Resumo: O artigo traça um paralelo entre a atividade do juiz na construção da decisão judicial e do perito na construção do laudo pericial bem como das intersecções entre os trabalhos de um e de outro. Demonstra ainda a preocupação com a falta de cientificidade na inspeção e nos laudos periciais e com a falta de uma análise crítica pelo juiz sobre o trabalho do perito a converter laudos periciais em falácias de autoridade.
Sumário: Observações iniciais; Limites do juiz e do perito; Construção do laudo e da sentença; Resumo comparativo de atuações; O laudo e a sentença; A linguagem do juiz e do perito; Um cenário sombrio; Responsabilidade e isenção; Conclusão.
O perito é alguém hábil, versado, douto, experto em determinada ciência ou atividade, ou seja, aquele que tem perícia. Ele é um especialista em determinada área do conhecimento, que presta ao juízo, de quem é um auxiliar da justiça (art. 139, CPC), esclarecimentos técnicos. Já, o juiz, palavra originada do latim iudex, é aquele que julga, que diz o direito, exercendo a jurisdição[1], sendo, portanto, uma autoridade investida de poder para, dizendo o direito, solucionar os conflitos de interesse a ele submetidos. Esses conceitos são meramente operacionais (para este artigo, portanto), com todas as reticências e ressalvas que se possam a eles fazer.
O interesse destas linhas é outro que não um aprofundamento dos conceitos; na verdade, traçar uma paralelo entre a atividade do juiz e do perito e também indicar alguns pontos destacados em que as atividades pericial e judicial se encontram (as intersecções).
Uma observação inicial é inafastável. A autoridade do perito decorre do binômio conhecimento/isenção. O perito deve estar técnica e eticamente apto a dar um parecer, o que nem sempre ocorre, senão em nossa imaginação, em razão de determinados condicionamentos[2].
CONHECIMENTO. Por vezes, o conhecimento do experto é apenas imaginário para o receptor ou decorre – automaticamente – de algum título acadêmico que possui ou diz possuir (o que não é de se estranhar em um país em que, quem estiver de paletó e gravata adquire, automaticamente, o título de doutor). Somos condicionados a acreditar na opinião de quem pensamos ser um técnico em determinado assunto. Daí, acreditamos em propaganda de creme dental protagonizada por dentista, sem lembrar que para que ele pudesse afirmar a qualidade do produto, teria que possuir um laboratório, ter feito centenas de testes, em um grande número de usuários, comparar resultados etc. Acreditamos que um atleta tem autoridade para nos recomendar vitaminas. Pedimos ao nosso barbeiro (careca) a indicação de um bom shampoo antiqueda. Perguntamos ao frentista do posto de gasolina, que sequer possui um veículo, como conduzir de forma mais econômica. Perguntamos ao açougueiro como preparar a carne (como se ele fosse cozinheiro) etc.
ISENÇÃO. É evidente que, mesmo alguém conhecedor num determinado tema, se tiver qualquer interesse na resposta que dará, mesmo que não seja uma interesse direto e sim simpatia, antipatia, piedade, espírito de corpo etc., pode ter sua autoridade comprometida. Um assistente técnico que não tenha medo de emitir laudos desfavoráveis a quem o nomear terá vida curta no meio profissional, daí, pode surgir um interesse[3]. Também somos condicionados a acreditar que as autoridades são isentas. Perguntamos ao vendedor, na dúvida sobre a compra, se a mercadoria é boa mesmo ou se o preço está bom, ao garçom se a comida mais cara realmente é melhor (ou mais gostosa) e assim por diante…
Estas afirmações iniciais são necessárias, para que não caiamos na falácia do viés de autoridade, nos fechando a criticar o trabalho de um experto, como ele fosse infalível e o juiz estivesse a ele vinculado, cegamente.
