Resumo: O artigo trata da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Gomes Lund e outros”, que ao condenar o Brasil evidenciou a incompatibilidade do ordenamento brasileiro com a proteção dos direitos humanos no que tange ao período da ditadura militar no país. A Justiça de Transição no Brasil, nesse sentido, não forneceu mecanismos efetivos para uma total reparação das vítimas da ditadura militar, não levando a um Direito à Verdade ou a um Direito à Justiça reais na conjuntura brasileira.
Palavras-chave: Corte Interamericana de Direitos Humanos. Convenção Americana de Direitos Humanos. Direito à Memória. Justiça de Transição.
Abstract: The article is about the decision of the Inter-American Court of Human Rights in the case “Gomes Lund e outros”, that condemning Brazil showed the incompatibility of the Brazilian law as regards the protection of the human rights concerning the period of the military dictatorship in the country. The Transitional Justice in Brazil, in this way, did not provide effective mechanisms for a total reparation of the victims of the military dictatorship, not leading to a Right to Truth or to a Right to Justice in the Brazilian conjunction.
Keywords: Inter-American Court of Human Rights. American Convention on Human Rights. Right to Memory. Transitional Justice.
Sumário: Introdução. 1. Direito à Memória e Justiça de Transição. 2. Caso “Gomes Lund e outros” (Guerrilha do Araguaia). 3. A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 4. A decisão do STF e a sentença da Corte Interamericana. 5. Algumas considerações importantes. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Como entender a Justiça de Transição brasileira tendo por parâmetro as convenções internacionais? Como entender a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei de Anistia em um ambiente internacional que se empenha em garantir a proteção aos Direitos Humanos? Como entender a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos?
Essas são as questões que conduziram à elaboração deste artigo, que tem por objetivo apreender se é possível falar em Justiça de Transição brasileira frente à atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos que, no caso “Gomes Lund e outros”, condenou o Brasil com base na Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica.
1 DIREITO À MEMÓRIA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
O Direito à Memória se insere dentro da lógica da Justiça de Transição, ou seja, a justiça feita durante a transição de regimes políticos. O momento em que um Estado Totalitário passa a um Estado Democrático tem efeitos sobre toda a sociedade, e a justiça entre esses dois momentos, a chamada Justiça de Transição, possui caracteres específicos.
A Justiça de Transição pode ser apreendida a partir das medidas adotadas em momentos de transição de regimes a fim de que não se criem sentimentos constantes de revanchismo, de modo a trazer segurança jurídica e legitimidade ao novo regime estabelecido. Remígio nos diz que a Justiça de Transição “é um modelo de justiça que pretende reconciliar a nação com o seu passado, manifestando-se por meio de medidas eficazes de superação dos traumas advindos de um momento de repressão e violência” (REMIGIO apud SOUSA, 2010, p.68).
Nesse quadro,
“Segundo Juan Méndez, o objetivo final da Justiça de Transição deve ser a reconciliação das forças antagônicas que levaram ao conflito cujo resultado foi a violação dos direitos dos perseguidos políticos. O escopo deste instrumento é a formação de um caminho de paz entre os polos conflitantes de determinado momento histórico, e não a simples reconciliação do torturador com suas vítimas.” (MEZAROBBA apud MACHADO, 2011, p. 126).
A Justiça de Transição envolve, nesse sentido, um conjunto de medidas que pode ser resumido a quatro campos de ação: a) a reforma das instituições do regime político findo; b) a responsabilização criminal daqueles que cometeram crimes; c) a reparação das vítimas e d) a busca pela verdade.
A busca pela verdade pode se dar por meio da abertura de arquivos tornados secretos pelo governo autoritário, pela construção de monumentos e memoriais públicos referentes ao período não democrático, pelo reconhecimento das violações e crimes perpetrados, pela possibilidade de se dar voz às vítimas, pela instituição de Comissões de Verdade. Desse modo revela-se o histórico de crimes não somente das instituições governamentais como também da sociedade civil, e é possível impedir que os acontecimentos que marcaram a sociedade sejam anulados da memória nacional. Assim, a busca pela verdade também pode ser dita uma efetivação do Direito à Memória ou Direito à Verdade.
Mas por que se preocupar com a memória? A preocupação com a memória decorre da sua capacidade de dar e manter a coesão de um grupo social. Nossa memória é social, é fruto da relação humana, é coletiva. Além disso, a memória é seletiva. Na dinâmica social, parte da memória é esquecida e parte é lembrada. Lembrar e esquecer são, portanto, aspectos importantes e necessários para a construção da memória. Na medida em que a memória é construída, pode-se falar que a memória é menos história; é menos o passado do que o que se faz desse passado. A memória é escolha e identidade, e quando selecionamos aquilo que queremos que permaneça na memória acabamos por escolher o tipo de sociedade e de pessoa que se quer ser.
Isso posto, o tempo e o Direito se encontram de forma recíproca, de modo que, nos termos de Ost, “não é possível “dizer o direito” senão “dando o tempo”” (OST, 2005, p. 14). De fato,
“o direito afeta diretamente a temporalização do tempo, ao passo que, em troca, o tempo determina a força instituinte do direito. Ainda mais precisamente: o direito temporaliza, ao passo que o tempo institui. (…) O tempo não permanece exterior à matéria jurídica, como um simples quadro cronológico em cujo seio desenrolaria sua ação; do mesmo modo, o direito não se limita a impor ao calendário alguns prazos normativos, deixando para o restante que o tempo desenrole seu fio.” (OST, 2005, p. 14)
A memória do Direito está em se “reconstruir” o passado a partir das interpretações. Ao olhar para o passado para interpretá-lo lembramos e esquecemos, selecionamos hoje um passado tendo em vista o futuro. É por isso que François Ost fala em quatro categorias de tempos normativos e temporais a partir dos quais seria possível falar em uma retemporalização: memória, perdão, promessa e questionamento.
