Resumo: Este trabalho tem por finalidade a aplicação do constructivismo lógico-semântico a um problema interpretativo consistente na construção do sentido a partir do disposto no art. 55, parágrafo único, da Lei dos Registros Públicos, cujo preceito prevê o controle pelo registrador civil de nomes que tenham o potencial de expor ao ridículo o registrado. Para trilhar esse raciocínio, passa-se inicialmente pelas premissas da teoria geral do direito, com base nos autores filiados ao constructivismo lógico-semântico, valendo-se, ademais, da semiótica como metodologia de análise jurídica. Como se explica no curso do trabalho, não se tem uma resposta vencedora, porém se procura utilizar o comentado ferramental teórico com o intento de investigar e cotejar as bases referenciais das interpretações exaradas em âmbito doutrinário-jurisprudencial. Enfim, ante essa perquirição, conclui-se que, a despeito da imensa dúvida que paira não só sobre a delimitação semântica, mas também sobre a discrepância de critérios entre os operadores do direito, é recomendável prestigiar a vontade dos pais, máxime em situações muito sutis, nas quais persiste a indagação se há realmente a caracterização do ridículo, sem que isso implique menosprezar o que se convencionou chamar de zonas de certeza quanto à potencial ridicularização do nome optado.
Palavras-chave: “Filosofia da linguagem”. “Constructivismo lógico-semântico”. “Horizontes culturais”. “Ridículo”. “Zona interpretativa consensual”.
Abstract: This paper has the purpose to apply the logical-semantic constructivism to an interpretative problem related to the construction of sense from the disposed in the article 55, single paragraph, of the Public Registrar Law, whose precept previews the control by the civil registrar of names that have the potential to expose the registered person to ridicule. To follow this reasoning, it is passed initially by the premises of the general theory of the law, based on the authors affiliated to the logical-semantic constructivism, using, moreover, the semiotic as the methodology for this legal analysis. As it is explained in the course of the paper, there is not a winner answer, but it is tried to utilize the commented theoretical tooling with the intent to investigate and collate the referential basis of the interpretations made in the academic-jurisprudential scope. Finally, considered that investigation, it is concluded that, despite the immense doubt that hovers not only above the semantic delimitation, but also above the discrepancy of criteria among legal operators, is recommendable to praise the parents’ will, especially in very subtle situations, in which persists the inquiry if there really is a characterization of ridicule, without implying disregard of what has been commonly called certainty zones, in terms of the potential mockery of the opted name.
Keywords: “Philosophy of language”. “Logical-semantic constructivism”. “Cultural horizons”. “Ridicule”. “Consensual interpretative zones”.
Sumário: Resumo. Introdução. 1. O giro-linguístico. 2. Linguagem, língua e realidade. 3. O constructivismo lógico-semântico. 4. A relação triádica do signo e a semiótica como método no direito. 5. A interpretação. 6. A axiologia do direito. 7. O Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais e o controle sobre o nome. 8. A análise semântica. 9. A análise pragmática. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como proposta a aplicação do constructivismo lógico-semântico a um tema caro aos registros públicos, especialmente ao Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais.
Assim, em face da diretriz apresentada, pretende-se, nas próximas páginas, passar pelas premissas do constructivismo lógico-semântico para, em seguida, valermo-nos delas com o intuito de abordar um assunto dos registros públicos com o qual este autor tem de lidar rotineiramente no Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais: a exposição ao ridículo do prenome que os pais intencionam atribuir ao seu filho quando da lavratura do registro de nascimento.
Trata-se, deveras, de tema polêmico por si só, independentemente do viés filosófico que se empreende nesta pesquisa, já que os genitores nutrem muitas expectativas na cogitação de um nome a seu descendente, o que naturalmente lhes causa perplexidade ao se depararem com uma negativa do oficial em proceder ao assentamento.
De toda forma, esquivando-se dessas digressões que fogem ao recorte metodológico do presente trabalho, quer-se, em suma, examinar um problema eminentemente interpretativo: no que consiste a exposição ao ridículo? Como analisar a interpretação que um operador do direito deve realizar ao ler os signos concatenados no art. 55, parágrafo único, da Lei dos Registros Públicos (LRP)? Enfim, com fulcro num mesmo enunciado linguístico, o que ocasiona interpretações tão díspares para as pessoas em geral, sejam elas juristas ou leigas em direito?
Sem titubear, e é de extrema importância que isto fique claro desde o início, não se objetiva trazer ao final deste trabalho uma resposta definitiva sobre como interpretar o aludido dispositivo legal. Como se verá no curso da exposição, a tarefa é impossível com base nos pressupostos filosóficos que se adotam.
Essa postura metodológica, no entanto, não nos impede de abordar posicionamentos doutrinários – ou seja, interpretações feitas por cientistas do direito – e decisões judiciais – como se explicará adiante, interpretações autênticas – que tiveram de defrontar a insistência dos pais mesmo diante da recusa do registrador.
As considerações introdutórias que se acabam de lançar revelam, pois, um esboço do trajeto que se percorrerá nas próximas páginas, sempre se respaldando nas lições absorvidas ao longo do semestre relativas ao constructivismo lógico-semântico.
1. O GIRO-LINGUÍSTICO[1]
Ao começar-se a revisitação de premissas indispensáveis ao percurso do nosso raciocínio, é imperioso dar os primeiros passos com a apresentação do chamado giro-linguístico, consistente em marco histórico por inverter a filosofia da consciência em filosofia da linguagem.
