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O discurso argumentativo perelmaniano segundo o Supremo Tribunal Federal

Resumo: O objetivo principal é a análise da argumentação jurídica segundo as lições de Chaim Perelman, começando pelas regras de discurso e argumentação, seus limites e conseqüências. O primeiro capítulo discorre sobre as noções do raciocínio argumentativo, passando pelo chamado gênero epidíctico. Em seguida foram analisados os esquemas e as técnicas argumentativas de Perelman. Dentre elas, por haver maior pertinência temática com a proposta empírica do estudo, qual seja, o confronto entre a teoria da argumentação e os votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, elegeu-se a argumentação quase-lógica e a argumentação baseada na estrutura do real. Neste ínterim, realizou-se a análise dos votos dos Ministros no julgamento do leading case que tratou da concretização do direito fundamental à segurança pública. Por fim, esquadrinhou-se uma conclusão que questiona a utilidade e a necessidade do discurso argumentativo com a finalidade de validar e legitimar os julgamentos.[1]


Palavras-chave: discurso argumentativo; técnicas argumentativas; estrutura dos argumentos individualizados; direitos fundamentais; validade.


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Abstract: The following article analyzes the argumentative speech according to Chaim Perelman’s lessons. The study starts defining rules of argumentative speech, it’s boundaries and effects. The first chapter brings the definition of argumentative speech and also the concept of “epidíctico” gender. Following this chapter, Perelman’s argumentative systems were assayed as well as his argumentative techniques. Due to it’s relation to the empirical study, which is the confrontation of his law speech thesis and votes from judges of Supreme Federal Court, two techniques were elected: almost-logic argumentation and based on structure of the real argumentation. Thus, every vote of Supreme Federal Court judges were put in confrontation against Perelman’s thesis in leading case that manages the discussion of public safety’s materialization. The conclusion tries to inquire the value and necessity of argumentative speech in order to validate and legitimate trials.


Key-Words: argumentative speech; argumentative techniques; individual argumentative systems; fundamental rights; validation.


Sumário: 1. Introdução.2. Noções do raciocínio argumentativo. 2.1. Gênero epidíctico. 3 esquemas argumentativos de Perelman. 3.1 técnicas argumentativas. 3.1.1. Argumentação quase-lógica. 3.1.2 Argumentação baseada na estrutura do real. 4. Análise dos votos dos ministros do STF na STA nº. 223/PE. 4.1. Ellen Gracie. 4.2.Celso de Mello. 4.3. Gilmar Mendes. 5. Discurso argumentativo: validade e Justiça. 6. Conclusão. Referências.


1 INTRODUÇÃO


A presente monografia busca perquirir, resumidamente, se, quando e de que forma o raciocínio dialético é utilizado nos julgamentos dos Ministros que compõe o Supremo Tribunal Federal.


Para isso, tem-se em consideração além dos votos proferidos em leading case, as regras de argumentação que compõe as técnicas desenvolvidas por Chaim Perelman.


O objetivo do exame destas técnicas é fomentar o debate sobre como a persuasão racional pode direcionar as decisões judiciais, delineando a forma com que os Ministros convencem uns aos outros.


Em outras palavras, o estudo gira em torno da análise da persuasão racional, elemento necessário para julgar os casos concretos e imprescindível para que tais decisões alcancem um teor de Justiça e validade.


Iniciou-se com a análise do raciocínio dialético contraposto ao raciocínio analítico como forma argumentativa. Pode-se dizer que o primeiro, a priori relegado ao mundo dos sofistas, já não é mais enxergado como na antiguidade, enquanto mero expediente retórico para vencer debates políticos e jurídicos. Na modernidade, tal raciocínio é tido como um pressuposto de legitimidade das decisões judiciais.


Ocorre que, com o surgimento de valores e princípios enquanto fonte do Direito, a aplicação da ciência jurídica sofreu uma brusca transformação. Se antes, o raciocínio analítico dos juízes limitava-se à subsunção dos fatos às normas (nos termos da teoria positivista clássica), hoje, tal pensamento revela-se insuficiente para acomodar uma escorreita e legítima aplicação do Direito.


É neste cenário que surge um discurso dialético (impregnado de uma nova retórica), preocupado em pesquisar as formas e os limites para inserir nos julgamentos tipicamente analíticos, os valores que permeiam a Constituição Federal.


Afinal, quais técnicas de persuasão podem ser usadas e como tal procedimento torna a decisão final mais “correta”, ainda que não seja a “verdadeira”?


Daí a importância do estudo no que tange a encontrar o discurso argumentativo mais adequado para auxiliar a construção da decisão mais justa, equitativa, razoável e conforme o Direito.


Uma breve exposição das noções do raciocínio argumentativo demonstra como hoje se deve privilegiar tal pensamento em detrimento do raciocínio analítico, tendo em vista a evolução que o Direito sofreu nos últimos anos.


Buscou-se também conceituar o gênero epidíctico enquanto prática cada vez mais difundida no bojo da fundamentação nas decisões judiciais brasileiras.


Após, segue-se um exame minucioso, com citações de Perelman, acerca dos esquemas argumentativos e as técnicas que o compõe. Tal análise revela-se imprescindível para entendimento do julgado que foi objeto de análise no item 4.


Em seguida, foram transcritas passagens dos votos e dos argumentos utilizados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal ao julgar a suspensão de tutela antecipada nº. 223/PE, leading case que inaugurou novo entendimento da Corte acerca do dever do Estado em prestar segurança e saúde pública para as vitimas da violência urbana.


Finalmente, observou-se o discurso de validez que deve permear toda decisão judicial. A conclusão do trabalho busca tecer reflexões críticas sobre as técnicas mais empregadas naquele julgamento, bem como apontar eventuais incongruências, data máxima vênia.


2. NOÇÕES DO RACIOCÍNIO ARGUMENTATIVO


Antes de abordar os esquemas argumentativos de Perelman e adentrar nas suas técnicas, cumpre tecer algumas considerações sobre o raciocínio argumentativo e seus principais elementos e características.


De início, deve-se saber que a persuasão racional não busca impor certezas e saídas herméticas ao Direito, tampouco busca contrapor-se ao evidente. Não. Como ensina o jusfilósofo polonês:


“A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à necessidade e à evidencia, pois não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidencia. O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa as certezas do cálculo” (PERELMAN, 2005, p.1).