“Igualmente, é sobre uma medida em quatro tempos que se toca esta partitura. Lado do passado, a memória e o perdão; lado do futuro: a promessa e a retomada da discussão. A memória que liga o passado, garantindo-lhe um registro, uma fundação e uma transmissão. O perdão, que desliga o passado, imprimindo-lhe um sentido novo, portador de futuro (…). A promessa, que liga o futuro através dos comprometimentos normativos, desde a convenção individual até a Constituição, que é a promessa que a nação fez a si própria. O questionamento, que em tempo útil desliga o futuro, visando operar as revisões que se impõem, para que sobrevivam as promessas na hora de mudança.” (OST, 2005, p. 17)
Pelo ato de memória algo que foi importante no passado continua o sendo, garantindo identidade e estabilidade à sociedade. Frente à mudança da transição, a sociedade vai relembrar os acontecimentos relevantes e compreendê-los da maneira que ocorreram. A instituição do perdão indica a necessidade de inovação: pela atividade jurisdicional tem-se a resolução do conflito e aplicação de um castigo ou do perdão social, tendo por base uma apreciação mais justa do direito. O perdão tem um papel libertador para a sociedade, permitindo a construção de um futuro que respeitará os direitos da coletividade.
Com a promessa a sociedade se apropria do seu futuro de modo a garantir segurança: os acordos estão sob proteção e o poder público se compromete a respeitar as leis que colocou. Assim, os compromissos discutidos e pactuados serão os norteadores da ação social. O questionamento, por sua vez, aparece como a possibilidade de antecipar o perdão quando da mudança das circunstâncias, orientando-se pelo justo. Desse modo, o questionamento é necessário para que ocorra a revisão dos fatos e as promessas feitas pela sociedade sejam valorizadas.
A partir dessas quatro categorias é possível ainda pensar as etapas da Justiça de Transição. Ao pensar esse ciclo proposto por Ost “a sociedade alcançaria o objetivo principal da Justiça de Transição, qual seja a pacificação social, bem como prosseguiria com o diálogo acerca do acontecido, precavendo-se de violações semelhantes às já sofridas” (MACHADO, 2011, p. 10).
Quando da transição de regimes é preciso, portanto observar que a memória, perdão, promessa e questionamento devem ser contemplados com vistas a uma temporalização do direito que abranja toda a dinâmica social que está em transformação. Em outros termos, nesse momento de transição cabe à sociedade optar entre esquecer o que foi o regime autoritário anterior ou assumi-lo, tomando providências para que excessos e abusos não voltem a ocorrer.
Ao falar em “Justiça de Transição” no Brasil nos referimos necessariamente à transição entre o regime da Ditadura Militar, que governou o país de 1964 a 1985, e o regime democrático. A transição brasileira se deu em grande medida com a Lei 6883 de 1979, que concedeu anistia a todos que no período entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 cometeram crimes políticos ou conexos, bem como crimes eleitorais. Além disso, a anistia foi concedida a todos que tiveram seus direitos políticos suspensos, proporcionando a todos os brasileiros que direta ou indiretamente haviam participado do movimento subversivo e da luta armada, aos banidos e aos que se exilaram voluntariamente, fugindo do País, o direito de retorno ao Brasil, além da extinção dos processos a que estavam respondendo.
O conceito de “crimes conexos” incorporado ao texto desta Lei acabou desviando a anistia do propósito de indultar os cidadãos processados a partir das normas de exceção do governo militar, sendo utilizado para beneficiar os agentes do Estado envolvidos nas práticas de torturas, desaparecimentos e assassinatos. Desse modo, a investigação e responsabilização penal por crimes cometidos em violação aos Direitos Humanos acabaram sendo impossibilitadas pela Lei de Anistia de 1979.
Em outros termos, a Lei de Anistia foi criada para pacificar o país e levar ambos os lados ao esquecimento. Contudo, como colocado por François Ost, na anistia não existe Direito. A anistia é esquecimento, e com ela não pode haver justiça. Para Ost, a justiça tem lugar quando a vítima é reconhecida como vítima, e o culpado reconhecido como culpado, e a partir desse reconhecimento o culpado pode ser punido ou perdoado. Ainda, o momento da sanção penal é também um momento de perdão, uma vez que o cumprimento da pena resulta na remissão e redenção do culpado, que restaura seu lugar como cidadão.
A anistia impede que o momento do julgamento aconteça, confundindo os valores de certo e errado da sociedade e colocando vítimas e culpados na mesma posição. Sem esse momento não se tem a justiça nem a construção da memória, visto que no julgamento (quando a vítima pode perdoar e o culpado pode reconhecer seu erro) que resulta a memória ser construída. Ao amputar o passado a anistia não permite a construção da memória.
“Ao contrário das medidas de anistia, que esvaziam o espaço público e privatizam as memórias para melhor “pacificar”, as medidas de Justiça de Transição são muito mais capazes de propiciar uma verdadeira pacificação e conciliação nacional, que não seja fruto de falsos consensos, mas sim decorrente do sadio dissenso oriundo da pluralidade humana. Isso se dá pelo aspecto multifacetado com que as medidas de Justiça de Transição tratam as questões da mudança de um regime autoritário para um regime democrático e das violações de direitos humanos durante regimes de exceção. (…)
A busca pela verdade, a reparação, a reforma das instituições e os julgamentos, em conjunto, possibilitam que as memórias dos oprimidos encontrem seu lugar dentro do espaço público e, dando voz oficial a estes, abre margem para que o perdão, embora ainda difícil, seja possível. E não somente isso. Elas também fortalecem o espaço público, de maneira tanto a impedir que as atrocidades anteriores se repitam, quanto de propiciar um projeto conjunto de comunidade.” (SOUSA, 2010, p. 70-71).