LIMITES DO JUIZ E DO PERITO
O princípio da inércia da jurisdição ou do dispositivo estampado no art. 128 do CPC, dispõe que: “O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.” Decorre desse princípio que o juiz tem que ser provocado para agir e deve agir nos limites em que foi provocado, nem menos (negativa de prestação jurisdicional), nem mais (decisão ultra petita etc.). Os limites da lide são estabelecidos pela inicial e pela defesa (litiscontestação).
Por seu turno, o perito sendo um auxiliar “ad hoc” do juízo, age nos processos em que for nomeado e também nos limites de sua nomeação, nem mais, nem menos. O perito nomeado para apurar determinado fato, sob o foco científico, não pode apurar outros fatos, nem inserir no laudo temas que possam ampliar a controvérsia ou alterar-lhe o foco. Como a finalidade de sua atuação é o fornecimento de subsídios técnicos para a solução da lide, também ele fica jungido pela litiscontestação, salvo casos especialíssimos em que a própria jurisprudência afirma que sua atuação é ampla no objeto[4]. A diferença é que, enquanto os pedidos devem ser interpretados restritivamente pelo juiz, o perito deve antever todas as suas implicações, fornecendo ao juiz também os elementos necessários para os parâmetros da decisão (verbi gratia, grau de incapacidade, os índices e fórmulas utilizados para determinado cálculo etc.).
CONSTRUÇÃO DO LAUDO E DA SENTENÇA
O juiz constrói sua decisão a partir do confronto dos pedidos, com as provas, as normas legais, a doutrina e a jurisprudência. O perito deve construir o seu laudo, também com base nos pedidos que justificaram a prova técnica, as normas legais normalmente aplicáveis aos casos congêneres (sem fazer juízos de valor ou decidir entre elas – se houver divergência doutrinária ou jurisprudencial que possa implicar em mais de um caminho, deve indagar o parâmetro a ser utilizado na aferição). O perito, quando referir que a doutrina de sua ciência[5] entende desta ou daquela maneira, deve indicar as fontes, da forma mais completa possível. Assim como ao juiz não é possível simplesmente afirmar genericamente que a doutrina a jurisprudência agasalham a sua tese, não pode o perito fazê-lo. Indicar as fontes é imperativo para ambos.
O juiz, somente ele, fixa os conceitos jurídicos e sua aplicação[6]. Ao perito, não cabe a fixação de conceitos, mas a aplicação de conceitos já estabelecidos em sua ciência ao caso concreto. É incorreto o perito afirmar que a vítima merece ou desmerece indenização ou o adicional “x” ou “y” e sim que ela possui ou não possui incapacidade em tal grau ou teve um prejuízo de “z” ou não emergiram prejuízos do fato etc. É verdade que, muitas vezes, o próprio juiz induz o perito a emitir conceitos ao quesitar, como também é verdade que faz a mesma coisa com testemunhas (ao indagar, por exemplo, se fulano é honesto, ao invés de perguntar o que sabe sobre os fatos que poderiam indicar o contrário).
Para decidir, o juiz percorre todo um “iter”, um caminho, que vai desde a tomada das alegações, a seleção da matéria controversa, a tomada das provas, a análise crítica das provas produzidas até a conclusão. O perito deve proceder do mesmo modo: ler as alegações das partes (constante tanto das petições quanto dos quesitos) e também do juiz (quesitos do juízo); estabelecer, a partir daí, as hipóteses, quais os exames e inspeções que precisará fazer para confirmar ou afastar as hipóteses; realizar os exames e inspeções com o máximo de diligência, sem preconceitos e com rigor científico (para não contaminar os resultados); relatar a pesquisa e os resultados de forma objetiva (ele deve narrar todo o caminho que percorreu até chegar ao resultado, os exames que fez, as hipóteses que acolheu, as hipóteses que restaram infirmadas, os suportes na doutrina que levaram ao acolhimento ou rejeição das hipóteses etc.).