Assim, argumentar nunca pode implicar em impor algo a alguém, uma vez que a premissa básica do raciocínio argumentativo é que se alguém está disposto a convencer outrem, deve, antes disso, estar propenso a ser convencido por aquele.


Com efeito, a despeito da insegurança que tal pensamento argumentativo possa transmitir, em tempos em que urge uma jurisprudência mais uniforme, não se mostra mais adequado aplicar o pensamento cartesiano em sua concepção clássica.


Ocorre que o método cartesiano-racional exclui uma lista de possíveis decisões judiciais mais coerentes e adequadas aos valores que estão em jogo, e em última análise, reduz o papel da interpretação à quase zero.


Isso porque muitos filósofos acreditam que tal pensamento, por admitir premissas absolutas (e exatas) só deve ser aplicado às ciências naturais, e nunca às ciências humanas, como o Direito.


A indicação de uma única saída, é, diga-se, temerária ao Direito, tal qual a ciência aplicada que é, pois segundo lição de Lenio Streck: “Direito é um saber prático”. (STRECK, 2005, p. 96)


Logo, no âmbito jurídico, o pensamento positivista clássico alinha-se ao método cartesiano, na medida em que, partindo da necessidade de subsumir o fato à norma, se limita a apontar uma única certeza. Uma única resposta “verdadeira”.


No entanto, é cediço que tal raciocínio analítico se tornou insuficiente para dialogar com o arcabouço legislativo infra e constitucional na maioria dos ordenamentos vigentes, uma vez que estes estão cada vez mais impregnados de postulados axiológicos.


Diante deste cenário, surge a necessidade de se rever a retórica clássica argumentativa, para fins de solucionar o seguinte impasse jurídico: como solucionar da maneira mais racional possível os casos concretos, a fim de se alcançar uma verdade justa e legal, eis que o raciocínio analítico é precário e incompleto?


O que se deve ter em mente é que o raciocínio argumentativo está preocupado com o “… estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhe apresentam ao assentimento.” (PERELMAN, 2005, p.4)


Em outras palavras, o método dialético (que se contrapõe ao cartesiano) encontra na argumentação uma forma de convencer os espíritos. O objetivo da argumentação moderna, portanto, não é indicar a saída correta, mas sim agregar argumentos (por meio das técnicas) que viabilizem uma discussão racional para se chegar a tanto. Nesse sentido, os espíritos mencionados acima seriam as pessoas envoltas em todas as nuances sociais que necessitam do Direito para solucionar conflitos e restabelecer a ordem.


Assim, a teoria argumentativa não busca estudar como achar a verdade, mas como usar as técnicas que podem levar à adesão dos espíritos a um determinado pensamento. Ou seja, a teoria da argumentação estuda os meios de provas para que o orador obtenha essa adesão dos ouvintes reunidos.


Mesmo porque a verdade, para muitos, não existe. O que existe é uma solução correta encontrada a partir do consenso de todos ou da maioria.


Neste passo, registre-se que o assentimento ao discurso do orador deve levar em consideração aqueles a quem ele se dirige. O grupo de pessoas interpeladas pelo orador forma o seu auditório.


Veja-se o conceito de auditório, segundo Robert Alexy: “A audiência é o agrupamento daqueles a quem o orador deseja influenciar com sua argumentação” (ALEXY, 2001, p. 130). Diga-se que Perelman compartilha do mesmo conceito para auditório.


De outra monta, ele defende que o orador deve construir seu auditório mentalmente, uma vez que cada ouvinte se comporta distintamente do outro, e de acordo com seu papel na sociedade.


Dito de outro modo: para Perelman, o orador deve se adaptar ao auditório (que em regra é heterogêneo), para concluir que é o auditório quem vai formatar o orador. Confira-se:


“O auditório presumido é sempre, para quem argumenta, uma construção mais ou menos sistematizada. Pode-se tentar determina-lhe as origens psicológicas ou sociológicas; o importante, para quem se propõe a persuadir efetivamente indivíduos concretos, é que a construção do auditório não seja inadequada à experiência” (PERELMAN, 2005, p.22).


Mais a frente, complementa:


O conhecimento daqueles que se pretende conquistar é, pois, uma condição prévia de qualquer argumentação eficaz. […]


As considerações sociológicas úteis ao orador podem versar sobre um objeto particularmente preciso, a saber, as funções sociais cumpridas pelos ouvintes. Com efeito, estes costumam adotar atitudes ligadas ao papel que lhes é confiado em certas instituições sociais.” (2005, p. 23)


O que se vê, é que o orador convincente deve estudar seu auditório para então decidir sobre quais argumentos lançar a fim de persuadi-lo. É partindo dos ouvintes que o orador desenvolverá sua argumentação, lançando mão daquela mais conveniente à situação concreta.


Como transcrito, Perelman entende que esse conhecimento do auditório é condição prévia para uma argumentação eficaz, pois a construção do mesmo não pode ser inadequada à experiência, pena de se tornar um orador contumaz, desprovido de quaisquer razões. Ilustra tal circunstância com o seguinte exemplo:


“O grande orador, aquele que tem ascendência sobre outrem, parece animado pelo próprio espírito do seu auditório. Esse não é o caso do homem apaixonado que só se preocupa com o que ele mesmo sente. Se bem que este último possa exercer certa influencia sobre as pessoas sugestionáveis, seu discurso o mais das vezes parecerá desarrazoado aos ouvintes. O discurso do apaixonado, afirma M. Pradines, embora possa tocar, não produz um som “verdadeiro”. Sempre a verdadeira figura “rebenta a máscara lógica”, pois diz ele, “a paixão é incomensurável para as razões”. O que explica esse ponto de vista é que o homem apaixonado, enquanto argumenta, o faz sem levar suficientemente em conta o auditório a que se dirige; empolgado por seu entusiasmo, imagina o auditório sensível aos mesmos argumentos que o persuadiram a ele próprio. O que a paixão provoca é, portanto, por esse esquecimento do auditório, menos uma ausência de razões do que uma má escolha de razões” (PERELMAN, 2005, p. 27)


Portanto, a adequação do orador ao auditório, além de condição prévia para persuadir os ouvintes, é também essencial para todo o desenvolvimento da argumentação. De fato, o desenvolvimento da argumentação deve ser realizado continuamente ao longo de toda a dialética, renovando-se os argumentos conforme seja modificado o auditório.


