Resumo: O presente artigo trata da responsabilidade civil em favor da vítima ante uma conduta danosa praticada pelo autor dos fatos. A análise do tema desenvolveu-se através do estudo bibliográfico envolvendo os conceitos, natureza e finalidade da responsabilidade civil, ação civil ex-delicto, bem como, das distinções envolvendo a figura do usuário, dependente e traficante de drogas. Aventa-se neste trabalho a possibilidade da vítima acionar o traficante civilmente pelos seus atos oriundos da mercancia. Há ainda a abordagem sobre o estado de vulnerabilidade do usuário/dependente químico com suporte jurídico-psicológico. Admite-se a existência de uma relação jurídica envolvendo o traficante e o consumidor que permite a este, via ação judicial, acionar aquele por danos morais e materiais decorrentes de sua prática contrária a lei.*
Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Ação civil ex delicto. Traficante. Dependente químico.
Sumário: Introdução. 1. O instituto da responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro. 2. O traficante e o dependente como sujeitos processuais na ação civil ex delicto. 2.1 O caráter jurídico do crime de trafico e do uso de substâncias entorpecentes. 2.1 O status de vulnerabilidade do dependente químico. 3 A possibilidade de ajuizamento de ação civil ex delicto em face do traficante. 3.1 Ação e procedimentos na ação civil ex delicto e a responsabilidade civil. 3.2 A responsabilidade civil do traficante. Considerações Finais.
INTRODUÇÃO
O instituto da responsabilidade civil nasceu no período pré-romano com o uso da vingança como meio de “reparar” o dano decorrido de uma conduta ilícita praticada pelo autor dos fatos que gerou lesão patrimonial a outrem. Vigia naquela época o preceito do denominado olho por olho, dente por dente, através do denominado mecanismo da reparação tarifada.
Com o advento do período romano e, conseguinte, Idade Moderna, as relações humanas desenvolveram-se de tal modo que o instituto da vingança foi deixado de lado para dar espaço à responsabilidade civil objetiva e subjetiva. A finalidade deste instituto era criar um mecanismo em que a vítima ou ofendido pudesse pleitear junto ao juris consulto uma reparação pelos danos decorrentes de uma ação danosa causada pelo autor dos fatos.
O retorno ao status quo ante é um dos princípios basilares que direcionam o poder jurisdicional na pacificação da lide. Nesse sentido, pela dimensão e pelas peculiaridades que este instituto apresenta, é possível observar a sua aplicabilidade em diversos ramos do direito brasileiro, tal como, esferas cível e penal.
No âmbito do direito penal a reparação dos danos é feita mediante a denominada ação cível ex delicto que poderá ser intentada após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A possibilidade da propositura da referida ação deverá ocorrer quando a vítima ou ofendido demonstra o dano e sua extensão[1] e, com a liquidação da sentença, pugna junto ao juízo cível as devidas reparações. É com base nesta premissa que será discutida ao logo desta obra a possibilidade do dependente químico interpor em desfavor do traficante a ação reparatória pela ocorrência de danos, ou seja, a ação civil ex delicto.
A justificativa do recurso acima descrito se dá na própria estrutura e relação existente entre os sujeitos envolvidos. O traficante, que se utiliza da mercancia como meio de sobrevivência, atua, dentre outras formas, motivado pela própria peculiaridade do objetivo ilícito vendido, qual seja o poder viciante do mesmo. Em pólo oposto está o dependente químico, que em situação de vulnerabilidade, se sujeita as astúcias do vendedor tão somente para satisfazer a sua necessidade psicológica e física.
Nesta conjuntura, pode-se inferir acerca do caráter volitivo da conduta do dependente químico, haja vista este voluntariamente comprar a substância entorpecente. Ademais, ante os fatos desenvolvidos pelo traficante e dependente químico, é de salientar que a extensão do dano deverá ser demonstrado pela vítima, porém, o ônus da prova deverá ser daquele que assumiu o risco na prática da conduta ilícita.
O tema é demasiadamente relevante haja vista os seus efeitos na sociedade e, principalmente, por causa do seu impacto em face do intento repressivo a venda de drogas, intento esse, inclusive, tão primado na Lei 11.343/06 (lei de combate às drogas).