Assim, abandona-se a ideia de que a linguagem deve ser vista como instrumento secundário da relação de conhecimento que se estabelece entre o sujeito e o objeto, como se o mundo pudesse ser conhecido exclusivamente pela consciência, servindo a linguagem como mecanismo de comunicação às demais pessoas. Desse modo, até então, o estudo do conhecimento ou se referia ao sujeito (gnosiologia), ou ao objeto (ontologia), ou, ainda, a esses dois (fenomenologia), porém sempre deixando num segundo plano a relevância da linguagem para se conhecer a realidade (CARVALHO, A. T., 2014).
A transição, entretanto, acontece a partir da emblemática obra de Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, na década de vinte do século passado, instante em que a linguagem deixa de ser meio de comunicação do conhecimento e se transforma em condição para se alcançar a construção do próprio conhecimento: o ato de conhecer, portanto, não se configura mais pela relação entre um sujeito e um objeto, mas, sim, entre linguagens.
As ideias expostas por Wittgenstein induzem a conclusão segundo a qual o conhecimento é atingido por uma construção intelectual intermediada pela linguagem, de modo que, conforme exemplificação fornecida pela Professora Aurora Tomazini de Carvalho (2014, p. 16), ao interagir com um determinado objeto físico – verbi gratia, uma cadeira –, o sujeito não consegue reproduzi-lo mentalmente, necessitando, então, da constituição intelectual com o uso da linguagem – na mesma hipótese excogitada, a palavra “cadeira”.
Portanto, há uma concatenação de construções linguísticas, visto que umas se remetem a outras – para se exemplificar, basta pensar na pesquisa do sentido de uma palavra na consulta ao dicionário –, conquanto todas estejam moldadas por um contexto sociocultural formado por uma língua. Conseguintemente, o objeto do conhecimento deixa de ser a materialidade para se tornar um conjunto de proposições descritivas desta última, pois o que constitui a coisa é a proposição que se lhe refere.
É por essa razão que Dardo Scavino (2014, p. 1-2) argumenta que na filosofia da linguagem não há mais conhecimento do objeto da forma como se apresenta fisicamente, já que as afirmativas formuladas a seu respeito são seus elementos constitutivos.
2. LINGUAGEM, LÍNGA E REALIDADE
Seguindo-se a linha de raciocínio acima exposta, é fundamental que se esclareça como o ser humano compreende a realidade: se os sentidos seriam, de fato, a maneira como ela é captada, ou se tudo não passaria de mero engano (CARVALHO, 2014, A. T., p. 18).
Naturalmente, para a filosofia da linguagem, a realidade é fruto da interpretação, significando, portanto, que ela decorre dos sentidos que são conferidos a dados brutos percebidos pelos sentidos do homem. Noutras palavras, não há percepção da realidade propriamente dita, pois o intérprete a constrói por intermédio da atribuição de significados a elementos sensoriais.
Assim, sendo a realidade o resultado de um sentido que foi construído, não restam dúvidas de que a constituição do sentido foi realizada no universo da linguagem, motivo por que se afirma que é esta última a criadora da realidade.
Ressalva-se, por outro lado, que os chamados dados brutos existem independentemente do emprego da linguagem, porém somente ela abre as portas para o conhecimento daqueles, visto que a realidade ainda não interpretada configura objeto ininteligível ao homem (Ibid., p. 20).
Ademais, a linguagem deve ser diferenciada da língua, pois esta é “um sistema de signos artificialmente constituído por uma comunidade de discurso” (Ibid.),[2] ao passo que a primeira consiste em aptidão de que é dotado o homem para se comunicar por meio de signos sistematizados numa língua (CARVALHO, P. B., 2011, p. 40). Isso significa, em suma, que a língua é atividade mental para estruturar o mundo, e não uma estrutura pela qual se compreende o mundo.
Portanto, cada língua tem a potencialidade de criar sua própria realidade, como se, na exemplificação fornecida por Vilém Flusser (2004, p. 52), cada uma delas fosse um par de óculos utilizado pela mente para intelecção da realidade, a qual consequentemente se modifica sempre que alterada a língua utilizada para a estruturação da realidade circundante.
3. O CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO
Adotando-se as explanações do Professor Paulo de Barros Carvalho (2014, v. I, p. 4) em artigo preliminar da coletânea dos discípulos da vertente linha de pensamento, o constructivismo lógico-semântico deve ser encarado primeiramente como um instrumento de trabalho que tem por escopo adequar a exatidão do raciocínio à criação de um discurso coeso e rigoroso. Esse intento é alcançado por meio da amarração dos termos da linguagem que devem se estruturar observando a análise sintática e semântica das palavras.
A origem do constructivismo está no pensamento de Lourival Vilanova, muito influenciado pelo Círculo de Viena, o qual, ao ser indagado acerca do nome que sugeriria conferir à postura adotada em suas obras de filosofia do direito, afirmou que seria propício atribuir o nome de constructivismo:
"Não segundo o modelo do ‘constructivismo ético’, todavia, agregando ao nome o adjetivo composto ‘lógico-semântico’, pois, afinal de contas, todo o empenho estaria voltado a cercar os termos do discurso, para outorgar-lhes a firmeza necessária (e possível, naturalmente), tendo em vista a coerência e o rigor da mensagem comunicativa. Isso não significa, porém, relegar o quadro das investigações pragmáticas a nível secundário. Expressa tão somente uma opção metodológica. Melhor seria até dizer que a proposta lógico-semântica aparece como contribuição para um estudo semiótico do discurso" (CARVALHO, P. B., 2014, v. I, p. 6).
