Resumo: Em razão da publicação da Lei Complementar – LC nº 140, de 08 de dezembro de 2011, e das diversas implicações por ela trazidas às atribuições dos órgãos ambientais e à forma de conduzir o seu poder de polícia ambiental, tornou-se necessário entender a nova divisão legal de atribuição fiscalizatória ambiental e as consequências de ordem prática da disciplina legislativa em questão. Buscar-se-á conhecer os limites de atuação de cada ente federativo, na tentativa de se evitar a indesejada sobreposição das atividades, fortalecendo, contudo, o exercício da competência comum de fiscalizar as condutas lesivas ao meio ambiente. Partindo-se da interpretação do art. 17 da Lei em referência, percebe-se que não será tarefa fácil delimitar o conceito de prevalência de auto de infração, trazendo para a realidade a intenção do legislador de evitar duplicidade de atuação em cada caso concreto, sem deixar de lado a necessidade de penalizar o infrator ambiental e de aplicar medidas cautelares para fazer cessar o dano ambiental.
Palavras-chave: Fiscalização ambiental. Lei Complementar nº 140/2011. Divisão de atribuição entre órgãos ambientais. Conceito legal de prevalência de auto de infração.
Sumário: Introdução; 1. Do poder de polícia ambiental e dos contornos presentes na LC nº 140/2011 acerca da competência para exercê-lo; 2. Da competência fiscalizatória ambiental em relação às atividades licenciadas/autorizadas; 3. Do limite temporal aplicável ao arquivamento de auto de infração ambiental lavrado pelo órgão não licenciador; 4. Da competência fiscalizatória em relação às atividades em tese licenciáveis, mas efetivamente não licenciadas/autorizadas; 5. Da competência fiscalizatória em relação às atividades que não se submetem a licenciamento ambiental; 6. Da necessária atuação dos órgãos ambientais em caso de iminência ou de ocorrência de degradação da qualidade ambiental; Conclusão; Referências.
Das Considerações Iniciais
Em 09 de dezembro de 2011, foi publicada a Lei Complementar nº 140, de 08 de dezembro de 2011, que preencheu uma demanda, há muito existente, no que tange à regulamentação, por norma complementar, da competência comum, constitucionalmente prevista, para proteger o meio ambiente, combatendo a poluição.
Com efeito, durante muito tempo não existiu a Lei Complementar a que se refere o art. 23 da Constituição Federal, não havendo, nesse período, parâmetros objetivos de atuação fiscalizatória que pudessem fixar os limites de atribuição de cada ente e a melhor forma de concretizar, em cooperação, o exercício do poder de polícia ambiental.
Com a sistemática instituída pelo art. 17 da Lei Complementar nº 140/2011 para organização das competências fiscalizatórias dos entes federativos em matéria ambiental, surgiu a necessidade de interpretar o preceito que estabelece a divisão de competência entre os órgãos, e, em especial, os termos práticos em que deve prevalecer o auto de infração lavrado por entidade que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização. Ou seja, revela-se necessário trazer as novas disposições legais à realidade prática, demanda essa surgida juntamente com a publicação da lei nova, como leciona Raul Machado Horta:
“As normas constitucionais e legais não dispõe de vida própria. São normas do dever ser. Reclamam, por isso, a colaboração dos executores da vontade constitucional e legislativa para acioná-las, e não prescindem do acatamento de seus destinatários para se converterem em normas mandamentais da realidade e da vida. A preservação do Meio Ambiente, que a Constituição e a Lei impõem em normas jurídicas de conduta, será plenamente alcançada à medida que se transformar em tarefa comum, congregando nos mesmos objetivos a Sociedade, as Instituições Governamentais, os Partidos Políticos, as Empresas, a População, os Homens e as Mulheres de pensamento e de ação”[1].
Nesse sentido, pretende-se doravante analisar, a luz dos princípios vigentes e principalmente dos métodos interpretativos que devem ser observados, a melhor forma de aplicação pelo intérprete do estabelecido no art. 17 da referida Lei, o qual prevê, como primeiro competente para exercer fiscalização em atividades licenciadas/autorizadas, o órgão ambiental licenciador.
Tem-se, assim, que apesar de a LC nº 140/11 ter inovado em vários aspectos, muitos dos quais polêmicos, a presente análise pretende cingir-se à divisão de competência fiscalizatória entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, e à forma de atuação em comum, interpretando a previsão de prevalência de um determinado auto de infração sobre outro lavrado na mesma hipótese de incidência.
Considerando-se, assim, a utilização pelo legislador do parâmetro “atividade licenciada ou autorizada”, e com o objetivo de tornar mais compreensível a análise jurídica sobre o assunto, entende-se oportuno e até recomendável separá-la por tópicos. Serão apresentadas, pois, as diferentes situações concretas vislumbradas, partindo-se do pressuposto de ser a atividade fiscalizada: (I) licenciada/autorizada por órgão ambiental; (II) apenas licenciável (mas não efetivamente licenciada); (III) ou ainda atividade não submetida, ainda que em tese, a processo licenciatório. Em seguida, analisar-se-ão casos em que se demanda atuação urgente do Estado, por meio da aplicação de medidas preventivas ou cautelares, as quais devem se submeter a disposições próprias.
1. Do poder de polícia ambiental e dos contornos presentes na LC nº 140/2011 acerca da competência para exercê-lo
O Poder de Polícia Ambiental encontra-se amparado pela Carta Magna de 1988, que em seu art. 225 estabelece, in verbis:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (…)
§ 3° As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”
O Poder Constituinte Originário outorgou, pois, à coletividade o direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo que, para lhe preservar a efetividade, concedeu ao Poder Público o poder-dever de fiscalizar a conduta daqueles que se apresentem como potenciais ou efetivos poluidores, estabelecendo, como competência comum entre os entes federativos, a proteção ao meio ambiente.
Na competência comum, o campo de atuação é conjugado entre várias entidades, sem que o exercício de uma venha a excluir a competência de outra. O poder de polícia ambiental foi constitucionalmente atribuído à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, estando todos autorizados a agir em relação às matérias indicadas no art. 23.
As atribuições, destarte, não se restringem à execução das leis e dos serviços de controle em cada esfera, mas abrange as demais, em sistema de cooperação, tendo em vista a necessidade de se alcançar o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional, o que é amplamente reconhecido pela doutrina:
“(…) todos os entes federativos têm competência comum para proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; isso envolve atribuições na esfera administrativa, com fulcro no poder de polícia.
(…) cabe afirmar que a polícia ambiental pode (e deve) ser exercida cumulativamente por todos os entes federativos, genericamente referidos como Poder Público; isso, aliás, decorre claramente do art. 225, caput, da Carta Magna. (…)
Em sintonia com a cooperação comum dos entes federativos, a denominada Lei dos Crimes Ambientais inclui, como habilitados, para fins de lavratura de autos de infração e de instauração de processos administrativos, todos os órgãos ambientais integrantes do Sisnama, no âmbito das três esferas da Federação brasileira”[2].
Em face do poder de polícia, que pode ser preventivo ou repressivo, o Poder Público dispõe de atribuições de fiscalização, por meio da qual se impõem sanções administrativas como instrumento da tutela administrativa e como meio de se coibir a prática de infrações ambientais. Nesse sentido, leciona José dos Santos Carvalho Filho:
“Não adiantaria deter o Estado de poder de impor restrições aos indivíduos se não dispusesse dos mecanismos necessários à fiscalização da conduta destes. Assim, o poder de polícia reclama do Poder Público a atuação de agentes fiscalizadores da conduta dos indivíduos.
A fiscalização apresenta duplo aspecto: um preventivo, através do qual os agentes da Administração procuram impedir um dano social, e um repressivo, que, em face da transgressão da norma de polícia, redunda na aplicação de uma sanção.”[3]
Das disposições constitucionais e legais aplicáveis e considerando o conceito analisado de poder de polícia ambiental, vê-se que ele foi atribuído a todos os entes da federação. E não poderia ser de outro modo, tendo em vista a necessidade de se garantir a máxima efetividade à proteção ao meio ambiente, concretizado pelo exercício efetivo da fiscalização ambiental. Nesse sentido:
“Daí se conclui ser a competência comum uma atuação sobre o mesmo bem jurídico de interesse e responsabilidade comum a todos os entes federativos, o qual deverá ser objeto de repartição de atuação de forma a otimizar os esforços governamentais. É justamente o que acontece com a competência ambiental sobre licenciamento e fiscalização ambiental geral, ambos objeto da Lei Complementar nº 140/2011”[4].
