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O limite da liberdade de expressão: um enfoque filosófico diante do princípio do dano

Resumo: A liberdade de expressão constitui parcela substancial da manifestação humana de liberdade. Manifestar-se criticamente por meio de gestos, por discursos e pela arte, é uma característica intrinsecamente humana e que, por isso, merece dedicação não apenas para regulamentação legal, mas também para reflexões filosóficas. Diversos questionamentos ganham espaço quando se trata dos conflitos entre liberdades individuais, sendo que, mais recentemente, episódios conflituosos em ambientes públicos têm tomado espaço à mídia. Destarte, o presente trabalho buscará tratar de um conflito, sempre atual, da manifestação da liberdade de expressão frente à sociedade sob um enfoque propriamente filosófico. Buscar-se-á debruçar-se sobre reflexões acerca de questões como o “princípio do dano”, e suas objeções, até alçar conclusões coerentes sobre aquela que seria a zona limítrofe para a manifestação da liberdade de expressão.[1]

Palavras chave: Liberdade de expressão; Princípio do dano; Filosofia.

Abstract: Freedom of expression is a substantial quota of the human manifestation of freedom. Manifest itself critically through gestures, speeches and art, is an intrinsically human characteristic and, therefore, deserves dedication not only for legal regulation, but also for philosophical reflections. Several questions appear when it comes to conflicts between individual liberties, and, more recently, conflicting episodes in public spaces have appeared on the media. Thus, this paper aims to discuss about a conflict, always relevant, of the manifestation of freedom of expression against the society under a properly philosophical approach. It will aim to reflect about issues such as the “harm principle”, and his objections, to raise coherent conclusions about what would be the limit to the freedom of expression.

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Keywords: Freedom of expression, Harm Principle, Philosophy.

Sumário: Introdução. 1. O Princípio do dano e a Liberdade. 2. Onde encontrar o limite da liberdade de expressão. 3. Objeções Pertinentes. Conclusão.

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação, o crescente acesso mundial às redes sociais e a ampliação da atuação da mídia em embates ideológicos têm destacado situações conflituosas cotidianas do mundo social. Recentes episódios turbulentos, como a publicação de charges do profeta de Maomé por meios de comunicação franceses,[2] reacenderam as discussões sobre os limites da liberdade de expressão.

A questão que se põe em voga, inicialmente, é se há um limite para tal manifestação do indivíduo frente a sociedade, e, se ele realmente existe, qual seria? Neste sentido, faz-se mister, a princípio, tornar mais claros alguns conceitos que serão constantemente tratados neste trabalho valendo-se do entendimento de importantes pensadores.

Como plano de fundo de toda a discussão referente ao comportamento humano, é importante destacar a acepção do termo “sociedade”, que aqui utilizado refere-se à sociedade civil, que, de acordo com a acepção mais utilizada atualmente, que é genericamente marxista, entende-se por uma esfera de relações entre indivíduos, grupos e classes econômicas na qual têm lugar conflitos econômicos, religiosos, sociais e ideológicos que o Estado tem a seu cargo resolver, intervindo como mediador ou suprimindo-os. (BOBBIO, 1998, p. 1120) O “indivíduo” a que este trabalho se refere é o ser humano dotado da plenitude de suas faculdades mentais e de sua maioridade nos termos das leis do Estado no qual está inserido. “Liberdade”, por sua vez, é a faculdade individual de escolher livremente dentro dos limites da lei, da moral e dos bons costumes. (SANTOS, 2001, p.150)

Levados à luz os conceitos com os quais se desenvolverá o tema, é importante prosseguir. Buscar-se-á desenvolver neste trabalho respostas aos questionamentos centrais acerca da liberdade de expressão tomando por base uma proposição muito desenvolvida pelo inglês John Stuart Mill conhecida por princípio do dano, segundo a qual a liberdade de expressão tem seu limite no ponto em que provoca danos diretos e inequívocos a terceiros.