A Lei de Anistia brasileira, portanto, não se configuraria como uma Justiça de Transição capaz de possibilitar o desenvolvimento do Direito à Memória e uma conciliação nacional com seu passado. Ademais, na medida em que esses crimes, a exemplo dos desaparecimentos forçados e da tortura, são considerados crimes contra a humanidade eles não podem ser amparados como crimes comuns ou políticos. Desse modo, não poderiam ser abarcados no âmbito da Lei da Anistia.
A esse respeito o Brasil foi acionado na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo caso “Gomes Lund e outros”, referente à Guerrilha do Araguaia.
2 CASO “GOMES LUND E OUTROS” (GUERRILHA DO ARAGUAIA)
Em 26 de março de 2009, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu à Corte Interamericana de Direitos Humanos uma demanda contra o Brasil. A demanda foi submetida em nome das vítimas e seus familiares da Guerrilha do Araguaia, em virtude da execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva e da responsabilidade brasileira pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região, como resultado de operações do Exército Brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 com o objetivo de erradicar a Guerrilha, no contexto da Ditadura Militar.
A Guerrilha do Araguaia pode ser localizada numa lógica de contestação do regime. A partir de 1966 os membros do PC do B se instalaram na região à margem esquerda do Rio Araguaia e lá instauraram a Guerrilha do Araguaia com o objetivo de armar um exército popular e alcançar o fim da ditadura através da luta armada. Ainda na fase de recrutamento e treinamento, com a edição do AI-5 em 1968, e o consequente endurecimento do regime, intensificou-se o envio de membros à região.
No início de 1972 o governo brasileiro já tinha conhecimento do projeto guerrilheiro do PC do B, e organizou-se a primeira campanha militar contra a guerrilha. Com um contingente de 3 a 5 mil soldados mobilizados, algumas prisões foram realizadas. Contudo, a partir de 1973 a ordem oficial passou a ser eliminar os guerrilheiros, após sua identificação. A partir da terceira campanha militar, “Operação Marajoara” (1973), os militares “tinham ordens para não manter prisioneiros, e prisioneiros não mantiveram. Em quatro meses derrotaram a guerrilha” (GASPARI, 2002, p. 411).
“Da guerrilha do Araguaia só há um relato assumido de oficial combatente. É o do capitão Pedro Correa Cabral, feito mais de vinte anos depois, quando ele já era coronel da reserva: “A guerrilha já não era mais guerrilha. Era uma caçada levada a termo por verdadeiros monstros”. Cabral revelou que helicópteros sobrevoaram a selva com alto-falantes por meio dos quais se oferecia a rendição aos guerrilheiros. Quem a aceitou, foi assassinado. Os comandantes militares produziram apenas um documento, da Marinha, no qual está registrada a suposta data da morte de cada guerrilheiro. Conhece-se também um canhenho de anotações de um oficial que participou dos combates, com registros parciais. Juntos, formam um conjunto desconexo.” (GASPARI, 2002, p. 456).
O padrão de conduta determinado pela ditadura foi o silêncio. Não entregava cadáveres ou reconhecia que existissem. “Quem morria, sumia” (GASPARI, 2002, p. 428). Há indícios de que os desaparecidos foram torturados depois de capturados e outros ainda decapitados, visto que a decapitação facilitava a identificação dos mortos evitando que tivessem que ser carregados pela selva. Ainda,
“Há informações de que corpos de militantes sepultados na selva foram desenterrados e queimados. Há relatos de que alguns corpos teriam sido atirados nos rios da região. O governo militar impôs silêncio absoluto sobre os acontecimentos do Araguaia. Proibiu a imprensa de dar notícias sobre o tema, enquanto o Exército negava a existência do movimento.” (DEMANDA…, 2009, p. 21)
Dentro desse contexto que foram praticados os crimes de desaparecimentos forçados e de execução do caso Gomes Lund. Os fatos relacionados com a Guerrilha do Araguaia afetaram seriamente as famílias dos desaparecidos e da pessoa executada. Mais de 30 anos depois do fim da Guerrilha, os restos mortais de setenta dos desaparecidos que constam do caso submetido à Corte ainda não foram identificados, de modo que seus familiares continuam em busca de verdade, justiça e, se possível, dos restos mortais de seus entes queridos. Nesse sentido,
“(…) os familiares dos desaparecidos e da pessoa executada da Guerrilha do Araguaia têm impulsionado, desde o ano de 1982, de maneira independente ou através de órgãos do próprio Estado, ações de natureza não-penal relacionadas com a desclassificação dos arquivos das Forças Armadas sobre a Guerrilha do Araguaia, as circunstâncias dos desaparecimentos forçados e execução de seus entes queridos e a localização dos seus restos mortais, sem que até o momento hajam descoberto a verdade sobre o ocorrido.” (DEMANDA…., 2009, p. 54).