PROVAS COMPLEMENTARES (OITIVAS, INSPEÇÃO, REQUISIÇÃO E EXAME DE DOCUMENTOS)
O juiz pode ouvir testemunhas. O perito, tanto pode aproveitar a prova oral colhida pelo juiz como, se necessário, fazer indagações às partes ou terceiros, no momento da inspeção, registrando tudo. O juiz deve evitar testemunhas suspeitas ou impedidas. O perito também deve tomar cuidado para não ser induzido, no momento da inspeção, a tomar versões preparadas dos fatos, dadas tanto pelas partes e advogados quanto por terceiros. Assim como o juiz pode ouvir testemunhas referidas, não arroladas pelas partes, deve o perito tomar cuidado para não ser induzido nas constatações, tomando iniciativas que aumentem seu conhecimento dos pressupostos de fato.
O juiz pode inspecionar o local (art. 440, CPC). O perito também pode inspecionar o local. Aliás, dependendo do tipo de perícia, a verificação do local e a anotação de tudo em detalhes é indispensável. O perito não pode olvidar, contudo, que só deve registrar o que viu, tomando cuidado para não induzir, nem ser induzido[7].
O juiz examina os documentos dos autos e pode requisitar a apresentação de outros, expedir ofícios etc. O perito também pode – e deve – examinar os documentos dos autos, requisitar a apresentação dos que estiverem de posse das partes ou de terceiros[8] e, na recusa, comunicar ao juiz para que este mande buscá-los ou apreendê-los ou considere, por exemplo, que a parte é confessa quanto a determinado contorno de fato (a partir do qual o perito construirá o seu laudo).
RESUMO COMPARATIVO DE ATUAÇÕES
Se fosse possível resumir as atuações de um e outro no processo, poderíamos afirmar:
· o perito detecta o problema em sua extensão; o juiz recebe as alegações.
· o perito separa os aspectos mais importantes; o juiz estabelece os limites da litiscontestação;
· o perito, apura os fatores possíveis que podem ser causa do problema, através de uma observação sagaz da natureza; o juiz instrui o processo e, através das provas, busca estabelecer as premissas de fato;
· o perito descreve todos os fatos da forma mais simples possível, estabelecendo as hipóteses; o juiz busca garimpar o conjunto probatório, para estabelecer o que se demonstrou ter ocorrido no mundo dos fatos;
· o perito submete as hipóteses à prova, afastando as que se mostrarem inconsistentes; o juiz amolda os fatos às normas jurídicas, estabelecendo quais os fatos que são relevantes para o direito, a partir dos limites do pedido;
· por fim, o perito converte as hipóteses que se confirmaram em teorias que traduzem a explicação científica das hipóteses que lhe foram submetidas; o juiz, dentre as possíveis soluções jurídicas, faz a subsunção dos fatos às normas, indicando a solução jurídica que lhe pareça mais amoldada ao caso concreto e que melhor preserve o sistema normativo como um todo.
O LAUDO E A SENTENÇA
Entretanto, é na conclusão do laudo e na decisão judicial, que se pode aferir se esses passos foram observados.
No laudo, o perito deve demonstrar as razões de seu convencimento. Na decisão, o juiz também deve demonstrar, de forma inequívoca, os motivos do seu convencimento. A sentença não se compraz do sim e do não despido do porquê. Não se sustenta uma decisão que se funde em afirmações genéricas (por exemplo, o conjunto da prova demonstra “x” ou “y”) e que não examine criticamente o conjunto probatório, indicando as razões da prevalência de determinada versão em relação a outra etc. Premissas de fato equivocadas induzem a resultados equivocados. Premissas jurídicas equivocadas não podem conduzir a resultado correto (ainda que, em direito, haja um leque de respostas possíveis, mesmo que limitado)[9].