1. O PRINCÍPIO DO DANO E A LIBERDADE

Nas palavras do próprio Mill, o princípio do dano:

“É o princípio de que o único fim para o qual as pessoas têm justificação, individual ou coletivamente, para interferir na liberdade de ação de outro, é a autoproteção. É o princípio de que o único fim em função do qual o poder pode ser corretamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é o de prevenir dano a outros.”(MILL, 2011, p.35)

Observa-se que o referido princípio coroa a liberdade do indivíduo em realizar condutas que não impactem negativamente a sociedade, que só digam respeito a si. Sendo assim, um indivíduo pode moldar seu plano de vida como bem entender e, desde que não cause danos a outrem, suas atitudes podem ser perversas, tolas ou incorretas. Seria a proclamação do que bem afirma a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789:

“A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei.”(Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789, art. 4º)

 Mas haverá quem questione: estando este indivíduo inserido em minha comunidade, serei obrigado a conviver com atitudes que discordo serem corretas? Não, absolutamente. Ninguém é obrigado a procurar sua companhia, pois temos o direito de conviver com quem consideramos agradável. Do mesmo modo, temos o direito de alertar essa pessoa de que suas atitudes não estão coniventes com os padrões de costume da comunidade na qual está inserida, ou das consequências de seus atos. Se um indivíduo resolve por sair seminu todos os dias às ruas, há de se alerta-lo das consequências para sua reputação em seu bairro, em seu emprego e com sua família, mas o juiz final de suas atitudes é ele próprio.

É natural que o indivíduo que fuja por demasia dos padrões de comportamento da sociedade seja penalizado por suas atitudes, mas não de modo direto, ou seja, não com atos que visam puni-lo por seu modo de ser, mas por meios naturais e espontâneos. Por exemplo, um indivíduo solitário que opta por utilizar drogas todos os dias em sua casa sem causar transtornos aos demais será penalizado indiretamente pelo afastamento das pessoas que não desejam se associar a seu comportamento, pois elas têm o direito de preferir os que não usam drogas aos que usam, mas, de nenhum modo, alguém pode chegar em sua casa e prendê-lo por sua opção solitária de utilizar drogas. Caso diferente, entretanto, daquele indivíduo que perturba casas e ruas, rouba e mata familiares ou desconhecidos para manter seus hábitos.
Trata-se do que Stephen Law destaca como liberdade negativa. “É negativa porque a liberdade para se fazer o que se quer decorre do recuo do Estado, para deixar as pessoas decidirem como viver sua vida.” (LAW, 2009, p. 163) Este, porém, não é o objeto deste trabalho, mas apenas um exemplo para um breve esclarecimento sobre o princípio do dano.

Prosseguindo o raciocínio, o princípio do dano pode ser aplicado também a uma modalidade de liberdade diferente da tratada anteriormente, à liberdade de expressão.  Esta constitui uma parcela da liberdade individual tão importante quanto a liberdade de ir e vir, como já destacado anteriormente, pois expressar-se criticamente é uma propriedade intrinsecamente humana.

2. ONDE ENCONTRAR O LIMITE DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Desde que se foi o cerceamento da liberdade de imprensa no Ocidente emergiram opiniões controversas, ideias consideradas incorretas, e frases consideradas preconceituosas. De tais cenários surgiram também os questionamentos sobre até onde iria o limite da expressão de tais discursos. Refletir-se-á, em seguida, sobre alguns posicionamentos.

Há quem defenda que a zona limite para a expressão está no momento em que um discurso ofende um indivíduo. Mas realmente assim seria?

Se se observar atentamente, certamente este não seria o ponto, pois se assim o fosse, a experiência demonstra que toda vez que uma opinião fosse fortemente atacada, obstando o locutor de uma resposta à altura, este se sentiria ofendido graças ao domínio intelectual do outro. Ou, ainda, a manifestação em público de convicções distintas poderia facilmente ofender aquele indivíduo mais apegado às suas crenças.

O limite seria, então, a verdade das ideias? Ou seja, se um indivíduo quer proferir uma opinião que vai de encontro às ideias da época ele deve ser coibido pelo Estado tal como Galileu foi coibido pela Igreja Católica?