Com efeito, o Constituinte originário deixou para o legislador infraconstitucional o estabelecimento, por lei complementar, de critérios para o exercício comum destes poderes, com o objetivo de evitar duplicidade de atuação das pessoas políticas. E, com tal desiderato, foi confeccionada e publicada a Lei Complementar nº 140/11, a qual cuidou de regulamentar o assunto em discussão, estabelecendo que:
“Art. 17. Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada.
§ 1o Qualquer pessoa legalmente identificada, ao constatar infração ambiental decorrente de empreendimento ou atividade utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores, pode dirigir representação ao órgão a que se refere o caput, para efeito do exercício de seu poder de polícia.
§ 2o Nos casos de iminência ou ocorrência de degradação da qualidade ambiental, o ente federativo que tiver conhecimento do fato deverá determinar medidas para evitá-la, fazer cessá-la ou mitigá-la, comunicando imediatamente ao órgão competente para as providências cabíveis.
§ 3o O disposto no caput deste artigo não impede o exercício pelos entes federativos da atribuição comum de fiscalização da conformidade de empreendimentos e atividades efetiva ou potencialmente poluidores ou utilizadores de recursos naturais com a legislação ambiental em vigor, prevalecendo o auto de infração ambiental lavrado por órgão que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização a que se refere o caput.”
De início, já é possível observar a opção do legislador pelo estabelecimento de uma ligação relativa entre as competências licenciatória e fiscalizatória. Diz-se relativa por se depreender da disposição legal contida no § 3º que, apesar da prevalência, não há exclusividade do órgão com competência para licenciar determinada obra ou atividade a competência para fiscalizá-la.
A despeito da clareza da norma nesse sentido, inúmeras questões aparecem ao intérprete, mormente àquele que lida com a fiscalização ambiental no seu cotidiano e que se depara com dúvidas concretas a respeito da aplicabilidade da regra. Nesse sentido, interessa analisar, entre outras questões relevantes, em que termos haverá de prevalecer o auto de infração lavrado pelo órgão efetivamente licenciador, conforme previsto no § 3º do art. 17 da LC nº 140/11.
2. Da competência fiscalizatória ambiental em relação às atividades licenciadas/autorizadas
As atividades ou os empreendimentos utilizadores de recursos ambientais efetivamente licenciados/autorizados devem ser fiscalizados pelo órgão ambiental licenciador. Tal vinculação, frise-se relativa, faz sentido, quando se vislumbra as melhores condições técnico-administrativas do órgão licenciador para fiscalizar, já que a atividade importa, muitas vezes, a avaliação do cumprimento ou da inobservância de condições e limites da licença ambiental expedida, o que foi bem ponderado pelo legislador, ao estabelecer que:
“Art. 17. Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada.” Grifos nossos
Ao ler o referido dispositivo, sua literalidade não deixa margem à dúvida do intérprete. A vinculação não absoluta aqui estabelecida configura-se apenas na hipótese de se ter uma licença efetivamente emitida pelo órgão ambiental competente, o qual deve partir sua atividade fiscalizatória do mérito da licença expedida, esperando-se do fiscalizador o conhecimento pleno do ato autorizativo.
Tem-se aqui, legalmente posto, o princípio do licenciador-primeiro fiscalizador, ou licenciador-fiscalizador primário, que estabelece a atribuição e o desejado efetivo exercício da fiscalização a determinado órgão. Com isso, evita-se (ou pelo menos pretende-se) que o ente fiscalizador interfira na discricionariedade administrativa de outro órgão ambiental, ao se imiscuir no mérito da licença emitida, para concluir pelo cumprimento ou descumprimento dos termos desta.
Diz-se de modo primário para ressaltar que essa competência fiscalizatória não foi exclusivamente atribuída ao ente licenciador. Com efeito, o § 3º do art. 17 evidencia a existência de competência comum de todas as instâncias federativas para fiscalizar, o que, por previsão constitucional expressa, não poderia ser afastado.
Assim, forçoso concluir que a Lei Complementar apenas instituiu, no referido artigo 17, um sistema de preferências para a ação fiscalizatória, o que exige atenção do aplicador da lei, especialmente no que tange à parte final do § 3º, que estabelece a prevalência do auto de infração lavrado pelo ente licenciador.
Em atenção ao caput do art. 17, conclui-se que se o órgão licenciador já realizou fiscalização ambiental em determinado empreendimento por ele licenciado, não caberá mais a outros órgãos do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA instaurar processo administrativo com o mesmo fim. Tal dispositivo garante, em boa medida, a concretização da competência constitucional comum em matéria ambiental, segundo a qual todos os órgãos componentes do SISNAMA devem concentrar esforços em suas respectivas áreas de atribuição, desejando-se a inocorrência de atuação conjunta, por todos os entes, ao mesmo tempo.
Vislumbra-se aí o melhor caminho para a realização da cooperação e da eficiência administrativa, evitando-se que dois órgãos ambientais realizem fiscalização em uma mesma atividade, deixando de fazê-la em tantas outras práticas delituosas constatadas no imenso território brasileiro. O intuito de se evitar a sobreposição de atividades foi, sem dúvida, um dos principais objetivos buscados pelo legislador, o qual cuidou de estabelecer parâmetros objetivos que permitem orientar o foco de atuação de cada órgão ambiental.
Não se pode ignorar, contudo, as hipóteses de omissão do órgão licenciador ou mesmo do seu não conhecimento acerca de determinada prática infracional. Nesses casos, a competência comum, constitucionalmente estabelecida, há de ser respeitada, de forma que qualquer órgão ambiental que constatar a prática de infração ambiental terá competência para lavrar o devido auto de infração ambiental. Contudo, em caso de atividade licenciada, o ato fiscalizatório do ente não licenciador deverá ser arquivado (ou seja, não prevalecerá), se depois for lavrado outro auto de infração pelo órgão competente primário. É o que determina o § 3º do art. 17:
“Art. 17. (…)
§ 3o O disposto no caput deste artigo não impede o exercício pelos entes federativos da atribuição comum de fiscalização da conformidade de empreendimentos e atividades efetiva ou potencialmente poluidores ou utilizadores de recursos naturais com a legislação ambiental em vigor, prevalecendo o auto de infração ambiental lavrado por órgão que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização a que se refere o caput.”
Em razão do estabelecimento pelo legislador de critério de prevalência, é possível concluir que, em nenhuma hipótese, deve-se admitir a tramitação concomitante de dois autos de infração lavrados na mesma hipótese de incidência. A literalidade da norma, em conjunto com o Princípio da Eficiência na Administração Pública, mais do que aplicável ao caso, não admitem entendimento diverso.
A propósito, vale lembrar que esse princípio, inserido no texto constitucional em vigor, quando tomado em relação ao modo de organizar e de estruturar a Administração Pública, exprime o objetivo de que sejam alcançados os melhores resultados na prestação do serviço público[5], sem atuações inúteis, sem desperdício financeiros ou humanos de recursos públicos, garantindo-se celeridade e qualidade, e sempre em harmonia com os demais princípios que regem as atividades estatais.
Dimensão do princípio da eficiência é aquela que refuta a adoção de mecanismos desnecessários, a atuação de órgão quando um outro ente competente já tenha atuado eficazmente, e que postula a racionalidade nas escolhas a serem efetuadas pelos administradores públicos. Em função dele e trazendo sua aplicabilidade à matéria em análise, entende-se recomendável aos órgãos ambientais que não lavrem outro auto de infração ambiental, apurando práticas infracionais que já estão sendo objeto de auto já lavrado e em tramitação.
De qualquer forma, nunca é demais afirmar que se trata apenas de uma recomendação, a qual objetiva garantir mais eficiência no cumprimento das atribuições administrativas dos órgãos ambientais. Tal recomendação não tem o intuito de afastar o texto expresso no § 3º do art. 17, que vislumbra a possibilidade, ainda que em tese, de dupla lavratura, determinando, contudo, regra de prevalência de apenas um auto, o lavrado pelo órgão licenciador. Assim, se diante do desconhecimento da já existência de ação fiscalizatória ou mesmo se no entendimento de órgão ambiental for conveniente e/ou necessário, por qualquer razão, a dita lavratura concomitante, haverá de prevalecer um só auto de infração, que será aquele lavrado pelo órgão licenciador competente, nos casos em que efetivamente expedida uma licença ambiental.
Atente-se para o fato de que o dispositivo em referência dispõe expressamente sobre “prevalência do auto de infração”, e não prevê forma de compensação ou de substituição de multa. E tal expressão, contida no já transcrito § 3º, exprime-se em termos absolutos, estabelecendo que somente um auto de infração poderá subsistir, enquanto que aquele lavrado pelo órgão não licenciador será integralmente afastado, ou seja, arquivado. Nesse sentido, tornou-se inviável o sistema de compensações entre multas advindas de esferas distintas, como se estabeleceu na sistemática anterior, por meio do art. 76 da Lei nº 9.605/1998 (art. 76), não mais aplicável.
