada “Em 4 anos, SP duplica gastos com remédios por determinação judicial”, segundo a reportagem em quatro anos, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo teve quase dobrados os gastos com a compra de medicamentos e produtos diversos exigidos por determinação judicial. Em 2007, o Estado gastou R$ 400 milhões para atender a 8 mil ações; em 2010 foram gastos R$ 700 milhões para 25 mil ações.
Os itens mais pedidos são para diabete, que não são fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), além de remédios de alto custo – em geral para tratamento de alguns tipos de câncer, como drogas para quimioterapia oral, ou de doenças raras.
A revista Veja[20] também trouxe um matéria semelhante em dezembro do mesmo ano. Na matéria é relatado o caso de Francisca Bruzzi, de 50 anos, que precisou recorrer à Justiça para conseguir dar continuidade ao tratamento do marido, Raimundo, de 61. Diagnosticado com mieloma múltiplo (um tipo de câncer na medula) em 2008, ele tentou vários tratamentos e passou por transplante de medula, mas nada deu certo. A única alternativa para ele é o medicamento Revlimid, que não é vendido no Brasil e custa cerca de R$ 16,5 mil reais, preço de uma caixa com 30 comprimidos.
No entanto, o Estado entregou, um remédio similar, bem mais barato, fabricado na Índia, chamado Lenalid, que tem o mesmo princípio ativo do de marca (lenalidomida). Teoricamente, ele oferece os mesmos efeitos ao paciente e custa R$ 790 reais, menos que 5% do valor do remédio de marca.
Existem controvérsias sobre a eficácia dos medicamentos similares. A médica do paciente em questão disse que não recomenda o consumo de um remédio sem comprovação científica da sua eficácia. Mas, o secretário de Saúde, Giovanni Guido Cerri, diz que a secretaria recorre às drogas genéricas ou similares quando o juiz não especifica na decisão o nome do medicamento de marca e sim o princípio ativo. No caso da lenalidomida, observadas dez ações em andamento: em cinco delas, o Estado entregou o remédio de marca e em cinco, o indiano.
Outro caso muito polêmico foi publicado em março de 2012, pela revista Época[21], que trouxe a matéria: “O paciente de R$ 800 mil – A história do rapaz que recebe do SUS o tratamento mais caro do mundo revela um dos maiores desafios do Brasil: resolver o conflito entre o direito individual e o direito coletivo à saúde”.
A matéria conta a história de Rafael Notarangeli Fávaro, 29 anos, que recebe o tratamento clínico mais caro existente, o medicamento Soliris (eculizumab), para amenizar as complicações de uma forma raríssima de anemia, denominada hemoglobinúria paroxística noturna (HPN), causadora de vários problemas que podem levar à morte. Cada vidro de 30 mililitros de Soliris custa mais de R$ 11 mil. Rafael consome três frascos a cada 15 dias, são R$ 35 mil reais. Cerca de R$ 70 mil por mês. Mais de R$ 800 mil por ano.
Pacientes como ele podem ser submetidos a um transplante de medula. É uma alternativa muito mais barata (custa cerca de R$ 50 mil ao SUS) e a única capaz de curar. Apesar disso, Rafael nem sequer procurou um doador. Como o tratamento mais caro do mundo estava ao alcance das mãos, considerou que valia a pena optar pela nova droga e evitar os riscos da solução tradicional. O transplante cura metade das pessoas que têm HPN. Mas 30% podem morrer ou ter alguma complicação grave. O Soliris não cura, mas reduz a destruição dos glóbulos vermelhos e os sintomas da doença. Ainda assim, não elimina totalmente o risco de trombose. É por isso que Rafael também precisa tomar anticoagulante para sempre.
Um médico de São José dos Campos, onde mora o paciente, o encaminhou à capital para ser atendido de graça pelo hematologista Celso Arrais Rodrigues, do Sírio-Libanês. O hematologista diz não ter vínculos com a fabricante do remédio, a americana Alexion. Mas é pago por ela para dar aulas sobre HPN. “A empresa junta um grupo de médicos e me paga para falar sobre a doença e o tratamento”, afirma.
Rodrigues indicou a Rafael a advogada Fernanda Tavares Gimenez. Ela é remunerada pela Associação Brasileira de HPN, uma ONG de pacientes que recebe apoio financeiro da Alexion. Fernanda diz cobrar cerca de R$ 5 mil de cada cliente. “No caso do Soliris, não tenho causa perdida”, afirma.