Uma questão intrigante que permeia o raciocínio argumentativo é saber o que vem a ser persuadir e se, em algum aspecto, se distingue de convencer um auditório.


Para Perelman, a distinção pode ser caracterizada da seguinte maneira:


Para quem se preocupa com o resultado, persuadir é mais do que convencer, pois a convicção não passa da primeira fase que leva à ação. […]


Em contrapartida, para quem está preocupado com o caráter racional da adesão, convencer é mais do que persuadir. […]


Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentação que pretende valer só para um auditório particular e chamar convincente àquela que deveria obter a adesão de todo ser racional” (2005, p.30/31).


Observe-se que Perelman distingue as categorias de formação do juízo em dois aspectos: nos fins da argumentação e na qualidade do auditório ao qual se dirige o orador.


Face o segundo critério, ele sugere a existência de uma argumentação capaz de atingir “todo ser racional”.


Trata-se do denominado auditório universal. O termo foi cunhado pelo jusfilósofo polonês para definir o ideal de ouvintes daquele orador preocupado com a adesão dos espíritos aos seus argumentos, de maneira racional e em escala máxima.


A justificativa com a preocupação em dialogar com o auditório universal advém da insuficiência e da precariedade de se convencer um auditório particular e restrito:


“Toda argumentação que visa somente a um auditório particular oferece um inconveniente, o de que o orador, precisamente na medida em que se adapta ao modo de ver de seus ouvintes, arrisca-se a apoiar-se em teses que são estranhas, ou mesmo francamente opostas, ao que admitem outras pessoas que não aquelas a que, naquele momento, ele se dirige”. (2005, p.34)


Diz ainda Perelman:


“O auditório universal é constituído por cada qual a partir do que sabe de seus semelhantes, de modo a transcender as poucas oposições de que tem consciência. Assim, cada cultura, cada indivíduo, tem sua própria concepção do auditório universal, e o estudo dessas variações seria muito instrutivo, pois nos faria conhecer o que os homens consideraram, no decorrer da história, real, verdadeiro e objetivamente válido. (2005, p.37)


Por conseguinte, argumentar perante um auditório particular não é o ideal perelmaniano, vez que oportuniza o surgimento de contradições e incompatibilidades entre os argumentos não destinados a quem estava fora do grupo, desnudando a fraqueza das teses não acolhidas à unanimidade. 


Ademais, ainda segundo o autor, cada orador deve ter seu próprio auditório universal, sempre levando-se em consideração a cultura de cada grupo de ouvintes.


Estes são, em linhas breves e gerais, os principais elementos e características do raciocínio argumentativo, segundo a lição perelmaniana, indispensáveis ao desenvolvimento dos tópicos a seguir.


2.1 GÊNERO EPIDÍCTICO


Dentre os tipos de gênero oratório, além do deliberativo e judiciário, pode-se citar o gênero epidíctico, definido da seguinte forma por Perelman:


“Contrariamente aos debates políticos e judiciários, verdadeiros combates em que os dois adversários procuravam, acerca de matérias controvertidas, ganhar a adesão de um auditório que decidia o desfecho de um processo ou de uma ação por empreender, os discursos epidícticos não eram nada disso. Um orador solitário que, com freqüência, nem sequer aparecia perante o público, mas se contentava em fazer circular sua composição escrita, apresentava um discurso ao qual ninguém se opunha, sobre matérias que não pareciam duvidosas e das quais não se via nenhuma consequência prática.”


A despeito de não relevar, segundo a transcrição acima, qualquer interesse para a argumentação, ainda mais aquela travada no âmbito jurídico, o gênero epidíctico revela-se como técnica argumentativa muito utilizada nos julgados brasileiros.


É que, ainda na lição perelmaniana,


“[…] a argumentação do discurso epidíctico se propõe aumentar a intensidade da adesão a certos valores, sobre os quais não pairam dúvidas quando considerados isoladamente, mas que, não obstante, poderiam não prevalecer contra outros valores que viessem a entrar em conflito com eles. O orador procura criar uma comunhão em torno de certos valores reconhecidos pelo auditório, valendo-se do conjunto de meios de que a retórica dispõe para amplificar e valorizar.” (2005, p. 56/57)


Por tais razões, o discurso epidíctico, como se busca demonstrar, é largamente utilizado nas fundamentações judiciais nos nossos Tribunais.


Observe-se que, ao se valer dos valores comuns para aumentar a intensidade da adesão dos espíritos aos discursos, o orador epidíctico atua de forma semelhante aos juízes nas suas decisões, na medida em que muitas delas são pautadas nestes valores comuns. Citem-se os valores comuns a qualquer sociedade, como a solidariedade, a compaixão, o nacionalismo etc.


É exatamente esta a conclusão do mestre de Bruxelas:


“Os discursos epidícticos têm por objetivo aumentar a intensidade de adesão aos valores comuns do auditório e do orador; seu papel é importante, pois, sem esses valores comuns, em que poderiam apoiar-se os discursos deliberativos e judiciários?” (2005, p.58)


Foi o que ocorreu, em certa medida, na decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da STA nº. 223/PE examinada no item 4 abaixo, como se demonstrará.


3 ESQUEMAS ARGUMENTATIVOS DE PERELMAN


Em tempos em que os julgamentos colegiados são a última instância na vida de um processo, considerando-se o objeto da pesquisa proposta, mister avaliar os conceitos de Perelman sobre a estrutura do argumento. Fixada mais essa premissa, pode-se analisar o discurso argumentativo utilizado pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal.


A despeito de sua íntima e necessária relação com outros argumentos, a análise da estrutura de um único argumento, isoladamente, é capaz de revelar as técnicas argumentativas imbricadas no objeto do presente estudo.


De acordo com o jusfilósofo polonês, os esquemas argumentativos, que nada mais são que lugares da argumentação “…se caracterizam por processos de ligação e de dissociação.” (2005, p. 215) (grifos no original)


Mais adiante ele afirma:


“Estendemos por processo de ligação esquemas que aproximam elementos distintos e permitem estabelecer entre estes uma solidariedade que visa, seja estruturá-los, seja valorizá-los positiva ou negativamente um pelo outro. Entendemos por processos de dissociação técnicas de ruptura com o objetivo de dissociar, de separar, de desunir elementos considerados um todo, ou pelo menos um conjunto solidário dentro de um mesmo sistema de pensamento.” (2005, p.215)


Dentro do grupo de esquemas argumentativos de ligação, têm-se os argumentos quase-lógicos (uma espécie de pensamento formal), os argumentos baseados na estrutura do real (estão conforme a própria estrutura das coisas), estes subdivididos em argumento do caso particular e argumentos de analogia.


