I. Introdução
O homem é um ser coexistencial, que não pode subsistir por longo tempo independente de qualquer contato; ao oposto, devido à natureza de suas condições existenciais, todas as pessoas dependem do intercâmbio, da colaboração e confiança recíproca1. Ao não alcançar sua plenitude isoladamente, está obrigado a manter contato com outros homens. Inobstante, o homem é um animal insatisfeito, insatisfeito precisamente em relação aos que convivem com ele, e isso arranca-lhe uma série de atitudes sociais, de conflitos sociais. Esses conflitos intersubjetivos de interesses devem ser regulados pelo Direito, sob pena de colocar em risco a própria manutenção da vida em sociedade. Tal conflito vem caracterizado como uma colisão de atividades entre os diversos membros da comunidade, ou seja, como uma incompatibilidade exteriorizada entre várias atitudes dinâmicas assumidas pelas partes que dão lugar ao conflito2.
Em linhas gerais, o Direito Penal surge como um importante instrumento de manutenção da paz social, e, como resume JESCHECK3, la misión del derecho penal es la protección de la convivencia humana en la comunidad. No mesmo sentido, WESSELS4 explica que a tarefa do Direito Penal é a proteção dos valores elementais da vida comunitária, no âmbito da ordem social, e como garantidor da manutenção da paz jurídica.
O injusto típico surge quando falha o Direito Penal em sua função de prevenir infrações jurídicas no futuro5 – função de prevenção – e advém uma conduta humana voluntária, finalisticamente dirigida, que lesiona ou expõe a perigo esses bens e valores reconhecidos e protegidos pelo ordenamento, gerando um juízo de desvalor da ação e também de desvalor do resultado. Esse juízo de desvalor, em última análise, exterioriza-se mediante a aplicação de uma pena (ou medida de segurança) e corporifica a função repressiva do Direito Penal.
Mas o Direito Penal é despido de coerção direta e, ao contrário do Direito Privado, não tem atuação nem realidade concreta fora do processo correspondente. Para que possa ser aplicada uma pena, não só é necessário que exista um injusto tipico, mas também que exista previamente o devido processo penal. Como explica GOMEZ ORBANEJA6, a pena não só é efeito jurídico do delito, senão que é um efeito do processo; mas o processo não é efeito do delito, senão da necessidade de impor a pena ao delito por meio do processo. Por isso, a pena depende da existência do delito e da existência efetiva e total do processo penal, posto que se o processo termina antes de desenvolver-se completamente (arquivamento, suspensão condicional, etc.) ou se não se desenvolve de forma válida (nulidade), não pode ser imposta uma pena.
Existe uma íntima e imprescindível relação entre delito, pena e processo, de modo que são complementares. Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e impor uma pena.
Dentro dessa íntima relação entre o Direito Penal e o processo penal, deve-se apontar que ao atual modelo de Direito Penal mínimo, corresponde um processo penal garantista. Só um processo penal que, em garantia dos direitos do imputado, minimize os espaços impróprios da discrecionariedade judicial, pode oferecer um sólido fundamento para a independência da magistratura e ao seu papel de controle da legalidade do poder7.
A evolução do proceso penal está intimamente relacionada com a própria evolução da pena, refletindo a estrutura do Estado em um determinado período, ou, como prefere GOLDSCHMIDT8, los principios de la política procesal de una nación no son otra cosa que segmentos de su politica estatal en general. Se puede decir que la estructura del proceso penal de una nación no es sino el termómetro de los elementos corporativos o autoritarios de su Constitución. Partiendo de esta experiencia, la ciencia procesal ha desarrollado un número de principios opuestos constitutivos del proceso.
A titularidade do direito de punir por parte do Estado surge no momento em que é suprimida a vingança privada e são implantados os critérios de justiça. O Estado, como ente jurídico e político, avoca para si o direito (e também o dever) de proteger a comunidade e inclusive o próprio delinqüente, como meio de cumprir sua função de procurar o bem comun, que se veria afetado pela transgressão da ordem jurídico-penal, por causa de uma conduta delitiva9.
À medida que o Estado se fortalece, consciente dos perigos que encerra a autodefesa, assumirá o monopólio da justiça, produzindo-se não só a revisão da natureza contratual do processo, senão a proibição expressa para os particulares de tomar a justiça por suas próprias mãos. Frente à violação de um bem juridicamente protegido, não cabe outra atividade10 que não a invocação da devida tutela jurisdicional. Impõe-se a necessária utilização da estrutura preestabelecida pelo Estado – o processo judicial – em que, mediante a atuação de um terceiro imparcial, cuja designação não corresponde à vontade das partes e resulta da imposição da estrutura institucional, será solucionado o conflito e sancionado o autor. O processo, como instituição estatal, é a única estrutura que se reconhece como legítima para a imposição da pena.
Depois dessa breve introdução, cumpre buscar uma resposta para a proposição de GOLDSCHMIDT11. Por que supõe a imposição da pena a existência de um processo? Se o ius puniendi corresponde ao Estado, que tem o poder soberano sobre seus súditos, que acusa e também julga por meio de distintos órgãos, pergunta-se: por que necessita que prove seu direito em um processo?
Para GOLDSCHMIDT12, a necessidade de proteger os indivíduos contra os abusos do poder estatal é uma “construção técnica artificial” que não convence. Segundo o autor, para compreender essa definição, é necessário analisar a natureza da pena estatal, pois “a pena se impõe mediante um processo porque é uma manifestação da justiça e porque o processo é o caminho necessário, e a jurisdição penal é a antítese da jurisdição civil, porque ambas representam os dois ramos da justiça estabelecida por Aristóteles”, ou seja, da justiça distributiva (civil) e corretiva (penal). A justificação do processo penal está posta na essência mesma da justiça.
II. A instrumentalidade e o garantismo: a instrumentalidade garantista
A evolução do processo penal está intimamente relacionada com a evolução da pena, que por sua vez é reflexo da estrutura do Estado em um determinado período. O processo surge com o terceiro estágio de desenvolvimento da pena, agora como “pena estatal”, que vem marcada por uma limitação jurídica do poder de perseguir e punir. A pena somente pode ser imposta mediante o processo judicial e pelo Estado.
A) Exclusividade estatal da pena e do processo
O primeiro ponto que deve ser esclarecido, sem embargo da inestimável lição de GOLDSCHMIDT, é o fato de que o moderno Direito Penal já abandonou as teorias retributivas, pela sua inutilidade para a reinserção social do condenado. Como explica ROXIN13, a Teoria Unitária (mista) é a que melhor explica a atual função da pena. Segundo essa idéia, deve-se atribuir à pena a combinação dos três princípios inspiradores (retribuição, prevenção especial e prevenção geral), conforme o momento em que estiver sendo analisada: momento da previsão legal, momento da determinação judicial e a fase de execução da pena.
