Resumo: O presente trabalho trata do delito de sequestro relâmpago, cuja tipificação afronta o princípio da proporcionalidade, relacionando ao fenômeno do Direito Penal Simbólico, estudando possíveis soluções às antinomias criadas pelo Poder Legislativo, principalmente quanto à necessária atuação do Poder Judiciário na restauração da proporcionalidade.[1]
Palavras-chave: Lei penal. Simbólica. Controle. Constitucionalidade. Proporcionalidade.
Abstract: This work concerns the crime of kidnapping for a short period of time, whose law confronts the principle of proportionality, due to the phenomenon of symbolic criminal law, studying some possible solutions to treat the problems created by the Legislative, and the essential intervention of the Judiciary in the matter of re-establishing proportionality.
Keywords: Criminal law. Symbolic. Control. Constitutionality. Proportionality.
Sumário: 1 Introdução. 2 Definição legal de sequestro relâmpago. 3 Sequestro relâmpago e a violação do princípio da proporcionalidade da pena. 4 Das possíveis soluções para restaurar a proporcionalidade da pena abstrata aplicada à conduta de sequestro relâmpago. 5 Conclusão.
1 Introdução
Em razão da força dos meios de comunicação, do medo presente na população e, também, do oportunismo político, o ordenamento jurídico brasileiro sofre de um aumento desenfreado de leis penais. Além disso, a banalização do processo legislativo penal ocasiona a exacerbação punitiva, desequilibrando a proteção dos bens jurídicos, principalmente no tocante à desproporcionalidade das penas cominadas abstratamente, culminando esse processo no chamado Direito penal simbólico.
Pode-se dizer que a pena possui dois efeitos: os instrumentais e os simbólicos. Os primeiros se vinculam ao fim da pena ou à proteção de bens jurídicos, porquanto buscam evitar a ocorrência de comportamentos indesejados, enquanto os efeitos simbólicos relacionam-se à finalidade de propagar mensagens de conteúdo valorativo, influenciando o pensamento da sociedade como um todo.[2]
Diante disso, os efeitos simbólicos somente podem ser admitidos como efeitos secundários da intervenção penal, na proporção da importância que se atribui aos fins ou função de prevenção geral da pena, efetuada por meio desses efeitos.[3]
O Direito penal simbólico é uma vertente da atual evolução político-criminal, a expansão do Direito Penal e, juntamente com o “ressurgir do punitivismo”, “constituem a linhagem do Direito penal do inimigo”, como leciona Manuel Cancio Meliá.[4]
Para melhor elucidar o conceito de Direito penal simbólico observa-se que toda legislação penal possui traços que podem ser caracterizados como simbólicos. Todavia, há outro sentido, de face mais crítica, que cuida da atuação do Poder Legislativo quando busca tranquilizar a população por meio da edição de leis de função meramente simbólica.[5]
Assim, o Direito penal simbólico não se caracteriza somente como aquele cuja tipificação possui uma face simbólica, mas é aquele em que se materializa um grau de simbolismo exagerado.[6]
José Luis Díez Ripollés aduz que o Direito penal simbólico dever ser reconhecido como um “uso patológico dos efeitos expressivo-integradores da sanção penal”, que não se sustenta ao longo do tempo, tendo em vista que promovem a desqualificação e a desconsideração dos efeitos da pena, da atual política criminal.[7]
Cleber Masson aponta que todas as leis possuem função simbólica, não somente as leis penais. Como efeito, traz a sensação de dever cumprido aos governantes e a falsa impressão de controle sobre o problema da criminalidade aos cidadãos. O Direito penal simbólico se manifesta com a “inflação legislativa” que faz criar tipos penais desnecessários, ou ainda, se mostra no aumento de pena desproporcional. Para esse autor é imprescindível que se evite a função simbólica das leis penais, pois, em longo prazo, culminaria na “perda de credibilidade do ordenamento jurídico”.[8]
Ainda como parte de tal fenômeno de expansão do direito penal, se faz presente o punitivismo, concretizado na criação de leis penais mais “duras” ou de leis que recrudescem as penas de leis já presentes no ordenamento jurídico, como instrumento de controle da criminalidade.[9] Não obstante, não se pode elucidar conceitos separados claramente de Direito penal simbólico e punitivismo, pois guardam um com o outro estreita relação, da qual surge o Direito penal do inimigo.[10]
Um recente exemplo de lei penal de caráter simbólico e punitivista é o caso do delito de sequestro relâmpago, cuja tipificação é permeada tanto pela falta de simetria entre as penas cominadas e pela dualidade de tipos, uma vez que importantes juristas consideram que o referido delito já se encontrava tipificado como roubo majorado.[11]
Podemos descrever o delito de sequestro relâmpago como aquele delito em que a vítima é privada de sua liberdade, por um curto espaço de tempo, como meio de obtenção da vantagem econômica indevida. Normalmente, se realiza com a restrição da liberdade da vítima, em seu próprio veículo por um curto espaço de tempo, sendo levada pelos autores do delito à diversos caixas eletrônicos para a realização de retiradas bancárias.