1. O INSTITUTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A reparação civil, no direito civil, consubstancia-se numa obrigação imposta ao agente por ter este incorrido em uma ação ou omissão que gerou um dano na esfera patrimonial ou moral na vida da vítima (PAMPLONA FILHO; GAGLIANO, 2009). A legislação brasileira, por meio do seu art. 927º, Código Civil de 2002[2], informa que a obrigação de reparar decorre de um ato ilícito ensejador da ocorrência de um dano.
A matéria em comento é muito discutida em sede doutrinária e não se resume as situações fáticas descrita no âmbito do direito civil. A violação a um direito juridicamente protegido pode ocorrer tanto na esfera do direito privado como também no direito público, como por exemplo, na esfera penal e comercial.
No âmbito da relação privada, inserta especificamente no ramo do direito civil, a responsabilidade civil é melhor desenvolvida, haja vista existir nesta área um conjunto de normas voltadas para tentar explicar a teoria geral da responsabilidade civil, bem como, suas principais especificidades.
A pedra torque para compreensão deste instituto se dá através da análise, ainda que sintética, do desenvolvimento da idéia de culpa objetiva e subjetiva ao longo da história.
Segundo Gagliano e Pamplona Filho (2009) a base para compreensão da imputação ao direito de reparar se deu nas civilizações pré-romanas com a prática da vingança[3].
A Lei Talião, normatizada na Lei das XII tábuas, demonstra claramente diversas situações em que a imputação da responsabilidade do agente causador do dano se dava com a aplicação de uma pena proporcional ao bem lesado e não uma imposição de voltar ao status quo ante.
No direito romano, embora estivesse ausente uma sistemática em torno da responsabilidade civil, é possível constatar que o legislador daquela época esteve preocupado em fazer a composição dos danos gerados por um ato ilícito para aplicação de um procedimento diverso da Lei de Talião (GAGLIANO; PAMPLONA, 2009). Neste período houve as primeiras manifestações no sentido de substituição de penas corporais por valores pecuniários.
O agente para ser responsabilizado no período romano era necessário apenas que houvesse um nexo de causalidade entre a conduta e o dano gerado. Vigia assim, a responsabilidade civil com o pagamento de um valor pecuniário pelo agente à vítima como forma de obter deste o seu perdão (CHAIB, 2005).
A lex Aquiliana de damo, no período 286 a.C. foi a responsável por instaurar a conjuntura atual com o advento da idéia de culpa e a extensão do dano (CHIAB, 2005). Segundo Pamplona Filho e Gagliano (2009), foi neste período que surgiu a responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, cuja finalidade era auferir a culpa e a extensão desta na ocorrência do dano. A responsabilidade Aquiliana ou extracontratual deriva de uma conduta voluntária e ilícita praticada pelo agente, mediante culpa, que resulta num dano ou prejuízo quer seja patrimonial ou moral (PAMPLONA FILHO; GAGLIANO, 2009).
A Idade Moderna, distintamente do período descrito acima, começou a questionar os procedimentos praticados pelos romanos e passou a apresentar a necessidade de, subjetivamente, focalizar que, ante a existência de culpa do agente, o patrimônio do lesante deveria arcar com o ressarcimento do dano (PAMPLONA FILHO; GAGLIANO, 2009).
Ocorre que, embora já estivesse em vigor a responsabilidade civil extracontratual, esta não conseguia englobar todas as situações vividas pelo ser humano em sociedade, pois havia diversas situações em que o lesante agia tendo consciência do seu ato e dos riscos advindos dele. Surgiu, assim, a responsabilidade civil objetiva cujo autor dos fatos, ao agir, tinha consciência dos riscos advindos de sua conduta (PAMPLONA FILHO; GAGLIANO, 2009). A afirmativa descrita acima pode ser comparada ao dolo eventual, haja vista que este instituto tem o condão de tornar puníveis as condutas daqueles agentes que produziu o resultado típico, antijurídico e culpável, após assumir um risco, ainda que não desejável contra a vítima (COSTA JÚNIOR, 2009). Nestes casos não é preciso inferir a extensão da culpa, pois esta é juridicamente irrelevante, haja vista que o agente em sua conduta, produziu um resultado da qual não poderá abster-se. Trata-se, nesse sentido, da chamada Teoria do Risco disciplinada no Código Civil de 2002[4].