Existem, por outro lado, as técnicas de dissociação. Estas “…se caracterizam  mormente pelos manejamentos que introduzem nas noções, porque visam menos utilizar a linguagem aceita do que proceder a uma nova modelagem” (PERELMAN, 2005, p.217).


Em outras palavras: um argumento de dissociação é utilizado para desconstituir a aproximação feita pelo argumento associativo, ressaltando as diferenças entre os elementos, e minimizando as semelhanças.


Oportuno se torna consignar que pode haver a aplicação de mais de um grupo de esquema argumentativo, concomitantemente, ao mesmo caso, uma vez que estes não constituem termos isolados. Ou seja, é possível interpretar um argumento segundo um ou outro esquema, consoante as circunstâncias do caso concreto.


Diga-se ainda, que diante do objeto e da brevidade do estudo, deve-se ter mente que somente as técnicas com alguma pertinência temática serão efetivamente analisadas, começando-se pelos argumentos quase-lógicos.


3.1 TÉCNICAS ARGUMENTATIVAS


3.1.1 Argumentação quase-lógica


A argumentação quase-lógica é assim definida por Chaim Perelman:


“O que caracteriza a argumentação quase-lógica é, portanto, seu caráter não-formal e o esforço mental de que necessita sua redução ao formal. É sobre esse último aspecto que versará eventualmente a controvérsia. Quando se tratar de justificar determinada redução, que não tiver parecido convincente pela simples apresentação dos elementos do discurso, recorrer-se-á o mais das vezes a outras formas de argumentação que não os argumentos quase-lógicos” (2005, p.220).


Trata-se de técnica na qual o raciocínio formal ou matemático deve ser reduzido a esquemas formais específicos que se relacionam à estrutura lógica ou à relação matemática. Tais argumentos lembram os raciocínios formais pelo fato de empregarem uma linguagem natural, ordinária.


Assim, os argumentos quase-lógicos possuem determinada força de convicção, mas são desprovidos de qualquer valor conclusivo. É da relação de associação e contiguidade que estes mantêm com o argumento convincente que surge o poder de convencimento destes argumentos.


Esta é a lição de Perelman: “[…] os argumentos quase-lógicos têm pretensão a certa validade em virtude de seu aspecto racional, derivado da relação mais ou menos estreita existente entre eles e certas fórmulas lógicas ou matemáticas […]” (2005, p.297).


Portanto, são quase-lógicos porquanto se considerados lógicos, não teriam, na verdade, validade ou certeza, mas enquanto tipo de raciocínio dialético, a validade decorre do conteúdo do argumento e não da sua forma.


Para Perelman, contradição e incompatibilidade são esquemas argumentativos que tornam um conjunto de proposições incoerente. Ainda segundo o jusfilósofo, as proposições só podem ser ditar contraditórias quando uma, ao negar a outra, possa ser aplicada isoladamente à situação, de modo que a outra também o possa, igualmente (2005, p.228).


É dizer: numa dada situação jurídica em que uma ou mais regras possam ser igualmente aplicadas, haverá incompatibilidade entre elas, na medida em que as mesmas se excluam. Ou seja, existirá incompatibilidade jurídica quando ambas possam ser aplicadas ao caso concreto.


Para sanar tal incoerência, indica o autor, torna-se necessário a escolha de uma delas para remover a incompatibilidade, ou então, o sacrifício de ambas.


De acordo com Perelman, a solução das incompatibilidades pelo homem prático só surge quando as mesmas se apresentam no caso concreto:


“É normalmente a atitude do juiz que, sabendo que cada uma das suas decisões constitui um precedente, procura limitar-lhes o alcance o quanto puder, enunciá-las sem ultrapassar em seus considerandos o que é necessário dizer para fundamentar sua decisão, sem estender suas fórmulas interpretativas a situações cuja complexidade poderia escapar-lhe” (2005, p. 225).


Nesse sentido, para evitar futuras incompatibilidades, o homem prático (o juiz) se limita a solucionar o problema sem envolver-se demais, sem vincular-se ao decidido, pena de não poder adaptar-se ao imprevisto e ao futuro, alheio aos riscos de praticar uma incompatibilidade.


Contudo, ainda que o homem prático desenvolva tal raciocínio e evite a incompatibilidade, é preciso dizer que a supressão atual da incompatibilidade pode vir a gerar outras incompatibilidades até mais graves.


À guisa de exemplo, vejamos o que diz a Constituição Federal. Uma decisão “econômica” demais na fundamentação, fatalmente cria uma incompatibilidade com o disposto no art. 93, IX, da CF/88, verbis:


“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: […]


IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)


Por outro lado, torna-se interessante consignar a modalidade de incompatibilidade citada por Perelman chamada “retorsão”.


Trata-se da situação na qual “o ato empregado para atacar uma regra é incompatível com o princípio que sustenta esse ataque” (2005, p.231).


Como forma de ilustrar tal incompatibilidade, o autor polonês relembra o caso cômico em que, dentro de um teatro, os espectadores se preparavam para cantar o hino francês, a Marselhesa, sendo interrompidos por um guarda local, ao argumento (incompatível) de que havia um cartaz detalhando tudo que era permitido, ao que foi interpelado por um espectador: “E o senhor está nesse cartaz?” (2005, p.232).


Assim sendo, ao optar por uma regra, o orador não pode entrar em contradição com o argumento. Em outras palavras: a proposição empregada para impugnar uma regra não deve ser incompatível com o motivo dessa impugnação, sob pena de parecer ridículo aos olhos do auditório.


Logo, o juiz, homem prático segundo Perelman, não poderia, jamais, ao julgar antecipadamente um processo (aplicando o art. 330, do Código de Processo Civil), reconhecer a procedência da ação por ausência de provas das alegações da parte ré.


Ora, se a regra escolhida (art. 330, do CPC) determina que só deve haver julgamento antecipado da lide quando não houver provas a produzir (ou nos casos de revelia), dar procedência a demanda ao argumento de que o sujeito passivo não provou o que alegou (fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor), implica na incompatibilidade que conduz o julgador ao ridículo perelmaniano.