2 Definição legal de sequestro relâmpago
O artigo 158 do Código Penal Brasileiro, que tipifica o delito de extorsão, foi alterado pela Lei n. 11.923 de 2009 que incluiu nesse o § 3º, que tipifica o delito de sequestro relâmpago:
“Art. 158 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa: […]
§ 3º – Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2º e 3º, respectivamente.” (destaques nossos)
Da observação desse dispositivo observa-se a sua desconformidade aos princípios que norteiam a lei penal incriminadora. Principalmente quanto ao princípio da determinação taxativa, que deveria ser respeitado no processo de elaboração das leis, primando pela boa técnica legislativa, qualificação e competência do legislador e, também, pelo uso de linguagem objetiva e livre de ambiguidades.[12]
Entretanto, o que ocorre é o patente desrespeito a esse princípio, corolário do principio da legalidade, isso porque a descrição feita no § 3º nada acresce ao tipo descrito no caput.[13] Mas sim, dá ensejo a mais dúvidas na aplicação da lei penal, pois tal delito já estaria tipificado.
É o que afirma, também, o secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, Pedro Abramovay, justificando o parecer pelo veto da Lei n. 11.923, no fato de que tal delito se amolda a dois tipos já existentes no Código Penal Brasileiro, ao roubo com restrição de liberdade e à extorsão mediante violência ou uso de armas, que têm por pena máxima a reclusão de até 15 anos[14]:
“Art. 157 – Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.[…]
§ 2º – A pena aumenta-se de um terço até metade: […]
V – se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade. (Incluído pela Lei nº 9.426, de 1996) ”
“Art. 158 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.[…]
§ 1º – Se o crime é cometido por duas ou mais pessoas, ou com emprego de arma, aumenta-se a pena de um terço até metade.”
Vale ressaltar que, já havia divergência jurisprudencial e doutrinária quanto ao amoldar da conduta do sequestro relâmpago, que era tipificado como roubo majorado (art. 157, § 2º, V), extorsão simples (art. 158) e extorsão mediante sequestro (“Art. 159 – Sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate: Pena – reclusão, de oito a quinze anos.”), a depender do caso concreto.
Guilherme de Souza Nucci, em lições anteriores à tipificação do sequestro relâmpago pela Lei 11.923/09, afirma que esse delito se amolda à conduta descrita no art. 157, § 2º, inciso V, do Código Penal, ou seja, ao roubo com a privação de liberdade da vítima. O que se pode observar no seguinte excerto sobre esse delito:
“o agente que além de pretender subtrair o veículo, tem a nítida finalidade de privar a liberdade do ofendido, para sustentar qualquer outro objetivo, embora na grande parte das vezes seja para subtrair-lhe outros bens. Para tanto, roda com a mesma pela cidade – na modalidade que hoje se chama de “seqüestro relâmpago” – almejando conseguir saques em caixas eletrônicos”.[15]
Luiz Regis Prado leciona que deverá ser aplicado o inciso V do parágrafo segundo do art. 157 do Diploma Penal, se a privação da liberdade da vítima se der como meio de execução do crime de roubo, tendo em vista que esse inciso retira a autonomia do delito de sequestro praticado nas condições descritas nesse artigo.[16]
A maioria da doutrina, antes da Lei 11.923, segue a posição de que o sequestro relâmpago está tipificado no inciso V, do § 2º do art. 157 do Código Penal. Da interpretação das lições Damásio Evangelista de Jesus depreende-se que, esse autor também entende pela incidência do inciso V.[17]