No primeiro momento, a pena deve ter a função de proteger os bens jurídicos, criando a idéia de prevenção geral por meio da intimidação coletiva e abstrata, inibindo as pessoas de cometer delitos. Em síntese, é um instrumento dirigido a coibir delitos.
No segundo momento, determinação judicial, o juiz deverá individualizar a pena (dosimetria) conforme as características do delito e do autor. Ao impor a pena, o juiz concretiza a ameaça contida no tipo penal abstrato, atendendo ainda ao fim de prevenção geral. Por fim, na terceira fase (cumprimento/execução da pena), obtém-se a prevenção especial e pretende-se a reinserção social e reeducação14 do condenado.
Os fins da pena devem ser perseguidos no marco penal estabelecido pela culpabilidade pessoal do sujeito (juízo de desvalor do autor do fato), na medida mais equilibrada possível, podendo variar ainda, em uma ou outra direção, segundo as características do caso concreto (desvalor do fato do autor).
No Direito Privado, as normas possuem uma eficácia direta, imediata, pois os particulares detêm o poder de praticar atos jurídicos e negócios jurídicos, de modo que a incidência das normas de Direito Material, sejam civis, comerciais, etc., é direta. As partes materiais, em sua vida diária, aplicam o Direito Privado sem qualquer intervenção dos órgãos jurisdicionais, que em regra são chamados apenas para solucionar eventuais conflitos surgidos pelo incumprimento do acordado. Em resumo, não existe o monopólio dos tribunais na aplicação do Direito privado e ni siquiera puede decirse que estadísticamente sean sus aplicadores más importantes15.
Por outro lado, totalmente distinto é o tratamento do Direito Penal, pois, ainda que os tipos penais tenham uma função de prevenção geral e também de proteção16, sua verdadeira essência está na pena e a pena não pode prescindir do processo penal. Existe um monopólio da aplicação da pena por parte dos órgãos jurisdicionais e isso representa um enorme avanço da humanidade.
Assim, fica estabelecido o caráter instrumental do processo penal com relação ao Direito Penal e à pena, pois o processo é o caminho necessário para a pena .
É o que GOMEZ ORBANEJA17 denomina de principio de la necesidad del proceso penal, amparado no art. 1º da LECrim18, pois não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e atuar a pena. O princípio apontado pelo autor resulta da efetiva aplicação no campo penal do adágio latino nulla poena et nulla culpa sine iudicio, expressando o monopólio da jurisdição penal por parte do Estado e também a instrumentalidade do processo penal.
Seguindo a sistematização de MONTERO AROCA19, são três os monopólios estatais:
a) Exclusividade do Direito Penal
b) Exclusividade pelos Tribunais
c) Exclusividade Processual
Como explicamos anteriormente, atualmente a pena é estatal (pública), no sentido de que o Estado substituiu a vingança privada e com isso estabeleceu que a pena é uma reação do Estado contra a vontade individual. Está proibida a autotutela e a “justiça pelas próprias mãos”. A pena deve estar prevista em um tipo penal e cumpre ao Estado definir os tipos penais e suas conseqüentes penas, ficando o tema completamente fora da disposição dos particulares20.
Entendemos que a exclusividade dos tribunais em matéria penal, deve ser analisada em conjunto com a exclusividade processual, pois, ao mesmo tempo que o Estado prevê que só os tribunais podem declarar o delito e impor a pena, também prevê a imprescindibilidade de que essa pena venha por meio do devido processo penal. Ou seja, cumpre aos juízes e tribunais declarar o delito e determinar a pena proporcional aplicável, e essa operação deve necessariamente percorrer o leito do processo penal válido e com todas as garantias constitucionalmente estabelecidas para o acusado.
Aos demais poderes do Estado, Legislativo e Executivo, está vedada essa atividade. Inobstante, como destaca MONTERO AROCA21, absurdamente …se constata día a día que las leyes van permitiendo a los órganos administrativos imponer sanciones pecuniarias de tal magnitud, muchas veces, que ni siquiera pueden ser impuestas por los tribunales como penas.
Outra situação que nos parece inaceitável é a aplicação de uma pena sem que tenha antecedido na sua totalidade um processo penal válido, como ocorre, v.g., na transação penal prevista no art. 72 c/c 85 da Lei 9099. Os referidos dispositivos permitem que a pena de multa, aplicada de forma imediata na audiência preliminar, seja convertida em pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, quando não for paga pelo acusado. O resultado final é absurdo: uma pena privativa de liberdade (fruto da conversão), sem culpa e sem que sequer tenha existido o processo penal. É um exemplo de subversão de princípios garantidores básicos do processo penal.
Por fim, destacamos que o processo penal constitui uma instância formal de controle do crime22, e, para a Criminologia, é uma reação formal ao delito e também pode ser considerado como um instrumento de seleção, principalmente nos sistemas jurídicos que adotam princípios como da oportunidade, plea bargaining e outros mecanismos de consenso.
B) A instrumentalidade do processo penal
Estabelecido o monopólio da justiça estatal e do processo, trataremos agora da instrumentalidade. Desde logo, não devem existir pudores em afirmar que o processo é um instrumento e que essa é a razão básica de sua existência. Ademais, o Direito Penal careceria por completo de eficácia sem a pena, e a pena sem processo é inconcebível, um verdadeiro retrocesso, de modo que a relação e interação entre Direito e Processo é patente.
Explica LEONE23 que a strumentalità do processo penal reside no fato de que a norma penal apresenta, quando comparada com outras normas jurídicas, a característica de que o preceito tem como conteúdo um determinado comportamento proibido ou imperativo e a sanção tem como destinatário aquele poder do Estado, que é chamado a aplicar a pena. Não é possível a aplicação da reprovação sem o prévio processo, nem mesmo no caso de consentimento do acusado, pois ele não pode submeter-se voluntariamente a pena, senão por meio de um ato judicial (nulla poena sine iudicio). Essa particularidade do processo penal demonstra que seu caráter instrumental é mais destacado que no processo civil.
Inobstante, é fundamental compreender que a instrumentalidade do processo não tem uma visão exclusivamente jurídica e tampouco jurídico-processual. Não é um instrumento que tem como única finalidade24 a satisfação de uma pretensão (acusatória) ou a justa composição da lide (processo civil). É o que BARBOSA MOREIRA25 denomina problemática essencial da efetividade do processo e que serve de ponto de partida para situar um dos mais graves problemas do processo: o que se entende por instrumentalidade.
Explica RANGEL DINAMARCO26, em sua magistral obra A Instrumentalidade do Processo, que a instrumentalidade pode ser classificada em negativa e positiva27.
A instrumentalidade negativa corresponde à negação do processo como um fim em si mesmo e significa um repúdio aos exageros processualísticos e ao excessivo aperfeiçoamento das formas (instrumentalidade das formas, com relevantíssimas conseqüências no sistema de nulidades).
