Resumo: A lógica de opressão das estruturas soberanas encontra no Direito Moderno a sua legitimidade. A pesquisa disposta pretende, a partir de uma leitura crítica do romance “O Processo” de Franz Kafka, investigar os limites históricos e funcionais do Estado de Direito, denunciando a burocratização da vida simbolizada pelos labirintos kafkianos, e as imposturas legais, extrapolando o conhecimento literário, engajando tal obra com a realidade jurídica contemporânea. O Estado de Exceção não declarado, tornando regra, constitui-se sustentáculo do ordenamento jurídico hodiernamente, revelando as farsas judiciais e suas contradições, identificando a parábola Diante da Lei, contida no romance, como paradigma da sociedade atual, reconhecendo uma humanidade expropriada de toda existência e seu vínculo com o Direito, que será fio condutor para se fazer reflexões acerca do esvaziamento da lei e ainda sobre noções sócio-políticas – como Estado, Direito e Justiça – a fim de propor perspectivas emancipatórias para o Direito e, sobretudo, para a sociedade.[1]
Palavras-chave: O Processo; Kafka; Estado de Exceção; Lei.
Abstract: The oppression logic of sovereign structures found in modern law its legitimacy. The research aims willing from a critical reading of the novel "The Trial" written by Franz Kafka, to investigate historical and functional limits of the rule of law, denouncing the bureaucratization of life, symbolized by the Kafka labyrinth, and the legal impostures, extrapolating the literary knowledge, this work engaging with contemporary legal reality. The state of undeclared exception, making rule was established as mainstay of the legal system in our times, revealing the judicial farce and its contradictions, identifying the parable Before the Law, contained in the novel, as a paradigm of contemporary society, recognizing one expropriated humanity all existence and its link with the law, which will thread to make reflections on the emptying of the law and also on socio-political concepts – as State Law and Justice – to propose emancipatory prospects for the law and, above all, for society.
Keywords: The Trial; Kafka; State of Exception; Law.
Sumário: 1 Introdução. 2 Tudo que é sólido se desvanece no ar: a falência do Direito Moderno. 3 Titorelli e a deturpação do real: desnudando o conceito de justiça. 4 O Direito como motor da emancipação da sociedade: por um outro Direito. 5 Considerações finais. Referências bibliográficas.
1 Introdução
O mundo enigmático de Franz Kafka, situado no final do século XIX e início do século XX, propõe uma catarse de meditação conjunta, promovendo reflexões acerca da própria condição humana perante a Modernidade, cercada de culpa e burocracia. Esse universo moralmente sedativo que o homem moderno moldou – e por ele foi moldado – o transpôs para um estado de coisas que consumiu seu direito de existir, tornando-o mera engrenagem do sistema. Valendo-se disso, o romance kafkiano “O Processo” nos traz uma (re)discussão dos limites históricos e funcionais do Estado de Direito na Modernidade, e a compreensão da burocratização da vida do homem moderno, a situação trágica e sua relação com o ordenamento jurídico, explorando os efeitos da dessubstancialização da lei e as farsas judiciais na sociedade moderna, buscando-se flagrar um mosaico estilhaçado de uma incompreensível regra geral.
No primeiro tópico esboçarar-se-á o percurso do Direito emergido das revoluções burguesas no século XIX, analisando o aparelho judicial e suas contradições na modernidade, reconhecendo os campos de exceção promovidos pelo sistema que coisificam aqueles que buscam a garantia de uma lei não mais potente, vazia de sentido, tornando-se apenas engrenagens de um mecanismo que mal conhecem, demonstrando a falência do ordenamento jurídico, um espelho da própria crise do homem moderno. O Processo kafkiano, perpassando o mundo absurdo do estado de exceção flagrado através de um complicado jogo de estranhamento, revelará o caráter despótico das instâncias jurídicas e a impostora lei e sua inatingibilidade, fazendo uso da parábola contida no romance – Diante da Lei.
O protagonista do romance desperta para uma realidade absurda e desesperadora: “Alguém deveria ter contato mentiras a respeito de Joseph K., pois, não tendo feito nada de condenável, uma bela manhã ele foi preso” (1997, p. 7). Infiltrando-se em um bailar de incertezas, K. nos permite refletir sobre a acepção de justiça pelo Direito Moderno, adentrando os corredores sombrios da modernidade a fim de conhecer a suplantação do Estado de Direito pelo Estado de Exceção, ainda que camuflado. Partindo disso, compilaremos, no segundo tópico, os conceitos circunscritos na relação apresentada no romance kafkiano entre Estado de Direito e Estado de Exceção.
