Introdução: A crise da democracia representativa
Um dos temas mais
discutidos no âmbito das ciências sociais é a democracia. Podemos no decorrer
da história encontrar uma grande e rica viagem do seu sentido, desde sua
inicial construção no pensamento e na prática da antiguidade até as
sofisticadas e variadas discussões sobre a democracia participativa, a
democracia dialógica e a construção do estado democrático e social de Direito.
Assistimos nestes
tempos de profundas transformações a crise da democracia liberal, da democracia
social e a insuficiência da democracia representativa além da apropriação do
discurso democrático pelo poder econômico privado, concentrado nas mãos de
poucos, incluindo o importante poder de controle e manipulação da mídia global.[1]
No mesmo momento, entretanto, percebemos claramente o surgimento e
fortalecimento de alternativas. A globalização das comunicações, a Internet, a
mídia alternativa, as TV s comunitárias, os jornais locais, as rádios
comunitárias, enfim toda uma gama de informação democrática alternativa, que,
uma vez organizadas em rede pode transformar o mundo em direção a um processo
dialógico de construção permanente de uma grande democracia global. Do local ao
global, este pode ser um caminho democrático.
Partindo de um conceito
de democracia participativa e dialógica, podemos ir percebendo outros impasses
contemporâneos. Um desafio muito claro está na necessidade de democratizar o
que no senso comum ainda é aceito como democracia, ou seja, desenvolver
mecanismos que possam fazer com que a democracia representativa, vítima do
marketing, da concentração econômica e da opinião pública possa ser mais
democrática do que ela já conseguiu ser no passado.
A democracia não é
um lugar onde se chega. Não é algo que se possa alcançar e depois se acomodar uma
vez que é caminho e não chegada. É processo e não resultado. Desta forma a
democracia existe em permanente tensão com forças que desejam manter
interesses, os mais diversos, manter ou chegar ao poder para conquistar
interesses de grupos específicos, sendo que muitas vezes estas forças se
desequilibram, principalmente com a acomodação da participação popular
dialógica, essência da democracia que defendemos, e o desinteresse de
participação no processo da democracia representativa, pela percepção da
ausência de representatividade e pelo desencanto com os resultados
apresentados.
Desta forma aqueles
que detêm determinados poderes, especialmente o poder econômico, transformam os
processos a seu favor. Já trabalhamos a transformação de mecanismos que
serviram a democracia norte-americana como financiamento de campanha, colégio
eleitoral, bipartidarismo, imprensa privada, em mecanismos de controle e
perpetuação de poder e remetemos o leitor aos nossos livros Direito
Constitucional, tomo I e II, Editora Mandamentos (Belo Horizonte, 2002). Este
desvirtuamento do processo democrático se aprofunda com a concentração
econômica do final do século XX. Emanuel Todd, que combate a visão economicista
do mundo observa o fenômeno no paradoxo da democratização de estados que
viveram autoritarismos históricos enquanto antigas democracias se desvirtuam em
novas oligarquias populistas e ou belicistas:
“No exato momento
em que começa a ser implantada na Eurásia[2],
a democracia enfraquece onde ela nasceu: a sociedade norte-americana
transforma-se num sistema de dominação fundamentalmente desigual, fenômeno
perfeitamente conceituado por Michael Lind em The next American Nation. Encontramos em especial, neste livro, a
primeira descrição sistemática da nova classe dirigente americana
pós-democrática, the overclass.
Mas não há que ter
inveja. A França está quase tão avançada quanto nos Estados Unidos neste
caminho. Curiosa democracia, esses sistemas políticos nos quais se defrontam
elitismo e populismo, nos quais subsiste o sufrágio universal, mas as elites de
direita e de esquerda entendem-se para impedir qualquer reorientação da
política econômica que levasse a uma redução das desigualdades. Universo cada
vez mais absurdo no qual o jogo eleitoral deve conduzir, ao cabo de um titânico
confronto nos meios de comunicação de massa, ao status quo.[3]”
Todd se refere na
França atual a um mecanismo sociológico e político de bloqueio no qual as
aspirações dos 20% de baixo são bloqueadas pelos 20% de cima que controlam
ideologicamente os 60% do meio. O resultado é que o processo eleitoral não tem
qualquer importância prática sendo que o índice de abstenção avança de maneira
sensível.