3. Do limite temporal aplicável ao arquivamento de auto de infração ambiental lavrado pelo órgão não licenciador
Analisados os termos em que se deve observar a “prevalência” estabelecida pelo legislador, apresenta-se um outro questionamento jurídico, o qual não pode deixar de ser enfrentado: o arquivamento do auto de infração eventualmente lavrado, em observância ao § 3º do art. 17, deverá ser realizado a qualquer tempo ou há de se observar limite cronológico para tanto? Em outras palavras, caberá o arquivamento do auto de infração, em todas as fases de sua tramitação administrativa, em caso de realização de atividade fiscalizatória efetiva pelo órgão primariamente competente? Ou, em situação diversa, não será possível o arquivamento após a constituição definitiva da penalidade aplicada pelo órgão ambiental não licenciador?
A análise do assunto demanda considerações acerca da tramitação processual, que permitirá concluir pela existência de limite temporal objetivo para o cabimento de arquivamento do auto de infração lavrado. Sabe-se que, após a lavratura, o auto de infração se submete a uma necessária instrução processual, que envolve análises técnicas e jurídicas, até ser objeto de decisão de 1ª instância, homologatória ou não do referido ato administrativo de aplicação de penalidade. Em seguida, abre-se a oportunidade para a interposição de recurso(s) administrativo(s), até que o auto de infração venha a ser definitivamente julgado, constituindo-se a penalidade pecuniária como dívida ativa do órgão autuante.
Durante toda a tramitação processual em análise, poderá o órgão licenciador atuar, lavrando um outro auto de infração, o qual deverá prevalecer, em caso de fiscalização de atividade efetivamente licenciada. Como dito, essa dupla autuação não é, na prática, recomendável, sendo mais oportuno que se respeite o primeiro auto de infração já lavrado e se concentre esforços em atividades ainda não fiscalizadas. Contudo, considerando-se possível, ainda que em tese, a lavratura de um 2º auto de infração (admitindo-se ser este o do órgão licenciador competente), forçoso reconhecer a necessidade de arquivamento do primeiro auto, contanto que a penalidade por ele aplicada ainda não esteja consolidada, o que se dá com a sua constituição como crédito do órgão autuante.
A substituição, pois, só deve operar até o momento em que a sanção pecuniária se tornar definitiva, com a decisão irrecorrível que homologa o auto de infração. A partir desse momento, fica constituído crédito da entidade, não mais regido pela legislação ambiental, mas pelas normas financeiras e de execução fiscal, em especial pelas Leis nº 4.320, de 17 de março de 1964, e nº 6.830, de 22 de setembro de 1980.
Quer-se com isso dizer que deverá haver um limite temporal ao arquivamento do auto de infração, previsto no § 3º do art. 17 da LC nº 140/11. É que tal legislação cuida apenas de estabelecer normas de cooperação entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios na proteção do meio ambiente e no exercício das atribuições comuns que lhe são outorgadas pela Constituição Federal. A referida Lei não abrange a regulamentação dos créditos das entidades, definitivamente consolidado, o que se dá com o “trânsito em julgado administrativo” da multa aplicada.
Assim, consolidada a penalidade, passa a existir um crédito público indisponível, regulado pela Lei 6.830/1980, que não pode ser renunciado pelo órgão ambiental competente que a aplicou, senão por autorização legal. Nesse sentido, destaca-se:
“A doutrina, de modo geral, assim como a Administração Pública, não tem dado a necessária atenção à Dívida Ativa Não-Tributária. Provavelmente, porque a Dívida Ativa Tributária é de maior expressão entre os créditos da Fazenda Pública. Nem por isso se justifica, todavia, o descuido em relação aos créditos públicos em condições de inscrição em Dívida Ativa Não-Tributária, pois todo crédito público é indisponível, de tal sorte que sua renúncia é tão grave quanto a dos créditos tributários, ficando sujeita à fiscalização do Tribunal de Contas (CF, art. 70, caput), gerando responsabilidade para os administradores (CF, arts. 70, parágrafo único, e 71, II)”[6]. Grifos nossos
Tendo em vista que a LC nº 140/11 nada dispõe sobre o assunto e, ainda, partindo-se do pressuposto de que ela não regula constituição de crédito, nem muito menos autoriza renúncia, não se vislumbra nela o propósito de regular ou de produzir qualquer efeito sob a multa administrativa devidamente constituída.
Em razão disso, entende-se que o arquivamento do auto de infração, provocado pela efetiva realização de outra atividade fiscalizatória pelo órgão licenciador, não mais está autorizado a ocorrer após a constituição do respectivo crédito, a se consolidar com a última decisão administrativa que confirma a autuação, após o regular exercício do contraditório do autuado. Observe-se que, nesse momento, já existe e dívida, sendo a inscrição posterior apenas um ato que formaliza sua regularidade:
“A inscrição é o ato de controle administrativo da legalidade da constituição do crédito da Fazenda Pública. Assim, a primeira tarefa do órgão incumbido de proceder à inscrição é o exame de todos os pressupostos para a constituição regular e válida do crédito a ser inscrito. Especialmente, lhe cabe verificar a existência de processo administrativo e se nele oportunizado o contraditório. Isso é particularmente importante no caso de créditos resultantes de autos de infração de que tenha decorrido a imposição de multas pecuniárias”[7].
Assim, o arquivamento de auto de infração, com fulcro no § 3º do art. 17 da LC nº 140/11, só poderá ser realizado enquanto ainda tramitar o processo administrativo em questão, no âmbito do órgão fiscalizador, ou seja, até o momento anterior à emissão da última decisão administrativa, que provoca o “trânsito em julgado administrativo” do auto de infração, e constitui o crédito da entidade autuante, nos termos da Lei nº 6.830/80, sendo a inscrição posterior da dívida ativa apenas o ato de controle, finalizador do processo.
4. Da competência fiscalizatória em relação às atividades em tese licenciáveis, mas efetivamente não licenciadas/autorizadas
Cabe analisar ainda a sistemática a ser aplicada ao exercício da competência comum fiscalizatória em relação a atividades e a empreendimentos que deveriam ser objeto de licenciamento ambiental, mas, na prática, não o foram, ou seja, que existem sem a necessária licença ambiental, ficando por isso sujeitos à fiscalização ambiental.
Quanto a essa categoria, talvez a mais corriqueira das situações vislumbradas, cumpre reconhecer, desde logo, a inexistência de regulamentação legal expressa que a contemple. É que o caput do art. 17, redigido pelo legislador com a específica missão de disciplinar e delimitar o exercício da competência fiscalizatória, foi expresso ao criar a vinculação relativa, já analisada, de fiscalização pelo órgão licenciador de “atividade licenciada ou autorizada”.
Perceba-se que não regula o caput do referido dispositivo situação de prevalência de auto de infração em caso de atividade licenciável, mas não efetivamente licenciada. Considerando, ainda, que os incisos e parágrafos devem correspondência ao seu caput, entende-se que não há critério expresso para resolver eventual conflito de atribuição e prevalência de auto de infração, nas situações em que não emitida licença ambiental, ainda que, em tese, a respectiva atividade seja licenciável.
De outro modo, há na lei disposições genéricas, as quais devem ser interpretadas conforme a Constituição, que atribuem a cada esfera de governo o exercício da fiscalização em empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar seja ao ente cometida (art. 7º, inciso XIII; art. 8º, inciso XIII e art. 9º, inciso XIII). Entende-se, contudo, que tais disposições não se prestam a vedar o exercício da atribuição fiscalizatória a órgão incompetente para licenciar, mesmo porque tal intuito, se expresso, estaria em desconformidade com a Constituição, a qual garantiu a competência comum para proteger o meio ambiente.
Diante disso, a interpretação conforme a Constituição das disposições expressas nos incisos XIII dos arts. 7º, 8º e 9º da LC nº 140/11 garante a atuação primeira do órgão licenciador, mas não afasta, de forma alguma, a competência dos demais, em caso de omissão daquele. Trata-se de interpretação também compartilhada por outros estudiosos do assunto:
“Como a lei não tem palavras inúteis e não admite contradição, a interpretação correta do texto leva à conclusão de que não há limitação dos demais entes quando se descreve as ações administrativas do responsável pelo licenciamento. Quer o texto reafirmar que cabe ao ente licenciador “exercer o controle”. Ou seja, não pode o órgão licenciador apenas autorizar, mas deve ter mecanismos e instrumentos adequados e eficientes para o controle contínuo das atividades potencialmente poluidoras. Este controle se faz também pelo instrumento da fiscalização. Mas é obrigação do ente licenciador organizar o aparato estatal para o controle contínuo e não episódico. O controle não pode se restringir ao momento do processo de licenciamento. Deve-se observar que aqui a LC 140/11 foi extremamente cautelosa em prever expressamente esta obrigação do ente licenciador, sem afastar, em nada, a obrigação de fiscalização comum e geral que cabe a todos os entes da federação”[8].