O secretário de Saúde do Estado de São Paulo, Giovanni Guido Cerri afirmou que: “Isso virou uma grande indústria. Alguns médicos recebem estímulos do fabricante (viagens, benefícios) para prescrever medicamentos de alto custo. As empresas financiam as ONGs de pacientes e a isso tudo se associam os advogados”. Os gastos com as ações judiciais crescem R$ 200 milhões por ano. “Daria para construir um hospital novo por mês”, diz Cerri.
Segundo os advogados, é mais fácil ganhar as ações quando os citados são os gestores das esferas inferiores. O Estado de São Paulo foi o que mais gastou com essas ações em 2010. As despesas chegaram a R$ 700 milhões para atender 25 mil cidadãos. Isso é quase metade do orçamento do governo estadual para a distribuição regular de medicamentos (R$ 1,5 bilhão) a toda a população paulista.
Ainda conforme a reportagem citada, em 2005, o Ministério da Saúde foi citado em 387 ações e gastou R$ 2,4 milhões para atender essas três centenas de pacientes. Em 2011, foram 7.200 ações. A conta disparou para R$ 243 milhões. As ações contra o governo federal são uma pequena parte do problema. Como todas as esferas do Poder Público são corresponsáveis pelo financiamento da saúde, a maioria dos pacientes processa só o secretário municipal, só o estadual ou ambos.
No Rio Grande do Norte, o juiz Airton Pinheiro negou o pedido de uma paciente que pretendia receber o Soliris. Argumentou que o SUS já oferece um tratamento para a doença (o transplante). E sustentou que o fornecimento desse remédio provocaria um abalo financeiro no orçamento da saúde do Estado, prejudicando toda a coletividade que depende do SUS.
Esse caso ilustra muito bem o impacto dessas ações sobre o orçamento da saúde pública. Por ser uma doença rara, cada país age de uma forma. Na Inglaterra, o governo garante o Soliris apenas aos pacientes que tenham recebido pelo menos quatro transfusões de sangue no último ano. Na Escócia, o governo não paga. Nos Estados Unidos, alguns planos de saúde oferecem o remédio. A maioria não o garante. No Canadá, que dispõe de um sistema público de saúde abrangente, apenas uma província (Quebec) garante o Soliris. No Chile e na Argentina, alguns doentes conseguem o remédio ao processar os planos de saúde ou os governos.
Além dos gastos com drogas que não estavam previstos no planejamento, em 2011 os juízes obrigaram o governo paulista a fornecer outros itens que consumiram mais R$ 80 milhões. Não são medicamentos, mas os juízes aceitaram a argumentação de que seriam indispensáveis à saúde e, portanto, deveriam ser fornecidos pelo Poder Público, tais como: sabão de coco em pó, escova de dente, antisséptico bucal, xampu anticaspa, pilhas, copos descartáveis, chupetas, papel toalha, creme fixador de dentaduras, fraldas geriátricas, filtros de água, óleo de soja, creme de leite, fubá, amido de milho, farinha láctea…
Uma novidade foi a Lei 12.401/2011, que estabelece parâmetros para a inclusão de medicamentos no sistema público. Ela determina que o SUS não deve fornecer medicamentos, produtos ou procedimentos clínicos e cirúrgicos experimentais sem registro na Anvisa.
Com base neste raciocínio que o Supremo Tribunal Federal – STF reconheceu a repercussão geral da questão constitucional suscitada em Recurso Extraordinário[22], relativo ao fornecimento de medicamento de alto custo a paciente do Estado do Rio Grande do Norte, às expensas daquele Estado, questionando se a situação individual pode, sob o ângulo do custo, colocar em risco a assistência global de tantos que dependem de determinado medicamento de uso costumeiro, para prover a saúde ou minimizar sofrimento decorrente de certa doença em casos pontuais, razão pela qual destacava a necessidade do pronunciamento do Supremo em relação aos artigos 2º, 5 º, 6º, 196 e 198 da Constituição Federal, revelando o alcance do texto constitucional.
5. Os Tribunais e o Direito à Saúde
Segundo Fernando Facury Scaff (2011, p. 107), professor da Universidade de São Paulo, o papel do poder judiciário não é o de substituir o papel do poder legislativo, transformando o que é discricionariedade legislativa, em discricionariedade judicial, mas o de dirimir conflitos nos termos da Constituição.
Ainda, segundo o Scaff (2011), o poder judiciário não cria dinheiro, ele redistribui o dinheiro que possuía outras destinações estabelecidas pelo poder legislativo, e cumpridas pelo poder executivo. Logo, as decisões judicias atribuem direitos individuas, fazendo com que as verbas públicas sejam aplicadas como verdadeiros planos de saúde.