Democracia e território: Município e Federalismo
A busca de uma
democracia que se constrói a partir do dialogo livre, no livre pensar em uma
sociedade onde a construção de espaços de comunicação sejam possíveis, depende
da construção da cidadania como idéia de dignidade, libertação da miséria e
respeito humano. Não há efetiva liberdade sem meios para exercê-la, e estes
meios são os direitos que libertam o ser humano da miséria e da ignorância.
A seguir
procuraremos demonstrar a importante relação entre as alternativas democráticas
e o poder local. Para isto vamos estudar a experiência brasileira conhecendo
primeiro a organização territorial do Estado brasileiro para depois estudarmos
as experiências locais de democracia participativa, especialmente o orçamento
participativo, mecanismo de democracia que permite a superação da velha
dicotomia liberal entre estado e sociedade civil por meio da criação de
mecanismos de participação que permitem a permeabilidade ou porosidade do poder
do estado, o que só é possível ocorrer, de maneira efetiva e eficaz, no nível
local, onde está o menor espaço territorial.
O tema da
organização territorial dos Estados contemporâneos é hoje de grande importância
para a construção da democracia participativa e do conceito de cidadania
compreendido a partir da teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais.
A tradicional
classificação das Formas de Estado apenas entre Estado Unitário e Federal está
superada pela evolução das formas de organização territorial e repartição de
competências, cada vez mais complexas, ocorrendo hoje, claramente, uma
valorização crescente da descentralização territorial efetiva, como forma de
ganhar em agilidade, eficiência e, principalmente, democracia, por meio do
controle social da ação estatal. É curioso o fato de que, na década de 1980,
tanto a direita como a esquerda brasileiras se mostravam favoráveis à
descentralização. As motivações eram, evidentemente, diferentes, pois, se por
um lado o interesse da esquerda era fortalecer a democracia participativa, de
base local, o interesse da direita era reduzir o papel do Estado imprimindo “mais
eficiência” aos serviços e estimulando a concorrência nas unidades
subnacionais, obtendo como conseqüência o “desenvolvimento” econômico.
A despeito das
divergências entre esquerda e direita, quanto às vantagens da descentralização,
não se pode negar que a descentralização de poder favorece o respeito à
diversidade cultural, permitindo a construção de soluções criativas para os
problemas diários, que levam em consideração o sentimento da localidade, da
região cultural e, especialmente, do sentimento de cidadania que se constrói na
rica diversidade das culturas das cidades, espaço real e não virtual.
Existem várias
formas de Estados Federais no mundo contemporâneo. Podemos perceber com clareza
o movimento em direção a uma acentuada descentralização, que os Estados
democráticos do mundo vêm construindo.
O federalismo
clássico constitui-se no modelo norte-americano, formado por duas esferas de
poder, a União e os Estados-membros (federalismo de duas esferas[4]),
e de progressão histórica centrípeta, o que significa que surgiu historicamente
de uma efetiva união de Estados anteriormente soberanos, que abdicaram de sua
soberania para formar novas entidades territoriais de direito público, o Estado
federal (pessoa jurídica de direito público internacional) e a União (pessoa
jurídica de direito público interno), uma das esferas de poder, ao lado dos
Estados-membros, diante dos quais não se coloca em posição hierárquica
superior.
Alguns
pesquisadores costumam buscar na Grécia Clássica a origem do federalismo
moderno, onde cidades-estado com alto grau de autonomia constituíram alianças.
No século VI a.C. a
Grécia constituía um Império não centralizado e que não girava em torno de um
rei de natureza divina, como ocorria no Egito ou na Mesopotâmia. A Grécia era
composta de cidades dispersas ao longo da costa mediterrânea, independentes
umas das outras e governadas por magistrados destituídos de caráter sagrado. A
democracia ainda era extremamente elitista, pois, embora as decisões fossem
públicas, os pobres, os estrangeiros, os escravos e as mulheres não
participavam da decisão.
Como não existia um
clero estruturado na Grécia daquela época, surgiu na Jônia a primeira visão
laica do mundo. A descentralização de poder, e logo a inexistência de um
Imperador com poder centralizado, onde se tornava necessária a fundamentação
religiosa de seu poder, permitiu um grande desenvolvimento da filosofia grega.