No Brasil a evolução da Responsabilidade Civil pode ser dividida, segundo CHIAB (2005), em três períodos, quais sejam: primeiro, com a utilização de preceitos do direito romano e subsidiariamente através da Lei da Boa Razão; segundo, com a implantação do Código Criminal de 1830 que previa o chamado instituto da “satisfação” e; terceiro, com a consolidação deste instituto feita por Teixeira de Freitas e Carlos Carvalho que cogitaram a responsabilização indireta, várias formas de reparação do dano e a responsabilização autônoma da penal.
O código de 1916, atrelado ao princípio do bem estar comum e da premissa de que ninguém deve lesar direito de outrem, de origem francesa, foi implantado tendo como objetivo primordial a idéia de culpa[5]. Em meados do século XX, com o aprimoramento das teorias subjetivas e objetivas da responsabilidade civil, o direito civil brasileiro modificou sua forma de disciplinar a matéria e passou a adotar um caráter dual para a aplicação da responsabilidade civil. A premissa em comento refere-se à adoção da responsabilidade subjetiva, cujo elemento culpa é imprescindível na análise da imputação da responsabilidade, como também da extensão do dano, e da responsabilidade objetiva em que o elemento culpa e dolo são irrelevantes, pois o agente que causou alguma tipo de lesão o fez consciente dos riscos inerentes aos seus atos (PAMPLONA FILHO; GAGLIANO, 2009).
A compreensão da responsabilidade civil nos seus aspectos objetivos/subjetivos é fundamental para o desenvolvimento do estudo acerca do dever de indenizar a vítima nos crimes de tráfico de drogas. Conforme descrito, o dever de indenizar decorre de uma ação que resulta uma ofensa à moral da vítima, pois esta teve um direito personalíssimo atingido, ou um prejuízo decorrente de um dano patrimonial que pode ser emergente ou lucros cessantes[6].
O nexo etiológico, diante da relação civil descrita, é um requisito imprescindível para compreender o grau da lesão praticada pelo agente, pois é possível compreender no comportamento do lesionante o nexo de causalidade entre o ato praticado e o resultado obtido por meio desta conduta. Ocorrendo o resultado é preciso uma análise do senso comum hábil a verificar se tal conduta causou uma lesão. Tal constatação subjetiva deve ser feita, num primeiro momento, pelo agente passivo que demonstrará perante juízo que tal prática lhe causou um dano evidente. Daí o porquê da necessidade de haver reparação pela simples existência do fato violador.
É bom salientar que o ônus de provar a lesão decorre da situação fática vivida pelos sujeitos da relação, pois se a conduta decorreu de uma responsabilidade objetiva o ônus da prova é do lesionante, caso contrário, se for subjetiva, caberá a vítima provar os prejuízos advindos da conduta ilícita.
É com fundamento na breve síntese esboçada acima acerca do instituto da responsabilidade civil que iremos discorrer nos tópicos abaixo sobre a relevância da aplicação desta nas condutas decorrentes de tráfico de drogas.
2. O TRAFICANTE E O DEPENDENTE COMO SUJEITOS PROCESSUAIS NA AÇÃO CIVIL EX DELICTO
A ação civil ex declito traduz-se na possibilidade que a vítima, seu representante legal ou herdeiros tem de responsabilizar civilmente o autor da infração penal pelos danos decorrentes da sua conduta ilícita, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, conforme descrito no art. 63 do CPP[7].
Os legitimados para propositura de ação civil ex delicto, conforme já apontado acima, é o ofendido, no caso de menor de 18 anos, o seu representante legal e, em caso de óbito, os seus herdeiros.
Observa-se que, conforme alertado por Alencar e Távora (2010), o rol dos legitimados a propositura da referida ação não se exaure naqueles descritos no Código de Processo Penal[8], qual seja, o ofendido, ascendentes, descentes e irmão, pois abrange também todos os herdeiros do ofendido.
No Brasil para que seja possível ajuizar a referida ação não é necessária a dependência da decisão do juízo criminal[9], pois, tendo em vista o país ter adotado o sistema da independência relativa ou mitigada, é possível que o autor pleiteie a referida ação diretamente no juízo cível, conforme art. 64 do CPP[10].