Forçoso reconhecer, pois, que as disposições legais em referência não apresentam solução prática a ser observada, em situação de dupla (ou mesmo tripla) autuação por órgãos ambientais diversos, em caso de atividades, em tese, submetidas a licenciamento ambiental, mas para as quais não foi, de fato, expedida licença ou autorização pelo órgão competente.
Em face da omissão do legislador, considera-se inteiramente aplicável a recomendação já apresentada no tópico anterior, no sentido de que os órgãos ambientais restrinjam sua atuação fiscalizatória aos casos em que ainda não realizada fiscalização por outro órgão, focando, destarte, em atividades não fiscalizadas, com o intuito de evitar dupla autuação.
A despeito da recomendação, é fato que a atuação fiscalizatória, em caso de atividades licenciáveis mais não licenciadas, na prática, se impõe, provocando, em várias situações concretas, um duplo e indesejado exercício do poder de polícia ambiental por mais de um órgão competente, o que deve ser resolvido por meio de regras objetivas de prevalência.
Como visto alhures, as disposições contidas no art. 17 e a solução lá prevista não foram expressamente direcionadas às atividades licenciáveis, o que não exclui, contudo, uma necessária aplicação de regra de prevalência, exigindo-se apenas a inclusão de um critério temporal, que se justifica em atenção à máxima efetividade da atividade administrativa exercida.
Observa-se aqui que a ausência de norma expressa resolutiva do impasse de dupla lavratura em atividades licenciáveis (mas não efetivamente licenciadas) permite ao intérprete acrescentar o critério temporal na prevalência do auto de infração, fazendo valer, de forma justificada, o auto primeiramente lavrado em casos como estes.
Com tal desiderato, entende-se imprescindível buscar-se na própria legislação vigente e nos princípios aplicáveis o norte para a definição do conceito de prevalência, em caso de atividade que não é objeto de licença ambiental concreta. Em vista disso, pode-se ponderar aqui acerca da desnecessidade de se respeitar, diante de dois autos de infração, aquele auto lavrado pelo órgão licenciador, visto que, inexistindo licença, a fiscalização não haverá de partir do conhecimento e dos limites de licença ambiental emitida.
Considerando a inexistência de motivos para se vincular as atividades fiscalizatórias e licenciatórias, na hipótese analisada, em que não há licença ambiental expedida, tem-se como obrigatória a consideração de Princípios Administrativos, tais como o da Eficiência, da Celeridade e da Economia Processual. Em face deles, deve-se aproveitar os atos instrutórios já realizados no processo administrativo mais avançado, ou seja, há de prevalecer o auto de infração primeiramente lavrado, justificando o acréscimo do critério cronológico, na aplicação da “prevalência”. Assim, lavrando-se dois autos de infração, na mesma hipótese de incidência e tratando-se de atividade não licenciada, deve prevalecer o primeiro auto de infração emitido.
Sabe-se que a competência comum não pode ser exercida com base em rígidos critérios delimitativos, cabendo, lado outro, um certo grau de concorrência entre as entidades federativas, que possa viabilizar a real proteção ambiental. Trata-se de lógica compatível com o estabelecimento do já analisado sistema de prevalência, que consiste em um excelente método para evitar a indesejada duplicidade de autos de infração referentes ao mesmo ilícito. Tal mecanismo, quando concretizado nos casos em que não expedida licença/autorização ambiental, impõe o aproveitamento dos atos já realizados no primeiro auto de infração cronologicamente lavrado.
Esse acréscimo de sentido, como se verá, tem uma razão válida que o justifique. Resulta, na realidade, da coordenação sistemática de vários princípios administrativos, bem como da interpretação teleológica do art. 17 da LC nº 140/11, buscando-se o objetivo traçado pelo legislador. Com efeito, com a regra de prevalência da primeira lavratura, garante-se uma ampla e efetiva atuação fiscalizatória, sem permitir o andamento concomitante de mais de um auto sobre a mesma situação concreta, aproveitando-se ainda todos os atos administrativos instrutórios já praticados no primeiro auto de infração lavrado, mais maduro e avançado.
Assim, mesmo sobrevindo ato fiscalizatório de órgão que seria em tese competente para licenciar, este não poderá prevalecer sobre o primeiro auto lavrado e não terá aptidão para interferir no andamento do respectivo processo administrativo. Existe por trás dessa interpretação de prevalência cronológica do primeiro auto lavrado uma operação de lógica jurídica, a se justificar por diferentes razões jurídicas: 1. Impossibilidade de se admitir a movimentação inútil da máquina administrativa e o desperdício de recursos públicos, nos casos em que já lavrado, e em processo instrutório avançado, auto de infração ambiental; 2. Necessidade de se impedir o retrocesso e a fragilização da competência fiscalizatória efetivamente exercida em caso concreto, garantindo-se a proteção do direito fundamental ao meio ambiente; 3. Exigência de que a sistemática de ações fiscalizatórias envolva cooperação, coordenação, efetiva (e não apenas teórica) entre os entes federativos; 4. Manutenção do primeiro ato administrativo fiscalizatório, aquele mais próximo dos fatos apurados, que, em razão disso, teve mais preservadas as condições materiais em que praticado o ilícito. Tais razões justificam a prevalência do auto de infração primeiramente lavrado (e não do órgão em tese competente para licenciar), nos casos de duplicidade de autuação, em que inexiste licença ambiental efetivamente emitida no caso concreto.
Ademais, insta reconhecer que tal interpretação não vai de encontro às razões que justificam o critério de prevalência a ser observado em atividades efetivamente licenciadas. Isso porque, se há razão de mérito administrativo que demanda o exercício primário da fiscalização pelo órgão efetivamente licenciador, tal justificativa não prevalece em caso de atividade não licenciada, em que a ausência de licença garante iguais condições fiscalizatórias aos órgãos ambientais das três esferas de Governo. Restarão, portanto, preservadas as melhores condições técnicas fiscalizatórias do órgão licenciador, já que, na situação analisada, não se está tratando de atividades efetivamente licenciadas/autorizadas, inexistindo, pois, licença expedida a orientar a ação fiscalizatória.
A exigência de coordenação sistemática aqui proposta, que garante a prevalência da fiscalização primeiramente realizada, atende também às análises desenvolvidas no campo da doutrina. Paulo de Bessa Antunes, por exemplo, afirma que o art. 23 da Constituição Federal especifica as competências comuns, veiculando um comando constitucional para a colaboração administrativa entre as diferentes esferas político-administrativas. Tal colaboração, segundo o autor, obviamente deve ser feita com base em uma racionalidade que possa ser extraída do texto constitucional e que, evidentemente, indique a necessidade de que os serviços sejam prestados da forma mais eficiente possível e com a maior economia de recursos públicos[9].
A racionalidade buscada na atuação conjunta não será de outra forma atingida se não forem respeitados os atos praticados por aquele que primeiro autuou, o que é plenamente admissível nos casos em que não existir licença ambiental expedida para o caso concreto. Nesse passo, evidencia-se a ideia de uma certa falta de atuação concreta por parte dos outros órgãos ambientais (inclusive, daquele que seria competente para licenciar), a justificar a atuação do ente não licenciador (e a necessidade de prevalência do auto por este lavrado em primeiro lugar, como corolário mesmo dessa atuação), o que, inclusive, harmoniza-se com a competência supletiva insculpida no art. 2º, II, da Lei Complementar nº 140/11.
De qualquer forma, mesmo após se concluir pela necessidade de prevalência do auto de infração lavrado em primeiro lugar, quando inexistente licença expedida, não custa reafirmar a conveniência de se respeitar, em princípio, e de se atender, quando possível, as atribuições primárias de cada ente. Essa sistemática de atuação em cooperação, respeitando-se a delimitação e focando-se no direcionamento da atividade fiscalizatória, foi desejada pelo legislador e não deve ser desconsiderada.