Não existia um principio divino e abstrato que impedisse a busca de explicações
naturais e racionais para os fenômenos observados. A inexistência de deuses
sempre metidos nos assuntos humanos permitia a busca de causas naturais para o
que se observava na Terra.
Origem mais recente
do federalismo ocorre na Suíça. Quando se forma a Confederação Helvética,
originariamente esta não se constitui em uma nação. Esta confederação de várias
cidades-estado surgiu para manter a diversidade cultural contra o centralismo
absolutista que ganhava força na Europa. Estas cidades, desejosas de se
administrar com autonomia uniram-se e se tornaram independentes do domínio
estrangeiro. Em 1848, a
Confederação formada no século XIV transformou-se em um Estado Federal
altamente descentralizado. Para se ter uma idéia do grau de descentralização
Suíça, a Constituição de 1848 foi formada pela União de 22 cidades-estados (a
partir de 1979 são 23 com a criação da República e Cantão de Jura) em uma
superfície de 41.293 Km².
Entretanto, o
primeiro Estado Federal do planeta foram os Estados Unidos da América com a
Constituição de 1787. Sem uma história suficientemente longa, e formada por
pessoas de diferentes origens, os Estados Unidos passam a apostar na
Constituição como pilar da sua identidade nacional. A Constituição Federal de
1787 foi elaborada por apenas 55 delegados, de 12 estados, presentes na
Convenção da Filadélfia, e substitui a Confederação que se formou após a
independência das 13 colônias de 1776. O federalismo da Constituição de 1787
foi recebido com muita resistência à época. O texto da Constituição foi
aprovado pelos Estados-membros sempre por pequena margem, com muitas críticas
ao aprofundamento de um poder central em meio a uma cultura de independência e
autonomia. Havia muita resistência na perda de soberania dos Estados, agora
membros de um Estado Federal. Isto explica o alto grau de autonomia que os
Estados federados norte-americanos detêm até hoje.
No caso do Brasil,
como vimos anteriormente, a forma federal de Estado foi adotado na segunda
Constituição, a de 1891, quando passamos por significativas mudanças, com forte
influência do modelo norte-americano, tanto em relação ao federalismo, quanto à
república e ao sistema presidencial de governo.
Durante a vigência
da Constituição do Império, de 1824, nossa primeira Constituição, o Brasil era
um Estado unitário (modelo em que existe uma única esfera dos Poderes do
Estado), em um governo monárquico-constitucional, o que foi rompido com a
Constituição que se sucedeu, em 1891, quando atribuímos às antigas províncias o
status de estados-membros da recém instituída federação. O novo modelo
implicava, portanto, a criação de uma nova estrutura de poder onde deveriam
coexistir os poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) do governo nacional,
por meio do ente denominado União, bem como os poderes dos novos entes
federados, isto é, dos estados-membros.
Pode-se dizer, a respeito do federalismo
brasileiro, que não houve um processo histórico de união como nos EUA, mas sim
um processo de descentralização de poder, de Estado unitário para federal.
A busca da descentralização no Brasil coincide com a busca de democracia e
liberdade. Todo momento histórico de afirmação de forças e idéias democráticas
o federalismo se fortaleceu, todo momento de autoritarismo o federalismo
desapareceu, não necessariamente como discurso, mas efetivamente como prática
política e juridica institucionalizada. Assim se em 1891 buscamos a Republica e
com esta veio o federalismo, mesmo que nossa República não tenha sido
democrática, a busca da efetivação de idéias republicanas veio acompanhada da
descentralização. Em 1934, com nossa primeira Constituição Social manteve-se o
federalismo, mas desta vez menos descentralizado. Do federalismo dual de 1891,
onde cada esfera detinha separadamente suas competências, surge o federalismo
cooperativo de 1934, onde União e Estados Membros compartilham competencias
administrativas e legislativas. Com o autoritarismo do Estado Novo em 1937
viramos um Estado Federal meramente nominal para então, em 1946 com a
redemocratização voltarmos a um federalismo cooperativo. Com o golpe
empresarial-militar de 1964 o federalismo desaparece novamente, sendo que o
nome de Republica Federativa presente nas Constituições de 1967 e 1969 são
titulos que encobrem uma federação inexistente. Com a ditadura de 64 volta a
centralização. Finalmente em 1988 retomamos o projeto federal, agora com uma
grande novidade: o municipio se torna ente federado.
