O Direito à saúde, o dever de sua efetivação pelo Estado e o papel do Poder Judiciário

Resumo: Análise da obrigatoriedade do Estado em prestar o efetivo acesso universal à saúde direito constitucionalmente previsto e o papel do Poder Judiciário em tal efetivação.

Sumário: I. O Direito à saúde constitucionalmente garantido. II. O princípio da Reserva do Possível como possibilidade ou não do Estado se eximir do dever de prestação. III. A vedação do retrocesso social como justificativa para o dever de prestação da saúde pelo Estado. IV. Considerações finais.

I. O Direito à saúde constitucionalmente garantido

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O artigo 196 da CF/88 garante o acesso universal à saúde, por meio do “acesso igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Por outro lado, o artigo 5º, §1º, prevê que as “normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata”. Noutro giro, o caput do artigo 6º, também da CF, garante a saúde como um direito social. Assim, verifica-se tratar-se de direito pertencente ao núcleo básico de direitos da pessoa humana, tendo sido amplamente garantido pela CF.

Entretanto, na prática, esbarra-se em realidade muito diferente. A falta de recursos, de políticas públicas, planejamento e combate à corrupção são alguns nos motivos pelos quais o direito à saúde não é na prática, nem de longe, universal. Verifica-se, diariamente, notícias de pessoas morrendo em filas de hospitais a espera de atendimento médico. A realidade, que era para ser excepcional e chocante, já é comum e não mais causa espanto à sociedade, acostumada a ser tratada como “gado na fila do abate”.

Nesta esteira, a reflexão aqui travada é: qual é o papel do Judiciário nesse contexto? O direito à saúde implica na prestação gratuita de tratamento medicamentoso pelo Estado? O princípio da reserva do possível pode ser invocado para eximir o Estado de garantir o direito fundamental à saúde?

II. O princípio da Reserva do Possível como possibilidade (ou não) do Estado se eximir do dever de prestação

Para responder tais questionamentos, inicialmente tem-se a necessidade de explicitar os ditames gerais que permeiam o princípio da Reserva do Possível e a problemática da efetivação do direito à saúde.

O princípio da reserva do possível tem origem em uma decisão Alemã, proferida pela Corte Constitucional. Consiste na ideia de que, por mais que a Constituição garanta certos direitos básicos, e os dotem de eficácia e aplicabilidade imediata, só se pode exigir que o Estado os cumpra dentro de certos parâmetros de razoabilidade. Assim, na falta de condições materiais e operacionais, que seriam responsáveis pelas condições de efetivação de tais direitos, estes ficariam com sua execução prejudicada. Destarte, decisões do Poder Judiciário não resultariam, de forma prática, a execução do Estado de políticas garantidoras desse direito.

Quando se fala no direito à saúde, essa realidade se complica ainda mais. Por mais que a CF/88 garanta a saúde como direito fundamental, e de fato, esse seja um dos direitos mais importantes constantes no núcleo básico de direitos humanos, o Estado não possui condições e aparelhamento necessários à sua efetivação. Decisões judiciais, que são a forma encontrada pelos indivíduos a fim de garantir tal direito, tem se mostrado inócuas, vazia e desprovidas de real efetividade, porquanto o Estado não possui recursos suficientes para arcar com todas as demandas (ou afirma não possuir). Para tanto, Estado teria que retirar recursos de outras áreas não menos importantes, como educação e segurança.

Ora, verifica-se então, uma antinomia entre princípios e direitos básicos, e no meio desse caminho, o princípio da reserva do possível, utilizado pelo Estado como uma “muleta” para justificar o não atendimento das ordens judiciais ou a não efetivação de certos direitos fundamentais.

Para sanar tal antinomia, o critério a ser utilizado seria o da essencialidade Vs excepcionalidade. Caso o direito seja extremamente essencial, sua prestação deve ser efetivada, porquanto a essencialidade supera a excepcionalidade da não prestação.

Nesse sentido, cabe destacar a posição de Ingo Sarlet: “negar ao indivíduo os recursos materiais mínimos para manutenção de sua existência pode significar, em última análise, condená-lo à morte por inanição, por falta de atendimento médico, etc.” (SARLET, 2001, p.323).

Então, como fica o papel do Judiciário dentro desse contexto? O Judiciário teria que decidir de forma racional, razoável e reflexiva, analisando seu papel como efetivador de políticas públicas e direitos.