Como é sabido, o STF tem defendido a tese de que cabe nas competências do poder judiciário evitar que as omissões do poder público façam perecer os direitos fundamentais (NUNES, 2011). O STF tem resolvido muitos problemas delicados que o Congresso, ainda não se posicionou.
Oscar Vulhena Vieira, em seu famoso artigo intitulado Supremocracia (2008) afirmou que o Supremo acumulou muitos poderes desde a constituição de 1988, e extrapola, em alguns casos, suas atribuições, o que ele chamou de Supremocracia. Vilhena esclarece que é à favor da transformação do Supremo em uma Corte Constitucional, onde seriam julgados apenas os casos de grande relevância jurídica e institucional.
O Supremo acumula funções que, em outros países, estariam divididas em pelo menos três órgãos. Ele exerce a função de tribunal de última instância e recebe todas as apelações daqueles que se sentem insatisfeitos com as decisões dos juízes de instâncias inferiores. A segunda função é de corte constitucional. Ele recebe as ações diretas de inconstitucionalidade e dá a última palavra em temas de enorme importância política. Por último, o Supremo é um foro especializado, que julga as ações penais contra os parlamentares, os mandados de segurança contra o presidente da República. Por causa dessa concentração de poderes, o Supremo julga mais de 100 mil ações por ano. Há um desgaste da autoridade do Supremo, que tem menos tempo para lidar com as questões essenciais.
Deste modo, o Viera (2008) entende que a supremocracia teria um duplo sentido:
“a) Em primeiro lugar refere-se a autoridade do STF em relação às demais instâncias do judiciário, pois regula jurisdicionalmente (através de súmulas vinculantes) o poder judiciário no Brasil.
b) Em segundo lugar, supremocracia diz respeito a expansão da autoridade do STF em detrimento dos demais poderes, seria um poder moderador, responsável por emitir a ultima palavra sobre inúmeras questões, ora legitimando uma decisão dos órgãos representativos, ora substituindo escolhas majoritárias.”
Não vamos entrar aqui na questão do ativismo judicial, que não é característica exclusiva do direito brasileiro, e tem sido marcante em relação às decisões do STF, as quais estão cada vez mais presentes na mídia, em virtude da relevância dos temas nelas versados, mas é importante frisar que em países como Portugal, por exemplo, o Tribunal Constitucional não enfrenta estes problemas dessa maneira.
Nunes (2011) é claro ao tratar sobre o tema:
“Não conheço nenhuma sentença de um tribunal português sobre o pedido de um cidadão no sentido de o tribunal condenar o Executivo a adoptar as medidas adequadas à efectivação do direito (individual) à saúde do requerente (fornecimento de medicamentos, recurso a meios de diagnósticos, realização de cirurgia ou outro tipo de tratamento).
E o Tribunal Constitucional posicionou-se duas vezes sobre questões relativas ao direito à saúde, em ambas chamado a aprecias a inconstitucionalidade de dois diplomas legais.
O universo português é, pois, a este respeito, radicalmente diferente do brasileiro”. (pág. 11)
Desde a promulgação da Constituição de 1988 houve um crescente movimento de ativismo judicial favorável à concessão “absoluta” do direito à saúde. A grande maioria das decisões proferidas pelos Tribunais concedia o medicamento ou tratamento pleiteado pelo impetrante.
Um desses precedentes que constantemente era reivindicado nas decisões é de autoria do Ministro Celso de Mello, demonstrando as particularidades da posição do Supremo Tribunal Federal à época das decisões. Vejamos um fragmento de decisão proferida no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 271286/RS, na data de 02 de agosto de 2000:
“O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQUÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA.
O direito público subjetivo à saúde prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, (…) o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.
O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável ao direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano de organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.
A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQUENTE.
O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatário todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.”
Posteriormente à realização da Audiência Pública nº 04, o Supremo Tribunal Federal mudou um pouco seu entendimento. Decisão interessante foi a proferida na Suspensão de Liminar 710/RS[23], na qual o Ministro Joaquim Barbosa se manifesta sobre a suspensão de liminar formulada pela União objetivando suspender a decisão que determinou a concessão, a todas às pacientes acometidas de câncer de mama metastático, do medicamento de alto custo Trastuzumabe (Herceptin). Referido fármaco, apesar de ser dispensado regularmente pela rede Pública, não foi liberado pela ANVISA para pacientes neste estágio (mais grave) da doença, diante de inexpressivos resultados eficazes e ainda, pela existência de possível efeito colateral de insuficiência cardíaca grave aumentada em treze vezes. Apesar de não remeter às decisões anteriormente vistas, o douto julgador determina o indeferimento do pedido, uma vez que não restou comprovada a alegação de possível dano ao erário, bem como, por entender ser direito do paciente a escolha pelo tratamento, desde que conheça os riscos, principalmente por se tratar de medida que, muitas vezes, oferece a “esperança” necessária para a continuidade da luta pela vida.