Também, nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça:
“PENAL – HABEAS CORPUS – ROUBO MAJORADO POR TRÊS CIRCUNSTÂNCIAS ESPECIAIS. PENAS-BASE FIXADAS INDEVIDAMENTE EM PATAMAR SUPERIOR AO DEVIDO, MEDIANTE ALEGAÇÕES QUE NÃO LEVAM AO AUMENTO DA PENA – ACRÉSCIMO POR MAJORANTES COM BASE TÃO-SÓ NO SEU QUANTITATIVO – AUSÊNCIA DE OUTROS FUNDAMENTOS – IMPOSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA PARA REDUZIR AS PENAS-BASE, EXCLUIR A MAJORANTE DO EMPREGO DE ARMA E DIMINUIR O AUMENTO PELAS MAJORANTES.[…]
Quanto à circunstância qualificativa referente à restrição de liberdade das vítimas. No que diz respeito a tal circunstância a jurisprudência das Turmas que integram 3ª Secção entende que basta para sua caracterização que ocorra a restrição da liberdade, sem condicioná-la a um grande prazo de duração. Vejamos:
HABEAS CORPUS. ROUBO TRIPLAMENTE QUALIFICADO. PENA DE 6 ANOS, 7 MESES E 10 DIAS DE RECLUSÃO, EM REGIME INICIAL FECHADO. RESTRIÇÃO À LIBERDADE DA VÍTIMA E DE SEUS FAMILIARES, POR CERCA DE TRINTA MINUTOS. CARACTERIZAÇÃO DA QUALIFICADORA PREVISTA NO ART. 157, § 2º, V DO CPB. ORDEM DENEGADA.
1. Resta incontroverso nos autos a restrição de liberdade imposta à vítima e seus familiares, que teria perdurado por cerca de trinta minutos, lapso de tempo considerado suficiente pelo Tribunal a quo para caracterizar a majorante prevista no art. 157, § 2º, V do CPB. 2. A qualificadora prevista no art. 157, § 2º, V do CPB demanda, tão-somente, para sua incidência, a restrição da liberdade da vítima, que, uma vez caracterizada, autoriza a exasperação da reprimenda de um terço até a metade. Não é feita qualquer menção ao lapso temporal necessário de tal restrição, bastando, para fins de subsunção ao tipo circunstanciado, a efetiva privação da liberdade, necessária à prática do delito de roubo, tal como configurada na espécie.
3. Parecer do MPF pelo não conhecimento do writ.
Ordem denegada.
I. Na hipótese dos autos, as vítimas foram levadas para outro local em que foram desapossadas dos bens, o que por certo durou algum tempo, embora não se saiba exatamente quanto tempo ficaram privadas de sua liberdade. A majorante em questão surgiu exatamente para punir mais severamente aqueles que praticam seqüestros relâmpagos, evitando capitulação mais grave, desde que a privação de liberdade não dure muito tempo, caso que, então, outro crime, isolado estará configurado. Impõe-se a manutenção da circunstância qualificativa em questão. […] ”[18] (destaques nossos)
Assim, a criação desse novo tipo penal se mostra como um claro exemplo de lei penal simbólica, ante a sua desnecessidade, já que o sequestro relâmpago esteve tipificado no ordenamento jurídico brasileiro desde 1996, com a adição da majorante do inciso V ao § 2º do art. 157. Por conseguinte, observa-se que a edição da Lei 11.923 se deu somente para apresentar uma resposta ao clamor social, sem, no entanto, apresentar nenhuma solução fática ao problema da insegurança.
3 Sequestro relâmpago e a violação do princípio da proporcionalidade da pena
O princípio da proporcionalidade, é condição de legalidade, sem a qual a lei se mostra inconstitucional. Em sentido estrito importa, também, na proibição do excesso quando da cominação da pena em abstrato ao fato descrito na lei. Assim, se a pena abstratamente cominada for desproporcional ao delito, a lei sofrerá de inconstitucionalidade.