Adiante, esta pesquisa trará, em seu terceiro tópico, uma abordagem acerca dos fins do Direito moderno e os meios adotados, as deformações que ele carrega constituindo reflexos da própria fragmentação da vida do homem moderno, repensando o Direito e seu tempo histórico, possibilitando a efetivação dos princípios humanistas proferidos no discurso jurídico, tornando possível, pois, visualizar um outro Direito.
2 Tudo que é sólido se desvanece no ar: a falência do Direito Moderno
“A ordem jurídica é a mais excelente das tragédias.” Platão
A partir das Revoluções Burguesas, o poder absolutista dos reis, a organização estamental e os estatutos jurídicos especiais foram extinguidos. As leis ganharam uma nova roupagem, pautadas agora no princípio da igualdade – as normas jurídicas valeriam para todos – , liberdade – o direito regia homens livres (dentro de seus limites) – e fraternidade, eis o momento em que os princípios revolucionários franceses conquistaram espaço no discurso jurídico. Todavia, a concepção liberal de igualdade formal passou a ser relativizada, uma vez que o ideal de igualdade não mais atraía tanto quanto a início. Percebeu-se que a reação contra os odiosos privilégios da nobreza e do clero na sociedade pós-feudal apenas legitimou um outro sistema que ofertaria privilégios semelhantes a um outro grupo social, naturalizando esse sistema alienante que tornou supérfluo o próprio ser humano. E é nesse contexto que o Direito Moderno começa a se desvanecer no ar.
Balizado pelo movimento humanista e racionalista, o Direito Moderno rompeu com o pensamento místico e religioso em um solo onde o feudalismo degradou-se e germinava um outro sistema – o Capitalismo. É evidente que as concepções de direito e justiça não permaneceriam refratárias às mudanças advindas do homem renascentista e, assim, o ordenamento jurídico e a sociedade remodelaram-se, incorporando o pluralismo político, o cientificismo e todos os valores dessa revolução cultural.
Essa nova perspectiva histórica revelou não apenas a positividade dos ideais burgueses absorvidos, mas tornou-se, notadamente, a representação dos oprimidos e alienados pelo sistema econômico brutal consolidado, que dissolveu os homens em engrenagens burocratizadas de vida própria. Houve, então, um confronto entre o culto à razão trazida pelos ideais iluministas e a tecnização da razão, denunciando a lógica cartesiana e a própria instrumentalização do ser humano, flagrando as ficções do Direito moderno imerso em contradições substanciais que impuseram ao homem moderno uma forma coisificada de existir e, simultaneamente, a dessubstancialização da lei, em que esta vige, porém, esvaziada de qualquer sentido. Constata-se que há uma verdadeira crise no Direito Moderno, expressa no romance kafkiano e observada por Wolkmer ao asseverar que “Todos os primados do Direito chamado moderno, seus fundamentos, o direito individual como direito subjetivo, o patrimônio como bem jurídico, a livre manifestação da vontade, estão abalados, sendo tão evidente a crise do Estado moderno e de seu direito que não há mais quem defenda a sua manutenção tal como está” (WOLKMER, 2006, p. 43).
Tal crise permeia toda a narrativa kafkiana, que segue em torno do desconhecimento da pretensão da ação ajuizada bem como de seu autor. Vê-se o velamento da lei e de todos os valores renascentistas que há pouco emergiram e que, agora, permanecem ocultos pelas arbitrariedades do poder legitimado por uma lei sem face. O sistema jurídico moderno passa por ficções jurídicas para efetivar interesses particulares, soando como um ataque aos próprios ideais que o consolidou.
Sob a pele da ingenuidade, o personagem da mencionada obra, K., ilustra bem o homem “emancipado pela razão” que digere sem pensar a gama de informações lançadas pelo sistema doutrinador que o retifica. A lógica do medo perfaz todo o trajeto de K. em suas tentativas de alcançar a lei. A lei que culpa, é oculta; o processo posto tornou-se um verdadeiro desprocesso imposto. Relembrando a Pré-história e as barbáries dessa época, as farsas judiciais legitimam arbitrariedades em nome de um poder, que pune não mais sob suplícios, porém, pune melhor, atingindo não somente o corpo mas, principalmente, a alma, uma nova punição que penetra todo corpo social, tal como sublinha Foucault ao dizer que “Durante todo o século XVIII, dentro e fora do sistema judiciário, na prática penal cotidiana como na crítica das instituições, vemos formar uma nova estratégia para o exercício de castigar. E a ‘reforma’ propriamente dita, tal como ela se formula nas teorias de direito ou que se esquematiza nos projetos, é a retomada política ou filosófica dessa estratégia, com seus objetivos primeiros: fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor, punir talvez com severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade, inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir”(FOUCAULT, 1997, p.69).