Ademais, observe-se que o Constructivismo tem extensão menor do que a Teoria Comunicacional do Direito, a qual deve ser vista como concepção filosófica, ainda que ambas tomem a linguagem como elemento constitutivo da realidade.[3]
Por fim, acentuando aspecto de suma importância para este trabalho, tendo-se em vista a premissa da linguagem como único mecanismo de absorção intelectual da realidade, não se esqueça de que a hermenêutica é crucial para a compreensão do mundo, consequentemente exigindo do aplicador do direito o processo mental interpretativo com base em referenciais, valores, cultura e contexto em que inserido, ideias estas que serão logo mais expendidas com minúcias.
4. A RELAÇÃO TRIÁDICA DO SIGNO E A SEMIÓTICA COMO MÉTODO NO DIREITO
Ao abordarem-se língua, fala e linguagem, é importante tratar do signo, que consubstancia “tudo que representa algo para alguém, um objeto, um desenho, um dado físico, um gesto, uma expressão facial, etc.” (CARVALHO, A. T., 2014, p. 165), ou, para adotarmos corrente de extrema valia para nossa análise, uma relação triádica entre suporte físico, significado e significação.[4]
Logo, se toda linguagem é composta por essa relação envolvente de três termos muito bem delimitados e se o direito é nela vertido, isso implica reconhecer que o suporte físico, isto é, o texto posto por autoridade competente, tem um significado, que consiste na remissão à realidade. Por sua vez, na mente do intérprete se verificam as significações, ideias conjecturadas por ele com base em sua vivência, ideologia e cultura.
Se se aplicar o raciocínio ao direito como linguagem, pode-se visualizar a dualidade entre o direito positivado e a ciência do direito, pois o primeiro tem como suporte físico os textos brutos postos pelo legislador ou por outro órgão revestido de competência para tanto, que têm como significado condutas intersubjetivas e como significações as normas jurídicas (juízos hipotético-condicionais) que o intérprete constrói ao analisar esses textos. Já a ciência do direito, que, diferentemente do anterior – dotado de caráter prescritivo –, apresenta viés descritivo, tem como suporte físico os enunciados escritos pelos juristas, os quais têm como significado o próprio direito positivo e por significação a formulação na mente do intérprete de várias proposições descritivas.[5]
Dessas explicações infere-se preliminarmente que o significado e a significação se confundem, na medida em que o intérprete é quem constrói a realidade com as significações que se passam em seu raciocínio, interferindo diretamente no significado, que, no direito, como exposto acima, diz respeito às próprias condutas intersubjetivas.
Assim, fundamental rememorar passagem em que se destaca a importância dessa mescla: “A ‘realidade’ jurídica à qual o enunciado prescritivo faz referência acaba sendo aquela construída pelo intérprete. Da mesma forma, a interpretação da doutrina pelo aluno (significação) influi no modo como a realidade ‘direito positivo’ para ele se apresenta” (Ibid., p. 170).
Outrossim, pelo que foi aduzido até aqui, nota-se que o conteúdo do direito não está genericamente nos textos escritos pelo legislador, mas, sim, no pensamento do intérprete, mediante construção que ele faz a partir dos textos.
Finalmente, fazem-se algumas considerações a respeito da semiótica, ou melhor, a respeito da teoria geral dos signos, empregada como opção metodológica para o exame analítico do direito como linguagem, sem, contudo, menosprezar-se a relevância dos horizontes culturais e das demais premissas referenciais que circundam o intérprete. Aliás, muito pertinente, aqui, a menção a algumas ideias básicas deduzidas da semiótica para que se possa nas fases mais avançadas deste trabalho desenvolver pesquisa que abarque as perspectivas semântica e pragmática do nome que tem o potencial de colocar seu portador em situação constrangedora.
Assim sendo, a semiótica empregada como método de análise do direito possibilita que se compreendam os textos nos planos sintático, semântico e pragmático. No plano sintático, busca-se o estudo da relação lógica dos termos e da função de cada um deles na frase quanto à concordância, subordinação ou coordenação com os outros elementos; no plano semântico,[6] visa-se ao conteúdo das expressões, aos seus significados; finalmente, no plano pragmático, restringe-se a análise à maneira como os utentes da linguagem empregam determinadas expressões – tanto emissor como destinatário –, seja quanto à forma como as inserem na estrutura da frase, seja no significado que vêm atribuindo a essas palavras.[7]
5. A interpretação
A última questão que se deve abordar antes de adentrar o tema registrário por intermédio das lentes do constructivismo lógico-semântico diz respeito ao entendimento sustentado por esta corrente filosófica quanto à interpretação dos textos em geral.
Dessarte, por ter-se como ponto de partida a filosofia da linguagem, abandona-se de vez a concepção de que todas as palavras têm um significado ontológico, passando, ao revés, a perceber que o conteúdo do texto não está na literalidade, mas, sim, na mente do intérprete, que constrói o sentido do que lê com base em suas experiências, pré-compreensões, valores e elementos culturais circundantes. Note-se, portanto, que a interpretação é resultado de uma série de fatores que permeia o hermeneuta, sem que seja possível afirmar que o texto carrega consigo o conteúdo buscado. A título exemplificativo, basta recordar que a norma jurídica em sua estrutura de juízo hipotético-condicional (HàC) é fruto dessa construção interpretativa, feita a partir dos textos positivados.