A instrumentalidade positiva está caracterizada pela preocupação em extrair do processo (como instrumento) o máximo proveito quanto à obtenção dos resultados propostos e confunde-se com a problemática acerca da efetividade do processo, de modo que ele deverá cumprir integralmente toda a função social, política e jurídica. São quatro os aspectos fundamentais da efetividade: a) admisão em juízo; b) modo de ser do processo; c) justiça das decisões; d) utilidade das decisões.
A conclusão é que o processo não pode ser considerado como um fim em si mesmo, pois sua razão de existir está no caráter de instrumento-meio para a consecução de um fim. Esse fim não deve ser exclusivamente jurídico, pois a instrumentalidade do sistema processual não está limitada ao mundo jurídico (direito material ou processual). Por esse motivo, o processo deve também atender as finalidades sociais e políticas, configurando assim a finalidade metajurídica28 da jurisdição e do processo.
Com isso, o processo penal deve preocupar-se com a pacificação social, com o bem comum, e possui inclusive um caráter educacional, ou seja, é uma tendência universal, no que se refere aos fins do processo e do exercício da jurisdição, o abandono das fórmulas exclusivamente jurídicas29.
Outra tendência, também apontada por RANGEL DINAMARCO, é a visão liberal da jurisdição, como meio de tutela do indivíduo frente aos possíveis abusos ou desvios de poder dos agentes estatais: é o equilíbrio entre os valores poder e liberdade.
Resulta imprescindível visualizar o processo desde seu exterior, para constatar que o sistema não tem valor em si mesmo, senão pelos objetivos que é chamado a cumprir. Em uma perspectiva interna – atos do processo – verifica-se que cada um deles tem funções frente ao Direito Material, à sociedade e ao Estado. Isso não implica, de nenhum modo, desrespeitar o sistema processual ou defender um retrocesso, mas sim reconhecer seu verdadeiro status de instrumento autônomo a serviço do Direito Material, do Estado e da sociedade, e que, por si só, carece de razão de existir.
A independência conceitual e metodológica do Direito Processual com relação ao Direito Material foi uma conquista fundamental. Direito e processo constituem dois planos verdadeiramente distintos no sistema jurídico, mas estão relacionados pela unidade de objetivos sociais e políticos, o que conduz a uma relatividade do binômio direito-processo (substance-procedure)30.
Respeitando sua separação institucional e a autonomía de seu tratamento científico, o processo penal está a serviço do Direito Penal, ou, para ser mais exato, da aplicação desta parcela do Direito Objetivo31. Por esse motivo, não pode descuidar do fiel cumprimento dos objetivos traçados por aquele, entre os quais está o de proteção do indivíduo.
Como explica RANGEL DINAMARCO, a autonomia extrema do processo com relação ao Direito Material foi importante no seu momento, e, sem ela, os processualistas não haveriam podido chegar tão longe na construção do sistema processual. Mas isso já cumpriu com a sua função. A acentuada visão autônoma está em vias de extinção e a instrumentalidade está servindo para relativizar o binômio direito-processo, para a liberação de velhos conceitos e superar os limites que impedem o processo de alcançar outros objetivos, além do limitado campo processual.
A ciência do processo já chegou a um ponto de evolução que lhe permite deixar para trás todos os medos e preocupações de ser absorvida pelo Direito Material, assumindo sua função instrumental sem qualquer menosprezo. O Direito Penal não pode prescindir do processo, pois a pena sem processo perde sua aplicabilidade.
Com isso, concluímos que a instrumentalidade do processo penal é o fundamento de sua existência, mas com uma especial característica: é um instrumento de proteção dos direitos e garantias individuais. É uma especial conotação do caráter instrumental e que só se manifesta no processo penal, pois trata-se de instrumentalidade relacionada ao Direito Penal, à pena, às garantias constitucionais e aos fins políticos e sociais do processo. É o que denominamos instrumentalidade garantista.
C) Instrumentalidade garantista e o estado democrático de direito
Na definição de GOLDSCHMIDT, o processo penal resume-se como um caminho para a aplicação da pena, e a necessidade de proteger os indivíduos contra os abusos do poder estatal é uma “construção técnica artificial” que não é convincente.
Inicialmente, discordamos em parte da afirmação, pois antes de servir para a aplicação da pena, o processo serve ao Direito Penal e a pena não é a única função do Direito Penal. Tão importante como a pena é a função de proteção do Direito Penal com relação aos indivíduos, por meio do princípio da reserva legal, da própria essência do tipo penal e da complexa teoria da tipicidade.
O processo, como instrumento para a realização do Direito Penal, deve realizar sua dupla função: de um lado, tornar viável a aplicação da pena, e de outro, servir como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, assegurando os indivíduos contra os atos abusivos do Estado. Nesse sentido, o processo penal deve servir como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo a garantir plena efetividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos, como a presunção de inocência, contraditório, defesa, etc.
Nesse sentido, BATTAGLINI32 afirma que o moderno Direito Penal tem como função principal a garantia da liberdade individual. Ademais, como destaca ARAGONESES ALONSO33, incluso tiene el Estado el deber de proteger al propio delincuente, pues esto también es una forma de garantizar el libre desarrollo de la personalidad, que es la función de la justicia.
Por sua vez, WERNER GOLDSCHMIDT34 explica que os direitos fundamentais, como tais, dirigem-se contra o Estado, e pertencem, por conseguinte, à seção que trata do amparo do indivíduo contra o Estado. Prova disso é a quantidade de dispositivos que integram as constituições modernas, regulando o processo penal, com a finalidade de garantir a plena eficácia dos direitos fundamentais do acusado enquanto estiver sendo processado. Também não podemos esquecer que o processo penal constitui um ramo do Direito Público, e que a essência do Direito Público é a autolimitação do Estado.
Essa evolução levou o Estado a aceitar no processo penal uma soberania mitigada, pois deve submeter ao debate público sua pretensão acusatória e punitiva. Enquanto dura o processo, dura a incerteza, até que se pronuncie a sentença. Por isso, como aponta GUARNIERI35, a personalidade do Estado, que aparece monolítica dentro do Direito Público interno (constitucional e administrativo), uma vez dentro do processo penal parece dividir-se e modelar-se distintamente, segundo os diferentes papéis que exerce: de juiz, na atividade jurisdicional, e como titular da pretensão punitiva; e de Ministério Público na atividade encaminhada à perseguição dos delitos (como titular da pretensão acusatória).
Explica BOBBIO36 que atualmente se impõe uma postura mais liberal, de modo que, nas relações entre indivíduo e Estado, primeiro vem o indivíduo e depois vem o Estado, e o Estado já não é um fim em si mesmo, porque é, e deve ser, somente um meio que tem como fim a tutela do homem, de seus direitos fundamentais de liberdade e segurança coletiva.