A lei, legitimando o poder de punir, apropria-se da punição a fim de estabelecer um controle sobre o corpo do sujeito, infiltrando-se neste e o docilizando. Como uma denúncia do Direito Moderno reconhecido pelas garantias individuais e coletivas baseadas nos ideais iluministas, K. representa o homem moderno assolado por uma culpa inexplicável projetada por uma autoridade impessoal que aniquila sua existência através de uma lei velada pela burocracia e inatingível por indivíduos comuns, que incorporam essa culpa e, absurdamente, aceitam sua punição. Curioso notar que todo o romance kafkiano é tomado por uma frieza e pelo absurdo que aludem exatamente à realidade do homem moderno. Kafka faz uso de toda a matéria podre da sociedade para revelar a realidade e suas contradições, sem otimismo, porém, trazendo uma reflexão: combater o mundo!
O processo de burocratização tornou-se caracterizador da modernidade, atingindo não apenas os âmbitos sociais, mas o interior do homem moderno. K. adentra os tribunais labirínticos e nos permite uma visualização da máquina estatal que estabelece rigorosamente as funções dos indivíduos, assemelhando-se tudo com um organismo burocrático vivo. Kafka nos faz tramitar pela ditadura do pátrio poder, o que nos remete à abordagem de Walter Benjamin em que ele assemelha essa estrutura imponente ao poder do pai, a autoridade repressora e castigadora que, na visão da criança – o ser reprimido – parece estar em todos os lugares, vendo tudo e pronta para reprimir (BENJAMIN, 1994).
O Estado dominado pela burocracia expropria-se de sua função, suplantando o Estado garantidor através do formalismo, transformando o homem em uma mera engrenagem em um verdadeiro processo de desumanização, tornando-o peça do organismo vivo que constitui o sistema. Não mais há a distinção entre homem e animal, pois aquele ultrapassara os limites que o distinguem deste. Dentro de uma ordem esmagadora, todas as tentativas de resolução do processo de K. estão amarradas aos sistemas jurídicos burocráticos criados pelo próprio homem e que o impede de se emancipar, pois aprisionou-se em suas próprias realizações. O romance kafkiano, envolto por simbolismos, teve na arquitetura das repartições jurídicas a própria representação da burocracia estatal.
A leitura da parábola contida na obra em voga, nos dá duas únicas vias quando se está Diante da lei: ou se opta por uma medida meramente contemplativa ou parte-se para o real enfrentamento com o porteiro e passa-se pela Porta da Lei. Este fragmento d’O Processo promove um despertar do homem, constituindo-se um paradigma da sociedade moderna, evidenciando a potência vazia da lei e sua semelhança com a própria vida do homem moderno no estado de exceção.
A lei carrega consigo uma contradição que pode ser identificada na fala do capelão da prisão, narrador da parábola, em que Kafka (1997, p. 142) escreve que “a lei continua como sempre aberta” e a do porteiro de que “agora” K. não pode entrar, pois ao mesmo tempo que ela é atraente, ela permanece inacessível a quem ela atrai, vigendo, sem, contudo, significar. Os efeitos disso alude ao estado de natureza, surgindo uma lei de necessidade perante do ocultismo da lei em vigor, apresentando-se sob formas severas de privações. Para K., ela o privou de sua própria vida. A força da lei transforma-se em mera força de violência; aquela tornou-se uma “ficção”, enquanto esta sobrevive ao próprio velamento do poder soberano. Aquilo que as utopias não realizou, as distopias modernas tornou possível.
3 Titorelli e a deturpação do real: desnudando o conceito de justiça
“É certo que na obra de Kafka o direito existe nos códigos, mas eles são secretos e através deles a pré-história exerce seu domínio ainda mais ilimitadamente.” Walter Benjamin
O diálogo da história permite o surgimento de novos conceitos cravados em um solo pós-metafísico, a modernidade. Não há uma verdade e conceitos absolutos e atemporais mas, ao contrário, resultantes das contradições sociais e embates políticos, experimentando-se sempre novos conceitos, uma outra verdade sob uma nova perspectiva histórica. Desta forma, o Direito moderno lançou-se na busca da verdade, tropeçando em suas próprias (ir)realizações, dominado por fantasmagorias jurídicas que degeneraram o ordenamento jurídico e a vida desse outro homem, o homo sapiens sapiens.