O princípio da proporcionalidade incide tanto sobre a atuação do legislador, como na atuação do juiz, seja durante o processo ou durante o processo de execução. Quanto à atuação do legislador observa-se a incidência quanto aos seguintes aspectos:
“a) proporcionalidade entre condutas escolhidas para integrar o tipo penal; b) proporcionalidade entre a conduta descrita e a pena prevista em abstrato; c) proporcionalidade entre as penas dos delitos que compõem o mesmo capítulo do código; d) proporcionalidade entre os bens jurídicos selecionados pelo legislador como dignos de tutela penal; e) proporcionalidade entre a reprimenda penal e as demais reprimendas estabelecidas pelos demais ramos do Direito; f) proporcionalidade entre as penas estabelecidas para os delitos previstos no código penal e as penas impostas aos delitos assemelhados previstos em lei especial; proporcionalidade entre as penas aplicáveis a diferentes espécies de delitos, como, por exemplo, entre os delitos de resultado e os de mera conduta; h) a falta de proporcionalidade com a manutenção das contravenções penais.”[19]
Luigi Ferrajoli leciona que o princípio da proporcionalidade por si não aponta critérios para a ponderação entre pena e delito, não havendo nenhum critério natural, somente critérios objetivos “baseados em valorações ético-políticas ou de oportunidade de estabelecer a qualidade e a quantidade da pena adequada a cada delito”. O que impõe considerar a questão da justificação do tipo e da medida da pena como um problema moral e político, que esse autor divide em três “subproblemas” descritos a seguir.[20]
Primeiro, o problema da predeterminação do tipo e da margem de pena cominada abstratamente pelo legislador, que tem início no que tange à gravidade do delito, devendo essa margem orientar-se por uma face objetiva e outra subjetiva. A objetiva mede gravidade do delito e a da pena pelo dano e já a segunda face mede o grau de culpabilidade do agente. Diante disso, deve o legislador formar uma escala de penas baseando-se nos bens jurídicos protegidos.[21]
O segundo se consubstancia na discricionariedade atribuída ao juiz, quando da determinação da pena in concreto, que ocorre no momento de julgamento, ou seja, de “interpretação eqüitativa do fato legalmente tipificado”. A equidade, que se relaciona ao princípio da legalidade, norteia a interpretação do fato devendo o juiz se inspirar na Constituição, bem como deve ser imparcial e observando a lei e as provas na verificação. Isso porque, em um sistema garantista a atuação judicial tem por função buscar a justiça no caso concreto.[22]
O último consiste na determinação da pena na fase executiva. Isso porque, aduz que a lei tem duas finalidades “inconfessas”, e essas não se coadunam ao modelo garantista do direito penal. A primeira seria a função “exemplar” da pena cominada abstratamente, que vai além daquela que deve ser cumprida, apresentando-se como uma pena de caráter simbólico. A segunda seria a função “disciplinar”, que vincula os benefícios oferecidos na execução à características subjetivas do réu, o que confere grande poder às instituições punitivas.[23]
Do exposto, dessume-se que nos interessa estudar o primeiro “subproblema” apontado por Luigi Ferrajoli: o da cominação de penas in abstrato pelo legislador. Tendo em vista que se relaciona diretamente ao problema da desproporcionalidade, o qual permeia o delito de sequestro relâmpago.
O delito previsto no § 3º do art. 158 do Diploma Penal se contrapõe ao principio da proporcionalidade pela falta do juízo de proporcionalidade, ferramenta constitucional que busca harmonizar o sistema jurídico, na proporção que o legislador, supostamente, acredita existir na pena cominada e, também, quando relaciona o § 3º do art. 158 com o tipo penal descrito no artigo 159, a extorsão mediante sequestro. Nesse sentido o julgamento do HC 92.525 MC/RJ, transcrito no Informativo do STF n. 500:
“RECEPTAÇÃO SIMPLES (DOLO DIRETO) E RECEPTAÇÃO QUALIFICADA (DOLO INDIRETO EVENTUAL). COMINAÇÃO DE PENA MAIS LEVE PARA O CRIME MAIS GRAVE (CP, ART. 180, “CAPUT”) E DE PENA MAIS SEVERA PARA O CRIME MENOS GRAVE (CP, ART. 180, § 1º). TRANSGRESSÃO, PELO LEGISLADOR, DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PROPORCIONALIDADE E DA INDIVIDUALIZAÇÃO “IN ABSTRACTO” DA PENA. LIMITAÇÕES MATERIAIS QUE SE IMPÕEM À OBSERVÂNCIA DO ESTADO, QUANDO DA ELABORAÇÃO DAS LEIS. A POSIÇÃO DE ALBERTO SILVA FRANCO, DAMÁSIO E. JESUS E DE CELSO, ROBERTO, ROBERTO JÚNIOR E FÁBIO DELMANTO. A PROPORCIONALIDADE COMO POSTULADO BÁSICO DE CONTENÇÃO DOS EXCESSOS DO PODER PÚBLICO. O “DUE PROCESS OF LAW” EM SUA DIMENSÃO SUBSTANTIVA (CF, ART. 5º, INCISO LIV). DOUTRINA. PRECEDENTES. A QUESTÃO DAS ANTINOMIAS (APARENTES E REAIS). CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO.