Por conseguinte, a hermenêutica finca suas raízes num tripé composto por leitura, interpretação e compreensão, na medida em que primeiramente lê-se o disposto em texto, em seguida constrói-se o sentido do que foi lido e finalmente apreende-se o que foi interpretado, razão pela qual Aurora Tomazini de Carvalho (2014, p. 229) ressalta estar-se diante de método empírico dialético, haja vista a inesgotável confrontação daquilo que se construiu, até se atingir, finalmente, a fase da compreensão.
Esse processo de atribuição de significações a signos, que basicamente sintetiza a interpretação, passa por um trajeto gerador de sentido, tendo por ponto inicial o suporte físico, mas dirigindo-se verticalmente numa reta infinita em espiral, que se vê limitada pelos horizontes culturais. Nessas fases inesgotáveis de atribuição de valores, alcançam-se etapas de compreensão que integram a construção do conteúdo. Daí ser pertinente a distinção entre interpretação e compreensão, fixada a primeira como processo e a segunda como produto.
Ademais, ainda atento a este fenômeno, afirma-se, com fundamento na obra de Paulo de Barros Carvalho (2011, p. 201), que a interpretação é inesgotável, já que este processo não tem fim, sem apresentar restrições semânticas à construção dos sentidos; além disso, é também intertextual, pois os textos componentes do mundo jurídico dialogam com tamanha intensidade que exigem do intérprete essa análise conjuntural.
Os citados horizontes culturais, outrossim, compõem o caráter de historicidade (ou cultura) ínsito à interpretação, porque, como enfatizado há pouco, é fruto de uma construção pautada por preconceitos e pré-compreensões do sujeito, que é pessoa envolta numa tradição (CARVALHO, A. T., 2014, p. 232). O fator contextual também tem imensa relevância para se realizar a interpretação, já que uma mesma frase pode ocasionar a construção de sentidos totalmente opostos.[8]
Encaminhando-se, doravante, para as asserções finais deste tópico, conclui-se que a postura do constructivismo lógico-semântico é culturalista com relação ao direito, tendo-se em mente tratar-se de “instrumento linguístico susceptível de valoração”, portanto importante ferramental para a implementação de valores. Por decorrência lógica, inexiste uma interpretação correta dentre as construídas, pois as valorações oscilam de intérprete para intérprete, inadmitindo-se organizá-las em termos qualitativos.[9]
Apesar disso, não se perde de vista que o mesmo constructivismo é concomitantemente positivista, pois a partir do instante em que os valores do legislador (ou autoridade competente para produção normativa) são objetivados nas tintas lançadas sobre o papel, toda a peregrinação interpretativa passa a estar condicionada ao texto posto.
É por força dos argumentos expendidos que não cabe aqui tecerem-se comentários aos métodos interpretativos clássicos – literal, histórico, teleológico, sistemático –, que, deveras, não passam de justificações, elementos retóricos, para respaldar a interpretação. Conseguintemente, se o intérprete se vale do contexto para explicar o conteúdo que “extrai”[10] do texto lido, ele nada mais faz do que valorar e construir seu próprio ambiente, o que significa uma mudança: da natureza de parâmetro ou referência para a natureza de fundamentação (CARVALHO, A. T., 2014, p. 238).
Outrossim, ao afirmar-se que cada intérprete constrói o sentido, sem existir ao final uma significação vencedora, deve-se tomar a cautela de advertir que, apesar da ausência de superioridade de uma em detrimento das demais, as interpretações precisam se situar invariavelmente numa zona consensual – que é mutável ao longo do tempo – entre autoridades e aplicadores do direito, repugnando-se, noutras palavras, a compreensão estapafúrdia, que não apresenta um mínimo de compatibilidade com o discurso corrente na comunidade jurídica[11].
Aclarada, dessa maneira, o posicionamento culturalista-positivista da presente abordagem, remanesce ainda o encargo de abordar sumariamente o percurso interpretativo de geração de sentido a partir dos textos jurídicos.
Para cumprir esse objetivo, novamente se socorrerá das lições do Professor Paulo de Barros Carvalho,[12] que, para apresentar um paradigma dessa caminhada, divide-a em quatro etapas muito bem desenhadas: plano dos enunciados (S1); plano das proposições (S2); plano das normas jurídicas (S3); plano da sistematização (S4).
No plano dos enunciados (S1),[13] está-se no campo de partida, âmbito textual puro, momento em que o intérprete tem de lidar com a literalidade dos enunciados positivados para iniciar a leitura e dessa forma progredir em direção ao plano das proposições (S2), ocasião na qual atribuirá significações a esses textos, construindo, pois, o sentido com base nos seus referenciais e valores culturais.
Essa atribuição de valores ao texto, no entanto, é constantemente mutável, dependendo exclusivamente das alterações provocadas no contexto social do intérprete, de forma que “as significações imprimidas aos símbolos positivados estão em constante modificação, devido às mutações histórico-evolutivas da cultura do intérprete” (CARVALHO, A. T., 2014, p. 253). Além disso – e esta afirmação é fundamental para nosso trabalho –, não se tem previsão exata dos rumos que as significações excogitadas podem tomar em determinado momento histórico, porque são os próprios valores de uma sociedade que se encontram em incessante modificação como consequência das influências culturais (CARVALHO, P. B., 2011, p. 196).
Subsequentemente, aproveitando-se as significações isoladas recentemente construídas, avança-se para o plano normativo (S3), no qual se procede a uma investigação sintática com o escopo de construir juízos hipotético-condicionais, estruturados sob a forma de hipótese e consequência, ligadas por um modal deôntico, que se consubstanciam em frases reduzidas a “se…, então…”. Logo, está-se na fase de nascimento da norma jurídica propriamente dita, de modo a reforçar a total incompatibilidade de utilizarem-se como equivalentes as palavras “norma” e “artigo” (ou “dispositivo”), visto que os textos esparsos, somados à própria intertextualidade interna (jurídica), são pontos inaugurais para se chegar à norma jurídica stricto sensu (Id., Ibid., p. 127-30).