Ademais, existe um fundamento histórico-político para sustentar a dupla função do moderno processo penal e que foi colocado de relevo por BETTIOL37.
A proteção do indivíduo também resulta de uma imposição do Estado Liberal, pois o liberalismo trouxe exigências de que o homem tenha uma dimensão jurídica que o Estado ou a coletividade não pode sacrificar ad nutum. O Estado de Direito mesmo em sua origem já representava uma relevante superação das estruturas do Estado de Polícia, que negava ao cidadão toda garantía de liberdade, e isto surgiu na Europa depois de uma época de arbitrariedades que antecedeu a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789.
A pena começa precisamente quando termina a vingança e os impulsos que dão razão à vingança, e a imposição da pena corresponde ao juiz, não só desde os tempos do Estado de Direito, mas desde que existe juiz e pena. Juiz e pena se encontram sempre juntos38. Como explica BETTIOL39 la venganza es fruto de un impulso, y, por tanto, de una emoción no controlada por la razón, y es a menudo desproporcionada respecto a la entidad del mal o del daño causado. La pena, por el contrario, si quiere en verdad ser y permanecer como tal, es fruto de una reflexión. É um ato da razão que determina uma importante característica da pena: a proporcionalidade.
A democracia é um sistema político-cultural que valoriza o indivíduo frente ao Estado e que se manifesta em todas as esferas da relação Estado-indivíduo. Inegavelmente, leva a uma democratização do processo penal, refletindo essa valorização do indivíduo no fortalecimento do sujeito passivo do processo penal. Pode-se afirmar, com toda segurança, que o princípio que primero impera no processo penal é o da proteção dos inocentes, ou seja, o processo penal como direito protetor dos inocentes. Esse status (inocência) adquire carácter constitucional e deve ser mantido até que exista uma sentença penal condenatória transitada em julgado.
O objeto primordial da tutela não será somente a salvaguarda dos interesses da coletividade, mas também a tutela da liberdade processual do imputado, o respeito a sua dignidade como pessoa, como efetiva parte do processo. O significado da democracia é a revalorização do homem, en toda la complicada red de las instituciones procesales que sólo tienen un significado si se entienden por su naturaleza y por su finalidad política y jurídica de garantía de aquel supremo valor que no puede nunca venir sacrificado por razones de utilidad: el hombre.40
O processo penal é uma das expressões mais tipicas do grau de cultura alcançado por um povo no curso da sua história, e os princípios de política processual de uma nação não são outra coisa que segmentos da política estatal em geral. Nas palavras de GOLDSCHMIDT41, a estrutura do processo penal de uma nação não é senão o termômetro dos elementos corporativos ou autoritários de sua Constituição. Nessa linha, uma Constituição democrática deve orientar a democratização substancial do processo penal, e isso demonstra a transição do Direito passado ao Direito futuro. Num Estado Democrático de Direito, não podemos tolerar um processo penal autoritário e típico de um Estado-policial, pois o processo deve adequar-se à Constituição e não vice-versa.
Como conseqüência, a estrutura do processo penal deve ser tal que se reduza ao mínimo possível o risco de erro e, em segundo lugar, o sofrimento injusto que dele deriva42. Todos os mecanismos de proteção que busquem amenizar o sofrimento e os riscos que ele encerra são um imperativo de justiça.
D) A teoria do garantismo e o processo penal
Nessa mesma linha de democratização substancial da justiça, atualmente propugna-se com muita propriedade por um modelo de justiça garantista ou garantismo penal, cujo ponto de partida passa necessariamente pela teoria estruturada por FERRAJOLI43.
É importante destacar que o garantismo não tem nenhuma relação com o mero legalismo, formalismo ou mero processualismo. Consiste na tutela dos direitos fundamentais, os quais – da vida à liberdade pessoal, das liberdades civis e políticas às expectativas sociais de subsistência, dos direitos individuais aos coletivos – representam os valores, os bens e os interesses, materiais e prepolíticos, que fundam e justificam a existência daqueles artifícios – como chamou Hobbes – que são o Direito e o Estado, cujo desfrute por parte de todos constitui a base substancial da democracia44. Dessa afirmação de FERRAJOLI é possível extrair um imperativo básico: o Direito existe para tutelar os direitos fundamentais.
Superado o tradicional conflito entre Direito Natural-Direito Positivo, tendo em vista a constitucionalização dos direitos naturais pela maioria das constituições modernas, o problema centra-se agora na divergência entre o que o Direito é e o que deve ser, no interior de um mesmo ordenamento jurídico, ou, nas palavras usadas repetidamente por FERRAJOLI: o problema está entre efetividade e normatividade. Na doutrina espanhola, ARAGONESES ALONSO45 explica que a Constituição da Espanha de 1978 consagrou os princípios contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, por sua vez, vêm coincidir com os também revelados pela doutrina pontífica, como Direito Natural. Com isso, o problema foi transferido e não está mais no plano da existência jurídica, mas no da efetividade do garantismo.
A efetividade da proteção está em grande parte pendente da atividade jurisdicional, principal responsável por dar ou negar a tutela dos direitos fundamentais. Como conseqüência, o fundamento da legitimidade da jurisdição e da independência do Poder Judiciário está no reconhecimento da sua função de garantidor dos direitos fundamentais inseridos ou resultantes da Constituição. Nesse contexto, a função do juiz é atuar como garantidor dos direitos do acusado no processo penal.
Explica FERRAJOLI que … el modelo penal garantista equivale a un sistema de minimización del poder y de maximización del saber judicial, en cuanto condiciona la validez de las decisiones a la verdad, empírica y lógicamente controlable, de sus motivaciones46. O juízo penal e toda a atividade jurisdicional é um saber-poder, uma combinação de conhecimento (veritas) e de decisão (auctoritas). Com esse entrelaçamento, quanto maior é o poder, menor é o saber, e vice-versa. No modelo ideal de jurisdição, tal como foi concebido por Montesquieu, o poder é “nulo”. No modelo autoritarista – totalmente rechaçado na atualidade – o ponto nevrálgico está exatamente no oposto, ou seja, na predominancia do poder sobre o saber e a quase eliminação das formas de controle da racionalidade.
Nesse sistema, o juiz passa a assumir uma relevante função de garantidor, que não pode ficar inerte ante violações ou ameaças de lesão aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, como no superado modelo positivista. Explica SILVA FRANCO47 que o juiz assume uma nova posição no Estado Democrático de Direito, e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais de todos e de cada um, ainda que para isso tenha que adotar uma posição contrária à opinião da maioria. Deve tutelar o indivíduo e reparar as injustiças cometidas e absolver, quando não existirem provas plenas e legais (atendendo ao princípio da verdade formal).