O Brasil foi demandado perante a Corte porque, em virtude da Lei de Anistia, não foi realizada uma investigação penal com o objetivo de julgar e punir os responsáveis pelo desaparecimento forçado das vítimas e pela execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva; porque os recursos judiciais de natureza civil disponíveis para obtenção de dados a respeito da Guerrilha do Araguaia não foram efetivos para assegurar informações aos familiares das vítimas; porque medidas administrativas e legislativas adotadas pelo Estado Brasileiro acabaram por restringir de forma indevida o direito de acesso à informação pelos familiares; e porque o desaparecimento das vítimas, a execução de Maria Lúcia Petit da Silva, a impunidade dos responsáveis e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação tiveram efeitos negativos sobre a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada. Nesse sentido, também os familiares das vítimas são considerados vítimas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Isso posto, a Comissão solicitou ao Tribunal que declarasse o Estado Brasileiro responsável pela violação dos direitos estabelecidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Especificamente, a Comissão responsabiliza o Brasil pela violação aos artigos 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 7 (direito à liberdade pessoal), 8 (garantias judiciais), 13 (liberdade de pensamento e expressão) e 25 (proteção judicial), da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, todos em conexão com as obrigações previstas nos artigos 1.1 (obrigação geral de respeito e garantia dos direitos humanos) e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) da mesma Convenção. Finalmente, solicitou à Corte que ordenasse ao Estado a adoção de determinadas medidas de reparação.
3 A SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Ao julgar o caso “Gomes Lund e outros” (Guerrilha do Araguaia) a Corte Interamericana de Direitos Humanos primeiramente teve de reconhecer sua competência para examinar as supostas violações aos Direitos Humanos, que teriam acontecido antes do reconhecimento pelo Brasil da competência contenciosa do Tribunal.
O Brasil é Estado Parte da Convenção Americana desde 25 de setembro de 1992, e reconheceu a competência contenciosa da Corte Interamericana em 10 de dezembro de 1988, indicando que o Tribunal teria competência apenas para os fatos posteriores. Assim, a Corte não poderia exercer sua competência contenciosa para aplicar a Convenção a violações anteriores ao reconhecimento do Estado, de modo que ficou excluída da apreciação da Corte a alegada execução de Maria Lúcia Petit da Silva, cujos restos mortais foram identificados em 1996.
Quanto aos desaparecimentos forçados, a Corte, em consonância com o entendimento reiterado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, reconheceu seu caráter contínuo ou permanente, “no qual o ato de desaparecimento e sua execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta de informação sobre seu destino, e permanecem até quando não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e os fatos não tenham sido esclarecidos” (SENTENÇA…, 2010, p. 10). Desse modo, dado o reconhecimento da competência contenciosa pelo Brasil e a natureza permanente dos desaparecimentos forçados, tem-se a competência da Corte Interamericana para analisar os alegados crimes.
Além disso, a Corte julgou-se competente para se manifestar sobre os fatos que persistiram a partir de 10 de dezembro de 1998, tais quais os supostos fatos e omissões do Estado relacionados com a falta de investigação, julgamento e sanção dos responsáveis pelos alegados desaparecimentos forçados e execução extrajudicial; a falta de efetividade dos recursos judiciais civis para obtenção de informação sobre os fatos; as restrições ao direito de acesso à informação; e o sofrimento dos familiares.
A sentença da Corte, publicada em 24 de novembro de 2010, concluiu pela responsabilidade do Estado brasileiro pelo desaparecimento forçado de 62 vítimas e, consequentemente, pela violação dos direitos aos reconhecimentos da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal (estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7), em relação à obrigação do Estado de respeitar os direitos e liberdades reconhecidos na Convenção (artigo 1.1 do Pacto de San José da Costa Rica).
No que tange à Guerrilha do Araguaia a responsabilidade estatal pelos desaparecimentos forçados não era questão controvertida, já que a Lei 9140/95 reconheceu publicamente a responsabilidade brasileira pelos atos perpetrados. Contudo, a discrepância quanto à demanda se deu em relação às obrigações do Estado frente às Convenções internacionais, notadamente o Pacto de San José da Costa Rica. Nesse sentido, a Corte teve que decidir se a Lei de Anistia no que tange ao caso “Gomes Lund e outros” seria compatível com os direitos consagrados na Convenção Americana apesar das graves violações aos direitos humanos perpetradas pela ditadura militar no Brasil.
A interpretação que o Estado Brasileiro conferiu à Lei de Anistia, somada à falta de investigação e sanção penal, resultam na impossibilidade de tanto os familiares das vítimas como a sociedade conhecerem a verdade sobre a Guerrilha do Araguaia. Nesse sentido, leis de anistia que incluam graves violações de direitos humanos são contrárias às obrigações pactuadas na Convenção e à jurisprudência da Corte Interamericana. No caso “Gomes Lund e outros”, em consonância com os artigos 8 e 25 (que tratam respectivamente da garantia e proteção judiciais), os desaparecimentos forçados não foram efetivamente investigados, processados e, se o caso, punidos pelas autoridades competentes. Assim,
“A Corte Interamericana considera que a forma na qual foi interpretada e aplicada a Lei de Anistia aprovada pelo Brasil (…) afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana, e violou o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento, precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também o artigo 1.1 da Convenção. Adicionalmente, ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e eventual sanção dos possíveis responsáveis por violações continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forçados, o Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno, consagrada no artigo 2 da Convenção Americana.” (SENTENÇA…, 2010, p. 64).
Além disso, nenhuma norma de direito interno, como as disposições de anistia, as regras de prescrição e outras excludentes de responsabilidade, pode impedir que um Estado cumpra essa obrigação, especialmente quando se trate de graves violações de direitos humanos que constituam crimes contra a humanidade, como os desaparecimentos forçados do presente caso, pois esses crimes são inanistiáveis e imprescritíveis [1].