A partir da
Constituição de 1988, os municípios brasileiros não só mantém sua autonomia
como conquistam a posição de ente federado, podendo, portanto, elaborar suas
Constituições municipais (chamadas pela Constituição Federal de leis
orgânicas), auto-organizando os seus poderes executivo e legislativo e
promulgando sua Constituição sem que seja possível ou permitida a intervenção
do legislativo estadual ou federal para a respectiva aprovação. O que ocorrerá
com as Constituições municipais (leis orgânicas) será apenas o controle a posteriori de constitucionalidade o
mesmo que ocorre com os Estados membros.
Alguns autores têm
rejeitado a idéia do município como ente federado, por ser uma idéia nova, mas
seus argumentos (ausência de representação no Senado, impossibilidade de
falar-se em união histórica de municípios, ausência de poder judiciário no
município) são frágeis ou inconsistentes diante da característica essencial do
federalismo, que difere esta forma de Estado de outras formas descentralizadas:
a existência de um poder constituinte decorrente ou de competências
legislativas constitucionais nos entes federados. Apenas no Estado Federal
ocorre a descentralização de competências constitucionais.
Quanto à
existência de um processo histórico de união, este não existiu no Brasil, assim
como em vários
Estados federais pelo mundo. A formação de nosso Estado
Federal ocorreu de forma fictícia, onde ocorre uma União constitucionalmente construída
a partir de 1891 sem a existência de um processo histórico de união do que
estava separado, uma vez que o Brasil já nasce na forma unitaria estabelecida
por nossa primeira Constituição de 1824.
O argumento
da negação do município como ente federado fundado em idéia de inexistência de
representação dos municípios no Senado não procede. Existem Estados federais
não bicamerais (a Venezuela é unicameral), assim como ocorre o bicameralismo em
Estados unitários (França), regional (Itália), autonômico (Espanha), sendo que,
no caso brasileiro, o nosso Senado não é apenas uma casa de representação dos
Estados, mas cumpre também uma função revisora e conservadora, caracterizada
pela duração do mandato e forma de renovação de suas cadeiras.
Entretanto muito ainda deve ser feito para aperfeiçoarmos a Federação,
e entre as mais importantes ações, devemos buscar uma reforma do pacto
federativo que inverta, a favor dos Estados e Municípios, a repartição de
recursos e de competências legislativas. Após a Constituição de 1988 vivemos uma nova realidade
constitucional onde o fortalecimento dos entes federados permitiu que o
federalismo cooperativo fosse substituído, não por um federalismo dual, mas por
um prejudicial federalismo de concorrência. O interessante deste momento é o
fato de que a Constituição de 1988 mantém grande parte das competências
legislativas e administrativas exercidas de forma compartilhada por meio de
competências administrativas comuns e competências legislativas concorrentes.
Pela simples leitura dos artigos 22
a 24 da Constituição Federal percebemos que,
especialmente nas competências legislativas, temos um federalismo invertido, de
cabeça para baixo, onde a União é extremamente forte e os entes federados
esvaziados. Entretanto, apesar da má distribuição de competências legislativas,
é permitida uma autonomia tributaria que leva a uma guerra de alíquotas que
serve para empobrecer o país e destruir as garantias de direitos sociais
duramente conquistados.
Em outras palavras, exercemos o pior da
autonomia e deixamos o melhor de lado. Os entes federados (Estados membros e
Municípios) passam a concorrer no oferecimento de melhores condições
tributarias para investimento, o que significa muitas vezes piores condições de
vida para as pessoas, sem, entretanto, conquistar competências legislativas
importantes que possam trazer o debate legislativo de questões do dia a dia da
vida dos cidadãos para perto da influência da sociedade civil, organizada ou
não.
O grande avanço da democracia participativa no Brasil: O orçamento
Participativo
Discutimos um pouco
a democracia e a organização territorial do Estado brasileiro. Agora é
importante discutirmos a fascinante experiência de construção da democracia
participativa no Brasil, para então verificarmos a importância de continuarmos
em direção a descentralização coordenada.