No prólogo da obra de FERRAJOLI, BOBBIO define as grandes linhas de um modelo geral de garantismo: antes que nada, elevándolo a modelo ideal del estado de derecho, entendido no sólo como estado liberal protector de los derechos sociales; en segundo lugar, presentándolo como una teoría del derecho que propone un iuspositivismo crítico contrapuesto al iuspositivismo dogmático; y, por último, interpretándolo como una filosofía política que funda el estado sobre los derechos fundamentales de los ciudadanos y que precisamente del reconocimiento y de la efectiva protección (¡no basta el reconocimiento!) de estos derechos extrae su legitimidad y también la capacidad de renovarse sin recurrir a la violencia subversiva.
O sistema garantista está sustentado por cinco princípios básicos48, sobre os quais deve ser erguido o processo penal:
1º Jurisdicionalidade – Nulla poena, nulla culpa sine iudicio: Não só como necessidade do processo penal, mas também em sentido amplo, como garantia orgânica da figura e do estatuto do juiz. Também representa a exclusividade do poder jurisdicional, direito ao juiz natural, independência da magistratura e exclusiva submissão à lei.
2º Inderrogabilidade do juízo: No sentido de infungibilidade e indeclinabilidade da jurisdição.
3º Separação das atividades de julgar e acusar – Nullum iudicium sine accusatione: Configura o Ministério Público como agente exclusivo da acusação, garantindo a imparcialidade do juiz e submetendo sua atuação a prévia invocação por meio da ação penal. Esse princípio também deve ser aplicado na fase pré-processual, abandonando o superado modelo de juiz de instrução.
4º Presunção de inocência: A garantia de que será mantido o estado de inocência até o trânsito em julgado da sentença condenatória implica diversas conseqüências no tratamento da parte passiva, inclusive na carga da prova (ônus da acusação) e na obrigatoriedade de que a constatação do delito e a aplicação da pena será por meio de um processo com todas as garantias e através de uma sentença.
5º Contradição – Nulla probatio sine defensione: É um método de confrontação da prova e comprovação da verdade, fundando-se não mais sobre um juízo potestativo, mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado, entre partes contrapostas: a acusação (expressão do interesse punitivo do Estado) e a defesa (expressão do interesse do acusado em ficar livre de acusações infundadas e imune a penas arbitrárias e desproporcionadas). Para o controle da contradição e de que existe prova suficiente para derrubar a presunção de inocência, também é fundamental o princípio da motivação de todas as decisões judiciais, pois só ele permite avaliar se a racionalidade da decisão predominou sobre o poder.
No modelo garantista não se admite nenhuma imposição de pena: sem que se produza a comissão de um delito; sem que ele esteja previamente tipificado por lei; sem que exista necessidade de sua proibição e punição; sem que os efeitos da conduta sejam lesivos para terceiros; sem o caráter exterior ou material da ação criminosa; sem a imputabilidade e culpabilidade do autor; e sem que tudo isso seja verificado através de uma prova empírica, levada pela acusação a um juiz imparcial em um processo público, contraditório, com amplitude de defesa e mediante um procedimento legalmente preestabelecido.
Existe uma profunda relação entre o atual modelo de Direito Penal mínimo e seu correspondente processo penal garantista. O primeiro é condicionado e limitado ao máximo, correspondendo não só ao máximo grau de tutela das liberdades dos indivíduos em relação ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza. Existe uma clara vinculação entre garantismo e racionalismo.
O Direito Penal mínimo é uma técnica de tutela dos direitos fundamentais e “configura a proteção do débil contra o mais forte; tanto do débil ofendido ou ameaçado pelo delito, como também do débil ofendido ou ameaçado pela vingança; contra o mais forte, que no delito é o delinqüente, e na vingança é a parte ofendida ou os sujeitos públicos ou privados solidários com ele49. A proteção vem por meio do monopólio estatal da pena e da necessidade de prévio processo judicial para sua aplicação, e da existência, no processo, de uma série de instrumentos e limites, destinados a evitar os abusos por parte do Estado na tarefa de perseguir e punir.
Como correspondente, a discricionariedade judicial deve ser sempre dirigida não a estender, mas a reduzir a intervenção penal enquanto não motivada por argumentos cognoscitivos seguros. A dúvida sobre a verdade jurídica exige a intervenção de instituições como a presunção de inocência do imputado até a sentença definitiva; o ônus da prova a cargo da acusação; o princípio in dubio pro reo; a absolvição em caso de incerteza sobre a verdade fática e, por outro lado, a analogia in bonam partem e a interpretação restritiva dos pressupostos típicos penais e extensiva das circunstäncias eximentes ou atenuantes. Como destaca FERRAJOLI em diversos momentos, a dúvida deve ser resolvida sempre pela aplicação do princípio in dubio pro reo (critério pragmático de solução das incertezas jurisdicionais) e a manutenção da presunção de inocência. A única certeza que se pretende no processo penal está relacionada com a existência dos pressupostos que condicionam a pena e a condenação, e não aos elementos para absolver.
Em sentido oposto, o modelo de Direito Penal máximo caracteriza-se pela excessiva severidade, pela incerteza, a imprevisibilidade das condenações e das penas e por configurar um sistema não controlável racionalmente pela ausência de parâmetros certos e racionais. No plano processual, identifica-se, em linhas gerais, com o modelo inquisitivo. Sempre que o juiz tem funções acusatórias ou a acusação tem funções jurisdicionais, e ocorra a mistura entre acusação e juízo, está comprometida a imparcialidade do segundo e também, a publicidade e a oralidade do processo. A carência dessas garantias debilita todas as demais e, em particular, as garantias processuais do estado de inocência, do ônus da prova, do contraditório e da defesa. Ademais, a busca da verdade substancial, mediante uma investigação inquisitiva, mais além dos limitados recursos oferecidos pelo respeito às regras processuais, conduz ao predomínio das opiniões subjetivas, e até aos prejulgamentos irracionais e incontroláveis dos julgadores. O arbítrio surge no momento em que a condenação e a pena dependem unicamente da suposta sabedoria e eqüidade dos juízes.
Também cumpre apontar a importância da adoção do principio da verdade formal e não da verdade substancial, pois a verdade substancial, ao ser perseguida fora das regras e controles e, sobretudo, de uma exata predeterminação empírica das hipóteses de indagação, degenera o juízo de valor, amplamente arbitrário de fato, assim como o cognoscitivismo ético sobre o qual se embasa o substancialismo penal, e resulta inevitavelmente solidário com uma concepção autoritária e irracionalista do processo penal50.