No entendimento da Corte o Brasil não empreendeu as ações necessárias para investigar, julgar e condenar os responsáveis pelos desaparecimentos forçados, e os recursos judiciais à disposição dos familiares das vítimas, com o objetivo a obter informação sobre os fatos, não foram efetivos para garantir-lhes o acesso à informação sobre a Guerrilha do Araguaia. Ademais, tem-se que as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo governo brasileiro (haja vista a promulgação da lei de anistia) restringiram indevidamente o direito de acesso à informação desses familiares. Isso posto, o Brasil foi sentenciado a eliminar todos os obstáculos jurídicos que impediram as vítimas de ter acesso à informação, à verdade e à Justiça, a exemplo da Lei de Anistia.
De acordo com a sentença da Corte, o Estado brasileiro deve conduzir uma investigação penal eficaz dos fatos do caso do Araguaia, a fim de esclarecê-los e determinar as correspondentes responsabilidades penais, aplicando as sanções e consequências estabelecidas pela lei, além de publicar a sentença pela qual foi condenando e realizar um ato público reconhecendo sua responsabilidade internacional quanto às violações estabelecidas pela Corte.
Outras determinação contra o Brasil incluem a necessidade de implementar em prazo razoável um programa permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido às Forças Armadas; prestar atendimento médico e psicológico ou psiquiátrico gratuito, adequado e efetivo às vítimas que o solicitem; realizar esforços para determinar o paradeiro das vítimas (se for o caso, identificando e entregando os restos mortais aos familiares); tomar medidas para tipificar o delito do desaparecimento forçado; dar continuidade às iniciativas de busca, sistematização e publicação de informações a respeito da Guerrilha do Araguaia e das violações de direitos humanos quando do regime militar, a elas garantindo o acesso. O Estado encontra-se ainda obrigado a pagar as quantias fixadas a título de indenização por dano material, por dano imaterial e por restituição de custas e gastos; e a criar uma Comissão da Verdade.
Essas determinações da sentença, cujo cumprimento será supervisionado pela Corte, compreendem, portanto medidas de reparação, reabilitação, satisfação e não repetição quanto aos fatos perpetrados contra os direitos humanos no contexto da Guerrilha do Araguaia. Nesse sentido, a Corte Interamericana procurou mais uma vez reiterar a importância do dever estatal de investigar e punir violações aos direitos humanos.
Esse dever foi afirmado em todos os órgãos dos sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, tais como o sistema universal, o sistema europeu e o sistema africano. A obrigação de investigar e, se for o caso, julgar e punir adquire maior relevância frente à gravidade e à natureza dos crimes cometidos contra os direitos humanos, especialmente em vista de que para a Corte Interamericana a proibição do desaparecimento forçado de pessoas e o correspondente dever de investigar e punir tal crime há muito alcançaram o caráter de jus cogens [2].
Frente a esse cenário, em que se busca garantir que não sejam cometidos abusos contra o ser humano, parece difícil localizar a decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro de considerar constitucional a Lei de Anistia.
4 A DECISÃO DO STF E A SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA
Ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental N. 153, em 29 de abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal manteve a interpretação de que a Lei de Anistia teria sido ampla, geral e irrestrita, considerando a lei legítima e integralmente amparada pelo ordenamento constitucional brasileiro de 1988.
“O argumento central é que a lei de anistia teria sido expressão de um acordo político, de uma conciliação nacional, envolvendo “diversos atores sociais, anseios de diversas classes e instituições políticas”. Acrescentou o Supremo Tribunal Federal que não caberia ao Poder Judiciário “rescrever leis de anistia”, não devendo o Supremo “avançar sobre a competência constitucional do Poder Legislativo”, tendo em vista que “a revisão da lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá de ser feita pelo Poder Legislativo e não pelo Poder Judiciário”.” (ADMINEM, 2012, p. 8).
De acordo com a Corte Interamericana, contudo, não cabe discutir se a Lei 6683/79 se tratou de uma autoanistia ou de um acordo político. Dada a ratio da Lei de Anistia de deixar as graves violações ao Direito Internacional que foram perpetradas impunes que se tem sua incompatibilidade com a Convenção Americana. O conteúdo da anistia, ao violar direitos a garantias judiciais e direitos de proteção judicial, em relação aos deveres de reconhecer e proteger os direitos humanos e de adotar disposições internas para tornar efetivos esses direitos, que tornam a anistia brasileira anticonvencional.
Ao perpetuarem a impunidade e impedirem o reconhecimento da verdade e obtenção de reparações pelas vítimas, as leis de anistia são desprovidas de validade jurídica. Isso decorre não somente de violarem os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelos Estados, mas também por violar as normas de jus cogens relativas à proteção dos direitos humanos, de caráter imperativo de direito internacional e que contam com valor supranacional.
No posicionamento da Corte, quando um Estado se torna Parte de um tratado internacional, tal qual a Convenção Americana, todo seu ordenamento se submete ao tratado, inclusive seus juízes, incumbidos da obrigação de zelar pelo cumprimento das disposições pactuadas. Nesse sentido, pode-se falar que o Poder Judiciário está internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade” entre as normas internas e a Convenção Americana, levando em consideração tanto o tratado como a interpretação conferida pela Corte Americana.
“As leis brasileiras estão sujeitas a dois tipos de controle vertical: (a) de constitucionalidade e (b) de convencionalidade. Nem tudo que é recebido pela Constituição é convencional e válido, porque agora as leis devem também ter compatibilidade com as Convenções internacionais. Uma lei pode ser constitucional, mas inconvencional. Tanto no caso de inconstitucionalidade como na hipótese de inconvencionalidade, a lei não vale. É preciso que os operadores jurídicos brasileiros se familiarizem com os controles de constitucionalidade e de convencionalidade.” (GOMES; MAZZUOLI, 2011).