[…] A elaboração da norma penal incriminadora não pode subtrair-se à obediência aos preceitos constitucionais. Cumpria, pois, à Lei n° 9.426/96, ter como parâmetro o princípio da proporcionalidade entre o fato cometido e a gravidade da resposta penal, pois é nesse momento, o da individualização legislativa da pena (CF, art. 5°, XLVI), que a proporcionalidade apresenta fundamentalmente a sua eficácia […] Vê-se, das lições ora expostas, que o legislador brasileiro – ao cominar pena mais leve a um delito mais grave (CP, art. 180, “caput”) e ao punir, com maior severidade, um crime revestido de menor gravidade (CP, art. 180, § 1º) – atuou de modo absolutamente incongruente, com evidente transgressão ao postulado da proporcionalidade. […]
Como se sabe, a exigência de razoabilidade traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo.
O exame da adequação de determinado ato estatal ao princípio da proporcionalidade, exatamente por viabilizar o controle de sua razoabilidade, com fundamento no art. 5º, LIV, da Carta Política, inclui-se, por isso mesmo, no âmbito da própria fiscalização de constitucionalidade das prescrições normativas emanadas do Poder Público.
Esse entendimento é prestigiado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, por mais de uma vez, já advertiu que o Legislativo não pode atuar de maneira imoderada, nem formular regras legais cujo conteúdo revele deliberação absolutamente divorciada dos padrões de razoabilidade. […] Como precedentemente enfatizado, o princípio da proporcionalidade visa a inibir e a neutralizar o abuso do Poder Público no exercício das funções que lhe são inerentes, notadamente no desempenho da atividade de caráter legislativo. Dentro dessa perspectiva, o postulado em questão, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado atua como verdadeiro parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. […]
Ao julgar o HC 68.793/RJ, Rel. p/ o acórdão Min. MOREIRA ALVES, a colenda Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, apoiando-se no magistério de NORBERTO BOBBIO (“Teoria do Ordenamento Jurídico”, p. 100/103, 1989, Polis/Editora Unb), assinalou que a interpretação ab-rogante, porque excepcional, deve ser ordinariamente afastada, preferindo-se, a ela, quando conciliáveis os dispositivos antinômicos (antinomia aparente), a denominada “(…) interpretação corretiva, que conserva ambas as normas incompatíveis por meio de interpretação que se ajuste ao espírito da lei e que corrija a incompatibilidade, eliminando-a pela introdução de leve ou de parcial modificação no texto da lei” (RTJ 166/493 – grifei).
Em conseqüência desse entendimento, e buscando viabilizar “a eliminação da incompatibilidade”, o Supremo Tribunal Federal (cuidava-se, então, de regras normativas constantes da Lei dos Crimes Hediondos), mediante exegese restritiva das normas legais em exame, promoveu uma conciliação sistemática dos preceitos legais, “(…) deixando ao primeiro, a fixação da pena (…) e ao segundo, a especialização do tipo do crime (…)” (RTJ 166/493), na linha do que se preconiza nas lições que venho de referir, que propõem, para solução do conflito, a subsistência do preceito primário consubstanciado no § 1º do art. 180 do Código Penal, embora aplicando-se-lhe o preceito sancionador (preceito secundário) inscrito no “caput” do referido art. 180 do CP […]”[24]
A tipificação do delito de sequestro relâmpago se mostra totalmente desproporcional, pois comina a pena de 6 (seis) a 12 (doze) anos de reclusão a um crime que tem por bem jurídico protegido o patrimônio e a liberdade individual. Enquanto, de outro lado, a mesma pena mínima é aplicada ao delito de homicídio simples que tem como bem jurídico protegido a vida e, a pena cominada é superior, por exemplo, àquela cominada no delito de lesão corporal gravíssima (que busca proteger a integridade física) que é de 2 (dois) a 8 (oito) anos.[25]
Demais disso, o legislador, quando vincula o § 3º do art. 158 aos §§ 2º e 3º do art. 159, para os casos em que ocorre lesão corporal grave ou morte, além de demonstrar má técnica legislativa, desrespeita, novamente, o princípio da proporcionalidade, tendo em vista que dá o mesmo tratamento ao delito em que a liberdade da vítima é restringida por reduzido espaço de tempo e àquele em que a liberdade da vitima e restringida com a característica de permanência.[26]