Como hipótese de retorno aos tempos pré-jurídicos, a justiça kafkiana, entrelaçando-se à vida trágica do homem e a lei na modernidade, mostrou que as verdades humanas são invenções processuais, reclamando uma justiça impregnada de valores reivindicados (e conquistados) na moderna sociedade. Contudo, K. observa atentamente a perversão dos arquétipos de justiça nas pinturas de Titorelli, quando se direciona à casa do pintor buscando auxílio em seu processo:
“K. não conseguia explicar a si mesmo o que era aquela grande figura, que ocupava o centro do espaldar do trono e perguntou ao pintor o que significava (…)– É a Justiça – disse o pintor. – Agora já a reconheço – disse K. – Aqui está a venda nos olhos e aqui a balança. Mas com asas nos calcanhares e em plena corrida? – Sim – disse o pintor –, tive de pintar assim por encomenda; na verdade é a Justiça e a deusa da Vitória ao mesmo tempo. – Não é uma boa vinculação – disse K. sorrindo. – A Justiça precisa estar em repouso, senão a balança oscila e não é possível um veredicto justo. – Eu me submeto ao meu cliente – disse o pintor. (…) A visão do quadro pareceu dar-lhe vontade de trabalho, ele arregaçou as mangas, pegou o lápis e (…) em torno da figura da Justiça ficou claro, com exceção de uma tonalidade imperceptível: a figura parecia avançar de uma maneira especial nessa claridade, quase não lembrava mais a deusa da Justiça, nem tampouco a da Vitória, agora se assemelha por completo à deusa da Caça” (KAFKA, 1997, p. 177).
Deduz-se como a influência pessoal interfere na execução dos ritos jurídicos, concebendo divergências de interpretações, servindo de manutenção das posições sociais e reproduzindo na esfera social a (in)justiça segundo os dominadores. O direito seria, pois, o equilíbrio entre a caça e o caçador. Vê-se que a incerteza aponderou-se do Estado emparedado por verdades adaptadas conforme os anseios daqueles que compõem os quadros político-burocráticos estatais. Titorelli manifesta sua arte sob a ótica dos juízes, a percepção destes é transportada para as telas, pinta-se uma realidade, uma verdade, constituindo-se os juízes verdadeiros pintores da justiça na sociedade.
Nos espaços de exceção da sociedade moderna, um regime brutal e enganador suplanta a ilusão de um regime justo, reclamando para si uma outra necessidade e valendo-se do conformismo mental de todos aqueles que, por covardia, opressão ou fatalismo, submetem-se a ele. O processo kafkiano atesta que a lei reguladora desses espaços seria uma espécie de lei natural cujas interdições nunca se tem certeza de não ter transgredido, e cujas decisões, totalmente inesperadas, assemelham-se aos sofrimentos e infortúnios naturais que afetam os homens na sociedade moderna.
Giorgio Agamben (2004, p. 61) fala da lei como “pura potência”, em que ela afirma-se com mais força exatamente no ponto em que não prescreve mais nada, existindo nos “campos de exceção” contemporâneos um regime da lei no qual a norma vale, mas não se aplica (porque não tem força), e atos que não possuem o valor de lei adquirem sua força, consonantes às necessidades do grupo dominante de um dado momento histórico. E a pré-história ressurge, pois, sob a vestimenta da razão esclarecida.
Justificando-se pela situação de ameaça à unidade política, regulado pela ordem jurídica, embora possua em seu núcleo a suspensão dessa ordem, o Estado de Exceção passou a constituir-se na contemporaneidade uma tradução do caráter incorrigível do Estado moderno, fazendo da exceção a regra, transportando a ilicitude para o universo legal. Evidencia-se que “a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos”, havendo uma transmissão de uma medida excepcional para uma técnica permanente do governo, revelando sua natureza de paradigma constitutivo da ordem jurídica (AGAMBEN, 2004, p. 18).
Kafka (1997, p. 6)., utilizando-se de sua ironia característica, fala que “K. vivia num Estado que se assentava no Direito” A ilusão de garantia de seus direitos golpeava a mente do personagem, cedendo lugar para a fantasmagorização do Direito, sentindo os efeitos do enfraquecimento do Estado de Direito, remetendo-nos à atualidade e a negação neoliberal do Estado Democrático de Direito. Decreta-se a própria morte do desejo de justiça, do desejo de viver e, entregue à total incoerência do processo, Joseph K., que em uma manhã despertou recebendo a notícia de sua prisão e que com todas as esperanças buscou por fim ao processo e ser absolvido, e no seu eterno esperar-na-ante-sala, convertido em mais uma engrenagem do sistema, morre “como um cão!” (KAFKA, 1997, p. 298).