Em se tratando do caso “Gomes Lund e outros” não teria sido exercido tal controle de convencionalidade pelas autoridades brasileiras. Ao contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal de confirmar a validade da interpretação da Lei de Anistia não levou em consideração as obrigações internacionais pactuadas pelo Brasil, particularmente as estabelecidas na Convenção Americana de Direitos Humanos (artigos 8 e 25 em relação aos artigos 1.1 e 2 do tratado), impedindo o reconhecimento dos direitos dos familiares dos mortos, desaparecidos e torturados.
A obrigação de cumprir as obrigações internacionais contraídas voluntariamente corresponde não somente ao princípio básico do pacta sunt servanda sobre a responsabilidade internacional dos Estados, mas também ao disposto na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, à qual o Brasil também aderiu, que dispõe que os Estados não podem descumprir obrigações internacionais por razões de ordem interna (artigo 27). Assim, o STF desconsiderou o dever contraído pelo Estado de garantir o cumprimento das disposições da Convenção Americana e seus efeitos no âmbito interno brasileiro.
A decisão do Supremo colocou o Brasil na esteira contrária ao entendimento do Sistema Internacional relativo aos direitos humanos. No Sistema Universal pode-se destacar o posicionamento das Nações Unidas. O Alto Comissariado para os Direitos Humanos se manifestou no sentido de que, ao contribuírem para a impunidade e para obstar a consolidação do direito à verdade e investigações sobre violações, as anistias – e medidas análogas – são incompatíveis com a obrigação dos Estados frente ao Direito Internacional. Além disso, as anistias não seriam medidas que levariam à paz, à justiça ou à reconciliação, mas, ao contrário, incentivariam aqueles que dela se beneficiam a cometer novos crimes, perpetuando os conflitos. Essa lógica está premente também nos trabalhos da ONU sobre desaparecimentos forçados e sobre tortura, fortalecendo o entendimento de que a obrigação estatal de investigar, processar e punir os responsáveis por crimes contra os direitos humanos não pode ser descumprida. (SENTENÇA…, 2010).
O Comitê de Direitos Humanos também se manifesta nessa lógica no âmbito universal, colocando como inaceitável que um Estado se abstenha de investigar violações aos direitos humanos. Essa posição estatal, incompatível com os tratados internacionais, levaria a uma realidade de impunidades, cujo efeito seria contrário ao interesse do sistema de coibir que violações aos direitos humanos venham ocorrer. (SENTENÇA…, 2010).
Também os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos vêm corroborar a lógica do sistema universal da contrariedade das leis de anistia ao Direito Internacional quando de graves violações aos direitos humanos. A Corte Europeia de Direitos Humanos considerou relevante “que os processos penais referentes a crimes, como a tortura, que impliquem violações graves de direitos humanos não sejam prescritíveis, nem passíveis de concessão de anistias ou perdões a respeito” (SENTENÇA…, 2010, p. 54). A Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos reiterou que os Estados não podem usar as leis de anistia para se recusar ao cumprimento de obrigações internacionais, o que promoveria impunidade e eliminaria a possibilidade de investigar os crimes e que as vítimas pudessem recorrer reparações (SENTENÇA…, 2010).
A decisão do STF coloca o Brasil na esteira contrária também a outros países do Sistema Interamericano de direitos humanos no que tange à compatibilidade das leis de anistia com as obrigações internacionais assumidas pelos Estados. A título de exemplo, na Argentina a Corte Suprema de Justiça decidiu “declarar sem efeitos as leis de anistia que constituíam neste país um obstáculo normativo para a investigação, julgamento e eventual condenação de fatos que implicavam violações dos direitos humanos” (SENTENÇA…, 2010, p. 59).
Na Colômbia a Corte Constitucional evitou aplicar os dispositivos de sua anistia em casos de graves violações de direitos humanos, salientando ainda o caráter de jus cogens das normas relativas aos direitos humanos. No Chile, a Corte Suprema de Justiça invalidou a aplicação da anistia através de uma sentença de substituição[3], declarando que o sequestro teria caráter de crime contra a humanidade e a anistia não poderia extinguir a responsabilidade penal. Nesse caso afirmou-se que a lei de anistia deveria ser interpretada em conformidade com as convenções protetoras dos direitos fundamentais do indivíduo, não permitindo que fosse utilizada como meio para beneficiar aqueles que levaram a uma ruptura das instituições democráticas.
O Tribunal Constitucional do Peru[4] afirmou o dever de cumprir as obrigações assumidas pelo Estado nos tratados internacionais sobre direitos humanos, de natureza inderrogável. Nesse sentido, o Estado Peruano tem a obrigação de garantir esses direitos e de investigar e punir suas violações, de modo que as leis de anistia são nulas e não possuem efeitos jurídicos quando se trata da vida e dignidade da pessoa humana. O Tribunal explicitamente coloca que o encobrimento de crimes contra a humanidade e a garantia de impunidade à graves violações contra os direitos humanos não podem ser funções desempenhadas pela lei ou colocadas pelo legislador. (SENTENÇA…., 2010).