O Brasil vem vivendo
experiência muito importante de democracia participativa, que se iniciou
com a primeiro orçamento participativo municipal em Pelotas, Rio Grande do Sul
sendo depois levada para administração de Porto Alegre. É importante lembrar
que a organização da sociedade civil que permite o avanço do poder local
democrático participativo, encontra suas bases nos movimentos de resistência à
ditadura civil-militar de direita (1962–1985), no movimento de formação das
comunidades eclesiais de base e no movimento sindical no final da década de 70,
movimentos que estão na base da criação do Partido dos Trabalhadores, hoje no
poder federal, em alguns estados membros e em diversos municípios.
O orçamento participativo é um importante
mecanismo de democracia e de participação direta do cidadão e de grupos de
cidadãos, na construção da democracia local do Brasil. [5]
Discutimos um pouco
a questão da crise da democracia representativa e o fortalecimento de uma nova
democracia representativa a partir do fortalecimento da participação popular ou
da democracia participativa. Podemos perceber na experiência brasileira, que
uma forma para se resgatar e fortalecer a democracia representativa é o
fortalecimento da participação popular através da criação de mecanismos que
ofereçam permeabilidade ao poder do estado, criando canais de participação cada
vez maiores, superando gradualmente a velha dicotomia liberal entre estado e
sociedade civil. Essa participação popular desejada, que resulte em decisão,
mais democracia e controle social efetivo ocorrerá de maneira efetiva e
eficiente, justamente, no poder local.
No Brasil,
observamos a busca de uma maior descentralização e o fortalecimento do poder
local integrado em uma federação. É importante ressaltar que não basta
descentralizar, é fundamental que o processo de descentralização leve em
consideração a democracia participativa local e que busque um desenvolvimento
territorial equilibrado reduzindo as desigualdades sociais e regionais. Para
que isto ocorra é necessária uma correta distribuição de competências entre as
diversas esferas de poder no território, desde a União, passando pelos estados
membros, chegando aos municípios. As esferas de coordenação de políticas macro
de desenvolvimento equilibrado têm de permanecer com os entes territoriais
maiores, que poderão desta forma produzir o equilíbrio por meio de políticas de
compensações tributárias para as diferentes realidades regionais e
municipais.
Poder local e resgate da democracia social
No Brasil, menos de
um ano após a promulgação da Constituição democrática e social de 1988,
assistimos o início do desmonte da nova ordem econômica e social prevista pela
Constituição. Nesse mesmo momento, como suporte teórico do desmonte do estado
social, cresceu a crítica simplificadora e reducionista, importada dos Estados
Unidos e de alguns autores europeus, proveniente do novo pensamento neoliberal
e neoconservador e ratificada por parte nova esquerda (como o novo trabalhismo
de Tony Blair). Esta crítica ao estado social que vem dar suporte ao seu
desmonte, aponta o caráter assistencialista como gerador de um exército de
clientes que se amparam no estado, não mais produzindo, não mais criando,
enfim, o estado social de caráter autoritário por retirar espaços de escolha
individual é gerador de não cidadãos, ao incentivar as pessoas a viverem às
custas do estado. Esta crítica extremamente simplificadora e parcial, que toma
uma parte de um problema pontualmente localizado no tempo e no espaço como
sendo regra para explicar a crise do estado social, ganhou força inclusive à
esquerda, o que muito contribuiu para a desconstrução do estado de bem estar
social em diversas partes do globo. Para estes críticos o estado não deve
sustentar os que não querem trabalhar uma vez que esta postura do estado
incentiva a expansão dos não cidadãos e sobrecarrega os que trabalham e o setor
produtivo com uma alta carga tributária. Esta simplificação se depara com um
fato: não há emprego para todos. O pobre deve trabalhar para ter acesso ao que
necessita e como não há trabalho para todos, (nem mesmo o trabalho indesejável
e mal pago destinado a estes excluídos) aumenta a população carcerária. O
estado social assistencialista é substituído pelo estado penal da era
neoliberal. O criticado cliente do assistencialismo da segurança social foi
transformado em cliente do sistema penal da segurança policial.