Na realidade, o ideal é que cada órgão ambiental foque suas atuações e fiscalizações naquelas atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar seja também sua, na forma como previsto nos incisos XIII dos arts. 7º, 8º, e 9º da LC nº 140/11. Nesse sentido, recomenda-se que, em situações ordinárias, ao tomar conhecimento de infração ambiental, cuja atividade está em tese submetida a licenciamento ambiental, o órgão ambiental haja, nas situações de urgência, aplicando as medidas cautelares, se cabíveis, e comunicando imediatamente ao órgão licenciador competente para que este venha a apurar a infração, lavrando, se for o caso, o regular e correspondente auto de infração ambiental. Trata-se de medida, inclusive, prevista no art. 17, o qual se impõe observância, mesmo no caso de atividades, na prática, não licenciadas:
“Art. 17. (…)
§ 2o Nos casos de iminência ou ocorrência de degradação da qualidade ambiental, o ente federativo que tiver conhecimento do fato deverá determinar medidas para evitá-la, fazer cessá-la ou mitigá-la, comunicando imediatamente ao órgão competente para as providências cabíveis.” Grifos nossos
Há que se considerar também casos em que a comunicação da prática de uma infração chegue a órgão ambiental, por meio de correspondência, e-mail, ligação telefônica, ou outros meios de denúncia (cf. previsão do art. 17, § 1º, da Lei Complementar). Em tais situações, em prestígio ao princípio da cooperação entre os entes federativos (art. 23, parágrafo único, da Constituição Federal) e ao princípio do licenciador-primeiro fiscalizador (art. 17, caput, da Lei Complementar nº 140), o órgão ambiental deverá, primeiramente, comunicar que recebeu a notícia do fato ao órgão com competência para o licenciamento ou autorização da atividade ou empreendimento, provocando o órgão primariamente competente a desencadear ação fiscalizatória.
Deverá o órgão que recebeu a denúncia indicar um prazo razoável para que seja realizada a ação fiscalizatória (note-se bem: não se trata de determinação, mas sim de recomendação). Nessa indicação, obviamente, devem ser considerados a urgência, eventualmente presente no caso, e o prazo prescricional a que toda a Administração está vinculada.
Escoado o prazo indicado no caso concreto, e configurando-se a omissão do órgão competente para licenciar, o ente ambiental que recebeu a denúncia deverá proceder à sua ação fiscalizatória. Vale aqui enfatizar que, uma vez configurada a inércia do ente primariamente competente após ser formalmente informado dos fatos que ensejam fiscalização ambiental concreta, o órgão que o notificou passará a agir subsidiariamente, diante da formalizada omissão do ente primariamente competente. Em tal situação, a atuação subsidiária torna-se plena, e não poderá vir a ser arquivada, caso, mais a frente, o órgão licenciador decida fiscalizar o objeto da autuação.
De outro modo, sabe-se existirem situações que, por certas especificidades, demandam atuação concreta do órgão que se encontra em fiscalização em campo, ainda que não seja esse o ente licenciador. Há operações incluídas em planos de fiscalização, já em processo de realização, que contemplam, de forma racional e eficiente, vários empreendimentos e atividades, cuja regularidade ambiental será apurada em grupo.
Em tais casos, haverá razão operacional que justifique uma atuação imediata, mesmo porque a efetividade da ação poderá ser útil aos fins da operação como um todo. Perceba-se que em tais operações, previamente planejadas, há toda uma logística de atuação, que garante resultado e concretização dos objetivos buscados, a partir de uma estrutura pré-montada. Ademais, por se incluir no planejamento da entidade, como é exemplo concreto para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama o combate ao desmatamento na Região Amazônica Brasileira, presume-se a alta relevância da sua plena realização pelo órgão dela incumbido.
Há que se destacar, ainda, que tais operações envolvem usualmente consideráveis recursos financeiros, destinados ao deslocamento de força de trabalho, para atuar nas mais longínquas regiões do país, o que nem sempre pode ser repetido em curto prazo, seja pelo mesmo órgão, seja por outro ente ambiental também competente para atuar. Tais razões servem apenas para justificar que, em determinadas situações, não há sentido, ou qualquer permissivo de ordem prática ou mesmo legal, que justifique a opção pela notificação, em detrimento da esperada e imediata atuação fiscalizatória no caso concreto. Com efeito, provocar diverso órgão ambiental para atuar nessas situações não parece ser a melhor escolha, visto que muito provavelmente a ação do outro órgão competente estará comprometida, em face das indubitáveis dificuldades de ordem operacional para tanto.
Observa-se que arquitetar toda essa logística e despender os necessários recursos financeiros para operacionalizá-la inviabilizam, por vezes, a notificação, em detrimento da ação concreta. Ou seja, em determinadas situações, é injustificável que o órgão em operação provoque outro ente ambiental e aguarde uma possível atuação, para apenas após confirmada a inércia deste, voltar ao local da infração (quando possível) com o objetivo de formalizar a autuação. Tal sistemática não faz sentido, mormente se considerados princípios aplicáveis, como o da eficiência administrativa, cumulado com a necessidade de se racionalizar o uso dos recursos públicos.
Diante de tais ponderações, outra conclusão não resta a não ser afirmar que, a depender da situação fiscalizatória concreta, poderá haver fundamento suficiente para a atuação imediata do órgão ambiental que está em campo, com a lavratura do auto de infração correspondente. E, em tais casos, desde que não expedida licença ambiental por órgão diverso, o primeiro auto de infração lavrado deverá prevalecer, ainda que, em tese, seja possível a lavratura posterior de outro auto (e aí desnecessariamente, frise-se).
Assim, entende-se autorizado e até recomendável, desde já, a lavratura do necessário auto de infração, ainda que pelo órgão não competente para emitir no caso a licença ambiental da atividade fiscalizada. Caberá ao agente lavrar o auto de infração, no exercício da competência comum e em observância ao art. 70, §§ 1º e 3º, da Lei 9.605/1998, impondo-se, em seguida, a instauração do devido processo administrativo (art. 98 do Decreto nº 6.514/2008), que terá o seu normal seguimento.
Note-se que se o agente público verifica a ocorrência do motivo ou pressuposto objetivo do ato administrativo — que, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Melo, consiste no “pressuposto de fato que autoriza ou exige a prática do ato”[10] — tem ele o dever de fazer incidir a lei ambiental que prescreve consequências para a prática de infração ambiental.
Simultaneamente à lavratura do auto, deverá ocorrer a comunicação ao órgão com atribuição de licenciamento da atividade ou empreendimento (por força do princípio da cooperação entre os entes e em aplicação analógica ao § 2º do art. 17 da Lei Complementar nº 140/11), a qual não visa a possibilitar a lavratura de um auto de infração pelo órgão comunicado, uma vez que esse já não pode mais emitir uma autuação com aptidão para prevalecer. A informação tem por escopo outras finalidades administrativas, como por exemplo, evitar que outro ente lavre o seu próprio auto de infração e/ou noticiar o órgão licenciador sobre a existência de fato que poderá, inclusive, repercutir no futuro licenciamento ou autorização, a ser possivelmente analisado e expedido pelo órgão competente. Decorre daí a importância de o órgão autuante informar o ente competente para licenciar acerca da atividade fiscalizatória então realizada[11].
No mais, o recurso ao aspecto cronológico não é novo, pois já utilizado nas soluções jurídicas de problemas envolvendo a concorrência de atos administrativos no tempo. Ele já se aplica nas hipóteses em que há dois ou mais autos de infração lavrados no âmbito do mesmo ente federativo. Suponha-se, em exemplo, caso em que órgão ambiental lavre dois autos de infração relativos a uma mesma conduta, na mesma hipótese de incidência, situação em que, se não houver vício, deve prevalecer o primeiro auto, que reflete ato administrativo perfeito, já produzido.
Entende-se ainda oportuno destacar entendimento doutrinário que defende ser inexigível de órgão competente a abstenção do exercício de atribuição a ele garantida pela Constituição:
“Excetuando as competências outorgadas pelos arts. 21, 25, 29, 29-A e 30, da Constituição, todas as atribuições de competência da Lei Complementar 140/2011, ficarão, em cada caso, sujeitas à livre adesão pelos entes federativos, que não podem ser constrangidos, sem violação constitucional, à abstenção do exercício da competência comum”.[12] Grifos nossos
O comentário revela com nitidez que, à luz da competência comum, a atuação não tem como ser rigidamente dividida, a ponto de impossibilitar a atuação concreta de órgão em determinada situação. O objetivo traçado pelo legislador deverá ser sempre focado na eficiência administrativa, ora direcionando a atuação de cada órgão, com o intuito de evitar sobreposição de atividades, ora garantindo que o órgão licenciador fiscalize o cumprimento da sua licença, quando efetivamente expedida.