A Corte Suprema do Uruguai também declarou a incompatibilidade da sua Lei de Anistia com a Convenção Americana por ter a primeira afetado os direitos das pessoa previstos na Convenção, direitos esses que incluem a investigação judicial, o esclarecimento dos fatos e imposição de sanções penais aos perpetradores das violações. A Corte Uruguaia lembra ainda que a ilegitimidade de leis de anistia que beneficiam aqueles que cometeram violações aos direitos humanos foi declarada tanto por órgãos da comunidade internacional como por Estados que viveram processos similares, e que os pronunciamentos nesse sentido devem ser considerados ao se examinar a constitucionalidade de sua lei.
De fato, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos integrado pelo Brasil reiterou em diversas oportunidades acerca da incompatibilidade das leis de anistia com as obrigações convencionais assumidas pelos Estados em se tratando de graves violações aos direitos humanos. Frente a essa conjuntura, como colocado, não somente os órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos mas também diversas altas cortes nacionais da região se pronunciaram sobre o alcance das suas leis de anistia em graves violações aos direitos humanos e sua incompatibilidade com as obrigações internacionais assumidas pelos Estados, concluindo que essas leis compreendem uma violação ao dever internacional de investigar e punir ditas violações. Este caminho, contudo, não foi o seguido pelo Brasil – como se depreende da decisão do Supremo Tribunal Federal.
Ora, a Justiça de Transição só pode ser alcançada com a reforma das instituições, a reparação das vítimas, a busca pela verdade e a responsabilização criminal daqueles que cometeram crimes. Na medida em que a decisão do Supremo nega às vítimas a possibilidade de responsabilização criminal acaba negando seu direito à justiça.
Ademais, as medidas adotadas pelo Estado como garantia de reparação e não repetição, embora importantes, não foram suficientes para garantir o acesso à justiça por parte dos familiares das vítimas, já que não foram possibilitados mecanismos para que o Estado possa investigar e punir as violações. Assim, tem-se a relevância da manifestação da Corte sobre o caso, com vistas a “relembrar” o Estado brasileiro da sua responsabilidade para com as obrigações internacionais.
Como sentenciado pela Corte, as leis de anistia em relação a graves violações aos direitos humanos são incompatíveis com o Direito Internacional e com as obrigações internacionais dos Estados, contribuindo para a impunidade e constituindo um obstáculo ao Direito à Verdade. Nesse sentido, não há como falar em justiça enquanto as vítimas não tenham tido acesso a um recurso efetivo e possibilidade de reparação inclusive moral. Enquanto perdurar tal incompatibilidade tem-se um ambiente propício a dar lugar a outras violações de direitos humanos. Nos termos de François Ost, tal incompatibilidade favorece o esquecimento e impede que a memória seja construída.
5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES IMPORTANTES
Ante o exposto, apesar de o STF considerar a Lei de Anistia recepcionada pela ordem constitucional vigente, pode-se concluir que a Lei de Anistia brasileira é inconvencional, já que viola as convenções de direitos humanos ratificadas pelo Brasil, e inválida, na medida em que contraria o jus cogens internacional. Assim, nem tudo que o Supremo diz ser constitucional pode ser dito compatível com os tratados em vigor no Estado brasileiro e detentor de validade.
Nesse sentido, hoje as leis devem ser compatíveis com as ordens jurídicas superiores, quais sejam, constitucional, internacional e universal. Tem-se assim a reprogramação do Direito da qual falou François Ost. Na nova cultura jurídica que está se formando as decisões da Corte Interamericana vinculam o país que a ratificou, tal qual o Brasil. Assim, toda a justiça brasileira também se vincula à lógica da Corte. Frente a esse Direito reprogramado o STF terá que se acostumar em não ser mais o dono da "última palavra" em matéria de direitos humanos no Brasil. E terá também que cumprir as decisões dos tribunais internacionais enquanto deles o Brasil for parte, a exemplo de como fizeram países como Argentina e Colômbia.
No que tange ao caso da Guerrilha do Araguaia, a conformação ao conteúdo da sentença, ainda não cumprida integralmente pelo país, significaria um fortalecimento da democracia e da memória brasileiras. Por sua vez, o não cumprimento da sentença levaria a uma nova responsabilidade internacional do país, ensejando nova ação internacional na Corte Interamericana, nova condenação, e assim por diante. Em última medida, a Corte pode informar à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos que o Estado Brasileiro não deu cumprimento a suas determinações, dando ensejo à organização para decidir sobre quais sanções aplicar ao país (artigo 65 da Convenção Americana de Direitos Humanos).
Ademais, na medida em que o Brasil se obrigou à Convenção e à Corte de Direitos Humanos suas decisões devem ser necessariamente cumpridas. O não cumprimento significa desprestígio internacional, o que de forma alguma é interessante em um momento em que o Brasil busca crescentemente o reconhecimento da sociedade internacional como player mundial.
De fato, a decisão da Corte abre a possibilidade de um “acerto de contas” em relação aos crimes cometidos durante a ditadura contra os direitos humanos. Dito de outra forma, enquanto o STF, ao julgar a ADPF 153, havia fechado as portas para a Justiça de Transição, a Corte Interamericana vem reafirmar que não se pode subtrair o direito à memória e à justiça de nenhum povo.
No Brasil não houve Justiça de Transição: não se preocupou com a reparação completa da vítima, reabilitação, ou com as garantias de não repetição. Foi contemplado tão somente o direito à reparação financeira com o pagamento de indenizações aos familiares dos desaparecidos (Lei 9140/95 e Lei de Anistia). Dessa aplicação mínima resultou que não houve um compromisso da sociedade em manter algo do passado para o futuro, instituindo a memória. A falsa conciliação representada pela anistia não tem a prerrogativa de constituir uma promessa, visto que ela nega a memória e a justiça.