Com as considerações acima, a opinião que aqui se defende é de que o Estado não pode se utilizar do princípio da Reserva do Possível para se eximir de sua obrigação. Ora, sabe-se que o Brasil é um país corroído, em todas suas esferas, pela corrupção. Na saúde, não é diferente. A falta de critério técnico para a escolha de dirigentes das mais diversas áreas afeta intimamente a administração de recursos nos mais diversos setores. A saúde, sem uma administração eficaz e eficiente, não pode, de fato, suprir a grande demanda. Contudo, o Estado não pode se utilizar de sua própria ineficácia para justificar a não prestação de um direito tão fundamental.

III. A vedação do retrocesso social como justificativa para o dever de prestação da saúde pelo Estado

A CF/88 é considerada moderna e avançada, em termos de previsão de direitos fundamentais. Se coaduna com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e toda a teoria das Dimensões dos direitos fundamentais. Assim, previu direitos relacionados a uma vida minimamente digna, como saúde, moradia, trabalho, educação e segurança. Sem a efetividade de tais direitos, não se pode falar em indivíduo com uma existência dignidade assegurada. Se o Estado não pode arcar com a efetivação de direitos básicos, que são garantidores de um mínimo para a existência digna, não pode ser considerado um Estado Social.

A Constituição brasileira, justamente por ter em seu bojo um núcleo duro de direitos fundamentais, protegidos, inclusive, por meio de cláusula pétrea, não pode ser violada pelo Estado, que se utiliza de sua própria ineficiência para justificar suas falhas. Permitir que o Estado invoque o princípio da Reserva do Possível para se eximir de prestações básicas, como o acesso universal à saúde, é permitir que retroceda, e, em um Estado Democrático de Direito, veda-se o retrocesso social.

Nesse diapasão, reflete-se em como o Poder Judiciário tem atuado na efetivação de direitos fundamentais. Em decisões frequentes, até mesmo diárias, o Judiciário tem determinado ao Estado o fornecimento de medicamentos, leitos, cirurgias e atendimentos médicos aos indivíduos. A atuação do Poder Judiciário, nesse sentido, não fere o princípio da separação dos poderes, e sim reflete a “harmonia” entre estes, citada no artigo 2º da CF/88. Além disso, trata-se do sistema de “freios e contrapesos”, onde um Poder fiscaliza o outro.

Assim, o Poder Judiciário, em decisões recorrentes, tem determinado ao Estado o fornecimento de medicamentos a pacientes. Sabe-se que, em muitos casos, os medicamentos são de alto custo, como, por exemplo, os medicamentos para tratamento de neoplasia maligna que, não raro, atingem o patamar de 20 mil reais a caixa. Como um indivíduo, de classe média ou baixa, pode custear tal tratamento? É patente que não é possível. Comprovando, então, a hipossuficiência, o paciente pode e deve requerer ao Estado o fornecimento gratuito do medicamento que necessita, e este tem o dever de fornecer.

Nesse sentido, aponta-se decisões recentes:

“Agravo de instrumento. Medicamentos. Sequestro de valores na conta do Estado réu, para fins de efetivação da decisão que o condenou a custear medicamentos em favor da agravada. Ausência de violação de preceitos constitucionais e de dispositivos processuais, tendo em vista que a medida visa à proteção da dignidade da pessoa humana. Jurisprudência do STJ. Recurso a que se nega seguimento, nos termos do art. 557, caput, do CPC”. (TJ-RJ   , Relator: DES. WAGNER CINELLI DE PAULA FREITAS, Data de Julgamento: 08/01/2015, DÉCIMA SÉTIMA CAMARA CIVEL)