Esta visão reducionista culmina por tornar-se a adoção da falácia de autoridade. O argumentum ad verecundiam ou argumentum magister dixit, também conhecido como argumento de autoridade, é uma falácia lógica que apela para a palavra de alguma autoridade a fim de validar o argumento. Este raciocínio é absurdo, pois a conclusão baseia-se exclusivamente na credibilidade do autor da proposição, e não nas razões que ele tenha apresentado para sustentá-la. É verdade que o direito não pode prescindir do uso não falacioso do argumento de autoridade[10]; o que não se pode admitir é o uso falacioso desse tipo de argumento, a ponto quase de convertê-lo em argumento ad hominem.
O raciocínio é simples: o juiz não é uma autoridade superior ao perito no objeto da ciência do último, ou, como diz o antigo adágio, “o sapateiro não deve ir além do sapato”, ou, como afirma a falácia de autoridade, “Se A (o perito) afirma P (determinado predicado), então P (este predicado está presente)”. Entretanto, tal raciocínio é falacioso, primeiro porque considera que o perito não pode se equivocar em nenhuma hipótese; segundo, porque considera que a autoridade do perito decorre de sua formação e não de sua atuação. O que protege a sociedade dos erros dos juízes (que também são autoridades) é a submissão deles tanto a um corpo normativo (as escolhas dos juízes estão limitadas por ele), quanto a um procedimento (o processo). Afirmar que os peritos, mesmo sem justificar cientificamente suas conclusões ou seguir uma rigorosa metodologia científica, estão sempre corretos em suas falas, é atribuir ao experto um poder que o juiz não possui, não poderia possuir e, portanto, não poderia outorgar, já que o poder do perito tem como fonte primária o juiz.
Em específico, não se sustenta uma decisão que copie e cole a conclusão do laudo, sem examinar se o procedimento utilizado pelo perito possui base científica e se sua conclusão se perfaz numa dedução metodicamente obtida, objetivamente narrada e sem sinais de comprometimento na isenção.
Assim também o perito. O laudo pericial somente é sustentável se for o desfecho de um trabalho rigoroso e primoroso do experto que vai desde o levantamento das hipóteses possíveis com base não apenas nas alegações das partes, mas na sua ciência (há peritos que, sem quesitos, limitam-se à conclusão, sem indicar como chegaram a ela), a observância de um método rigoroso para colocá-las a teste, evitando todo o tipo de preconceito ou influência e, após a realização dos mesmos testes com rigor científico, a elaboração de um laudo que narre, objetivamente, o caminho percorrido e as bases da conclusão.
Há laudos ainda em que o perito limita-se a responder os quesitos, relegando às partes e ao juiz a tarefa de estabelecer as hipóteses prováveis, mesmo que, a falta de conhecimento induza perguntas erradas ou incompletas, que não poderão resultar em respostas corretas e completas. Se apenas uma das partes quesitar, evidentemente buscando respostas que a favoreçam, o laudo tenderá a ser favorável a quem apresentou quesitos. Evidentemente, há apenas o aparente atendimento do múnus pelo perito, que é muito mais amplo e implica, necessariamente, no prévio estabelecimento das hipóteses indicadas por sua ciência, complementando a curiosidade leiga dos demais interlocutores. O perito que assim age, mostra preferir se tornar um refém dos quesitos, por comodismo ou preguiça. Esse agir é tão questionável quanto o do médico que, sem examinar o paciente e apenas com base na sua narrativa, passa imediatamente ao tratamento.