Caso já tenha dado início a ação penal, a interposição de reparação civil por dano decorrente de fato típico poderá ficar suspensa por até 01 (um) ano[11] até que seja proferida sentença penal condenatória no juízo criminal. Entretanto, se a ação não tiver sido iniciada, contados 30 (trinta) dias do sobrestamento da demanda no cível, o feito deverá prosseguir, conforme preceituado no art. 110, parágrafo único do CPC[12]. Entretanto, caso não seja interposta a ação de reparação de danos por ato penalmente relevante, conforme descrito acima, a vítima ou seus representantes poderão utilizar a sentença penal para, no cível, pleitear a devida reparação civil. Neste caso, a sentença penal é considerada na ótica do Código de Processo Civil, especificamente no art. 475-N, título executivo[13]. Este, segundo Didier e Cunha (2009), é um documento que possibilita a vítima instaurar um processo autônomo, com citação do réu, com a finalidade de liquidar a sentença penal condenatória e por fim executá-la.
O Código de Processo Penal, com nova redação dada pela Lei n. 11.719/08, em seu art. 387[14] informa que o juiz ao proferir a sentença condenatória poderá estipular o quantum mínimo a ser utilizado na reparação do dano do ofendido, trata-se de uma decisão extra petita. Outrossim, caso não seja possível estipular um valor mínimo para reparação civil, a sentença deverá ser liquidada no juízo cível seguindo os procedimento elencado no Código de Processo Civil, art. 475-A[15]. O título executivo, oriundo da sentença penal condenatória, só poderá ser utilizado no juízo cível, em regra, se o réu for condenado ou quando não tiver sido reconhecida a existência material do fato, houver nos autos despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de informação, a decisão que julgar extinta a punibilidade, o fato imputado não constituir crime, conforme descrito no art. 66 e 67 do CPP[16].
A finalidade da ação civil ex delicto é evitar que sejam exaradas decisões contraditórias. Ressalta-se que o prazo prescricional para ajuizamento da referida ação é de 03 (três) anos, conforme art. 206, §3º, inciso V do CC[17].
A ação civil ex delicto, conforme exposto, é a reparação decorrente de um dano ocasionado pela prática de um fato típico, antijurídico e culpável[18]. O traficante[19], diante destes requisitos, é autor da infração penal cuja vítima, em tese, é aquele que adquire o produto, quer seja, usuário ou dependente de drogas[20].
O usuário de drogas, segundo a doutrina, é aquele que adquire a substância ilícita sem que esta cause nele um estado de indissociabilidade física-psicológica. Entretanto, distintamente do usuário, o dependente químico utiliza a droga motivado por um vício que muitas vezes não é controlado, haja vista o seu alto grau de vício (HOUAISS, 2009).
Sabedor do estado de vulnerabilidade da vítima, o traficante a induz a comprar excessivamente da droga para manutenção do seu vício. Tal procedimento causa àquela danos que atingem a sua esfera econômica, dilapidação de bens, e financeiras, com excessiva entrega de dinheiro ao vendedor da droga. Antes de adentrarmos diretamente nesta discussão, é importante discorrermos, ainda que sucintamente, acerca das figuras típicas do crime de tráfico e uso de drogas, bem como, suas principais peculiaridades e classificações doutrinárias.
2.1 O CARÁTER JURÍDICO DO CRIME DE TRÁFICO E DO USO DE SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES
As condutas típicas elencadas na Lei 11.343/06, especificamente no art. 28 e 33[21], referem-se a práticas delituosas que o legislador, ao tempo da sua edição, primou por adotar uma reprimenda condizente a realidade dos sujeitos ali envolvidos.
Nesse sentido, fugindo o quanto descrito em legislações anteriores (Leis 6.368/76 e 10.409/02), a atual lei de combate ao tráfico de drogas buscou criar dispositivos que atendessem mais ao caráter preventivo e de reinserção, do que o aspecto penalizador para as condutas descritas (GOMES, 2007), embora tenha ocorrido um aumento de pena para o tipo penal de tráfico.