Neste sentido, a jurisprudência pátria já se manifestou:


PROCESSO CIVIL – RESCISÃO CONTRATUAL – JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE – APELAÇÃO QUE INVERTE A SENTENÇA POR FALTA DE PROVA PELA RÉ – CONTRADIÇÃO – CERCEAMENTO DE DEFESA – OCORRÊNCIA – NULIDADE DA SENTENÇA – REABERTURA DA FASE COGNITIVA – PROVIMENTO. 1 – Consoante entendimento desta Corte, ocorre cerceamento de defesa quando, proferido julgamento antecipado da lide, admite-se que não há prova do alegado pela ré. 2 – Recurso especial conhecido e provido para cassar a decisão que julgou antecipadamente a lide, oportunizando a produção de provas, reabrindo-se, assim, a instrução processual?.” (REsp898123/SP, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em 13.02.2007, DJ 19.03.2007 p. 361).


Nesse ínterim, o ridículo para Perelman é a principal arma da argumentação, pois ao combater uma regra de modo inconsciente e infundado, ou ignorando o que a mesma preceitua e suas consequências, o orador se expõe e compromete toda a sua pessoa (2005, p. 233).


A jurisprudência está pejada de casos em que os (maus) magistrados, a despeito do ofício que lhes cabe, acabam se opondo de forma injustificada à norma vigente.


Claro que, para tanto, lhes assiste o princípio do convencimento motivado, mas dentro de um órgão colegiado e aos olhos do auditório, tal medida é demasiadamente temerária e desaconselhável. A repreensão dos seus pares inevitavelmente lhe descredenciará ao título de orador convincente (ou persuasivo).


A argumentação quase-lógica impede tais situações de modo que o argumento judicial não deve contrariar a regra eleita, pena de ser considerado ridículo.


Outra regra que contêm inegável aspecto de racionalidade é a regra de justiça. Segundo Perelman, ela “… requer a aplicação de um tratamento idêntico a seres ou a situações que são integrados numa mesma categoria”. (2005, p. 248)


Entretanto, os objetos sempre serão distintos em algum aspecto, e nesse caso, deve-se indagar se as distinções são relevantes o suficiente para mudar sua de categoria.


De todo modo, havendo a identidade de categoria dos objetos, é a regra de justiça quem viabiliza utilizar, sob forma de argumento quase-lógico, o precedente.


Em razão disso, casos passados serão essenciais para o julgamento de casos futuros. Sem dúvidas, a regra de justiça é concretizada quando o precedente é utilizado adequadamente.


Nos casos em que não seja possível confrontar os objetos de julgamento, o homem prático deve se valer dos argumentos de transitividade assim conceituados por Chaim Perelman:


“A transitividade é uma propriedade formal de certas relações que permite passar da afirmação de que existe a mesma relação entre os termos a e b e entre os termos b e c, à conclusão de que ela existe entre os termos a e c: as relações de igualdade, de superioridade, de inclusão, de ascendência são relações transitivas.” (2005, p. 257)


Nessa esteira, o argumento da transitividade na esfera jurídica, é largamente aplicado no controle de constitucionalidade. Basta imaginar uma norma legal que tenha seu fundamento de validade na Constituição Federal.


Caso uma decisão judicial venha a violar a aludida norma infra-constitucional, pode-se concluir que ela também viola a Constituição, ainda que reflexamente ou de forma indireta. É, pois, hipótese de impossibilidade de confrontar normas com hierarquia definida para adotar-se o argumento de transitividade.


Uma última técnica formatada sob o signo de argumento quase-lógico é a regra do sacrifício.


Em verdade, trata-se de um argumento comparativo, na medida em que pondera aquilo que se está disposto a abrir mão com o sacrifício necessário para alegar algo.


Nas palavras do jusfilósofo:


“O argumento do sacrifício, utilizado de uma forma hipotética, pode servir para evidenciar o valor que se concede a alguma coisa; mas com muita freqüência é acompanhado da afirmação de que semelhante sacrifício, que se estaria prestes a assumir, é ou supérfluo, porque a situação não o exige, ou ineficaz, porque não permitiria chegar ao objetivo almejado.” (2005, p. 285)


3.1.2 Argumentação baseada na estrutura do real


Os argumentos quase-lógicos, como visto acima, surgem da relação íntima que mantêm com certas fórmulas lógicas e matemáticas (apesar de não simbolizar qualquer uma delas).


De outra parte, os argumentos baseados na estrutura do real têm seu fundamento na ligação que pode ser feita entre o real e os juízos admitidos (ou que se busca admitir), como ocorre na relação de causa e efeito.


Assim, os argumentos baseados na estrutura do real podem ser classificados de acordo com a realidade que lhes é afeta. Como bem salienta Perelman:


“O que nos interessa aqui não é uma descrição objetiva do real, mas a maneira pela qual se apresentam as opiniões a ele concernentes; podendo estas, aliás, ser tratadas, quer como fatos, quer como verdades, quer como presunções”. [sic] (2005, p. 298)


Dentre esses argumentos fundados no real, cumpre trazer à baila o argumento pragmático. A sua definição gira em torno da relação entre o acontecimento (causa) e as consequências (efeitos) do mesmo.


Dessa forma, parafraseando Locke, citado por Perelman, em matéria de lei, a boa razão é alegar os bens ou os males que essa lei tende a produzir (2005, p. 303). Eis um exemplo de um argumento pragmático, ao vincular a consequência legal, à sua razão boa ou má.


Nesse sentido, pode-se dizer que o Ministro do Supremo Tribunal Federal que fundamenta sua decisão nos efeitos benéficos que a lei ou a Constituição preceituam, utiliza de um argumento baseado na estrutura do real, da espécie argumento pragmático.


Em remate, o argumento pragmático permite apreciar a legislação reportando-se às suas consequências, ou seja, a norma será boa se prever consequências favoráveis e será ruim se prever consequências desfavoráveis.


Os argumentos de superação, por sua vez, são aqueles que “[…] insistem na possibilidade de ir sempre mais longe num certo sentido, sem que se entreveja um limite nessa direção, e isso com um crescimento contínuo de valor” (PERELMAN, 2005, p. 327).