4 Das possíveis soluções para restaurar a proporcionalidade da pena abstrata aplicada à conduta de sequestro relâmpago
A “inflação” da legislação penal se faz presente, no Brasil, desde as Ordenações Filipinas e a partir de 1890 se tornou alarmante. Entre 1890 e 1930 afirma-se que houve o caos legislativo. Após, veio a lume o Código Penal de 1940, moderno para a época, mas dotado de alguns pontos totalitaristas e, como copia o Código Italiano de 1930, trouxe suas virtudes e defeitos.[27]
Posteriormente, prosseguiu a hipertrofia legislativa, a cada momento, são editadas novas leis penais que criam os mais diversos tipos, resultando na falência do sistema penal e na necessidade de que o excesso de criminalização seja contido, detendo, nesse sentido, a atuação do legislador.[28]
Luiz Luisi aponta uma solução para conter tal desenfreada produção de leis penais simbólicas, propõe a inserção do princípio da Intervenção Mínima de forma explícita na Constituição, o que acarretaria uma nova face ao princípio da legalidade, nesse novo conceito a lei penal incriminadora deverá ser prévia, determinada, atual e necessária. O acréscimo do princípio da necessidade ao conceito possibilitaria o controle jurisdicional da legislação, dando aos tribunais a oportunidade de apreciação da necessidade da lei.[29]
Acrescenta que o sistema brasileiro é um sistema ineficaz, e o recrudescimento desse sistema não gera nenhum efeito que vá além do meramente simbólico. Assim, acredita que é imprescindível a reforma do ordenamento jurídico penal, no sentido de diminuir a quantidade de normas existentes e editadas, formando-se um Direito penal necessário. Ademais, cita as lições de Ferrando Mantovani, penalista que traz o “princípio da centralidade da pessoa humana” como pedra fundamental do Estado Democrático de Direito, sendo indispensável que o Direito Penal seja respeitoso à dignidade humana.[30]
Ao estudar o princípio da proporcionalidade, temos que esse se subdivide em três subprincípios: da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Pelo primeiro subprincípio observa-se que a pena deve ser capaz de promover a finalidade pretendida pelo legislador. A necessidade significa que os meios adotados devem ser somente os essenciais ao alcance do fim, primando sempre pelo menos gravoso. A proporcionalidade em sentido estrito se consubstancia na proibição do excesso na cominação de pena ao delito praticado.
Noutro norte, estão alocadas as leis penais simbólicas, como a Lei 11.923 que tipificou o sequestro relâmpago, pois são editadas em total desrespeito aos princípios norteadores da lei penal, principalmente no tocante ao principio da proporcionalidade.
Isso porque, primeiramente, não se pode falar em adequação, já que a finalidade da lei penal deve ir além do simbolismo que, em um primeiro momento, coibiria ações criminosas. O que se observa é o cumprimento de uma função meramente simbólica por essas leis, ou seja, somente a função de conter o clamor social, o que em um curto espaço de tempo é capaz de levar ao descrédito o sistema jurídico-penal.
Além disso, podemos observar a desproporcionalidade pela ausência de necessidade, em relação à nova tipificação do sequestro relâmpago e a violação ao subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito em relação às penas cominadas em abstrato por esse novo tipo penal.
Consoante à maioria da doutrina e jurisprudência, o delito de sequestro relâmpago desde a edição da Lei 9.426/96[31] restou incriminado pelo ordenamento jurídico brasileiro, na forma de roubo majorado pela restrição de liberdade da vítima (art. 157, § 2º, inciso V do Código Penal).
Assim, mostra-se desnecessária a edição da Lei 11.923, porquanto o delito de sequestro relâmpago, tanto pela tipificação já existente no ordenamento jurídico brasileiro, como pelas penas cominadas são de notável desproporcionalidade, tendo em vista os bens jurídicos protegidos por tal norma (patrimônio e liberdade individual).
Ainda, quando se trata do sequestro relâmpago com resultado de lesão corporal grave ou morte, a pena desse delito é relacionada àquelas constantes do art. 159, que tipifica a extorsão mediante sequestro.