Em setembro de 2009 o então presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, proferiu decisão na Suspensão de Tutela Antecipada (STA) nº 175/CE, na qual definiu uma sequencia de hipóteses que deveriam ser avaliadas antes da decisão nos processos envolvendo o direito à saúde.
Novamente suscitaram-se questões como o alto custo dos medicamentos, sua não inclusão na política farmacêutica da rede pública, falta de registro na ANVISA, bem como o risco de decisões deferindo medicamentos de alto custo para poucos em detrimento do atendimento universal, gerarem efeito multiplicador.
Basicamente as principais questões levantadas nesse julgado foram as seguintes: o artigo 196, da Constituição brasileira assegura tanto um direito individual quanto coletivo à saúde e não deve ser tratado como mera norma programática; no entanto, apesar de ser um direito público subjetivo, precisa de políticas sociais e econômicas que o assegure; afirmou o Ministro que “…a garantia individual da prestação judicial de saúde, prima facie, estaria condicionada ao não comprometimento do SUS, o que, por certo, deve ser sempre demonstrado e fundamentado de forma clara e concreta, caso a caso.”
A competência comum para cuidar da saúde prevista no artigo 23, II, da CF/88, torna todos os entes da federação responsáveis solidários e aptos a legitimados passivos nas demandas por medicamentos quando há a negativa por parte do SUS.
Além desses fatores, a mencionada decisão destacou a importância de ações preventivas, o que está também destacado na Constituição, no inciso II do artigo 198, ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde, como também a previsão de acesso universal e igualitário aos serviços públicos, reforçando a responsabilidade solidária dos entes federativos.
Em resumo, quando se aborda o tema do Judiciário intervindo nas políticas de saúde, tem-se que ter em vista que essa atuação será sim legítima quando se defere uma prestação já incluída nas políticas sociais e econômicas definidas pelo SUS, pois ai nada esta sendo criado e sim apenas se está determinando o cumprimento de algo já estabelecido.
Nesse sentido, conclui Simone Barreto de Carvalho[24] (2010, p. 29):
“Uma das conclusões da análise desses elementos é que ficou firmado o entendimento de ser possível a intervenção do Poder Judiciário nas questões referentes a implementação de políticas públicas, pela necessidade de preservação da integridade e da intangibilidade do indivíduo, configurada na figura do mínimo existencial.”
5.1. Ativismo Judicial
Em meio a esta questão, interessante citar o tema do Judiciário agindo como um ente político, que nada mais é que a atuação deste poder decidindo questões de larga repercussão social ou política, que tradicionalmente pertencem às instâncias políticas: Congresso Nacional e Poder Executivo.
Como esclarece Canavez Junior[25] (2012, p. 33), neste campo há dois institutos diferentes: a judicialização e o ativismo judicial. De forma bem simples, explica o jurista que enquanto o primeiro instituto significa a ingerência do Judiciário determinando que os demais poderes cumpram o que já está estabelecido em lei, sem criar nada novo, o ativismo se caracteriza como uma atitude criativa do direito, como por exemplo, quando a Corte determina o fornecimento de medicamentos não previstos nos protocolos do SUS.
Nas palavras do mencionado autor, uma demonstração do que seria o ativismo no setor da saúde seriam “determinações quanto à entrega de medicamentos não constantes nas listas oficiais, realização de cirurgias e outros tratamentos médicos desorganizando a estrutura administrativa montada para atender a sociedade.”
Segundo afirma Teori Zavaski[26], a atuação do Judiciário deixou de ser estritamente positiva, para ser construtiva, não só porque em alguns casos faltam previsões legislativas, mas também porque “…a Constituição brasileira conferiu ao Judiciário mecanismos importantes para preencher esses vazios, princípios gerais, analogia. E, a partir de 1988, o mandado de injunção e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), para preencher as lacunas do legislador.”