Ainda de acordo com o jusfilósofo polonês, esta técnica é frequentemente utilizada para transformar argumentos contra em argumentos pró, a fim de demonstrar que o obstáculo, se superado, é um meio para se alcançar um nível superior (2005, p. 329).


Um argumento muito difundido no âmbito jurídico, derivado do argumento de prestígio, é o argumento de autoridade. Trata-se do uso dos atributos de uma pessoa ou um grupo como prova em favor de uma tese. É dizer, quanto mais importante for uma autoridade, mais indiscutíveis serão suas palavras.


Malgrado a importância do argumento de autoridade na doutrina e na jurisprudência, não se pode perder de vista que seu valor coercitivo é limitado e falível. Tudo porque a própria autoridade, em si, pode ser questionada, exempli gratia, quando se revelar contraditória ou ridícula.


Essa autoridade pode também ser questionada caso venha a se opor aos fatos, o que não é admitido, inclusive por Perelman:


“Um fato é aquilo que se impõe a todos; nenhuma autoridade pode nada contra ele. Portanto, tornar algo, que deveria ser independente da pessoa, dependente da qualidade de quem o afirma, é abalar esse estatuto de fato.”  (2005, p. 356)


Outro argumento baseado na estrutura do real muito comum no Direito é a analogia, que leva o seguinte conceito perelmaniano:


“Em direito, o raciocínio por analogia propriamente dita se limita, ao que parece, ao confronto, acerca de pontos particulares, entre direitos positivos distintos pelo tempo, pelo espaço geográfico ou pela matéria discutida”. (2005, p. 426)


O grande mérito da analogia na argumentação é viabilizar prolongamentos entre a situação paradigma e a situação paragonada.


Dessa maneira, o orador direciona o pensamento do auditório ao relacionar a regra aplicável aos novos casos. Trata-se, sem dúvidas, de uma forma eficaz de persuasão uma vez que embasada no conhecimento prévio da situação paradigma.


Logo, o auditório, tendo conhecimento da situação prévia, se sentirá (ainda que timidamente) propenso a aderir às razões da situação sob análise, diante das semelhanças apontadas entre ambas.


Finalmente, uma vez estabelecidas as premissas do discurso argumentativo ao longo dos itens acima, adentra-se na análise dos julgados do Supremo Tribunal Federal onde identificou-se a aplicação de algumas das citadas técnicas argumentativas.


4 ANÁLISE DOS VOTOS DOS MINISTROS DO STF NA STA nº. 223/PE


O caso que envolveu o julgamento da suspensão de tutela antecipada, objeto de análise, pode ser resumido da seguinte maneira: um jovem pernambucano ficou tetraplégico em decorrência de um assalto na cidade do Recife, quando contava com apenas 25 (vinte e cinco) anos de idade. Daí surgiu a necessidade de realizar uma cirurgia para corrigir as seqüelas da lesão à coluna cervical causadas pelo disparo da arma de fogo.


O Tribunal de Justiça do Pernambuco deferiu antecipação dos efeitos da tutela nos autos da ação indenizatória, para que aquele membro federado pagasse todas as despesas médicas para realização da cirurgia de implante de um marcapasso diafragmático muscular (DMU) ao custo de cerca de US$ 150 mil dólares.


Esta decisão local originou o ajuizamento da suspensão de tutela antecipada nº. 223/PE, cujos votos ora se analisam.


4.1 ELLEN GRACIE


Em 12 de março de 2008, a relatora da aludida contra-cautela, ministra Ellen Gracie, então presidente do STF, deferiu o pedido para suspender a decisão do TJ-PE, nos seguintes termos:


“Em juízo mínimo de delibação, conforme autoriza a jurisprudência pacificada do Supremo Tribunal Federal (SS 846-AgR/DF, rel. Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 29.5.2005; SS 1.272-AgR/RJ, rel. Ministro Carlos Velloso, DJ 18.5.2001, dentre outros), entendo que a decisão em tela, ao determinar, monocrática e incidentalmente, o imediato pagamento da importância de R$ 279.00,00 (duzentos e setenta e nove mil reais), descumpriu o que dispõe o art. 100 da Constituição da República.


Ademais, a determinação judicial para pagamento imediato de todas as despesas necessárias para a realização da cirurgia pleiteada, inclusive com o repasse direto do valor depositado pelo Estado requerente à conta bancária no exterior do médico eleito pelos familiares do impetrante (Ofícios de fls. 418 a 424), contraria o disposto no artigo 2º-B da Lei n.º 9.494/97, que proíbe a execução provisória de julgados contra o Poder Público. 


É dizer, no presente caso, encontra-se devidamente demonstrada a ocorrência de grave lesão à ordem pública, considerada em termos de ordens jurídico-constitucional e jurídico-processual.


Ademais, cumpre ter presente que o procedimento pretendido pelos familiares do impetrante e desenvolvido por um grupo de pesquisadores da Universidade de Yale – EUA, para implantação de um Marcapasso Diafragmático Muscular (MDM), conforme informações e laudos médicos apresentados pelo Secretário Executivo de Vigilância e Saúde do Estado de Pernambuco, “encontra-se em fase experimental e ainda não foi aprovado pelo FDA – órgão americano que regulamenta o uso de drogas, equipamentos e materiais na área médica” (fls. 339/346).


Há que se considerar, finalmente, que a decisão objeto do presente pedido de contracautela representa grave lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa, porquanto permite a realização de cirurgia de alto custo não contemplada no Sistema Único de Saúde (fl. 339), sem qualquer instauração de procedimento administrativo ou avaliação médica credenciada para tanto”.


Em primeiro lugar, diga-se que a Ministra aplicou a regra da justiça, na medida em que, ao admitir uma identidade no objeto sub judice e aqueles já levados a efeito pela Corte, citou vários precedentes. Trata-se de um argumento quase-lógico, fundado no princípio da isonomia.


Por outro lado, a Ministra indicou precisamente a incompatibilidade entre a decisão (e seu fundamento) recorrida e o quanto dispõe a legislação aplicável. Trata-se, novamente, do uso de um argumento quase-lógico, qual seja, demonstrar a incoerência entre duas proposições, dissociando a relação que poderia haver entre elas.