Disso, dessume-se que, além de uma má técnica legislativa (ofensiva ao princípio da legalidade), a lesão ao bem jurídico, oriunda da prática do delito em comento, não foi observada quando da cominação das penas, que são superiores àquela cominada ao delito de lesão corporal gravíssima e pena mínima igual ao delito de homicídio simples. Ademais, a intensidade da lesão no caso do art. 159 é consideravelmente maior, pois a restrição da liberdade individual pode durar dias, meses e, até mesmo, anos, o que não ocorre no delito tipificado no § 3º do art. 158. Entretanto a pena cominada quando ocorrem lesões corporais graves ou a morte da vítima é a mesma para ambos os crimes, que ostentam as mais graves penas do ordenamento jurídico brasileiro.[32]
Mariângela Gama de Magalhães Gomes afirma que é relevante a análise da lei que tipifica o sequestro relâmpago, tendo em vista que tal incriminação é claramente desproporcional, contrapondo-se, assim, à Constituição.[33]
Desse modo, podemos apontar como solução para a restauração da proporcionalidade, bem como para afastar a violação de diversos outros princípios constitucionais pelas leis penais simbólicas, o exercício do controle de constitucionalidade repressivo pelo Poder Judiciário, trata-se do controle repressivo tendo em vista que esse ocorrerá posteriormente à edição, promulgação e publicação da lei penal.
O controle de constitucionalidade repressivo é exercido com o fim de restaurar a adequação da lei já editada, à Constituição, analisando a esfera material e formal da lei. Assim, acreditamos que a restauração da proporcionalidade, princípio constitucional, nesses casos, pode ocorrer tanto pela via do controle concentrado, como pela via difusa.
Vale lembrar que o controle de constitucionalidade pela via concentrada, no Brasil, é feito pelo Supremo Tribunal Federal. No exercício desse controle o STF pode declarar a inconstitucionalidade da lei, retirando-a do ordenamento jurídico pátrio. Quanto aos efeitos dessa declaração pode-se dizer que esse é erga omnes e vinculante, ou seja, vincula as autoridades, que não mais poderão aplicar a lei declarada inconstitucional.[34] Ainda, os efeitos são ex tunc, tornando desfeito o ato desde sua origem, “uma vez que os atos inconstitucionais são nulos”.[35]
Já o controle difuso, também chamado de controle por via de exceção, pode ser feito por qualquer juiz ou tribunal diante do caso concreto. Nessa via, o controle de constitucionalidade é realizado como questão prévia na ação. Além disso, se houver a declaração de inconstitucionalidade da lei, essa somente produzirá efeitos retroativos entre as partes, não excluindo a norma do sistema jurídico.[36]
Devido à evidente a desigualdade de tratamento penal e o desrespeito aos direitos fundamentais na lei que tipifica o delito de sequestro relâmpago, observa-se que, novamente, caberá ao Poder Judiciário, reconhecer a inconstitucionalidade dessa lei.[37]
A Lei 11.923 de 2009 que tipificou, novamente, o sequestro relâmpago possui notório excesso de carga simbólica. Isso se conclui, tanto pelo fato dessa lei tipificar um delito já existente na esfera jurídico-penal, como pela desproporcionalidade presente na classificação dos bens jurídicos protegidos e nas penas cominadas in abstrato.
5 Conclusão
Da análise de tais pontos é que se encontra a inconstitucionalidade dessa lei. Ao tipificar um delito já existente, se utilizando de um texto confuso e que nada relevante acrescenta à conduta descrita no caput do art. 158 essa lei viola o princípio da legalidade e seu postulado da determinação taxativa.
Além disso, a desproporção inerente a esse tipo é patente, tanto no que tange à pena cominada no parágrafo terceiro, como na relação que o legislador acreditou existir entre as penas pelo resultado morte e lesão corporal grave do sequestro relâmpago e as da extorsão mediante sequestro quando ocorrem esses resultados.
Ambos os pontos somente demonstram a carga de simbolismo exagerada presente nessa lei que acalma, em um primeiro momento, o clamor público e que, em segundo momento, proporciona o descrédito do ordenamento jurídico-penal tendo em vista a sua ineficácia na diminuição dos níveis de delinquência.
Finalmente, resta demonstrada a violação dos princípios constitucionais, o que culmina com a necessidade de declaração da inconstitucionalidade da Lei n. 11.923/09 pelo Poder Judiciário, como solução para reparar a violação à ordem Constitucional.
Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU, Pós-graduanda em Direito pela UFU e Advogada.
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