Por último, atinge-se o último plano, o da sistematização (S4), etapa em que o intérprete se preocupa com a organicidade desses juízos hipotético-condicionais precisamente estruturados, buscando relações de coordenação e subordinação entre normas jurídicas como forma de compor um todo sistêmico, em plena interação e harmonia.
Há que se fazer uma última ressalva respeitante ao manejo desses planos, pois o intérprete os percorre com ampla liberdade, indo e vindo sem que tenha de seguir uma ordem rigorosa no processo de construção do sentido. Essa atividade é, além disso, infinita, porquanto o hermeneuta pode construir e sistematizar norma após norma, somente interrompendo esse processo mediante vontade própria (CARVALHO, A. T., 2014, p. 261).
De toda forma, esse processo pode culminar em resultados díspares que, na realidade, dependem da posição no ordenamento jurídico daquele que está a interpretar: se o processo é conduzido por autoridade revestida de poderes para criação normativa, ao final dele haverá um retorno ao plano dos enunciados (S1), mercê da positivação de um enunciado prescritivo em linguagem competente, ao passo que se realizada por pessoa não dotada de similar poder, ou se estará no âmbito da ciência do direito – portanto, diante de um texto descritivo –, ou em qualquer outro campo extrajurídico (Ibid., 261-2).
6. A AXIOLOGIA DO DIREITO
O Professor Paulo de Barros Carvalho (2011, p. 173-4) explica que, assim como tudo aquilo que é produzido pelo homem, o direito é objeto cultural, situando-se como sínteses do ser e do dever-ser.[14]
Nesse sentido, na análise semiótica que se expôs tópicos atrás, fica claro que nos planos sintático (lógico), semântico (conteúdo) e pragmático (usuários da linguagem) há valoração que os permeia, de modo que, exemplificativamente, no próprio ato de positivação dos enunciados linguísticos, o legislador já realiza a valoração tanto no antecedente como no consequente, ora, no primeiro caso, elegendo situações em abstrato que farão parte de hipóteses normativas, ora, no segundo caso, estabelecendo a regulação deôntica nas três mensagens possíveis ao disciplinamento de relações intersubjetivas: obrigado, permitido ou proibido.[15]
Dessarte, valendo-se das lições de Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2008, p. 85-6),[16] podem-se definir os valores como preferências por núcleos de significação, noutras palavras, centros significativos que expressam preferibilidade por certos conteúdos de expectativa.
Na leitura de Barros Carvalho (2011, p. 175): “É uma relação entre o sujeito dotado de uma necessidade qualquer e um objeto ou algo que possua qualidade ou possibilidade real de satisfazê-lo”, de modo que se apresenta um vínculo entre o ser que busca o conhecimento e o seu respectivo objeto, não se comportando indiferentemente perante este, mas, pelo contrário, atribuindo-lhe qualidades positivas ou negativas.
Os valores, outrossim, não consistem em algo – não têm expressão ôntica –, porém valem, só podendo reconhecer sua existência como algo que se atrela ao ser, ou, nas palavras do aludido jurista: “Haveria uma dependência ontológica dos valores com relação ao ser” (Id., ibid., p. 176), pois, se isolados, assumiriam o mero caráter de objetos metafísicos.
Sendo assim, os valores são inexistentes, restringindo-se esse aspecto existencial somente ao campo psicológico do homem, precisamente no ato de valorar, que consubstancia a atribuição de qualidades positivas ou negativas a um objeto tomado em sentido amplo (Ibid., p. 176). Para acessar os valores, ademais, o homem se vale de sua intuição emocional, inconfundível com a intuição sensível ou intelectual.
Também se ressalta que os valores hão de ser distinguidos da ideologia, já que esta é critério para que outros valores sejam avaliados. Assim nos explica Paulo de Barros Carvalho (Ibid.):
“A ideologia vai se formando com a consolidação de valores em posições de preeminência, de tal modo que definida a composição desse bloco axiológico, passa ele a submeter outros valores que pretendam ingressar no sistema de estimativas do indivíduo, selecionando-os em função de sua compatibilidade com aquela camada que fundamenta a estrutura. É a experiência de vida de cada um que vai, paulatinamente, tecendo a configuração desse esquema seletor, em organizações que podem ser categorizadas e reconhecidas por aspectos peculiares, somente seus”.[17]
Ressalta-se, ainda, uma série de características dos valores, em extenso rol que abarca notas como: a) a bipolaridade, b) a implicação recíproca, c) a referibilidade, d) a preferibilidade, e) a incomensurabilidade, f) a tendência à graduação hierárquica, g) a objetividade, h) a historicidade, i) a inexauribilidade, j) a atributividade, k) a indefinibilidade e l) a vocação dos valores em se expressar em termos normativos[18].