No entender da Ministra, quando houve a determinação do Tribunal de Justiça de Pernambuco para o pagamento imediato da quantia pecuniária sem o trânsito em julgado da decisão, houve violação à regra da lei federal nº. 9494/97. Ela fundamentou seu voto na incompatibilidade detectada no acórdão recorrido. Com isso, pode-se dizer que a Ministra se valeu de um discurso mais analítico, lastreada no pensamento da escola positivista, na medida em que subsumiu o caso à norma.


4.2 CELSO DE MELLO


Em 14 de abril de 2008, foi julgado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, o agravo regimental interposto pelo jovem vitimado, cujo primeiro voto de dissidência foi o do Ministro Celso de Mello.


Ao divergir do voto da relatora-presidente, o Ministro se valeu de argumentos dissociativos, na medida em que buscou minimizar a violação à ordem pública, ao passo que maximizava os princípios constitucionais que não guardam similitude com a lei federal invocada pela ministra-relatora.


O Ministro, por meio de voto fortemente marcado pela emoção, consignou o seguinte:


“Se grave lesão no caso há, não é à ordem pública, o que há é uma grave lesão ao princípio da dignidade da pessoa humana; uma grave lesão ao direito à busca da felicidade, que é um consectário desse postulado.”


E concluiu da seguinte forma:


“Honestamente, senhora presidente, eu rejeito – não é uma expressão técnica, mas eu rejeito por ser uma expressão que diz tudo aquilo que penso e sinto – a pretensão de contracautela deduzida pelo estado de Pernambuco e dou provimento, sim, ao recurso de agravo interposto por esta pessoa totalmente desamparada. Quem salva uma vida, salva toda a humanidade”.


Observe-se que a dissociação se deu ao ressaltar o princípio da dignidade da pessoa humana (enquanto postulado maior que a lesão à ordem pública), e os efeitos e consequências dele decorrentes, como a busca pela felicidade.


Dito de outro modo, o Ministro partiu inicialmente da interpretação do texto Magno, hierarquicamente superior aos comandos infralegais, adotando o argumento quase-lógico da transitividade, ante a flagrante superioridade de um objeto legal sobre o outro.


Pode-se dizer, ainda, que houve a utilização do princípio da sinceridade, de Robert Alexy, na medida em que o Ministro lastreou seu voto no que ele realmente acredita, ou seja, que a busca da felicidade não pode ser interrompida por razões formais (art. 2ᵒ-B da Lei nº. 9.494/97) ou orçamentárias.


Na segunda passagem, pode-se dizer que o argumento do Ministro Celso de Mello, enquadra-se no chamado gênero epidíctico. Como ressaltado no item 2.1, tal argumento ressalta os valores comuns, ínsitos a toda a humanidade, para aumentar a adesão máxima dos espíritos ao discurso do orador. O Ministro valeu-se da retórica clássica para amplificar e valorizar tais valores.


Posta assim a questão, é de se dizer que está mais que evidenciado o apelo que o orador faz ao auditório invocando sentimentos como o respeito à vida humana, a misericórdia e comiseração ao próximo.


Por fim, diga-se que o decano, também valeu-se, no embate argumentativo de convencimento dos seus pares (e, porque não, do auditório universal) da regra do sacrifício. Neste sentido, o sacrifício da perda de uma vida justificaria sim a violação de um dispositivo legal.


4.3 GILMAR MENDES


O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, no seu discurso argumentativo registrou sua indignação com o Estado de Pernambuco que, em atitude procrastinatória contínua, reteve os autos, gerando medida cautelar de busca e apreensão.


O Estado de Pernambuco realizou o depósito, dando a impressão que cumpriria a decisão e, depois, em atitude contraditória, buscou o bloqueio da quantia.


Pode-se dizer que o magistrado da Excelsa Corte Mendes ressaltou o papel do ridículo na sua argumentação, ao afirmar que “essas não são atitudes de lealdade por parte do ente estadual”.


Desta feita, ao agir paradoxalmente (depositando o valor e depois requerendo a suspensão do pagamento), o ente federado terminou originando mais um argumento desfavorável ao seu pleito suspensivo.


5. DISCURSO ARGUMENTATIVO: VALIDADE e JUSTIÇA


Nota-se que os votos acima dos Ministros do Supremo Tribunal Federal ao julgar a suspensão de tutela antecipada encampam algumas das regras do discurso racional, tendo saído vencedora a tese de Celso de Mello e Gilmar Mendes. A validade e justiça desta decisão serão apreciadas a seguir.


Primeiramente, é preciso registrar que o desfecho do julgamento reformou o entendimento anterior da Corte que, em franca evolução jurisprudencial, assegurou uma tutela maior ao direito a segurança pública, reiteradamente negligenciado pelo Estado de Pernambuco.


Foi essa omissão (reiterada por muitos governos anos a fio) na prestação do serviço público de segurança que acabou, aos olhos dos Ministros, ocasionando as lesões do jovem pernambucano.


Isso demonstra que no direito, de fato, não existem soluções definidas a priori e que, até mesmo um precedente pode deixar de satisfazer as necessidades argumentativas no caso concreto.


Relembre-se que ao homem prático, na lição de Perelman, só cumpre decidir aquilo que lhe é posto, sem exageros. Tal atitude tem o condão de evitar futuras incompatibilidades, bem como viabilizar adaptações no futuro.


Rememore-se ainda a máxima de que o fim de um julgamento jamais pode ser a solução coercitiva de um sobre o outro, afinal coerção não condiz com discurso argumentativo.


Seguindo a lição perelmaniana, ao analisar a argumentação dos Ministros nos votos acima, indaga-se: quem é o auditório desse julgado? Seria ele o auditório universal ou somente um auditório particular?


Têm-se conclusões distintas caso se entenda que o auditório desta decisão é a sociedade brasileira ou pensadores e profissionais do Direito.


Com efeito, deve-se afirmar que o auditório do Ministro Celso de Mello é a sociedade brasileira.


Conhecedor das mazelas que assolam o país inteiro, de norte a sul, bem como da omissão dos governantes em implementar políticas sociais efetivas (segurança pública, exempli gratia), a tese do Ministro Celso de Mello aplicou o gênero epidíctico de maneira muito eficaz, maximizando a adesão dos espíritos.


Não há dúvidas de que haverá ampla aceitação social aos argumentos levantados pelo Ministro em seu discurso racional, em especial se considerado o impacto social que o crime provocou, com ampla cobertura na mídia, tendo inclusive sido veiculado no Jornal da Globo, em março de 2008, com repetição em dezembro do mesmo ano sob o titulo “Batalha pela Justiça”.