“EMENTA: DIREITO À VIDA E À SAÚDE. NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEIOS INDISPENSÁVEIS AO TRATAMENTO E À PRESERVAÇÃO DA SAÚDE DE PESSOAS CARENTES. DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196). PRECEDENTES (STF). RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DAS PESSOAS POLÍTICAS QUE INTEGRAM O ESTADO FEDERAL BRASILEIRO. CONSEQUENTE POSSIBILIDADE DE AJUIZAMENTO DA AÇÃO CONTRA UM, ALGUNS OU TODOS OS ENTES ESTATAIS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E IMPROVIDO. DECISÃO: (…)  A parte recorrente (Município de Fortaleza), ao deduzir este apelo extremo, sustentou que o Tribunal a quo teria transgredido preceitos inscritos na Constituição da República. Entendo não assistir razão ao Município de Fortaleza, pois o eventual acolhimento de sua pretensão recursal certamente conduziria a resultado inaceitável sob a perspectiva constitucional do direito à vida e à saúde. (…) Na realidade, o cumprimento do dever político-constitucional consagrado no art. 196 da Lei Fundamental do Estado, consistente na obrigação de assegurar, a todos, a proteção à saúde, representa fator, que, associado a um imperativo de solidariedade social, impõe-se ao Poder Público, qualquer que seja a dimensão institucional em que atue no plano de nossa organização federativa. A impostergabilidade da efetivação desse dever constitucional desautoriza o acolhimento do pleito recursal ora deduzido na presente causa. Tal como pude enfatizar, (…)  entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, caput, e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo uma vez configurado esse dilema que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas. Cumpre não perder de perspectiva que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular e implementar políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro (JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, Comentários à Constituição de 1988”, vol. VIII/4332-4334, item n. 181, 1993, Forense Universitária) não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. Nesse contexto, incide, sobre o Poder Público, a gravíssima obrigação de tornar efetivas as prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor das pessoas e das comunidades, medidas preventivas e de recuperação, que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concreção ao que prescreve, em seu art. 196, a Constituição da República. O sentido de fundamentalidade do direito à saúde que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional. Ve-se, desse modo, que, mais do que a simples positivação dos direitos sociais que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica (JOSÉ AFONSO DA SILVA, Poder Constituinte e Poder Popular, p. 199, itens ns. 20/21, 2000, Malheiros), recai, sobre o Estado, inafastável vínculo institucional consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a permitir, às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente vinculado à realização, por parte das entidades governamentais, da tarefa que lhes impôs a própria Constituição. Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito – como o direito à saúde – se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional. Cumpre assinalar, finalmente, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante. (…) DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. (..) O recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá-los com recursos próprios. Isto por que, uma vez satisfeitos tais requisitos, o ente federativo deve se pautar no espírito de solidariedade para conferir efetividade ao direito garantido pela Constituição, e não criar entraves jurídicos para postergar a devida prestação jurisdicional. Esse entendimento vem sendo aplicado pelo Supremo Tribunal Federal, cujas decisões proferidas em sucessivos julgamentos sobre a matéria ora em exame têm acentuado que constitui obrigação solidária dos entes da Federação o dever de fornecimento gratuito de tratamento médico e de medicamentos indispensáveis em favor de pessoas carentes. (…) Isso significa, portanto, tratando-se de situação configuradora de responsabilidade solidária das pessoas políticas que compõem a estrutura institucional do Estado Federal brasileiro, que, em matéria de implementação de ações e serviços de saúde, existe verdadeiro dever constitucional in solidum, que confere ao credor (a pessoa física, no caso) o direito de exigir e de receber, a seu critério, de um, de alguns ou de todos os devedores (os entes estatais, na espécie) a obrigação comum. Sendo assim, e considerando as razões expostas, conheço do presente recurso extraordinário, para negar-lhe provimento. Publique-se. Brasília, 06 de abril de 2015. Ministro CELSO DE MELLO Relator” (STF – RE: 873168 PE – PERNAMBUCO 0801561-43.2013.4.05.8100, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 06/04/2015, Data de Publicação: DJe-067 10/04/2015)

IV. Considerações finais

Verifica-se, portanto, a responsabilidade do Estado de efetivar o direito fundamental à saúde, com a atuação fundamental do Poder Judiciário.

A invocação do Princípio da Reserva do Possível, por parte do Estado, não é possível, na medida em que o direito à saúde encontra-se amplamente garantido pela CF/88, estando, inclusive, presente no núcleo básico de direitos, protegidos por cláusula pétrea.

A garantia de vida digna e de um mínimo para uma existência satisfatória obriga ao Estado a prestação do direito de acesso universal à saúde.

Para tanto, o Poder Judiciário possui papel singular e relevante, na medida em que, dentro do sistema de freios e contrapesos, impele o Estado a promover a execução do direito mencionado, seja por meio de fornecimento gratuito de medicamentos, seja por meio de disponibilização de leitos e realização de procedimentos e cirurgias.

Na ponderação entre o equilíbrio econômico e financeiro do Estado e o direito fundamental à saúde, o último deve prevalecer, conforme entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal.

Referências:
SARLET, Ingo Wofgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
DA SILVA, Airton Ribeiro; WEIBLEN, Fabrício Pinto. A Reserva do Possível e o Papel do Judiciário na Efetividade dos Direitos Sociais. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM. Julho 2007, Vol. 2, n. 2, p. 42-53. 2007.

Informações Sobre o Autor

Camila Sousa P. de Abreu

Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília UniCeub em 2012 é servidora do Tribunal de Justiça e dos Territórios desde 2007. Pós Graduanda em Direito Constitucional pela Universidade Unyleya


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Equipe Âmbito Jurídico

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