4 É possível se pensar o Direito como motor da emancipação da sociedade?
“A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros. Os dominadores se estabelecem por dez mil anos. Só a força os garante. Tudo ficará como está. Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores (…) Quando os dominadores falarem falarão também os dominados. Quem se atreve a dizer: jamais? De quem depende a continuação desse domínio? De quem depende a sua destruição? Igualmente de nós. Os caídos que se levantem! Os que estão perdidos que lutem! Quem reconhece a situação como pode calar-se? Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã. E o ‘hoje’ nascerá do ‘jamais’”. Bertolt Brecht
A relação entre coisas que se instaurou na sociedade moderna toma o homem de si mesmo, um mero autômato. Nesse mundo alienado, a lei perde sua eficácia, mas permanece a viger. E, embora desconhecendo-a, o homem kafkiano deve cumpri-la. Na parábola mencionada anteriormente – Diante da Lei – vemos que a Porta fica aberta, criando a impressão de que a lei é acessível a todos. Mas há um guarda à sua frente, simbolizando a aparente acessibilidade do Direito que, todavia, permanece inalcançável. Por ser produto da sociedade, obviamente, ele reflete toda sua estrutura. E no aparente absurdo do processo instaurado contra Joseph K. que Kafka novamente escreve sua atemporalidade.
Há infinitas portas que distanciam o homem comum da efetivação de seu direito de acesso à Justiça. E, embora não acessando a lei, esta o alcança e o controla, que num sistema paradigmático mais racional e burocratizado, o homem comum, tal como o protagonista da obra, impotente perante a máquina estatal, será por ela engolido, tomado como uma reles engrenagem. No decorrer d’O Processo, por mais que os caminhos de K. enveredem para sua condenação por algo que desconheça, uma esperança infinita move seu leitor tomado por um sentimento de absurdidade, mas o desenlace da trama logo o deixa desolado, por perceber a proximidade do romance kafkiano com a realidade moderna. Haveria saída?
Conforme Marx e Enegls (1999) Estado ao vincular-se às relações sociais capitalistas, torna-se via de satisfação dos interesses da classe dominante de um dado momento histórico. Em face disso, o ordenamento jurídico torna-se um direito de classe, reproduzindo todas as contradições sociais, permitindo que a força sufoque a lei, manifestando a utilidade do direito tão-somente para manutenção do estado de coisas, controlando a vida dos indivíduos sem, contudo, lhes assegurar as garantias fundamentais que esse mesmo direito positivou. Nesse contexto, a exploração de classe se justifica nas relações jurídicas de propriedade que estabelecem uma igualdade formal (MASCARO, 2002).
Na obra em pauta isso se torna evidente. Josef K. tenta defender-se por meio de todos os instrumentos jurídicos, mas fracassa, pois o estado de exceção converteu-se em regra e a lei é posta em suspensão como fundamento para salvaguardar essa mesma lei, criada sob reflexos econômicos, porém, operando-se sem a consciência disso. Deste modo, não se fala em uma crise (ou morte) propriamente dita no direito moderno e no Estado na medida em que estes surgiram sob uma concepção ideológica legitimadora da opressão do capital, tornando imperativo a injustiça necessária e estrutural.
5 Considerações Finais
O Direito e a Literatura se entrelaçam mais do que imaginamos. Kafka nos impacta com sua escrita enigmática e elucidativa, golpeando-nos com sua manifestação crua da miséria humana, o mundo despido por inteiro. Envolvido por reflexões sobre a degradação humana e a impotência frente à burocracia, e ainda a inoperância das leis, a presente pesquisa nos mostrou como Direito tem se apropriado de nossas vidas como se fôssemos todos engrenagens do sistema, sublinhando sua relação com a crise do homem moderno.
As críticas ao Direito Moderno tecidas por Franz Kafka são críticas ao próprio homem moderno. Afinal, o Direito advém da sociedade, e nela ele se modifica. Dessarte, O Processo é uma afronta à noção de processo adotada na doutrina jurídica. Embora Joseph K. acredite estar em um Estado de Direito percebe-se que nem mesmo as garantias fundamentais são respeitadas, convertendo o Direito em uma força desmedida e imprevisível.
A justiça sob a perspectiva da práxis enviesa para a morte do Direito Moderno na medida em que este esvaziou-se de sua substância, suplantado pela força. Não entendendo isso, contudo, como uma crise, mas antes como o desvelamento do fundamento deste ordenamento jurídico classista.
Acadêmica de Direito na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco UNDB
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