Os principais objetivos da Lei 11.343/06 estão inseridos em seu art. 4º, que informa, dentre outras coisas, que será princípio do programa de combate ao uso de drogas a adoção de atividades de prevenção e reinserção social como elemento fundamental na manutenção do bem estar social, conforme descrito acima. O objetivo, dessa forma, é criar mecanismos que sejam aptos a repreender o traficante e desenvolver programas de previnam o uso de substâncias entorpecentes.
O crime de tráfico de drogas refere-se a um fato típico que se consuma nas condutas de importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, vender, expor à venda, oferecer ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, substância ilícita.
Observa-se que a distinção entre o usuário/dependente e traficante consiste na finalidade com que estes agem. O primeiro pratica os verbos nucleares com o objetivo de satisfazer-se pessoalmente, enquanto, o segundo, dentre outras formas, age com o intuito de entregar a substância para terceiros, quer seja por venda, quer seja, gratuitamente.
Acrescenta-se que o usuário de drogas é o agente que adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo substância ilícita para uso próprio sem que esta substância cause a este um estado de dependência. Já o dependente é aquele que pratica as condutas acima compelido por uma necessidade de satisfazer-se, haja vista o seu estado de viciado[22].
A distinção entre os papéis de usuário e dependente é feita pela análise do caso concreto e das peculiaridades em que vive o agente.
No que tange ao dependente de drogas, Luiz Flávio Gomes (2007) afirma que a vítima, embora pratique uma atividade de risco ao consumi-la, o faz mediante circunstâncias atinentes ao seu próprio estado social e psíquico, tais como, desemprego, baixa estima, problemas familiares, depressões. Tais circunstâncias, conforme veremos ao longo deste trabalho, coloca o dependente químico no chamado estado de vulnerabilidade que fomenta e instiga o traficante no seu animus de obter lucro fácil.
O traficante ao praticar qualquer um dos verbos nucleares do tipo penal agride o bem jurídico referente à saúde pública, bem como a integridade social (SOBREIRAS, 2010). O ilícito penal ocorre mesmo que não haja dano à vítima (sociedade), pois o crime é de perigo abstrato[23].
A consumação das condutas elencadas no art. 33 da Lei 11.343/06[24] é considerado pela Lei 8.072/90[25] como crime hediondo que tem como efeito a impossibilidade do autor dos fatos obter graça[26], anistia[27] e indulto[28], devendo ainda o regime de cumprimento de pena ser fechado (SOBREIRA, 2010).
Distintamente do crime de tráfico, a doutrina compreende que o uso de drogas não constitui um crime. Nesta posição figura o doutrinador Luiz Flávio Gomes (2007) que defende, embora a conduta seja um ilícito penal, não há sobre o agente punição com pena de reclusão ou detenção, nem tampouco, prisão simples ou de multa, alternativa ou cumulativamente, conforme descreve a Lei de Introdução ao Código Penal em seu art. 1º[29].
O delito de uso de drogas é considerado, ante os conceitos expostos na Lei de Introdução ao Código Penal, um tipo penal sui generis cuja sanção consiste em medidas alternativas (GOMES, 2007). Resta-nos assim, tratar da vulnerabilidade do dependente químico como forma de entender a forma pela qual o traficante atua na dilapidação dos bens desta.
2.2 O STATUS DE VULNERABILIDADE DO DEPENDENTE QUÍMICO
O dependente químico, conforme descrito no tópico anterior, é o agente que compra a droga para consumo próprio motivado pelo seu desejo de alimentar o vicio. Alguns doutrinadores, diante desta situação, o enquadra com sendo uma pessoa doente e que merece atenção redobrada por parte do Estado.
No intuito de suprir a sua necessidade de consumo, o dependente químico, arriscadamente, empreende-se em condutas ilícitas para obter dinheiro e comprar substância entorpecente. Não é sem razão que inúmeros casos de homicídio, roubo, furto e seqüestro são empreendidos por causa do desejo que o usuário tem em obter dinheiro para comprar drogas e sustentar o seu vício[30].
A dependência química tem o poder de alterar o estado psicológico do consumidor, haja vista que o seu poder viciante ao atuar no sistema nervoso central tem o condão de desequilibrar o corpo e a mente humana causando-lhe, como efeito imediato, distúrbios de personalidade (CROCE; CROCE JÚNIOR, 2009).