Nenhum dirigente do regime foi julgado e a Comissão da Verdade acabou de ser instalada, ainda sem resultados que possam ser apreciados. Nesse quadro, a decisão do caso “Gomes Lund e outros” traduz a emergência de se avançar no sentido de garantir os direitos à verdade e à justiça na sociedade brasileira. Talvez a sentença da CIDH represente um passo rumo ao restabelecimento da memória das vítimas da ditadura militar e à implantação de uma verdadeira Justiça de Transição no Brasil.
Nesse sentido o julgado da Corte deve contribuir para a atuação relevante da Comissão Nacional da Verdade (aprovada pela Lei 12.528 de 2011), cujo objetivo é resgatar as informações sobre o período da ditadura militar, em consonância com o direito à memória. A Comissão da Verdade, que tem como objetivo esclarecer fatos e não tem caráter punitivo, terá dois anos para ouvir depoimentos em todo o país, requisitar e analisar documentos que ajudem a esclarecer as violações de direitos ocorridas entre 1946 e 1988. “Caberá à Comissão promover o esclarecimento circunstanciado de casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, identificando e tornando públicos as estruturas, os locais e as instituições envolvidas” (ADMINEM, 2012, p. 12).
Assim, reflexos relevantes da sentença da Corte já podem ser visualizados na realidade brasileira com vistas a Justiça de Transição: além da lei que cria a Comissão da Verdade, a Lei 12.527 de 2011 vem regular o acesso à informação, limitando o prazo de sigilo de documentos classificado como “ultrassecretos”. A inovação está em estabelecer o período no qual tais documentos podem ser mantidos em segredo em até 25 anos, renováveis por até mais 25 anos. Frente a essa lei não há mais que se falar em sigilo eterno.
De fato, no Brasil é patente tanto a falta de informações como a dificuldade de acesso às informações sobre o período do regime militar, o que implica em desconhecimento do passado por parte da sociedade. Esse desconhecimento pode apontar para uma negativa do passado, que tem consequências trágicas para o grupo social. François Ost adverte acerca das sociedades que negam seu passado que: “Sem memória, uma sociedade não se poderia atribuir uma identidade, nem ter pretensões a qualquer perenidade, mas sem perdão, ela se exporá ao risco de repetição compulsiva de seus dogmas e de seus fantasmas” (OST, 2005, p. 42). Desse modo, o desconhecimento é incompatível com o Direito à Verdade, prejudicando a formação da memória e da identidade coletiva da sociedade.
No que tange à Comissão da Verdade pode-se questionar seu caráter não punitivo, ou seja, ela não tem por prerrogativa o “sancionamento” daqueles que praticaram crimes contra os direitos humanos. Desse modo, pode-se dizer que ela compreende o Direito à Memória, mas não um Direito à Justiça. Apesar disso, entendendo o Direito à Memória como elemento significativo para uma justiça de transição, tem-se sua importância para a história do país.
A Comissão da Verdade e o acesso a informações podem ser tidos como maneiras de resgatar a verdade sobre o que ocorreu no período, conduzindo a sociedade ao conhecimento desses fatos e à consequente superação do histórico de violações aos direitos humanos. Em outros termos, esse resgate da verdade contribui para a estabilidade social, libertando o corpo social para um futuro em que a dignidade humana deverá ser resguardada e atrocidades como as que ocorreram não voltem a acontecer. Ressalte-se que a Justiça de Transição, em todas suas medidas, permite retomar o passado de uma forma saudável, reconstruindo-o em prol da valoração da dignidade do ser humano – tendo em mente as gerações presentes e sobretudo as gerações futuras.
A instituição da Comissão da Verdade e a limitação dos prazos de sigilo simbolizam assim relevantes avanços na conjuntura brasileira, indo no sentido contrário ao desconhecimento e esquecimento. Uma vez que contribuem para formação da memória relativa ao período da ditadura essas iniciativas se conformam com a necessidade de garantir os Direitos à Verdade e à Justiça.
CONCLUSÃO
Vimos que na transição de regimes brasileira predominou o esquecimento. Não houve possibilidade de perdão ou construção da memória, de modo que a promessa de uma sociedade justa e democrática não pôde ser plenamente cumprida. O momento, portanto, é de retomar o momento da transição e elaborar uma temporalização efetiva do direito brasileiro, que permita à memória, perdão, promessa e questionamento se desenvolverem em consonância com o Direito à Justiça.
Nesse sentido, a decisão da Corte no caso “Gomes Lund e outros” vem consolidar a jurisprudência interamericana a respeito das leis de anistia e sua incompatibilidade com a obrigação dos Estados de buscar a verdade e investigar, processar e punir violações contra a humanidade, em consonância com o entendimento do Direito Internacional de Direitos Humanos. Ao condenar o Brasil, portanto, a Corte indica o caminho a ser seguido para que a justiça e a verdade sejam garantidas em face dos crimes cometidos contra os direitos humanos pela ditadura militar quando da Guerrilha do Araguaia.
Assim, a decisão da Corte Interamericana aparece justamente endossando essa necessidade do Brasil avançar quanto à garantia dos Direitos à Verdade e à Justiça, contribuindo para a construção de uma memória coletiva que repudia a violação aos direitos humanos e que não permitirá que atrocidades voltem a ocorrer na realidade brasileira. Somente assegurando plenamente os Direitos à Verdade e à Justiça será possível combater a impunidade de graves violações de direitos humanos e fortalecer o Estado Democrático de Direito e o regime de proteção aos Direitos Humanos no Brasil.
Mestranda em Direito Internacional Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela UFMG e Bacharel em Relações Internacionais pela PUC-MG
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