Por outro lado, considerando-se um auditório particular, qual seja, dos demais Tribunais e profissionais envolvidos com o Direito, deve-se dizer que o argumento da Ministra Ellen Gracie seria o mais “perfeito tecnicamente”, com mais poder de persuasão para atrair adesão dos espíritos.


Pagar a médicos estrangeiros a vultosa quantia de R$ 279.000,00 (duzentos e setenta e nove reais), sem qualquer garantia da prestação do serviço (experimental, ressalte-se) corrobora a tese de lesão à economia pública, ensejando a aplicação da leis federais citadas pela Ministra.


É que o destacamento de tal quantia ao atendimento de um único enfermo (não se está, aqui, desprezando a vida humana em qualquer sentido) certamente prejudicará o atendimento da saúde básica a tantos outros brasileiros, pois os recursos orçamentários não são infinitos, especialmente no âmbito estadual.


Contudo, há pontos frágeis no voto da Ministra, data máxima vênia: primeiro, porquanto no ordenamento brasileiro, no tocante ao direito fundamental da saúde, não há exigência da aprovação de órgão regulador estrangeiro no procedimento escolhido.


Tampouco, a omissão do procedimento cirúrgico nos regulamentos do SUS pode ser impedimento para a efetivação do direito à saúde, sob pena de tornar inócuo o acesso universal e igualitário que trata o art. 196 da Constituição Federal.


De todo modo, pode-se dizer que o embate entre os argumentos acima é árduo e de primeira escol, o que revela um teor saudável das decisões daquela Corte, quando deixado de lado questões políticas pontuais.


Ao final, prevaleceram os argumentos do Ministro Celso de Mello, uma vez que no julgamento do agravo regimental interposto pelo jovem vitimado pela violência das grandes cidades, restou vencida a Ministra-Presidente-relatora corroborando a inexistência de hierarquia entre os seus pares, tendo o Tribunal, por maioria dado provimento ao recurso:


“Decisão: O Tribunal, por maioria, vencida a Presidente, Ministra Gracie (relatora), deu provimento ao recurso de agravo. Lavrará o acórdão o Senhor Ministro Celso de Mello. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito. Plenário, 14.04.2008.”


Ainda que se diga que o julgamento não reflete a decisão mais verdadeira ou mais justa (considerando-se os outros brasileiros que serão prejudicados pela ausência de recursos em determinados setores, como a saúde), a conclusão que se chega é de que foi tomada a solução mais correta, nas lições do discurso argumentativo, uma vez que partiu do consenso dos membros da Corte, após cativamente embate racional.


6. CONCLUSÃO


Com viso na persecução de uma ordem jurídica segura e moderna que assegure o exercício dos direitos sociais e individuais fundamentais, como a igualdade, o bem  estar, a liberdade, a segurança, o desenvolvimento e a dignidade, a saúde e a educação, é imprescindível que exista um discurso argumentativo público e democrático entre os membro do Judiciário.


No particular, a omissão do Executivo em efetivar a segurança pública culminou numa decisão do Judiciário para fazê-lo. O tema abordado envolve questões de indiscutível relevância e aplicação social.


Com efeito, a sensação que se tem no Brasil atual é que o único Poder da República capaz de corrigir tais vícios que insistem em assolar o povo brasileiro é o Judiciário.


Não obstante, os aspectos deste controle devem ser comedidamente fixados, para que o Poder Judiciário, ora tido como o reparador de equívocos, guardião da Ordem e Progresso, não se transforme em vilão usurpando do controle das políticas públicas e do orçamento público, invadindo esfera que não lhe é afeta pela Constituição Federal.


Assim, o direito público moderno, que admite inovações nas formas de interpretação de antigos dogmas jurídicos ao passo que sugere soluções para os problemas atuais, é indispensável para uma caminhada segura e célere ao progresso material e à erradicação dos bolsões de pobreza.


As técnicas já conhecidas de ponderação e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade são fruto de exercício interpretativo, mas não são sólidos o suficiente para assegurar que o caminho escolhido está correto.


Daí porque o pensamento argumentativo mostra-se como o mais democrático a ser seguido. Em verdade, trata-se de um pulverizador de possibilidades, na medida em que rechaça a mera subsunção da norma aos fatos e abre o diálogo para outros possíveis debates racionais. Essa ampliação das “escolhas” possíveis se aproxima da aplicação ideal do Direito ao caso concreto, segundo a teoria argumentativa de Perelman.


Diante do exposto, restou afirmado, no presente trabalho, que o discurso argumentativo cumpre seu papel precípuo quando viabiliza uma saída (dentre as varias possíveis) jurídica que atrai a maior adesão dos Ministros, convencidos racionalmente a aderir aos argumentos dos outros, preservando-se o livre convencimento motivado nos votos.


Vê-se que até no âmbito argumentativo, a democracia se revela como pilar de sustentação do Estado de Direito ideal. O descomprometimento com a necessidade de se adotar cada vez mais, o raciocínio dialético nas atividades do Judiciário pode causar efeito inverso e nocivo, devendo ser aniquilado e combatido por todos, sob pena de regredirmos à tirania.


 


Referências

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BETTI, Emilio. Interpretação da lei e dos atos jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra, Portugal: Almedina, 2002.

ECO, Humberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I.  8.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 3ed. Petrópolis: Vozes, 1989.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

PERELMAN, Chaim. Tratado da argumentação – a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

SOUZA, Silvano de (trad). Coleção Os Titãs. Volume X: Titãs da Oratória. 2.ed. Rio de Janeiro: livraria “El Ateneo” do Brasil.

STF. A Constituição e o Supremo. Disponível em <www.stf.gov.br/portal/constituicao> Acesso em: 17 de set. de 2008.

STF. Informativos. Disponível em: <www.stf.gov.br> Acesso em: 20 de ago. de 2008.

STRECK, Lênio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas – Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.


Nota:

[1] Orientador desta monografia: Dr. Saulo Bahia Casali

Informações Sobre o Autor

Roberto Mizuki Dias dos Santos

É graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (2005.2), Especialista em Direito do Estado pela Unyahna/BA (2007) e Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (linha de pesquisa: Constituição, Estado e direitos fundamentais). Advogado. Procurador do Estado do Piauí.


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Equipe Âmbito Jurídico

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