Neste novo
paradigma conservador a pobreza não decorre das barreiras sociais e econômicas
mas sim do comportamento do pobre. O Estado não deve atrair as pessoas a uma
conduta desejável através de reconhecimento mas deve punir os que não agem como
o desejado. O não trabalho passa a ser um ato político que exige o recurso à
autoridade. O estado social passa a ser visto como permissivo pois não exigia
uma obrigação de comportamento a seus beneficiários. A direita conservadora
mais reacionária e a autoproclamada vanguarda da nova esquerda dão eco a vozes
como a de Charles Murray que afirma que as uniões ilegítimas e as famílias
monoparentais seriam a causa da pobreza e do crime, e por sua vez, o estado
social com sua política permissiva incentivava estas práticas. Além disto, a
classe média produtiva se revoltava cada vez mais com a obrigação de pagar
tributos para sustentar estas práticas.[6]
Esta absurda tese sem nenhuma base científica defendia cortes radicais nos
orçamentos sociais e a retomada por parte da polícia dos bairros antes
operários, hoje ocupados pelos clientes preferenciais do sistema social que tem
de deixar de existir.
O resultado destas
políticas (tanto da direita conservadora como de uma autoproclamada nova
esquerda) é conhecido nosso no século XXI: mais exclusão, mais concentração
econômica, mais violência, mais controle social, mais desemprego, menos estado
de bem estar e mais estado policial. O mais grave é o fato de que, ainda hoje,
vozes que se dizem democráticas continuam sustentando o mesmo discurso contra os
direitos sociais, defendendo uma sonhada e desejável democracia dialógica construída
pela sociedade civil, sem perceber que os novos excluídos social e econômicos
estão excluídos do diálogo democrático, passando a fazer parte da crescente
massa de clientes do sistema penal em expansão.
Importante notar
que esta sociedade civil que hoje se organiza em nível local e global, e se
comunica, organiza e age local e globalmente, em muitas manifestações resiste
ao desmonte do estado de direito, das conquistas dos direitos sociais e busca
uma nova ordem econômica onde não haja exclusão econômica.
Com menos vigor e
contundência que os movimentos sociais, mas com importante papel no cenário de
resgate de um paradigma social, o discurso e a prática de novos governos de
centro esquerda na América Latina como no Brasil, Venezuela, Equador, Bolívia,
Chile, Uruguai e Argentina, demonstram uma retomada do papel do estado na
economia e na questão social, abandonando gradualmente o modelo neoliberal.
No Brasil, o
caminho para construção de uma democracia participativa e dialógica, de
resistência ao desmonte do estado social e democrático de direito passa pela
questão local.
Poder local e defesa da democracia
Como já mencionamos
anteriormente, a crise da democracia representativa tem demonstrado como é
possível a utilização de mecanismos, que foram criados para a democracia, a
favor da perpetuação do poder.
A crise da
democracia representativa se agrava com a cada vez maior influência do poder
econômico nas campanhas eleitorais e a resistência que assistimos vêm com a
força dos fóruns populares dialógicos e democráticos, onde a partir de
organizações que surgem em torno de questões locais, ganhando a perspectiva da
indissociabilidade dos níveis territoriais das soluções, ou seja, a construção
de um novo ser humano, que perceba a precariedade do consumismo e do desenvolvimentismo
capitalista frente às necessidades ambientais e ecológicas.
Hoje, em varias
democracias representativas, vende-se um representante como se vende um sabão em pó. Quem fabricar
melhor seu representante, tiver mais dinheiro para contratar uma boa empresa de
“marketing” e conseguir muito tempo de mídia, conquista e mantém o poder. Nos
Estados Unidos, um Senador democrata gastou 60 milhões de dólares para se
eleger nas eleições de 2000. Nos EUA o salário de um Senador é de 150.000 dólares
ano, para um mandato de seis anos. Quais interesses sustentam este Senador?
Quem ele representa? O povo? Hoje se sabe que na “grande democracia do norte”,
só tem chance de chegar ao poder quem tem atrás de si os milhões de dólares das
mega corporações da indústria armamentista, da indústria de tabaco, da
industria farmacêutica e outras. Mesmo uma candidatura que apresenta uma
alternativa de discurso como a de Barak Obama, tem por traz de si milhões de
dólares (é o candidato que mais tem recebido doações) o que mostra os grandes
limites para promover mudanças que este governo Obama, se eleito, terá.