Segundo Croce e Croce Júnior (2009) a intoxicação gerada pelo uso de substâncias viciantes gera no consumidor um desejo de ingerir imoderadamente a droga, inclusive, com aumentos da dosagem anterior. Acrescenta ainda aquele autor, que a dependência química influência substancialmente no comportamento psíquico do ser humano, de modo que o coloca em um estado de desconforto e mal-estar caso não venha a ingerir doses cada vez mais elevadas da substância.
A pessoa quando está compelida pelo vício torna-se uma ameaça a própria sociedade haja vista a inclinação daquela para a prática de crimes. Nessa linha de raciocínio, afirma Fernandes e Fernandes (2002) que o dependente químico pratica crimes como forma de obter recursos para comprar mais drogas e sustentar o seu desejo de se saciar.
O uso de entorpecentes, conforme já dito alhures, causa uma série de comportamentos estranhos e destoantes no consumidor. Não é raro observa no seio da sociedade pessoas que passam a dedicar-se a uma vida desregrada, sem objetivos. Em casos mais acentuados pode-se perceber que muitos dependentes químicos se entregam a mendicância e a inversões de perversões sexuais, conforme afirma Fernandes e Fernandes (2002).
O caso mais grave gerado com o uso de drogas ilícitas é a prática de suicídio por parte do dependente químico (FERNANDES; FERNANDES 2002). Em alguns casos, menos graves, pontua o autor que o consumidor agride sua saúde causando-lhe enfermidades como gastrite, úlcera e, dentre tantos outros, insônia.
O consumidor que utiliza a droga enfrenta todos os males descritos acima tão somente para suprir sua necessidade de manter-se no vício. É diante desta situação volitiva vivida pelo dependente químico que o traficante, que prática mercancia, utiliza-se para vender demasiadamente a substância ilícita, pois este, sabedor da necessidade psicológica e física daquele, o ludibria a sempre conseguir dinheiro para alimentar o seu vício e nunca ficar sem o objeto viciante.
O legislador, atento ao quanto descrito acima, tentou minimizar a situação de vulnerabilidade vivida pelo dependente químico ao elencar como um dos objetivos do Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas – SISNAD – a contribuição do Estado na inclusão social do cidadão como forma de reduzir o estado de vulnerabilidade daquele[31].
Os riscos sofridos pelo dependente químico são advindos não somente da sua situação psicossocial, como também, da própria facilidade existente na compra e oferecimento da droga pelo próprio traficante (GOMES, 2007).
Diante desta peculiaridade vivida pelo dependente químico, a legislação brasileira que trata do combate ao tráfico de drogas, deixou de criminalizar a conduta descrita no art. 28 da Lei 11.343/06 e passou a conceber aquele, ainda que tacitamente, com vítima, haja vista os preceitos normativos insertos nesta legislação adotar como objetivos e princípios básicos condutas que ensejam a reeducação[32], reinserção[33], prevenção[34] e repressão[35] ao tráfico e uso de substâncias ilícitas[36].
A pessoa quando comprar a droga de um traficante, fica vinculado a este, sendo ainda que quando adquire a substância e não possui dinheiro para pagar, sofre sanções severas por parte dos seus algozes, tal como a própria morte[37].
O animus do dependente químico é viciado pelo seu estado de dependência, de modo que este, quando precisa comprar o entorpecente, dilapida todos os bens seus e de sua família. Dessa forma, é possível inferir a existência de uma situação de desproporcionalidade existente entre a conduta praticada pelo traficante e o dependente químico.
O traficante, ao vender para o usuário, utiliza de argumentações acerca da capacidade de autocontrole deste para poder, assim, impulsionar sua venda e fazer com que a vítima um dia torne-se um depende químico. Pois, assim conseguindo, terá vendedor mais condições de lucrar com sua atividade ilícita.
3. DA POSSIBILIDADE DE AJUIZAMENTO DE AÇÃO CIVIL EX DELICTO EM FACE DO TRAFICANTE
A vítima adquire o direito de ajuizar uma ação civil ex delicto quando o agente prática um ato contrário a lei e desta conduta resulta danos a terceiros. No caso do tráfico de drogas a conduta do traficante gera, grosso modo, um dano para a sociedade, ou seja, um dano coletivo (OLIVEIRA, 2010).