Em sentido oposto, a verdade perseguida pelo modelo formalista como fundamento de uma condenação é, por sua vez, uma verdade formal ou processual e só pode ser alcançada mediante o respeito das regras precisas e relativas aos fatos e circunstâncias considerados como penalmente relevantes. Como explica FERRAJOLI51, a verdade processual não pretende ser a verdade. Não é obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto processual, mas sim condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e garantias da defesa. A verdade formal é mais controlada quanto ao método de aquisição e mais reduzida quanto ao conteúdo informativo que qualquer hipotética verdade substancial. Essa limitação se manifesta em 4 sentidos:
– a tese acusatória deve estar formulada segundo e conforme a norma;
– a acusação deve estar corroborada pela prova recogida através de técnicas normativamente preestabelecidas;
– deve ser sempre uma verdade passível de prova e oposição;
– a dúvida, falta de acusação ou de provas ritualmente formadas impõem a prevalência da presunção de inocência e atribuição de falsidade formal ou processual às hipóteses acusatórias.
O valor do formalismo está em presidir normativamente a indagação judicial, protegendo a liberdade dos indivíduos contra a introdução de verdades substancialmente arbitrárias ou incontroláveis.
Por fim, entendemos ser imprescindivel destacar a existência de verdadeiras penas processuais, pois não só o processo é uma pena em si mesmo, senão também que existe um sobrecusto inflacionário do processo penal na moderna sociedade de comunicação de massas. Existe o uso da imputação formal como um instrumento de culpabilidade preventiva e de estigmatização pública, e, por outra parte, na proliferação de milhares de processos a cada ano, não seguidos de pena alguma e somente geradores de certificados penais e de status jurídico-sociais (de reincidente, perigoso, à espera de julgamento, etc.)52.
Essa grave degeneração do processo permite que se fale em verdadeiras penas processuais, pois confrontam violentamente com o caráter e a função instrumental do processo, configurando uma verdadeira patologia judicial, na qual o processo penal é utilizado como uma punição antecipada, instrumento de perseguição política, intimidação policial, gerador de estigmatização social, inclusive com um degenerado fim de prevenção geral. Exemplo inegável nos oferecem as prisões cautelares, verdadeiras penas antecipadas, com um marcado caráter dissuatório e de retribuição imediata.
O mais grave é que a pena pública e infamante do Direito Penal pré-moderno foi ressuscitada e adaptada à modernidade, mediante a exibição pública do mero suspeito nas primeiras páginas dos jornais ou nos telejornais. Essa execração ocorre não como conseqüência da condenação, mas da simples acusação (inclusive quando esta ainda não foi formalizada pela denúncia), quando todavia o indivíduo ainda deveria estar sob o manto protetor da presunção de inocência.
De nada serve um sistema formalmente garantista e efetivamente autoritário. Essa falácia garantista53 consiste na idéia de que bastam as razões de um “bom” Direito, dotado de sistemas avançados e atuais de garantias constitucionais para conter o poder e pôr os direitos fundamentais a salvo dos desvios e arbitrariedades. Não existem Estados democráticos que, por seus sistemas penais, possam ser considerados plenamente garantistas ou antigarantistas, senão que existem diferentes graus de garantismo e o ponto nevrálgico está no distanciamento entre o ser e o dever ser.
II. Críticas ao sistema de “justiça negociada”
A partir da compreensão do processo como instrumento de proteção e garantia, deve ser rechaçado o sistema de justiça negociada – plea negotiation – pois configura a degeneração do processo e até mesmo uma alternativa ao processo. A tendência generalizada de implantar no processo penal amplas “zonas de consenso”, com a adoção de diversos instrumentos e a atribuição de imensuráveis poderes ao Ministério Público, está sustentada, em síntese, por três argumentos básicos: estar conforme os princípios do modelo acusatório, resultar da adoção de um “processo penal de partes” e proporcionar celeridade na administração de justiça.
A tese de que as formas de acordo são um resultado lógico do “modelo acusatório” e do “processo de partes” é totalmente ideológica e mistificadora como qualificou FERRAJOLI54, para quem esse sistema é fruto de uma confusão entre o modelo teórico acusatório – que consiste unicamente na separação entre juiz e acusação, na igualdade entre acusação e defesa, na oralidade e publicidade do juízo – e as características concretas do sistema acusatório americano, algumas das quais, como a discrecionariedade da ação penal e o acordo, não têm relação alguma com o modelo teórico. O modelo acusatório também exige que o juiz mantenha-se alheio ao trabalho de investigação e passivo no recolhimento das provas tanto da imputação como de descargo. O processo deve ser predominantemente oral, com plena publicidade e com um procedimento contraditório e de trato igualitário das partes (e não meros sujeitos). Com relação à prova, vigora o sistema do livre convencimento motivado e a sentença produz a eficácia de coisa julgada. A liberdade da parte passiva é a regra, sendo a prisão cautelar uma exceção.
O sistema negocial não faz parte do modelo acusatório e, ademais, viola os cincos princípios anteriormente apontados, terminando por fulminar o mais importante de todos: o direito a um processo judicial justo.
É uma confusão injustificável no plano teórico e explicável no histórico. A discrecionariedade da ação penal e os acordos são resquícios históricos da ação penal privada e/ou popular, em que a acusação era disponível. Na atualidade, nos sistemas de acusação pública (inclusive nos Estados Unidos), a livre negociação é uma construção imprópria do processo de partes e do sistema acusatório. Com isso, surge o equívoco de querer aplicar o sistema negocial, como se estivéssemos tratando de um ramo do Direito Privado. Existe, inclusive, os que defendem uma “privatização” do processo penal partindo do Princípio Dispositivo do processo civil, esquecendo que o processo penal constitui um sistema com suas categorias jurídicas próprias, como muito bem identificou GOLDSCHMIDT, e que tal analogia, além de nociva, é inadequada.
As particularidades do processo penal, aliadas ao predominante interesse público – tanto na condenação do culpado como na absolvição do inocente – não permitem esse poder à autonomia de vontade que pretende a plea negotiation. Explica CARNELUTTI55 que existe uma diferença insuperável entre o Direito Civil e o Direito Penal: en penal, con la ley no se juega. Em Civil, as partes têm as mãos livres; em Penal devem tê-las atadas. Aqui, só há lugar para a lei, é dizer, para o direito já encontrado, não há a possiblidade de, no caso particular, encontrar outro. É uma garantia da própria justiça.
O primeiro pilar da função garantista do Direito Penal e Processual é o monopólio legal e jurisdicional da violência repressiva. A negotiation viola desde logo esse primeiro pressuposto fundamental, pois a violência repressiva da pena não passa mais pelo controle jurisdicional e tampouco submete-se aos limites da legalidade, senão que está nas mãos do Ministério Público e submetida à sua discrecionariedade. É a mais completa desvirtuação do juízo contraditório, característico do sistema acusatório, e encaixa melhor com as práticas persuasórias permitidas pelo segredo e nas relações desiguais do sistema inquisitivo. É transformar o processo penal em uma “negociata”, no seu sentido mais depreciativo.