Também o perito pode cair na falácia de autoridade, quando utiliza o entendimento de determinada corrente doutrinária de sua ciência, por vezes ultrapassada, como único fator de convencimento. A ciência jurídica desenvolve-se lentamente; a medicina, a engenharia etc., desenvolvem-se a passos largos, o que impõe ao perito manter-se muito mais atualizado do que o próprio juiz, inclusive para questionar entendimentos consagrados em seu meio científico. Vejam o exemplo da tabela SUSEP e sua genérica utilização para determinação de grau de incapacidade, mesmo sabendo-se que ela não foi criada a partir de critérios científicos, mas pelas seguradoras, de modo a criar um parâmetro para as indenizações.[11]
Assim como o juiz não pode afirmar que a doutrina e a jurisprudência indicam como alternativas possíveis “x” ou “y”, sem indicar tanto qual seria essa doutrina (o doutrinador e a fonte etc.) quanto a jurisprudência (em específico, para que se possa verificar se o caso apreciado no precedente é realmente similar ao discutido), assim também não pode o perito fazer referências a autoridades em determinados pontos da sua pesquisa sem comprovar a autoridade do subscritor no tema. Dou um exemplo: afirmar que uma doença é degenerativa[12] sem indicar quais os elementos da anamnese e da inspeção induziram a esta conclusão, a partir de ampla pesquisa na doutrina médica e não na mera opinião, é inaceitável.
Entretanto, em termos acidentários, o diagnóstico “doença degenerativa” tornou-se o que a virose é em alguns consultórios médicos, ou seja, um genérico confortável e de difícil questionamento, ainda que em muitos casos tecnicamente insustentável e com resultados grotescos, tanto a nível individual (ao levar à rejeição da pretensão) quanto ao nível coletivo (ao manter a exposição de outras pessoas aos agentes patogênicos)[13]. É evidente que, mesmo sendo degenerativa a patologia, seria equivocado o laudo se não cogitasse a possibilidade de haver algum fator concausal[14] que pudesse tê-la antecipado ou agravado. Afirmar, sem demonstrar, caráter degenerativo, e não avaliar os fatores ambientais que possam ter precipitado a condição, é erro crasso e inaceitável.
Ocorre que nem sempre a doença degenerativa possui etiologia genética ou congênita, podendo ser adquirida[15]. Como exemplo, cita-se a lesão de hérnia de disco vertebral. Uma pessoa pode ser portadora de hérnia de disco decorrente de idade avançada (por degeneração natural da articulação intervertebral), por sobrepeso associado ao sedentarismo (por hábitos alimentares inapropriados associados à hipotrofia muscular – fraqueza). De outro tanto, um trabalhador, mesmo que adulto jovem, também pode adquirir hérnia de disco decorrente de um trauma causado por carregamento repetitivo de peso. Nesse caso, não se trata de etiologia com predisposição do indivíduo, mas sim decorrente do ambiente de trabalho.
Imagine-se o trabalho do chapeiro que carrega e descarrega caminhões com caixas ou sacos de verduras, frutas, tubérculos, entre outros, e as transporta de um ponto para outro, do mercado abastecedor; ou mesmo do trabalhador na construção civil que carrega sacos de cimento, de areia, ou mesmo pedras e cascalho. O volume carregado de forma habitual pode ultrapassar os 50 kg. Referidas atividades impõem ao trabalhador a risco continuado inúmeras lesões, incluindo as lesões de coluna vertebral. O termo “degenerativo” assim, não é um lugar comum para afastar nexos causais, ainda que esteja sendo assim utilizado, em muitos casos.
DA LINGUAGEM DO JUIZ E DO PERITO
O juiz, muitas vezes, se vangloria da utilização de uma linguagem incompreensível ao homem comum, considerando-a técnica ou culta. Usa e abusa de jargões jurídicos e de vocábulos há muito rejeitados na linguagem coloquial, mesmo culta, quiçá para dar uma impressão de que possui uma cultura acima da média ou de que a decisão judicial representa a melhor tradição jurídica. O perito não é diferente. O trabalho do experto deveria ser uma ponte entre o conhecimento de sua ciência e o direito, mas pode, em muitas situações, manter-se num hermetismo inalcançável, num emaranhado de vocábulos que deixam na dúvida até os colegas de profissão, do qual se logra obter compreensão mínima, apenas da conclusão.