Sumariando cada uma dessas características estritamente com o fim de nos auxiliar nesta pesquisa, tem-se que: a) a bipolaridade diz respeito à ideia de que onde há valor há automaticamente o desvalor, o que significa que valores positivos e negativos se implicam mutuamente, assim nascendo a b) implicação recíproca; c) a referibilidade se refere à tomada de posição do ser humano perante a coisa; d) a preferibilidade está ligada às entidades vetoriais que apontam em certa direção; e) a incomensurabilidade à própria impossibilidade de se medir o valor; f) a tendência à graduação hierárquica diz respeito à propensão de escalonarem-se os valores; g) a objetividade se relaciona com a necessidade de haver objetos da experiência; h) a historicidade se refere à paulatina construção por meio de processo histórico e social; i) a inexauribilidade ao caráter inesgotável nos bens em que se objetivam; j) a atributividade se refere ao próprio ato de valoração, no sentido de reforçar os valores como preferências por núcleos de significação; k) a indefinibilidade diz respeito à impossibilidade de se limitar semanticamente os valores, em razão da própria natureza do objeto-valor, sempre dependendo da ideologia daquele que enuncia; l) a vocação para se expressar em termos normativos se remete à noção de que no mundo jurídico reputam-se os valores como enunciados deônticos que prescrevem condutas, dispensando-se, ademais, a estrutura normativa em sentido estrito.
Aduzida essa apertadíssima síntese, conclui-se que a valoração invariavelmente induz o intérprete ao chamado “mundo de subjetividades, até porque eles se entrelaçam formando redes cada vez mais complexas, que dificultam a percepção hierárquica e tornam a análise uma função das ideologias dos sujeitos cognoscentes” (Ibid., p. 179).
Lançam-se, assim, a partir das explanações de Miguel Reale (1996, p. 2), alguns breves comentários sobre a cultura, haja vista o explanado sobre os valores.
Nesse sentido, o mencionado filósofo explica que a cultura pode ser vista tanto no aspecto subjetivo, isto é, como conjunto de experiências do homem no transcurso do tempo – sem se confundir com a erudição, que é a mera acumulação de informações e conhecimentos por um indivíduo[19] –, como no aspecto objetivo, consistente em acervo de bens materiais e espirituais que o homem acumula ao longo de sua história, independentemente da intencionalidade de um processo de realização de valores (REALE, 1996, p. 3-4).
Postas essas ideias, conclui Reale que a fusão dos conceitos subjetivo e objetivo acarreta a definição de cultura como “sistema de intencionalidades humanas historicamente tornadas objetivas através da história, ou, por outras palavras, a objetivação e objetivização histórica das intencionalidades no processo existencial” (Id., Ibid., p. 3).
Colhidos os pressupostos acima sobre a axiologia e o processo de formação cultural, encerra-se o presente tópico, que imediatamente precede o ingresso no tema registral, salientando-se a importância da valoração para o ato de interpretar, assim como da cultura impregnada ao redor do sujeito construtor do sentido, tudo a corroborar a subjetividade inerente à atividade hermenêutica, assim como a inexistência de uma interpretação mais correta do que as outras.
Com efeito, essas ideias gerais serão de fundamental valia para a análise individuada de múltiplos casos concretos nos quais os usuários da linguagem jurídica buscaram a construção de um sentido à expressão “expor ao ridículo”, com o fito científico de tentar desvelar as causas influenciadoras de compreensões tão dissonantes.
7. O OFÍCIO DE REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS E O CONTROLE SOBRE O NOME
A Constituição Federal prevê em seu art. 236 que a função registral será prestada por delegação pública exercida em caráter privado, de forma que, mais especificamente no que nos interessa, cabe ao registrador civil a função de lavrar assentos de nascimento, atividade histórica na sociedade brasileira, desde os chamados registros paroquiais, quando a Igreja detinha o poder para assentar fato tão relevante (NALINI, 1998, p. 45).
Realmente, com o registro de nascimento, tem-se o início da cidadania, na medida em que, a partir deste instante, o sujeito adquire uma identidade perante o direito, abrindo-se o caminho para participar, num futuro, da vida política do país. Ante a relevância desse ato público, o legislador se viu forçado a positivar a gratuidade do ato, independentemente das condições econômicas dos pais da criança recém-nascida (art. 30 da Lei n.º 6.015/1973)[20].
Ademais, em que pese o disposto no art. 2º do Código Civil (CC), que prevê o começo da personalidade a partir do nascimento com vida – enunciado suscitante, aliás, de intenso debate entre os civilistas sobre as correntes natalista e concepcionista, além das que preferem o meio-termo, assunto que, todavia, foge ao escopo do presente trabalho –, se formos rigorosos com as premissas que cuidadosamente se lançaram ao iniciar a pesquisa, o evento nascimento por si só ainda não foi recepcionado no sistema jurídico, porquanto ainda não vertido em linguagem jurídica, ou melhor, no código adotado pela ordem jurídica.
Para tanto, o constructivismo lógico-semântico aponta a necessidade de que haja uma autoridade à qual o ordenamento confere atribuição e preveja procedimento de realização para, por intermédio de linguagem normativa por ela elaborada, interpretar o fato bruto e subsumi-lo ao previsto na hipótese da norma jurídica geral e abstrata, tendo por consequência a imputação de efeitos normativos, com a formulação de norma individual e concreta (CARVALHO, A. T., 2014, p. 449).
Ora, transpondo-se essa lógica ao caso do registrador civil, verifica-se que o oficial é um aplicador do direito[21], que, ao defrontar-se com uma declaração de nascido vivo (DNV) trazida pelo declarante do nascimento, identifica o evento nascimento e o traduz para a linguagem jurídica, em conformidade com as normas construídas a partir dos textos legislados (por exemplo, art. 50 da LRP e art. 9º, I, do CC), de forma que a lavratura do assento redunda na linguagem jurídica indispensável para referido evento ser relatado no código hábil à introdução dele no mundo do direito.