Qual a alternativa
para este mega poder global? Podemos dizer que a resistência ocorre hoje em
dois flancos: a sociedade global e a sociedade local, duas faces de uma mesma
moeda. O cidadão é hoje global e local. A sociedade de comunicação deve fincar
suas bases em um território, núcleo de organização social e de criação de
modelos econômicos e sociais alternativos capazes de gerar novos valores
alternativos ao materialismo da sociedade de consumo e a lógica perversa da
concorrência. O núcleo local é o principal na transformação de valores e de
realização de justiça social e econômica. Simultaneamente, este núcleo local
deve estar em comunicação permanente com outros núcleos (organizações sociais;
ONG’s, municípios, comunidades de bairro, rádios, jornais e televisões
comunitárias, etc) de todo o mundo. A inserção destes núcleos na comunicação
global garante seu arejamento e evolução constante, afastando o perigo
ultra-nacionalista, a exclusão étnica, racial, religiosa, cultural ou a mais
sofisticada forma de exclusão ainda nascente mas não menos assustadora, a
exclusão genética.
O contato com o
diferente, com valores e fórmulas de busca da felicidade diferentes, ou seja, o
pluralismo e a diversidade cultural, nos permite evoluir e resistir a
massificação das empresas globais, onde em qualquer parte do globo se come o
mesmo sanduíche, a mesma pizza ou o mesmo frango frito.
A pergunta que se
segue é a seguinte: como criar uma sociedade reflexiva no Brasil? Qual caminho
devemos seguir para efetivar no Brasil a democracia participativa efetiva?
A construção de uma
democracia dialógica, radical, participativa no Brasil passa pela discussão
territorial, e especialmente no nosso caso pela discussão do pacto federativo.
Só no nível local conseguiremos incluir uma população que deseja e luta por
justiça.
As experiências de orçamento participativo têm
se mostrado muito ricas atuando de forma complementar a democracia
representativa. Este mecanismo não substitui a democracia representativa,
existe o prefeito, os legisladores, a aplicação de recursos públicos através da
proposta de uma lei orçamentária por parte do executivo que deverá ser aprovada
pelo legislativo, ou seja, a democracia participativa não substitui a
democracia representativa, mas contribui para seu aperfeiçoamento. Em outras
palavras a democracia participativa garante que a democracia representativa
seja mais democrática. Depois da implementação do orçamento participativo em Porto Alegre, e com o
fato do governo de Porto Alegre ter sempre implementado com sucesso a grande
maioria das decisões populares, o PT (Partido dos Trabalhadores) administrou por
quatro mandatos a Prefeitura de Porto Alegre. Belo Horizonte também representa
uma experiência de sucesso da democracia representativa.
Durante este tempo
ocorreram algumas experiências intermediárias, ou seja, algumas experiências de
orçamento participativo meramente consultivo, o que não resultou em muito
sucesso. Por exemplo, na Prefeitura de Recife, em Pernambuco, foi criado um
orçamento participativo de caráter consultivo. Eram realizadas reuniões com a
população, ouvia-se a população e depois o executivo fazia as suas próprias
escolhas e as remetia para a Câmara .
Esta experiência
resultou numa correspondência entre aquilo que o povo queria em termos de
orçamento participativo e o que realmente era efetivado em torno de 30% a 40%,
enquanto que no sistema deliberativo, o resultado de efetivação das obras
escolhidas pelo povo tem a média de 87% das deliberações populares, ou seja, 87
% do que o povo escolhe se concretiza em obras públicas para a população do
município. Este resultado que apresenta o sistema consultivo em relação ao
sistema deliberativo têm afastado o povo das Assembléias consultivas, o inverso
do que ocorre no sistema deliberativo que a cada ano recebeu mais participação
popular.
A democracia
participativa tem de se inserir dentro das reflexões sobre a resistência ao
poder econômico global, ao neoliberalismo, uma vez que o grande capital, as
grandes corporações globais detêm um enorme poder de propaganda; eles detêm os
meios de comunicação detêm o poder econômico e impõem aos estados nacionais,
uma situação de grande desigualdade.
Conclusão
O povo sabe o que
quer, e está aprendendo rapidamente a diferenciar o discurso da prática
política. Todos os discursos podem ser iguais, mas poucos têm um projeto e uma
prática de libertação política e de libertação da miséria. O povo simples pode
não saber ainda a diferença teórica entre neoliberalismo e socialismo, mas sabe
a diferença entre ser escravo e ser dono da sua própria vida. Se a discussão
teórica a respeito do neoliberalismo está distante da compreensão de muitos no
Brasil, ao trazermos esta discussão para a concretude do município ela fica
clara para todos: neoliberalismo significa a má qualidade do ensino ou a falta
da escola; a má qualidade da saúde ou a falta do posto de saúde e do hospital;
a falta de saneamento e etc. No Município as teorias ganham concretude.