Muitas negociações são realizadas nos despachos do Ministério Público sem publicidade e onde prevalece o poder do mais forte, acentuando a posição de superioridade do parquet. Explicam FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE56 que a plea bargaining nos Estados Unidos é responsável pela solução de 80 a 95% de todos os delitos. Isso significa uma inequívoca incursão do Ministério Público em uma área que deveria ser dominada pelo Tribunal, que erroneamente limita-se a homologar o resultado do acordo entre o acusado e o promotor. Não sem razão, a doutrina afirma que o promotor é o juiz às portas do tribunal. Ademais, as cifras citadas colocam em evidência que em oito ou nove de cada dez casos não existe nenhum contraditório.
O que caracteriza o princípio do contraditório é exatamente o confronto claro, público e antagônico entre as partes em igualdade de condições. Essa importante conquista da evolução do Estado de Direito resulta ser a primeira vítima da justiça negociada, que começa por sacrificar o contraditório e acaba por matar a igualdade de armas. Que igualdade pode existir na relação do cidadão suspeito frente à prepotência da acusação, que, ao dispor do poder de negociar, humilha e impõe suas condições e estipula o preço do negócio?
O pacto no processo penal é um perverso intercâmbio, que transforma a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar auto-acusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucionismos ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e insegurança jurídica. O furor negociador da acusação pode levar à perversão burocrática, em que a parte passiva não disposta ao “acordo” vê o processo penal transformar-se em uma complexa e burocrática guerra. Tudo é mais dificil para quem não está disposto ao “negócio”. O promotor, disposto a constranger e obter o pacto a qualquer preço, utilizará a acusação formal como um instrumento de pressão, solicitando altas penas e pleiteando o reconhecimento de figuras mais graves do delito, ainda que sem o menor fundamento.
A tal ponto pode chegar a degeneração do sistema que, de forma clara e inequívoca, o saber e a razão são substituídos pelo poder atribuído ao Ministério Público. O processo, ao final, é transformado num lujo reservado sólo a quienes estén dispuestos a afrontar sus costes y sus riesgos57.
Tampouco entendemos que o sistema negocial colabore para aumentar a credibilidade da justiça, pois ninguém gosta de negociar sua inocência. Não existe nada mais repugnante que, ante frustrados protestos de inocência, tenha que decidir entre reconhecer uma culpa inexistente, em troca de uma pena menor, ou correr o risco de submeter-se a um processo que será desde logo desigual. É um poderoso estímulo negativo saber que terá de enfrentar um promotor cuja imparcialidade58 imposta por lei foi enterrada junto com a frustrada negociação, e que acusará de forma desmedida, inclusive obstaculizando a própria defesa. Uma vez mais tem razão GUARNIERI, quando afirma que acreditar na imparcialidade do Ministério Público é incidir no erro de confiar al lobo la mejor defensa del cordero.
No plano do Direito Material, as bases do sistema caem por terra. O nexo de casualidade entre o delito e a pena e a proprocionalidade da punição é sacrificado. A pena não dependerá mais da gravidade do delito, mas da habilidade negociadora da defesa e da discrecionariedade da acusação. Em síntese, a segurança jurídica dependerá do espírito aventureiro do acusado e de seu poder de barganha.
O excessivo poder – sem controle – do Ministério Público e seu maior ou menor interesse no acordo faz com que princípios como os da igualdade, certeza e legalidade penal não passem de ideais historicamente conquistados e sepultados pela degeneração do atual sistema. Tampouco sobrevivem nessas condições a presunção de inocência e o ônus probatório da acusação. O processo penal passa a não ser mais o caminho necessário para a pena, e com isso o status de inocente pode ser perdido muito antes do juízo e da sentença e, principalmente, sem que para isso a acusação tenha quer provar seu alegado.
A superioridade do promotor, acrescida do poder de transigir, faz com que as pressões psicológicas e as coações sejam uma prática normal, para compelir o acusado a aceitar o acordo e também a “segurança” do mal menor de admitir uma culpa, ainda que inexistente. Os acusados que se recusam ao acordo ou a guilty plea são considerados incômodos e nocivos, e sobre eles pesarão acusações mais graves. O panorama é ainda mais assustador quando, ao lado da acusação, está um juiz pouco disposto a levar o processo até o final, quiçá mais interessado que o próprio promotor em que aquilo acabe o mais rápido possível e com o menor trabalho possível. Quando as pautas estão cheias e o sistema passa a valorar mais o juiz pela sua produção quantitativa que pela qualidade de suas decisões, o processo assume sua face mais nefasta e cruel.
Possivelmente, a única vantagem da plea negotiation seja a celeridade com que são realizados os acordos e com isso finalizados os processos (ou sequer iniciados). Sob o ponto de vista do custo administrativo, existe uma considerável economia de tempo e dinheiro. Também para o acusado, a estigmatização é menor, salvo nos casos (não pouco freqüêntes) em que um inocente admite uma culpa inexistente. De qualquer forma, não há dúvida de que sempre é melhor uma sentença justa, ainda que tardia, que o imediatismo da injustiça.
Em síntese, a justiça negociada não faz parte do modelo acusatório e tampouco pode ser considerada como uma exigência do processo penal de partes, e resulta ser uma perigosa medida alternativa ao processo, sepultando as diversas garantias obtidas ao longo de séculos de injustiças.
III. Conclusão
Concluindo, a origem do processo penal está intimamente relacionada com a evolução da pena e, principalmente, do Estado de Direito, por isso, na atualidade, o processo penal deve estar conforme essas exigências do liberalismo. A aplicação da pena, como manifestação da justiça, exige o instrumento “processo” para que possa se concretizar, e a necessidade do processo penal é uma conquista fundamental da humanidade, como efetivo instrumento para a proteção dos indivíduos contra os abusos do poder punitivo estatal.
Por esse motivo, o moderno processo penal tem um duplo fundamento que justifica sua existência: instrumentalidade e garantismo. Por meio desses dois postulados, realiza a também dupla função do Direito Penal, em que pese a separação institucional e a autonomia de tratamento científico: de um lado torna viável a realização da justiça corretiva e a aplicação da pena, e de outro, serve como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, protegendo os indivíduos dos atos abusivos do Estado no exercício dos direitos de perseguir e punir.
A plea negotiation vai de encontro ao próprio fundamento da existência do processo penal, e culmina por criar uma nefasta alternativa ao processo, uma via secundária, que sepulta a principal garantia: a de ser julgado em um processo penal justo. O processo, como instituição estatal, deve ser a única estrutura legitimada para a imposição da pena, e abrir mão dessa conquista, em nome do sistema negocial, é um grave retrocesso, com a diferença de que agora não se teme o juiz, mas o acusador, que está às portas do tribunal. Felizmente, o sistema brasileiro ainda não chegou a tal ponto de degeneração, mas o perigo existe e é cada dia maior, crescendo na mesma medida com que se instala esse furor negocial.