Assim, no tocante ao direito fundamental à saúde, intimamente relacionado à preservação da dignidade humana, se faz evidente a atuação positiva do Judiciário, sobretudo do Supremo Tribunal Federal, nos casos relativos ao fornecimento de medicamentos. Assim como conclui Canavez Junior (2012, p. 35): “o Supremo Tribunal Federal, (…), atua de forma a garantir a dispensação dos fármacos por meio do Estado (sentido lato), reconhecendo a solidariedade dos entes da federação e transformando um direito inicialmente coletivo em um direito apropriado individualmente.”[27]
No entanto, como alerta o autor, essa atuação judicial tem que ter limites para não tornar tensa a relação e o equilíbrio entre os poderes. Em suas palavras:
“a atuação proativa do judiciário pode significar uma forma democrática de proteção aos direitos fundamentais, como também pode ser um obstáculo ao exercício dos direitos que pretende proteger, isto é, tomando como exemplo a saúde pública, tem-se que a atuação judicial pode ser uma forma de garantia de acesso a medicamentos de difícil acesso, por pessoas que comprovem não poder adquirir o fármaco sem prejuízo de seu próprio sustento, ou forma de garantir a efetivação de uma política pública estabelecida em lei, mas negligenciada pelo Poder competente. Ocorre que, a concessão desmedida de providências judiciais neste sentido, sem o estabelecimento de um amplo diálogo entre os Poderes e a sociedade, pode acarretar prejuízos ao orçamento público, dificultando, assim, a realização de outras políticas públicas também necessárias à garantia de saúde da população.”
Portanto, na atual democracia em que se vive, nota-se que o Judiciário deixou de ser um mero aplicador das leis aos casos concretos, para assumir um papel de agente político, não livre de críticas, mas talvez essencial à real efetividade das disposições constitucionais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um primeiro momento deve-se deixar claro que qualquer política de saúde pública, deve levar em conta a demanda global que envolve tais interesses, sob pena de atender uns e desatender muitos.
Uma proposta que ajudaria a enfrentar tal problema foi trazida por Ingo Wolfgang Sarlet (2008), o qual afirma que deve ser analisada a relação entre a gratuidade dos serviços de saúde prestados pelo poder público e os planos de saúde privados, já que se revela como sendo de difícil sustentação, que um particular que disponha de recursos suficientes para financiar um bom plano de saúde privado (sem o comprometimento de um padrão digno de vida para si e sua família e sem prejuízo, portanto, do acesso a outros bens fundamentais como educação, moradia, etc.) possa acessar, sem qualquer tipo de limitação ou condição (já que não se trata de uma exclusão do sistema de saúde pública), o sistema de saúde, nas mesmas condições de alguém que não esteja apto a prover com recursos próprios a sua saúde pessoal.
O autor chega a conclusão de que em termos de direitos sociais básicos, a efetiva necessidade haverá de ser um parâmetro a ser levado a sério, juntamente com os princípios da solidariedade, da subsidiariedade e da proporcionalidade. Assim, a conexão entre o princípio da isonomia material e o princípio da proporcionalidade, operante não apenas pelo prisma do Estado e da sociedade, mas pelo prisma do indivíduo (no sentido daquilo que este pode esperar do Estado), revela que, no mínimo, o tema da gratuidade do acesso à saúde (que não constitui a regra no direito comparado) merece ser cada vez mais discutido, pelo menos para efeitos de uma distribuição mais equitativa das responsabilidades e encargos, maximizando assim o acesso em termos do número de pessoas abrangidas pelo sistema e buscando uma maior qualidade dos serviços.
Outra interessante proposta foi feita por Rogério Gestal Leal (2006) oportunizando e reivindicando a demonstração da necessidade do enfermo e a possibilidade de contribuição para o atendimento da demanda dos seus familiares, assim, surgiria a possibilidades de compartilhamento familiar do dever de sustento à saúde. De forma que, já na petição inicial a parte demonstre que não tem condições de adquirir o tratamento e que sua família também não tem condições de cooperar.
Também é necessário a criação de uma norma clara que estabeleça quais tratamentos e medicamentos serão fornecidos ou não, para que não se torne cada vez mais instável a politica orçamentária em relação a saúde, já que esta vem sendo mudada por ordens judiciais. Logo, poderia ser estabelecido que apenas nos casos em que não haja uma opção viável o medicamento mais caro poderia ser adotado.
Mestranda na Pontifícia Universidade Católica PUC-SP pós-graduada em direito público pela universidade Anhanguera-Uniderp. 2012 graduada em Direito pela UEMS ano 2010.
Analista Judiciária do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul pós-graduada em direito público pela universidade Anhanguera-Uniderp. 2012 graduada em Direito pela UEMS ano 2010.
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