O caminho que tem
sido trilhado até o momento e o da busca da descentralização radical.
Entretanto, esta descentralização de nada adianta sem a mudança das bases de
poder no município, criando mecanismos de participação popular como os
conselhos municipais e o orçamento participativo.
Um conjunto de
reformas que afastem os problemas da democracia representativa no Brasil, como
a proposta pelo atual governo, se faz necessária para facilitar o processo de
transformação social e econômica e o fortalecimento da sociedade civil
organizada com a busca da superação da dicotomia estado e sociedade civil.
Entretanto este
conjunto de reformas por si só não tem a força de transformação da realidade
uma vez que elas são principalmente estruturais. Nada ocorrerá sem uma
sociedade civil ativa e organizada, fenômeno que vem ocorrendo de maneira
crescente na história recente do Brasil e em toda a América Latina.
[1]
Sobre o tema: FIGUEIREDO, Rubens. Marketing Político e persuasão eleitoral,
Editora Fundação Konrad Adenauer, São Paulo, 2000; KUCINSKI, Bernardo. A
Síndrome da antena parabólica – ética no jornalismo brasileiro, Editora
Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 1998.
[2] Podemos
mencionar também da democratização dos estados nacionais da América Latina e
diversas novas democracias africanas
[3] TODD,
Emanuel. Depois do Império, Editora Record, Rio de Janeiro, 2003, página 28.
[4] A
literatura sobre federalismo usa a denominação “federalismo de dois níveis”
para referir-se aos modelos federais em que coexistem como esferas de governo o
da União e dos Estados-membros. Para tratar do federalismo brasileiro, que
incluiu os municípios como mais uma esfera, é comum encontrarmos a expressão
“federalismo de três níveis”. No entanto, faremos uso neste trabalho, apenas da
denominação “esferas da federação”, ao invés de “níveis da federação”. Isto
porque a palavra nível dá a idéia de hierarquia, o que inexiste na forma
federal de Estado, na relação entre seus entes.
[5] Há
uma vasta literatura sobre o tema da qual citamos: SANCHEZ, Félix. Orçamento
Participativo – teoria e prática, Editora Cortez, São Paulo, 2002; GENRO, Tarso
e SOUZA, Ubiratan de. Orçamento Participativo – a experiência de Porto Alegre,
Editora fundação Perseu Abramo, São Paulo, 4 edição, 2001; CALDERÓN, Ignácio,
CHAIA, Vera (organizadores). Gestão Municipal: descentralização e participação
popular, Editora Cortez, São Paulo, 2002; MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades –
alternativas para a crise urbana, Editora Vozes, Petrópolis RJ, 2 edição, 2001;
DANIEL, Celso e outros. Poder Local e Socialismo, Editora Fundação Perseu
Abramo, São Paulo, 2002; DOWBOR, Ladislaw. A reprodução social – propostas para
uma gestão descentralizada, Editora Vozes, 2ª edição, Petrópolis, 1999;
TEIXEIRA, Elenaldo. O Local e o Global – limites e desafios de participação
cidadã, Editora Cortez, 2ª edição, São Paulo, 2001; SANTOS, Milton. Território
e Sociedade, Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª edição, São Paulo, 2000; CAMPOS
FILHO, Candido Malta. Reinvente seu Bairro, Editora 34, São Paulo, 2003; FREITAG-ROUANET,
Bárbara e outros. Cidade e Cultura – esfera pública e transformação urbana,
Editora Liberdade, São Paulo, 2002; CASTELLS, Manuel. Cidade, democracia e
socialismo, Editora Paz e Terra, 2ª edição, Rio de Janeiro, 1980; TOTORELLO,
Luiz Olinto (organizador). Retratos Metropolitanos – A experiência do Grande
ABC em perspectiva comparada, Editora Fundação Konrad Adenauer, São Paulo,
2002; DUTRA, Olívio e BENEVIDES, Maria Vitória. Orçamento Participativo e
Socialismo, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2001.
[6] Esta
crítica esta muito bem construída no livro de LOIC WACQUANT, Prisões da
Miséria, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001.
Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFMG Professor da graduação, mestrado e doutorado da PUC-MINAS e UFMG.
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