Ocorre, então, o improvável. O juiz toma a conclusão como se fosse uma súmula vinculante, perde o interesse pela narrativa que levou ao desfecho (até por não compreendê-la) e , mesmo sem entender, considera-se convencido. O juiz é o perito dos peritos (iudex, peritus peritorum), o que já demonstra que deveria ser impermeável a esse tipo de raciocínio (se é que se possa chamar raciocínio à judicialização de falácias, saltos argumentativos ou mesmo de meras conclusões sem antecedentes lógicos. Trata-se de mera crença, em verdade crença injustificada, quando sabe-se que o conhecimento é, por definição, crença verdadeira justificada[16].
Quem não entendeu não pode estar convencido. O laudo desfundamentado não tem caráter científico, e sim opinativo, mas, apesar destes pesares, pode constituir um poderoso argumento de autoridade no seu pior sentido, qual seja, “Se A afirma P, então P”. Destarte, toma-se o laudo como se infalível fosse, posto que a afirmação vem de autoridade inabalável no objeto e teoricamente isenta de qualquer influência, consciente ou inconsciente, que pudesse macular seu raciocínio.
Note-se que esta “autoridade” extravasa até os limites do razoável: afirmações indutivas de peritos são consideradas irrefutáveis. Dou um exemplo: o perito afirma que a situação que encontrou na inspeção era “x” e que, portanto, sempre foi “x”. A afirmação é questionável, já que ao perito é impossível ver o passado. Além disso, contando com a inspeção, não é pouco frequente que as partes preparem-se para o procedimento, mantendo, por exemplo, todos os trabalhadores atuais com os equipamentos de proteção, se o caso for de investigação de acidente do trabalho ou de insalubridade. Seria o mesmo que a Polícia Rodoviária julgar que, quem transita em frente ao posto policial a 40km por hora, em outros trechos nunca ultrapassou nem ultrapassará esta velocidade. O que o perito pode afirmar é tão somente que a situação verificada no momento da inspeção era “x”, havendo ou não sinais de alterações recentes ou de depreciações. O resto é matéria para outro tipo de prova, inclusive a testemunhal.
UM CENÁRIO SOMBRIO
O pior, no entanto, ainda está por vir. Sentenças fundadas em laudos periciais, mesmo que desfundamentadas (há quem ache motivação suficiente a transcrição da conclusão do perito), possuem estatisticamente uma maior possibilidade de ser mantidas em eventuais recursos. Sentenças que desenvolvem uma longa e dedutiva análise, para desconsiderar a conclusão do laudo pericial, adotando o conjunto da prova (a prova pericial não é soberana e prevalente sobre as demais, apenas faz parte do conjunto probatório que serve ao convencimento do juiz), terão uma possibilidade muito maior de ser reformadas. A fundamentação das sentenças contém esse paradoxo: quanto mais extensa, maior é a possibilidade de que se abram às críticas e, com elas, às reformas; decisões pouco fundamentadas (ou até desfundamentadas, como é o caso das que são mera transcrição de jurisprudência), parecem possuir uma aura de pura racionalidade, além de comungar da autoridade do tribunal que a originou, o que torna mais difícil o despertar das críticas, inclusive pela dificuldade de se refazer o raciocínio do juiz, mormente por não exposto, bem como de se criticar, indiretamente, a corte de que ela deriva.
A motivação da sentença é o que torna a decisão judicial democrática (o juiz não é eleito, mas, ao se impor que decida com base nas leis estabelecidas e demonstre tê-lo feito, torna-se o Poder Judiciário parte de um sistema democrático e não aristocrático – que é o que decorreria apenas da nomeação por concurso, entre os melhores). A fundamentação do laudo e a demonstração explícita de que se seguiu, de forma rigorosa, o método científico, é a garantia de que o documento não é uma mera opinião, preconceito ou conceito comprometido pela ideologia, ignorância, interesse etc., do perito.