Em caso de inexistência de licença, contudo, ainda que seja desejável a fiscalização por órgão competente para emitir a licença esperada, não se pode vedar a atuação dos demais órgãos ambientais, também competentes. E, garantir essa plena autuação em observância ao interesse maior na proteção ao meio ambiente significa fazer prevalecer a fiscalização daquele que primeiro autuou e que tem, portanto, um processo administrativo mais avançado, em termos instrutórios.
Tal critério cronológico de prevalência, como visto, só não se justifica em caso de efetiva expedição de licença ambiental, situação em que o pleno conhecimento dos limites e das condicionantes presentes no licenciamento ambiental garante ao órgão licenciador melhores condições e legitimidade para atuar. Essas razões, compreendidas pelo legislador e expressamente disposta no art. 17 da LC nº 140/11, devem ser observadas, garantindo-se, como analisado no tópico anterior, a prevalência do auto de infração lavrado pelo órgão licenciador, ainda que posterior a outra fiscalização realizada na mesma hipótese de incidência.
5. Da competência fiscalizatória em relação às atividades que não se submetem a licenciamento ambiental
Outro ponto de reflexão, não tratado pela LC nº 140/11, diz respeito à divisão de competência comum para fiscalizar atividades transgressoras das normas ambientais, mas que não estão sujeitas ao controle licenciatório, seja por ser desnecessária a licença ambiental, seja em virtude da ilegalidade da atividade exercida, que de forma alguma pode ser objeto de autorização estatal. Trata-se essa última de ação proibida e, sendo afastada a legalidade da sua prática, não há que se falar em procedimento licenciatório e, muito menos, em órgão ambiental competente para fazê-lo.
Podem parecer, em princípio, pouco corriqueiras as situações ora tratadas, mas forçoso reconhecer que elas se colocam na realidade prática, ainda que não usuais. Como integrantes dessa categoria, pode-se exemplificar a atividade de pesca com explosivos (proibida em absoluto) ou a construção de uma casa, que apesar de não está sujeita em princípio à licença ambiental, pode ser objeto de fiscalização, por ser, no caso concreto, transgressora de normas ambientais.
De uma simples leitura do art. 17, acima transcrito, depara-se com a falta de regulamentação sobre o assunto posto, ou seja, parece não ter tido o legislador a intenção de limitar a competência comum ou de estabelecer critérios de divisão de atribuição entre os entes, em tais situações. A LC nº 140/11, seja no caput, seja nos parágrafos do art. 17, ou ainda em outro dispositivo qualquer, não cuidou de estabelecer critérios para delimitar a competência dos entes ambientais, em fiscalização de obra ou atividade não sujeita ao licenciamento ambiental. De outra forma, não se pode negar a existência de demanda fiscalizatória, no caso, como já reconheceu, inclusive, o Poder Judiciário:
“A fiscalização, por sua vez, se perfaz na possibilidade de se verificar a adequação de atividades ou empreendimentos às normas e exigências ambientais, sancionando aquelas que estejam em desacordo. Tal fiscalização pode ocorrer em atividades sujeitas ou não ao licenciamento e em momento anterior, concomitante ou posterior à emissão da licença”[13]. Grifos nossos
Perceba-se que o caput do art. 17 trata de “atividade licenciada ou autorizada”, enquanto o seu §3º, no mesmo sentido, e diante de duplicidade, faz prevalecer “o auto de infração ambiental lavrado por órgão que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização”. Nada se estabeleceu, pois, em relação à atribuição legal para fiscalizar atividades não licenciáveis.
Em razão disso, prevalece sem restrições a competência comum prevista na Constituição Federal, tendo em vista a inexistência de norma complementar de cooperação entre os entes públicos, que permita delimitar a competência para fiscalização ambiental de atividade não submetida a licenciamento/autorização ambiental. Tal conclusão, além de resultar da interpretação literal e gramatical da legislação, pode ser obtida por meio da interpretação sistemática da normativa aplicável e do real objetivo do legislador constituinte, anunciado ao longo de toda a Carta Magna, em especial no art. 225, supra transcrito.
É que, como já visto, na competência comum o campo de atuação é conjugado, de igual forma, entre várias entidades, sem que o exercício de uma venha a excluir a competência de outra. As atribuições, destarte, não se restringem à execução das leis e serviços em cada esfera, mas abrange as demais, em sistema de cooperação, tendo em vista a necessidade de alcançar o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
Com a fiscalização, busca-se, muitas vezes, cessar o dano ambiental em regime de urgência, sendo que tal importante mister não possui critério rígido de definição de atuação, o que se manteve no caso de atividades não sujeitas a procedimento administrativo licenciatório, razão pela qual poderá ser exercido por qualquer ente federado. Assim, a interpretação do art. 23, no que tange a ações não licenciáveis, deve ser feita de forma ampliativa, no sentido de que a desejada ação seja exercida cumulativamente por todos os entes federativos[14].
É fato que a LC nº 140/11 entendeu por bem direcionar a atuação de cada órgão ambiental, levando em consideração, em princípio, as melhores condições técnicas que detém o órgão licenciador de fiscalizar a atividade por ele licenciada. Tal delimitação, como já visto, faz todo sentido, quando se vislumbra que a fiscalização de uma atividade licenciada demanda o conhecimento pleno da licença ambiental emitida, o que garante ao órgão licenciador as necessárias condições para avaliar os limites de atuação do licenciado, bem como o eventual descumprimento das condições estipuladas pelo licenciador.
Daí porque, em princípio, detém o órgão licenciador plenas condições de adentrar no mérito da licença por ele mesmo deferida, com o fim de avaliar possível inobservância das suas condicionantes, resultando na configuração de infração ambiental. O mesmo não se pode dizer de atividade não licenciável, entendendo-se que, quanto a essa, não há motivo ou fundamento que justifique sequer a delimitação da competência comum.
Em tais casos, forçoso reconhecer que a legislação em vigor prevê igual competência de todos os entes federativos para, em qualquer situação concreta de atividade não sujeita a licenciamento ambiental, lavrar auto de infração ambiental.
Assim, constata-se que, quanto a atividades não licenciáveis, não haverá que se falar em delimitação da competência comum, cabendo a qualquer órgão ambiental exercer efetivamente a fiscalização em tela. Isso não significa, contudo, ser recomendável que entes diversos fiscalizem um mesmo empreendimento, o que não se coaduna com os princípios expressos na legislação de regência, conforme já analisado.
Com efeito, a própria Lei Complementar 140/2011 estabeleceu como objetivo fundamental dos entes da Federação, no exercício da competência comum, harmonizar as políticas e as ações administrativas para evitar a sobreposição de atuação entre eles, de forma a afastar conflitos de atribuições e garantir uma atuação administrativa eficiente (art. 3°, III). Esse objetivo decorre do próprio princípio constitucional da eficiência, que deve nortear as ações da Administração Pública em todas as esferas, até para evitar o dispêndio de recursos públicos de mais de um ente na execução da mesma ação administrativa voltada para a defesa do meio ambiente.
Assim, embora todos possam igualmente fazê-lo, não é recomendável que um órgão ambiental fiscalize atividade ou empreendimento já objeto de auto de infração lavrado por outro órgão também competente. De qualquer forma, não se tem como evitar, em absoluto, que isso ocorra, mesmo porque comumente o órgão fiscalizador não detém informações acerca da já existência de auto de infração lavrado para a mesma hipótese de incidência.
Diante dessa realidade, cumpre observar as já analisadas normas de prevalência de um único auto de infração, mesmo porque não faz sentido o dispêndio de energia e de recursos públicos e a utilização da escassa força de trabalho de dois órgãos ambientais, na mesma situação de incidência. Assim, em caso de dois autos lavrados em face da mesma infração administrativa praticada, sendo esta não sujeita a licenciamento ambiental, impõe-se o arquivamento do segundo auto cronologicamente lavrado, em igual solução e pelas mesmas razões e considerações já apresentadas, em relação às atividades não efetivamente licenciadas.
6. Da necessária atuação dos órgãos ambientais em caso de iminência ou de ocorrência de degradação da qualidade ambiental
Por fim, importa discorrer sobre a melhor forma de atuação cooperativa dos órgãos ambientais em casos urgentes, cuja situação fática envolvida demanda uma atuação imediata por parte daquele que toma conhecimento da prática infracional. Sobre o assunto, importa, desde já, transcrever dispositivo existente na LC nº 140/2011:
“Art. 17. (…)
§ 2o Nos casos de iminência ou ocorrência de degradação da qualidade ambiental, o ente federativo que tiver conhecimento do fato deverá determinar medidas para evitá-la, fazer cessá-la ou mitigá-la, comunicando imediatamente ao órgão competente para as providências cabíveis.”