É difícil crer que este possa ser o limite, pois dizer que tal ou qual opinião é correta ou incorreta é pressupor que somos infalíveis, é dizermos que estamos sempre certos em nossos estudos, enquanto se nota que a Humanidade está em constante movimento intelectual. Sendo assim, agindo neste sentido, correr-se-ia dois riscos: o de privar a expressão de uma opinião correta, o que corresponde a impedir que o homem troque o erro pela verdade, assim como o de impedir a expressão de uma opinião errada, que é negar ao indivíduo uma impressão mais clara e viva da verdade que ele trás consigo, pois tal como afirma Mill: “As nossas crenças mais justificadas não têm qualquer outra garantia sobre a qual assentar, senão um convite permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento.” (MILL, 2011, p.48)

E, ainda, saindo de tal perspectiva dualista, segundo a qual uma opinião é inteiramente correta ou inteiramente errada, tem-se aquelas opiniões que trazem consigo parte da verdade. Desse modo, tudo se torna questão de combinar e conciliar opostos. Seria como um jogo de quebra-cabeças no qual há muitas peças a mais, que, unidas, formam diferentes imagens, sendo o grande desafio descobrir quais as peças corretas para formar a imagem da verdade.

Logo, conclui-se que a verdade também não pode ser limite para a liberdade de expressão. Retomando ao que se defende no início do trabalho, é tempo de aplicar o princípio do dano à liberdade de expressão. Pergunta-se então: o limite da liberdade de expressão é o dano que causa aos demais? Busca-se defender que sim. Um indivíduo pode manifestar-se livremente sobre qualquer assunto, desde que não cause danos diretos e evidentes a outrem. Ptolomeu defendeu na Antiguidade, em sua obra “Almbagesto”, que a Terra era o centro do Universo. Sua ideia foi reverenciada, mas se fosse atualmente, não o seria, mas ainda assim ele teria direito de defender sua crença.

Nascem interessantes considerações sobre o tema. E se um indivíduo católico resolve, por exemplo, entrar em discussão com um protestante por conta de suas convicções religiosas? Ainda que um deles se sinta ofendido, eles têm o direito de discutir livremente tais ideias. Entretanto, e se o mesmo indivíduo católico resolve proclamar em frente a uma multidão violenta em frente à casa do protestante que este é o responsável pelos males que todos sofrem? Neste momento, a questão muda de perspectiva e passa de uma simples discussão intelectual para uma incitação à violência, sendo assim, o católico deve ser impedido pelo Estado de realizar tal conduta. Em outro exemplo, tem-se o caso de um indivíduo que resolve publicar em redes sociais falsas denúncias contra um desafeto seu nas quais o acusa de pedofilia. Apesar de, aparentemente, o indivíduo estar exercendo sua liberdade de se expressar, o crime de calúnia no qual incorre proporcionará terríveis consequências ao seu desafeto como a perda de emprego e relacionamentos, sendo assim, o Estado deve intervir e punir tal conduta.

3. OBJEÇÕES PERTINENTES

Apesar de todas as considerações aqui expostas muitos dirão, sobretudo aqueles mais conservadores, que não se pode deixar qualquer opinião circular livremente pela sociedade, pois há ideias que são tão úteis e essenciais ao bem-estar de uma sociedade que o Estado tem o dever de resguardá-las. Neste caso, em um Reinado se dirá ser a monarquia um princípio inatacável, em um Estado Democrático, a democracia é inquestionável, no Brasil escravagista, a escravidão era essencial à manutenção da ordem social. Afinal, quem decide o que é útil à sociedade? Esta pessoa está completamente correta do seu juízo? Dizer que tal ou qual ideia é útil ou inútil é partir do mesmo pressuposto de infalibilidade que se usa quando se afirma que uma ideia é certa ou errada. Sabe-se que os seres humanos são falíveis, logo, pode-se descobrir que o presidencialismo não é melhor sistema de governo, nem o parlamentarismo, e assim sucessivamente, e que, essas ideias, outrora consideradas úteis à manutenção de um sistema social, não eram tão úteis, tendo trazido consigo diversas consequências desagradáveis.

Outra objeção ao princípio do dano é de que se teria errado em dizer que a liberdade deve parar quando ela causa danos diretos e evidentes a outrem, pois há situações em que os atos individuais causam danos, mas ainda assim não poderiam ser coibidos. Por exemplo, se um jornalista, pautado em provas, decide denunciar um político corrupto, tal denúncia causará como consequência a perda do mandato para o político, e, ainda assim, ela deve ser feita. Este é um ponto relevante que este trabalho gostaria de desenvolver.