Sentença desfundamentada é ato arbitrário da autoridade judicial (quem não diz porque decidiu pode decidir como quiser, mesmo fora do sistema legal); decidir sem análise crítica das provas (inclusive a pericial), é decidir sem fundamentar. Laudo desfundamentado é ato arbitrário de uma autoridade científica, que pode, inclusive, nada saber acerca do tema, mas usar jargões e retóricas para ludibriar quem é ainda menos conhecedor de sua ciência. Quando o juiz adota um laudo construído sem rigor científico, alberga a arbitrariedade do perito e a converte em coisa julgada.
RESPONSABILIDADE E ISENÇÃO
Como se vê, o trabalho do perito e do juiz possuem diversos pontos paralelos, não obstante a grande intersecção que coloca nas mãos do perito a enorme responsabilidade de influir fortemente sobre uma decisão judicial, sendo grandemente responsável por sua justiça ou injustiça; isto deve nortear a atuação do perito que deve ser, ao mesmo tempo, responsável e isenta.
Responsável, a ponto de pesquisar ao máximo (sem preguiça e sem cair na tentação da onipotência, que é a que costuma levar às respostas simples para questões complexas) os fatos e também os conhecimentos de sua ciência e expô-los de forma exaustiva e leal, mesmo com o risco de, expondo, aumentar a possibilidade de críticas.
Isenta, a ponto de não se deixar influenciar por interesses mesquinhos (o de agradar “a” ou “b” ou mesmo de desagradar; de deixar a vaidade comandar a atuação etc.), como também pelas partes, advogados, servidores ou magistrados, despindo-se de preconceitos e construindo conclusões com rigor científico. A isenção também se demonstra ao alijar uma narrativa retórica (o perito não tem interesse de que o juiz decida de uma forma ou de outra; não precisa convencer, precisa esclarecer o juiz).
Assim como o juiz, que precisa se despir de seus psiquismos ao ter que motivar a sentença, também o perito, ao ter que fundamentar o laudo, perceberá o quanto de suas conclusões iniciais não eram sustentáveis e persistirá na pesquisa. Quem não precisa fundamentar (substancialmente, e não apenas formalmente), pode dizer qualquer coisa, seja juiz, seja perito.
O juiz responsável, coerente e fiel à sua vocação, exige isenção e responsabilidade do perito, coerência no laudo etc., fazendo uma análise crítica do laudo pericial, em cotejo com todas as demais provas do processo, para então, e somente então, decidir, inclusive para considerar eventualmente equivocadas as conclusões periciais. Atua também na fase de produção da prova pericial (ou antes dela), requisitando documentos, ouvindo previamente testemunhas etc., tudo para que o perito possa contar com o máximo de elementos, para estabelecer as hipóteses investigáveis; indefere os quesitos inúteis ou protelatórios (já soube de caso em que foram oferecidos 250 quesitos), de forma a tornar a atividade pericial factível e proveitosa.
Desse modo, somente os laudos periciais que derivem de uma visão prévia despida de preconceitos, seguida de uma curiosidade científica focada pelo objeto do processo; que busquem com a maior profundidade possível examinar os fatos, estabelecer as hipóteses, testá-las, separar as juridicamente relevantes e relatar tudo de forma objetiva, e que sejam seguidos de sentenças que, mesmo reconhecendo a autoridade do perito na sua ciência, examinam os laudos de forma crítica, separando as conclusões cientificamente sustentáveis e sustentadas dedutivamente, das meras opiniões travestidas de ciência, refazendo o “iter” seguido pelos expertos e, na impossibilidade, determinando sejam refeitos os laudos ou parte deles, é que farão com que o juiz e as partes não se tornem reféns do perito.