Diante da lesão à coletividade, a princípio, pode-se inferir não haver possibilidade de ajuizar ação em desfavor do traficante condenado, pois não teria como personificar quem seria a pessoa que sofreu o dano.
Ocorre que, a conduta descrita no art. 33 da Lei 11.343/06 contém diversos verbos, ou ações, que definem o momento consumativo da prática delitógena. Dentre as ações descritas nesta lei esta á de vender substância ilícita.
Ora, a venda de drogas não é feita sem que seja possível personificar o seu agente, pois, conforme já dito alhures, no caso de dependente químico, este dirigir-se ao traficante com a finalidade de obter dele a substância ilícita para consumo. Observa-se que, diante desta premissa, é possível a individualização dos sujeitos da relação. Tal situação engloba uma das características da responsabilidade civil, qual seja, a identificação dos sujeitos nela envolvidos (SOBREIRA, 2010).
A responsabilidade civil pode se dá quando uma pessoa, quer seja objetivamente ou subjetivamente, causa dano a terceiros, tanto na sua esfera patrimonial como moral. Na relação em comento, o traficante ao fornecer a droga para o dependente químico está agravando o seu estado de dependência, atingindo sua saúde, e, em última instância, ferindo os seus próprios direitos personalíssimos, qual seja, a sua vida social.
O dependente químico não tem vida social e familiar, pois este passa os dias buscando mecanismos para suprir o seu desejo de consumo. Por tal razão, passa o usuário/dependente por uma situação que afeta não somente a si próprio, como também os seus familiares que passam a viver na expectativa de tentar reverter o quadro instalado pelo seu ente. Muitas vezes, os familiares do dependente químico promovem a internação destes em clínicas de desintoxicação, que via de regra são de altíssimos custos, com a finalidade de livrá-lo do mal que o acomete. Tais práticas geram danos patrimoniais de grande monta para o dependente e o seu familiar[38].
No aspecto moral, a família também é agredida, pois esta passa a viver dos “vexames” praticados pelo seu ente, bem como, deixa de viver a sua própria vida com a finalidade de dedicar-se a tentar reverter o status de dependência vivida por aquele.
Deste modo, percebe-se visivelmente a existência de um dano moral e patrimonial que o dependente químico sofre por causa de uma conduta ilícita praticada pelo traficante.
3.1 – AÇÃO E PROCEDIMENTOS NA AÇÃO CIVIL EX DELICTO E A RESPONSABILIDADE CIVIL
O tráfico de drogas, é uma conduta ilícita, grosso modo, que enseja a possibilidade de o usuário, que se sentiu ofendido, responsabilizar o traficante pela sua conduta. Neste caso, poderá ser ajuizada a ação civil ex delicto em que caberá ao autor dos fatos o ônus da prova. Trata-se, dessa forma, de responsabilidade civil objetiva, pois o agente ao atuar sabia, ou devia saber, dos riscos inerentes a sua atividade ilícita (PAMPLONA FILHO; GAGLIANO, 2009).
Assim, tendo em vista tratar-se de ação penal, a vítima poderá ajuizar diretamente a ação na justiça cível, sendo que, se assim o fez, poderá o feito ficar suspenso caso haja iniciado aquela[39]. Sendo suspensa a ação no juízo cível, a vítima poderá, caso haja condenação, utilizar a sentença penal condenatória com título executivo para pleitear a sua liquidação demonstrando a existência e extensão do dano sofrido. Trata-se, neste caso, de título executivo extrajudicial com força liquidante.
Ainda, caso não seja possível a vítima ajuizar a referida ação, tendo em vista seu estado de hipossuficiência, deverá o Ministério Público, ao pedido desta, promovê-la a referida representação segundo os ditames da lei processual penal/civil.
3.2 – DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRAFICANTE
O traficante pode ser responsabilizado civilmente por sua conduta a partir do momento em que este executa atividade de mercancia. Nestas situações é possível inferir a possibilidade de individualizar a conduta do traficante e da vítima (usuário/dependente), bem como, identificar o seu dolo, pois este atua objetivando o estado de dependência do consumidor.