Com o registro do nascimento, portanto, constitui-se um leque de direitos do registrado, que passa por prerrogativas com relação aos pais (direitos de família), à personalidade e ao exercício dos direitos políticos na sociedade.
Logo, embora não caibam aqui maiores digressões, percebe-se que o constructivismo lógico-semântico se harmoniza com a teoria constitutiva, segundo a qual o fato só existe para o direito a partir do momento em que versado na linguagem competente – no caso ora abordado, após o registro do nascimento –, consequentemente, implicando admitir a inexpressividade do evento ocorrido no mundo dos fatos para o sistema jurídico[22]. De fato, a demonstração de que a incidência não é automática e infalível, mas sempre dependente de um ato de um aplicador dotado de competência para tanto, é fundamental para que se considere o assentamento o ato que passa a produzir os efeitos no direito.
Assim, da perspectiva jurídica, com a lavratura do termo de nascimento, inicia-se a tutela de um importante direito, merecedor de especial atenção de nossa parte, consistente no direito ao nome, que integra a classe daqueles componentes da personalidade.
Assim, pode-se definir o nome como um signo que designa o sujeito em sociedade, configurando a forma pela qual é conhecido em sua comunidade e, em círculo mais restrito, na própria família do registrado.
O nome numa acepção genérica abarca tanto o prenome como o patronímico, malgrado haver outros elementos componentes que se podem agregar à sua estruturação, por exemplo, partículas (como “de”, “dos” e “da”), agnomes (“filho”, “neto” e “sobrinho”) e apelidos públicos notórios (pessoa que em seu meio de convívio sempre foi chamada por um nome que não corresponde àquele inserto no assento de nascimento).
Naturalmente, o registro é, ao mesmo tempo, instante em que se oficializa, perante o direito, o nome que os pais decidiram dar ao filho e ocasião em que o fato é reduzido à linguagem jurídica, podendo, assim, emanar a riquíssima eficácia jurídica que está apto a desencadear.
Não convém aqui apresentar item por item exigido pela legislação registrária ao lavrar-se o termo de nascimento, mas é preciso prestar atenção aos comandos que o legislador dirige ao registrador quanto à fiscalização do nome pretendido pelos pais.
Assim, está enunciado no art. 55, “caput”, da LRP que se o declarante não providenciar um nome completo à criança, será lançado preferencialmente o patronímico paterno após o prenome e, em caso de falta da paternidade, o materno, contanto que certa a filiação em relação a um deles ou a ambos.
A cabeça do dispositivo, entretanto, não é o foco de nossa análise. A preocupação se volta ao parágrafo único do art. 55, que, em razão de seu protagonismo neste trabalho, merece a citação na íntegra:
"Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. Quando os pais não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente" (grifo nosso).
Logo, do enunciado pode-se elaborar a norma jurídica geral e abstrata em sentido estrito: se o prenome for suscetível de expor ao ridículo o seu portador, então o oficial de registro civil deverá obstar o assentamento. A segunda norma: se os pais insistirem na atribuição do nome negado pelo oficial, então o registrador encaminhará o caso ao magistrado competente.
Apresentado o enunciado legislativo e as normas que são possíveis construir com base nele, o que significa expor ao ridículo? Essa cláusula geral ou positivação de um conceito indeterminado assegura extraordinária maleabilidade à sua aplicação, sendo, no entanto, muito difícil delimitá-la semanticamente.
Como se enfatizou desde o início da exposição, está-se diante de problema interpretativo dos mais árduos, que busca compreender, com fundamento na aproximação metodológica do constructivismo lógico-semântico, as disparidades interpretativas entre um pai, ou uma mãe, ou eventualmente o casal, e o registrador civil.
Conforme a segunda parte do enunciado, se houver esse confronto e persistir a irresignação dos pais, cabe tão somente a suscitação de dúvida, procedimento administrativo registral que encaminha a solução do caso ao magistrado competente – normalmente, o juiz da vara de registros públicos – para inserir no sistema uma norma individual e concreta que, em suma, prescreverá a potencialidade ou a ausência do risco de determinado nome submeter o portador ao ridículo.
No entanto, observe-se que, de acordo com o argumentado alhures, não existe, na esteira do pensamento aqui trilhado, uma interpretação certa, nem mesmo a do juiz que aprecia a dúvida pode ter essa adjetivação, embora seja verdadeiro que sua sentença configura uma norma individual e concreta inserida no sistema jurídico.
Enfim, um nome capaz de “expor ao ridículo” é uma significação construída na mente de cada intérprete, seja ele um operador do direito, seja ele um leigo que simplesmente intenciona conferir certo nome ao filho. Apesar de não se autorizar, ao final deste embate de interpretações, a conclusão de que existe uma vencedora, é preciso investigar com mais detalhes o que poderia ocasionar constituições de sentidos tão divergentes, a partir de – para nos valermos da técnica da semiótica – estrutura enunciativa sintática uniforme, mas de imensas oscilações semântica e pragmática decorrentes das mais variadas cargas axiológicas, históricas, culturais e contextuais que condicionam cada hermeneuta.
8. A ANÁLISE SEMÂNTICA
Postos esses esclarecimentos concernentes à legislação registral, é possível começar a análise semântica do “expor ao ridículo”, buscando no cenário jurídico brasileiro escritos que se tenham dedicado à sua interpretação.