Sem ter a pretensão de esgotar o tema, entendemos que com essas breves considerações é possível justificar que instrumentalidade e garantismo não são fundamentos antagônicos, senão que se complementam, de modo que da fusão de ambos encontramos o verdadeiro fundamento da existência do processo penal: a instrumentalidade garantista.
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NOTAS
1. JESCHECK, Hans Heinrich. Tratado de Derecho Penal, parte geral, p. 2 e ss.
2. GUASP, Jaime. La Pretensión Procesal. In: Estudios Juridicos, p. 582.
3. Idem, ibidem.
4. Direito Penal – parte geral, p. 3.
5. JESCHEK, Hans Heinrich. Op.cit. p. 3.
6. Comentarios a la Ley de Enjuiciamiento Criminal. Tomo I. p. 27 e ss.
7. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria del Garantismo Penal, p.10.
8. Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal, p. 67.
9. ARAGONESES ALONSO, Pedro. Instituciones de Derecho Procesal Penal, p. 7.
10. Salvo aquelas protegidas pelas causas de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade juridicamente reconhecidas pelo Direito Penal.
11. Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal, p. 7.
12. Idem, ibidem, p. 7, 17 e 21.
13. Com ARZT e TIEDEMANN, Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal, p. 63 e ss. Também em português, Problemas Básicos de Direito Penal, p. 48 e ss.
14. Se no plano teórico já está superada a idéia de pena como mera retribuição, como aludia Goldschmidt, no plano prático tal conotação está em pleno vigor, pois a reinserção social e a reeducação do condenado são fins inalcançáveis em nosso falido sistema carcerário, levando-nos uma vez mais à insuperável dicotomia entre o ser e o dever ser do direito
15. MONTERO AROCA, Juan. Principios del Proceso Penal, p.15.
16. A tipicidade serve não só para a proteção de bens jurídicos, mas também para proteger os indivíduos contra os abusos do Estado em sua atividade de perseguir e punir.
17. Comentarios a la Ley de Enjuiciamiento Criminal, tomo I, p. 27.
18. Norma processual penal espanhola – Ley de Enjuiciamiento Criminal.
19. Principios del Proceso Penal, p.16 e ss.
20. Inobstante, cumpre destacar que o monopólio estatal de perseguir e punir está sendo questionado a cada dia com mais força, com o implemento de principios como oportunidade e conveniência da ação penal, aumento do número de delitos de ação penal privada ou pública condicionada e com as possibilidades de transação penal (plea bargaining).
21. Principios del Proceso Penal, p. 19.
22. Conforme explicam FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE na obra Criminologia, p. 365 e ss.
23. Elementi di Diritto e Procedura Penale, p. 189.
24. Finalidade e objeto são coisas distintas, permitindo dizer que as finalidades do processo vão mais além de seu objeto. Por isso, não existe nenhuma contradição entre pluralidade de funções com o fato de ser a pretensão acusatória o objeto único do processo penal (seguindo a teoria do objeto de James Goldschmidt, especialmente na obra Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal).
25. “Notas sobre o problema da efetividade do processo”. Revista AJURIS, v. 29, Porto Alegre, 1983. Apud Rangel Dinamarco, op. cit.
26. São Paulo, Malheiros, 1990.
27. A Instrumentalidade do Processo, p. 456. Sem embargo, como externa o título da monografia, a idéia do autor encontra-se diluída em toda a obra.
28. A Instrumentalidade do Processo, especialmente a parte segunda.
29. RANGEL DINAMARCO, op.cit., p. 219.
30. RANGEL DINAMARCO, op. cit. p. 454.
31. OLIVA SANTOS, na obra coletiva Derecho Procesal Penal, p.6.
32. Diritto Penale, p. 133.
33. Instituciones de Derecho Procesal Penal, p. 7 e ss.
34. La Ciencia de la Justicia – Dikelogía, p. 201.
35. GUARNIERI, José. Las Partes en el Proceso Penal, p. 35.
36. No prólogo da obra de FERRAJOLI, Derecho y Razón, p. 18.
37. BETTIOL, Guiseppe. Instituciones de Derecho Penal y Procesal Penal, p. 54 e ss.
38. GOLDSCHMIDT, James. Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal, p. 7.
39. Instituciones de Derecho Penal y Procesal Penal, p.147.
40. BETTIOL, Giuseppe. Instituciones de Derecho Penal y Procesal Penal, p. 174.
41. Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal, p.67.
42. CARNELUTTI, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal, p. 308.
43. O que segue é uma análise de diversos pontos da obra Derecho y razón – Teoría del Garantismo Penal, de Luigi Ferrajoli.
44. FERRAJOLI, op. cit. p. 28 e 29.
45. Na “Nota para la segunda edición” da obra Proceso y Derecho Procesal, p.28.
46. FERRAJOLI, op. cit. p. 22 e ss.
47. O Juiz e o Modelo Garantista. In: Doutrina do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, disponível no site do Instituto (www . ibccrim.com.br) em março de 1998.
48. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón, p. 732.
49. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón, p. 335.
50. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón, p. 44 e ss.
51. Idem, ibidem.
52. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón, p. 730-731.
53. A expressão é de FERRAJOLI, na obra citada, p. 943 e ss.
54. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón, p. 747.
55. La Equidad en el Juicio Penal. In: Cuestiones sobre el Proceso Penal, p. 292.
56. Criminología, p. 484 e ss.
57. FERRAJOLI, Derecho y razón, p. 748.
58. São múltiplas as críticas à artificial construção jurídica da imparcialidade do promotor no processo penal. O crítico mais incansável foi, sem dúvida, o mestre CARNELUTTI (Mettere il Publico Ministerio al suo Posto. Rivista di Diritto Processuale, v. 8, parte I, 1953, p. 18 e ss), que em diversas oportunidades pôs em relevo a impossibilidade de la cuadratura del círculo: ¿ No es como reducir un círculo a un cuadrado, construir una parte imparcial? El ministerio público es un juez que se hace parte. Por eso, en vez de ser una parte que sube, es un juez que baja. Em outra passagem (Lecciones sobre el Proceso Penal, v. 2, p. 99), CARNELUTTI explica que não se pode ocultar que, se o promotor exerce verdadeiramente a função de acusador, querer que ele seja um órgão imparcial não representa no processo mais que uma inútil e hasta molesta duplicidad. Para GOLDSCHMIDT (Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal, p. 29), o problema de exigir imparcialidade de uma parte acusadora significa cair en el mismo error psicológico que ha desacreditado al proceso inquisitivo, qual seja o de crer que uma mesma pessoa possa exercitar funções tão antagônicas como acusar, julgar e defender.
Doutor em Direito Processual Penal
Prof. Programa de Pós-Graduação em
Ciências Criminais da PUCRS
Pesquisador do CNPq
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