A relação existente entre traficante e usuário pode ter sua configuração rechaçada, pois a responsabilidade daquele inicia a partir do momento em que se analisa a conduta deste. O problema que se apresenta é saber até que ponto o dependente de drogas age compelido pela sua consciência e conivência, pois é a partir deste liame que será possível inferir a conduta danosa do traficante. Em linhas gerais, pode-se inferir que, independente do animus do dependente químico, o seu estado de vulnerabilidade, no mínimo, imputa ao traficante maior responsabilidade.
A situação acima demonstra a existência de uma desproporcionalidade (GOMES, 2007), ou seja, uma situação em que o dependente químico encontra-se em estado de inferioridade ante as astúcias do próprio vendedor de entorpecentes.
A vulnerabilidade em que o usuário vive e a forma com que o traficante imprime tecnologias e mecanismos de produzir cada vez mais substâncias viciantes, no mínimo, imputam a este à responsabilidade pelos danos gerados a todas aquelas pessoas que dele alimentaram o seu vício.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ação civil ex delicto, em tese, pode-se ser ajuizada pela vítima ou ofendido em face do traficante a partir do momento que esta demonstra a ocorrência de um dano gerado pela conduta ilícita do autor dos fatos.
O direito civil, por regular as diversas relações de responsabilidade civil, informa em seus princípios basilares que na possibilidade de interposição da referida ação o magistrado deverá se ater, além dos princípios gerais do direito, as próprias peculiaridades do caso concreto. Nesse sentido, pode-se constatar que há situações em que o vínculo traficante-dependente muitas vezes é arraigado numa relação de dependência daquele que se vê preso às conduta e objetivos do traficante – sempre o lucro.
A droga, em regra, é vendida pelo traficante não somente pelos seus efeitos alucinógenos, mas sobretudo, pelo seu alto poder viciante. Não é sem razão que, de tempos em tempos, surgem na sociedade novas composições químicas tendentes a, em menos tempo, deixar o usuário mais dependente dela, ou seja, viciado.
Estando faticamente viciado, o dependente químico buscará a todo custo manter o seu vício, pois o uso do entorpecente gera saciedade e satisfação para o usuário. No intuito de alimentar esta situação, o dependente, inconscientemente, dilapida o seu patrimônio, da sua família e coloca a sua vida e a de terceiros em estado de grave risco e prejuízo moral-social.
A postura de vulnerabilidade em que vive o dependente químico o coloca em um estado de desproporcionalidade que vicia o seu animus e sua consciência no momento da compra. O efeito desta constatação consiste em um ato de imposição do vício gerado pelo uso de entorpecentes que, bem sabedor desta circunstância, é bem aproveitado pelo traficante no momento em que prima pela venda excessiva da substância. Os danos gerados com a prática do tráfico são de grande monta e, como já dito alhures, consiste em prejuízos na esfera patrimonial e moral do dependente.
O traficante, quando preso, julgado e condenado, não pode deixar de ser responsabilizado civilmente pelos males gerados com o seu ato. Por tal razão, faz-se de grande relevância o estudo acerca da matéria.
O tema é denso. Não há na jurisprudência brasileira, em tese, nenhum caso em que o traficante tenha sido responsabilizado civilmente pela sua conduta ilícita. Entretanto, no mínimo, a matéria merece atenção e não pode ficar a margem dos olhares do sistema judicial.
Afinal, conforme desenvolvido ao logo deste texto, a postura do legislador brasileiro e a inclinação da própria doutrina é a de compreender o usuário/dependente não como autor de uma infração penal (conforme entende a lei) mas sim uma vítima da conduta do traficante e da própria sociedade que impõe diferenças e situações, além de promover a exclusão de certos membros da sociedade.
Acadêmico de Direito pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB.
O fator previdenciário é um dos elementos mais importantes no cálculo de aposentadorias no Brasil.…
A aposentadoria é um tema central na vida de qualquer trabalhador, e no Brasil, as…
A aposentadoria por pontos é uma modalidade prevista na legislação previdenciária que busca garantir uma…
A revisão da vida toda é uma das principais demandas dos aposentados que buscam recalcular…
O indeferimento de um benefício pelo INSS é uma situação comum que causa grande preocupação…
A revisão da aposentadoria pelo INSS, com base na chamada “tese da vida toda”, é…