Em consonância com a referida disposição, a legislação vigente sobre apuração de infração administrativa ambiental também estabelece a necessidade de adoção de medidas acautelatórias pelo órgão ambiental, com vistas a evitar a ocorrência de dano ambiental e/ou a impedir a sua continuidade. Nos termos do Decreto nº 6.514, de 22 de julho de 2008:
“Art. 101. Constatada a infração ambiental, o agente autuante, no uso do seu poder de polícia, poderá adotar as seguintes medidas administrativas:
I – apreensão;
II – embargo de obra ou atividade e suas respectivas áreas;
III – suspensão de venda ou fabricação de produto;
IV – suspensão parcial ou total de atividades;
V – destruição ou inutilização dos produtos, subprodutos e instrumentos da infração; e
VI – demolição.
§ 1o As medidas de que trata este artigo têm como objetivo prevenir a ocorrência de novas infrações, resguardar a recuperação ambiental e garantir o resultado prático do processo administrativo”.
É necessário esclarecer, de início, a distinção entre as medidas acautelatórias e as penalidades aplicadas como resultado do processo administrativo punitivo. As penalidades são confirmadas no curso do processo administrativo instaurado com esse propósito, em que é garantido ao autuado o exercício da ampla defesa e do contraditório, além da devida instrução processual, com a produção de provas, caso necessário.
De outro modo, as medidas acautelatórias serão aplicadas pelos agentes de fiscalização sempre que constatada a ocorrência de iminente risco ao meio ambiente ou em situação de efetiva degradação, que impõe a adoção de ação imediata para cessá-las. Em tais situações de urgência, o verbo “poderá” há de ser lido como “deverá”, cabendo ao fiscal identificar qual a medida mais adequada para atingir os objetivos insculpidos no § 1º do art. 101, acima transcrito. Nesse sentido, é válida lição doutrinária sobre o comando legal em análise:
“O termo poderá que consta do caput do artigo não representa um poder discricionário absoluto posto à disposição do agente autuante, que lhe permita agir ou não conforme a sua vontade, mas a possibilidade de optar pela medida administrativa mais apropriada para cada situação. Vale dizer, não é facultado ao agente deixar de apreender o produto ou instrumento ilícito, nem deixar de embargar a atividade que contraria normas ambientais.”[15]
Quanto à aplicação de medidas cautelares, pois, o órgão ambiental que tomar conhecimento da situação de risco, ainda que não seja o ente licenciador competente (em caso de atividades licenciáveis ou licenciadas), deverá agir imediatamente. Não sendo sua a atribuição primária para tanto, caberá ao atuante comunicar, em seguida, ao órgão competente as providências adotadas.
Nesse sentido, importa averiguar as consequências de ordem prática da aludida comunicação, caso o órgão aplicador da medida cautelar não seja o primeiramente competente para agir na situação concreta em análise. Na realidade, como visto alhures, em caso de atividade não licenciável ou não licenciada, o ente ambiental que atuou primeiro vai ver prevalecido o seu auto de infração ambiental e, consequentemente, as medidas cautelares eventualmente aplicadas.
De outro modo, caso o empreendimento autuado esteja efetivamente licenciado por outra entidade ambiental, o órgão não licenciador, diante da constatação de infração, poderá, como visto, adotar duas medidas: 1. Lavrar desde já auto de infração, que deverá ser arquivado, em caso de lavratura, ainda que posterior, de outro auto por parte do órgão primariamente competente; ou 2. Deixar de lavrar o competente auto e comunicar ao órgão licenciador acerca da irregularidade constatada, para possível atuação.
Nessa última situação, dever-se-á aplicar, na literalidade, o previsto no § 2º do art. 17, acima transcrito, cabendo, pois, ao órgão fiscalizador emitir desde logo o termo formalizador da necessária medida cautelar, que não virá, contudo, acompanhado da lavratura do respectivo auto de infração. Em seguida, o órgão que aplicou a medida cautelar no caso concreto deverá notificar o órgão primariamente competente, informando-o da inconformidade apurada e concedendo-lhe um prazo razoável para atuação fiscalizatória pelo ente licenciador. No prazo a ser fixado discricionariamente pelo órgão comunicante, o ente primariamente competente deverá exercer a fiscalização ambiental, informando, no mesmo período de tempo indicado, que foi efetivamente realizada a esperada ação fiscalizatória.
Em tal hipótese, se o órgão primariamente competente não atuar no prazo fixado, caberá ao órgão que aplicou a medida cautelar dar continuidade à ação fiscalizatória, lavrando o respectivo auto de infração ambiental e prosseguindo com a respectiva instrução processual, no que tange à medida cautelar anteriormente emitida.
Tem-se, pois, que nas duas hipóteses relatadas caberá ao órgão fiscalizador que primeiro tomar conhecimento da situação de risco aplicar, desde já, as medidas cautelares que se mostrarem imprescindíveis, emitindo o correspondente termo (de embargo, de apreensão, de interdição etc). Ocorre que, no primeiro caso, em que o órgão fiscalizador entender pela lavratura imediata do auto de infração, acompanhado da emissão do termo aplicador da medida cautelar, os documentos efetivamente emitidos terão seguimento ordinário, devendo, em regra, serem devidamente instruídos e julgados. Exceção a tal julgamento ocorre quando, no curso instrutório, o órgão licenciador competente venha a emitir o seu auto de infração ambiental, situação em que o auto lavrado pelo órgão não licenciador haverá de ser arquivado, extinguindo-se também, na fase em que estiver, os respectivos termos cautelares.
Há que se questionar, contudo, acerca das conseqüências advindas dos casos em que as medidas cautelares já estiverem concretizadas, ou seja, nas situações em que a medida aplicada já tenha surtido os efeitos práticos admissíveis, mostrando-se inclusive irreversível. Pode-se citar como exemplo a medida de demolição, que pode ser realizada, observadas certas condições, no ato fiscalizatório, ou ainda a doação sumária de bem apreendido, a qual, no início da instrução processual, dá destinação juridicamente válida e, na prática, irreversível ao instrumento ou objeto da infração ambiental fiscalizada.
A questão se torna mais complexa, destarte, quando são analisadas as medidas acautelatórias eventualmente concretizadas por órgão não primariamente competente, caso a atividade fiscalizada esteja efetivamente licenciada. Deve-se considerar o principal efeito decorrente da imposição da medida acautelatória, ponderando que dela pode resultar a destinação ou destruição dos bens apreendidos/envolvidos na infração, logo no início do processo administrativo, conforme se depreende da leitura do Decreto 6.514/2008:
“Art. 107. Após a apreensão, a autoridade competente, levando-se em conta a natureza dos bens e animais apreendidos e considerando o risco de perecimento, procederá da seguinte forma: (…)
III – os produtos perecíveis e as madeiras sob risco iminente de perecimento serão avaliados e doados.
§ 1o Os animais de que trata o inciso II, após avaliados, poderão ser doados, mediante decisão motivada da autoridade ambiental, sempre que sua guarda ou venda forem inviáveis econômica ou operacionalmente.
§ 2o A doação a que se refere o § 1o será feita às instituições mencionadas no art. 135.
§ 3o O órgão ou entidade ambiental deverá estabelecer mecanismos que assegurem a indenização ao proprietário dos animais vendidos ou doados, pelo valor de avaliação consignado no termo de apreensão, caso esta não seja confirmada na decisão do processo administrativo.
§ 4o Serão consideradas sob risco iminente de perecimento as madeiras que estejam acondicionadas a céu aberto ou que não puderem ser guardadas ou depositadas em locais próprios, sob vigilância, ou ainda quando inviável o transporte e guarda, atestados pelo agente autuante no documento de apreensão.
§ 5o A libertação dos animais da fauna silvestre em seu hábitat natural deverá observar os critérios técnicos previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade ambiental competente.
Art. 111. Os produtos, inclusive madeiras, subprodutos e instrumentos utilizados na prática da infração poderão ser destruídos ou inutilizados quando:
I – a medida for necessária para evitar o seu uso e aproveitamento indevidos nas situações em que o transporte e a guarda forem inviáveis em face das circunstâncias; ou
II – possam expor o meio ambiente a riscos significativos ou comprometer a segurança da população e dos agentes públicos envolvidos na fiscalização.
Parágrafo único. O termo de destruição ou inutilização deverá ser instruído com elementos que identifiquem as condições anteriores e posteriores à ação, bem como a avaliação dos bens destruídos.