O tribunal deve refazer o mesmo caminho ao julgar o recurso, não se deixando seduzir pelo óbvio: se o juiz observou o laudo, havendo duas autoridades distintas com o mesmo posicionamento, ele deve estar correto[17]. É a falácia de autoridade em sua visão mais perversa, que cria um verdadeiro “jogo de empurra”. O perito sente-se confortável, porque, mesmo sabendo-se ou desconfiando estar equivocado, conta que o juiz poderá corrigir seus eventuais equívocos ao sentenciar, por não estar vinculado ao laudo. O juiz, mesmo correndo o risco de errar, prefere avalizar o laudo, para errar em boa companhia ou ter uma sentença menos permeável à reforma. O tribunal, mesmo ratificando o erro, terá nos autos somente elementos que corroborem o equívoco, tornando-o aparentemente um acerto. O mais nefasto é que, cria um precedente espúrio e precedentes servem de modelo para outras decisões, num círculo vicioso inaceitável.
CONCLUSÃO
Não tive a pretensão de esgotar o assunto; sua finalidade é provocar uma atuação mais crítica, por parte de peritos e magistrados. Este artigo é resultado de algumas reflexões que fiz, após ser convidado a falar sobre o tema no I Encontro Institucional da Justiça do Trabalho, realizado pelo Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina. Algumas outras reflexões podem ser encontradas em MANZI, José Ernesto. Considerações acerca da formulação e utilização de laudos periciais em processos judiciais. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3189, 25 mar. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21363>. Acesso em: 25 out. 2013
Em resumo, a autoridade do juiz e do perito não derivam apenas do cargo ou da nomeação que receberam, nem do presumido e destacado conhecimento que possam ter, mas da demonstração inequívoca, seja pela observância de parâmetros científicos rigorosos na atuação, seja pela explicitação induvidosa do caminho percorrido até a conclusão, de que atuaram com isenção.
Conhecimento nas mãos de quem não é isento, tem o mesmo efeito de uma arma nas mãos de quem não tem princípios. Menos pior seria a isenção, sem conhecimento suficiente, porque ela implicaria em renunciar a nomeação indevida, ou na ávida e incansável busca de auxílio técnico ou no debruçar-se sobre a teoria e os precedentes para alcançar a melhor resposta.
É preciso cuidado para não converter senso comum (do juiz ou do perito) em senso jurídico[18]. O resultado pode ser desastroso.
Note-se que sequer levantei a hipótese de que, eventualmente, se possa cogitar da existência de má fé ou venalidade, o que afasta a isenção e a autoridade, qualquer que seja. Esta hipótese, à toda evidência, não pode ser considerada como impossível ou inexistente na “praxis”.
Conhecimento e isenção, quando tornados inequívocos pela demonstração, costumam redundar em bons laudos e boas sentenças, tornando mais possível a justiça.
É preciso coragem para cogitar a possibilidade de erro por uma autoridade num assunto, mas o duvidar é o primeiro motor do conhecimento. Sem ele, corremos o risco de converter o erro repetido em hermenêutica jurisprudencial, seguindo a antiga parêmia “error communis facit jus” (o erro comum faz o direito).
Nunca poderemos perder de vista que a opinião universal também pode ser um erro universal e disto deriva o dever de investigar, com profundidade, cada caso, como se fosse o primeiro (para não deixar a curiosidade científica adormecida), como se fosse único (porque é) e como se disso dependesse a justiça (porque depende).
É isso que justifica a nomeação do perito. É nisso que reside o primeiro dever de qualquer magistrado comprometido com a justiça de suas decisões.
Notas:
Desembargador do TRT-SC. Juiz do Trabalho desde 1990, especialista em Direito Administrativo (La Sapienza – Roma), Processos Constitucionais (UCLM – Toledo – España), Processo Civil (Unoesc – Chapecó – SC – Brasil). Mestre em Ciência Jurídica (UNIVALI – Itajaí – SC – Brasil). Doutorando em Direitos Sociais (UCLM – Ciudad Real – España). Bacharelando em Filosofia (UFSC – Florianópolis – SC – Brasil).
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