Ao se atentar para a objeção, observa-se que a questão é que não se está a observar quem foi o agente primeiro das ações diretamente correlacionadas. No caso supramencionado, há duas ações correlacionadas: a primeira é a do político corrupto e a segunda é a do jornalista. Como já se destacou anteriormente, a primeira ação, por transgredir os limites do princípio do dano, deveria ser coibida e punida pelo Estado, entretanto, nem sempre a máquina estatal é capaz de estar atenta a todas as transgressões. Dessa maneira, é necessária uma provocação ao Estado para que ele aja, que se dá, neste caso, por meio da denúncia do jornalista. Este não está propriamente transgredindo o princípio do dano, pois, na realidade, está auxiliando na sua aplicação.

O mesmo caso ocorre quando um indivíduo denuncia o local de repouso de um ladrão, onde se encontram objetos roubados. Há duas ações correlacionadas: o roubo ou furto realizado pelo ladrão e a denúncia realizada por um indivíduo. Se se atentasse apenas à segunda ação se diria que o denunciante não está a respeitar o princípio do dano, pois causa prejuízos ao ladrão, que perde o que conquistou, entretanto, ao unir as duas ações tem-se uma melhor perspectiva: a de que a denuncia provoca a máquina estatal a punir a ação primeira, ação que transgrediu os limites, sendo a denúncia uma atitude legítima.

É importante destacar que não se faz aqui uma defesa da chamada vindicta privada. Não se defende que é legítimo um indivíduo atacar o outro pelo fato deste lhe ter causado dano outrora, exceto no caso em há um risco de vida direto e evidente envolvido, pois apenas o Estado é legitimado para coibir e punir aqueles que causam danos aos demais.

CONCLUSÃO

A liberdade de expressão é essencial para o bem-estar intelectual da sociedade, auxiliando no desenvolvimento das ciências e das artes, mas, como destacado neste trabalho, assim como a liberdade de ação, ela deve possuir limites. Destacadas as possibilidades da ofensa e da verdade das ideias constituírem-se como limites para a expressão das ideias, notou-se que nenhuma se tornou suficientemente sólida para ocupar tal lugar.

Sendo assim, desenvolve-se a ideia do princípio do dano dentro do âmbito da liberdade de expressão e conclui-se que a liberdade de manifestar-se pode ser realizada até o momento em que não causará prejuízos diretos e evidentes a demais indivíduos, sendo dever do Estado coibir e/ou punir as ações que transgridam este limite. No caso, entretanto, da máquina estatal não mover esforços para coibir ou punir as ações danosas a outrem, por indiferença ou desconhecimento, é direito do cidadão denunciar a situação sem, entretanto, estar incorrendo em uma ofensa ao princípio do dano, pois, na realidade, o que o cidadão busca é proporcionar que ele seja respeitado através da punição da atitude denunciada.

 

Referências:
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. p. 1116-1120
FRANÇA, Declaração Dos Direitos Do Homem E Do Cidadão, de 1789. Disponível em: < http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf> Acesso em 10 de mar. 2013.
LAW, Stephen. Guia Ilustrado Zahar: Filosofia. Rio de Janeiro (RJ): Jorge Zahar, 2009. p. 160-180
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Trad. P. Madeira. Rio de Janeiro (RJ): Nova Fronteira, 2011.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo (SP): Saraiva, 2009.
SANTOS, Washington dos. Dicionário Jurídico Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
SCHOOL OF MATHEMATICAS ANDA STATISTICS, UNIVERSITY OF ST. ANDREWS. Claudius Ptolemy biography. Disponível em: <http://www-gap.dcs.st-and.ac.uk/~history/Biographies/Ptolemy.html> Acesso em 11 de mar. 2013.
In: <http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/franca-fechara-embaixadas-em-20-paises-apos-cartum-sobre-maome> Acesso em 10 de mar. de 2013.
Notas:
[1] Trabalho orientado pelo Prof. Desidério Murcho. Licenciado e Mestre em Filosofia pela Universidade de Lisboa, Doutor pela King’s College London. Atualmente, professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
[2] Em 19.09.2012, a revista francesa “Charlie Hebdo” publica uma série de caricaturas do profeta Maomé.

Informações Sobre o Autor

Anala Lelis Magalhães

Acadêmica de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES


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Equipe Âmbito Jurídico

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