Art. 112. A demolição de obra, edificação ou construção não habitada e utilizada diretamente para a infração ambiental dar-se-á excepcionalmente no ato da fiscalização nos casos em que se constatar que a ausência da demolição importa em iminente risco de agravamento do dano ambiental ou de graves riscos à saúde.
§ 1o A demolição poderá ser feita pelo agente autuante, por quem este autorizar ou pelo próprio infrator e deverá ser devidamente descrita e documentada, inclusive com fotografias.
§ 2o As despesas para a realização da demolição correrão às custas do infrator.
§ 3o A demolição de que trata o caput não será realizada em edificações residenciais.” Grifos nossos
Não interessa aqui abordar os requisitos que autorizam a adoção dessas medidas, já no início do processo administrativo, tão logo constatada a infração ambiental (o que foge do escopo da presente análise). Importa ponderar apenas que a efetiva destinação ou destruição de bens, demolição de obras e edificações e soltura de animais tornam-se atos administrativos perfeitos e plenamente eficazes, como medidas acautelatórias válidas, que, por serem irreversíveis, não podem ser revistas por outro órgão de meio ambiente, no exercício de seu poder de polícia.
Nessas circunstâncias, a prevalência do auto de infração do órgão licenciador, acaso lavrado após a efetivação dessas medidas, poderia gerar a teratológica situação em que um animal solto no seu habitat natural deveria ser devolvido ao infrator/guardião ou uma construção já demolida em área protegida teria que ser reconstruída, por decisão posterior de outro órgão ambiental. Os processos administrativos e a teórica previsão legal genérica de “prevalência” talvez admitam tais situações, as quais, contudo, no mundo prático, tornam-se de impossível admissão.
Nesses casos, em que efetivamente aplicada uma medida cautelar que já surtiu regularmente todos os seus efeitos práticos admissíveis, o processo deverá prosseguir perante o órgão que a aplicou, exclusivamente para julgamento das medidas acautelatórias, nos termos do que dispõe o art. 124, § 1º, do Decreto 6.514/2008[16].
Importa lembrar ainda que a responsabilidade pela destinação sumária do bem apreendido é do ente ambiental que aplicou a medida, o qual deve também assegurar-se de mecanismos que viabilizem a indenização dos proprietários, caso o ato administrativo correspondente não reste homologado pela autoridade competente. Trata-se, pois, de mais um motivo para afastar a possibilidade de outro ente ambiental julgar a medida acautelatória imposta por órgão diverso e já concretizada em todos os seus efeitos práticos, pois desse julgamento decorrem responsabilidades de natureza civil.
Situação diversa ocorre em caso de medida cautelar ainda não efetivada ou mesma nas situações em que a medida já produz efeitos práticos, mas que podem ser obstados a qualquer momento. Imagine-se o caso de emissão de embargo de uma atividade ou de apreensão de um caminhão, que transporta madeira irregular, cuja guarda foi deixada, provisoriamente, com determinado órgão público. Em tais situações, caso se efetive, no curso da instrução processual, a lavratura do auto de infração na mesma hipótese de incidência pelo órgão licenciador competente, caberá ao ente não licenciador, após tomar ciência formal da atuação do órgão primariamente competente no caso concreto, arquivar todo seu processo administrativo, seja o auto de infração eventualmente lavrado, seja os demais termos cautelares emitidos na mesma situação.
Assim, nas situações concretas relatadas, prevalecerão as medidas cautelares eventualmente impostas pelo órgão licenciador, o qual será comunicado do embargo, da apreensão ou de outra medida cautelar eventualmente aplicada pelo primeiro órgão fiscalizador. Caberá a esse informar, inclusive, onde se encontra o bem apreendido e a quem foi deferido o seu depósito (guarda), enviando ao órgão licenciador cópia dos correspondentes termos (embargo, apreensão e depósito) emitidos.
Vale destacar que o envio de cópia dos termos deve se fazer acompanhar das informações completas sobre o ato fiscalizatório praticado pelo órgão e acerca das medidas adotadas. Deve-se noticiar ainda que os termos cautelares, outrora emitidos pelo órgão não licenciador, serão arquivados, caso seja concretamente exercida a fiscalização no caso concreto pelo órgão primariamente competente. Tal troca efetiva de informações entre os órgãos do SISNAMA deve se fazer ainda mais presente, após a vigência da LC nº 140/2011, sugerindo-se aos órgãos ambientais que analisem formas de operacionalizar e objetivar a necessária comunicação, o que pode ser realizado por meio de acordos de cooperação a serem firmados entre eles.
Prevalecerão, pois, as medidas cautelares aplicadas pelo órgão licenciador, desde que esse venha a exercer efetivamente a fiscalização naquela atividade/empreendimento e preste a devida informação ao ente não licenciador, já atuante na situação concreta, ao qual caberá arquivar o seu auto de infração e consequentemente as medidas cautelares impostas. A exceção a esse último arquivamento, como visto, ocorrerá nos casos em que as medidas cautelares já tenham surtido todos os seus efeitos práticos admissíveis, hipótese em que deverá o órgão que as aplicou dar continuidade à sua instrução e julgamento confirmatórios, impondo-se, contudo, o arquivamento do auto de infração correspondente.
Das considerações finais
Após analisar e interpretar a novel disciplina legal que atualmente delimita a divisão de atribuição fiscalizatória entre os órgãos ambientais, é fácil concluir pela complexidade do tema em referência. Inegável a boa intenção do legislador em garantir uma atuação integrada, com vistas a evitar uma perniciosa multiplicidade de ações fiscalizatórias no caso concreto, o que parece muito adequado, mormente se considerado o princípio da Eficiência Administrativa, previsto na Constituição Federal Brasileira.
É preciso, contudo, atentar para a realidade prática, e considerar as dificuldades de toda ordem encontradas pelos entes ambientais nas atividades fiscalizatórias por eles realizadas nas mais distantes regiões do país. Não se pode esquecer as deficiências estruturais dos órgãos do SISNAMA e a escassez de recursos humanos, técnicos e financeiros, que são constantemente demandados na proteção do meio ambiente.
Necessário, pois, interpretar o art. 17 da LC nº 140/2011 partindo-se da competência comum, constitucionalmente assegurada, para fiscalizar condutas lesivas ao meio ambiente, focando sempre no objetivo maior buscado, de tornar mais eficiente o controle da degradação ambiental e a imposição efetiva de sanções administrativas.
Nesse sentido, impõe-se a aplicação literal do referido dispositivo legal apenas às atividades e aos empreendimentos efetivamente licenciados, uma vez que nesses casos o órgão ambiental licenciador terá legitimidade e melhores condições técnicas e operacionais para exercer a fiscalização ambiental, adentrando, por vezes, no mérito do licenciamento por ele mesmo expedido. Assim, em tais situações, a despeito da competência comum dos órgãos ambientais para o exercício da atividade fiscalizatória, caberá o arquivamento de auto de infração lavrado pelo órgão não licenciador, fazendo-se prevalecer a autuação do ente ambiental competente para licenciar, ainda que não se trate do primeiro auto cronologicamente lavrado.
De outra forma, as atividades licenciáveis (mas não efetivamente licenciadas) e aquelas que não se submetem a processo licenciatório devem ser fiscalizadas por qualquer órgão ambiental, no exercício da competência constitucional comum dos entes nas três esferas de Governo. Prevalecerá, contudo, o auto de infração primeiramente lavrado, uma vez que a antecedência cronológica permitirá o aproveitamento da instrução processual mais avançada, que já despendeu maiores recursos públicos na apuração da correspondente infração administrativa ambiental, além de se presumir maior precisão apuratória, diante de sua proximidade dos fatos fiscalizados.
Por fim, no que tange à imposição de medidas cautelares, deve-se observar, em regra, as mesmas disposições aplicáveis à lavratura de auto de infração, referentes à prevalência de apenas um ato fiscalizatório e arquivamento dos demais. Impõe-se, contudo, a atuação cautelar e imediata do órgão ambiental que efetivamente constata situação de iminência ou efetiva ocorrência de prática degradadora. Nos casos de prevalência do auto lavrado pelo órgão licenciador (atividades efetivamente licenciadas), as medidas aplicadas por órgão diverso, se irreversíveis, devem ser apreciadas e confirmadas pelo ente ambiental que emitiu o correspondente termo que a formalizou, arquivando-se, no entanto, o auto de infração respectivo.
Entende-se que, dessa forma e seguindo-se a sistemática de fiscalização e de prevalência aqui defendidas, será possível atender aos objetivos traçados pelo legislador, garantindo-se a desejada efetividade da política nacional do meio ambiente.
Procuradora federal junto ao Ibama e pós graduada em Direito Público e em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina.
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