Ao se mergulhar na doutrina pátria, constata-se que pouco se discutiu a respeito do que se entende por “exposição ao ridículo”, conforme previsto na Lei dos Registros Públicos. De toda forma, nada nos impede de discorrer acerca do aspecto semântico, ainda que restrito material bibliográfico seja encontrado, para no próximo tópico nos dedicarmos com mais afinco ao aspecto pragmático, isto é, à forma como os utentes da linguagem, mormente o Judiciário, vem aplicando a noção de “expor ao ridículo”.
Realmente, a escassez de comentários nas obras registrais provavelmente se relaciona com as palavras lançadas por Pontes de Miranda (1970, v. I, p. 244) ao abordar o tema, ainda com fundamento no antigo Decreto n.º 4.857/1938, ocasião em que advertiu: “A ridiculez é ‘quaestio facti’”, de modo que, no pensar do tratadista, nada obstaria a aposição de prenomes artificiais, orientais, africanos, ou extraídos de romances ou filmes.
Pois bem, se se trata exclusivamente de questão de fato, parece que Pontes de Miranda restringe o problema ao subjetivismo do oficial de registro na lavratura do assento, razão por que se torna inevitável o exame da jurisprudência brasileira, reiteradamente lembrada para auxiliar o estudo dessa polêmica questão.
No entanto, o que deve restar claro são os aspectos cultural e contextual que envolvem a interpretação dos pais e do registrador civil nesse momento, pois é bem possível que um nome que há meio século pudesse ser reputado constrangedor, hoje não mais se afigure desta forma.
Ademais, pensa-se no restrito círculo comunitário em que o registrando pode viver, por exemplo, uma comunidade indígena, ou de fortes raízes africanas, fatores que indiscutivelmente devem fazer parte do juízo do registrador.
Nessa linha de pensamento, recorrendo a outro tratadista de renome, Serpa Lopes (1955, v. I, p. 195) ensina que o oficial deve barrar não só os nomes que potencialmente exponham seus portadores ao ridículo, mas também os nomes imorais. Explica o citado autor que o prenome imoral há de ser interpretado de maneira larga, para abarcar expressões que impliquem lubricidade, dubiedade, ou, ainda, prenomes indicativos de ato infamante, de criminosos famosos no senso popular, ou de pessoas expostas à execração pública.
No entanto, ainda que o jurista faça essa dicotomia, parece-nos que não há maiores empecilhos à consideração englobada desses dois conceitos na mesma expressão positivada pelo legislador no art. 55, parágrafo único, da LRP, sem pretender equipará-los semanticamente, mas com o intuito de alargar a incidência da comentada norma. Percebe-se, portanto, uma divergência na construção das significações com base no texto positivado, sendo uma realizada em meados do século XX, e a nossa quase cem anos depois, evidentemente influenciada pelo contexto cultural no qual imersos.
Como exemplo de prenome imoral, Serpa Lopes rememora de caso francês – e aqui não há como fazer uma concessão à pragmática –, no qual os pais pretenderam atribuir ao filho o nome de “Lúcifer”, sinonímia de diabo, fazendo com que a justiça desacolhesse a pretensão dos genitores sob a fundamentação de que o caráter confessional da Bíblia não garantia ao indigitado prenome uma posição honrosa. À ilustração francesa Serpa Lopes acrescenta seu próprio exemplo, explicando que o nome “Lampião”, por se tratar de histórico criminoso que suscita emoção na sociedade brasileira, deve ser acertadamente recusado pelo registrador.
O próprio caso cogitado pelo tratadista dos registros públicos nos faz meditar acerca da historicidade ínsita ao ato de interpretar: será que em 2015 o prenome “Lampião” desperta essa conotação imoral como o fazia à época – lembrando que a primeira edição foi publicada em 1938, mesmo ano de falecimento do cangaceiro – em que o autor escrevia sua obra?
Logo, a singular passagem parece reforçar as premissas do constructivismo lógico-semântico sobre a interpretação, demonstrando-se, dessarte, que os aspectos valorativos e contextuais que pré-condicionam o ato interpretativo de cada pessoa invariavelmente refletem nas construções que realizam a partir do texto bruto.
Progredindo-se, então, para a interpretação que Serpa Lopes erige sobre o prenome ridículo, é necessário aduzir as premissas do seu raciocínio, que se remontam à ideia de que o nome não é algo privativo de seu portador, mas, sim, um signo que identifica um indivíduo em sociedade, isto é, “um meio de reconhecimento do cidadão no Estado, um reflexo constante de sua individualidade” (SERPA LOPES, op. cit., p. 196).
Por consequência, seria contraditório que a lei permitisse aos pais a atribuição de nome capaz de gerar sarcasmo, galhofa ou surriada constante. Contudo, frisa-se que essa situação deve ser generalizada, e não restrita a determinado grupo social, uma vez que, nas palavras do autor, a exposição ao ridículo deve configurar uma “provocação constante e coletiva”.
Nesse diapasão, novamente abrindo-se o caminho para a pragmática, traz Serpa Lopes acórdãos que cuidaram do tema.
O primeiro deles, de outubro de 1944, oriundo do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), explana que a despeito do prenome escolhido se referir a uma coisa ou a um animal, tal fato por si só não basta para que a expressão configure o ridículo, sendo além disso necessário que não seja usado comumente como nome. Curiosamente, porém, o próprio julgado refuta essa última ideia de habitualidade do emprego de certo nome, concluindo que o “Dínamo” poderia perfeitamente ser conferido ao registrando. Diante da explanação, arremata Serpa Lopes com a admoestação de que, harmonicamente ao aresto por ele rememorado, a palavra em si deve ser inadaptável à sua utilização como prenome.
Meses antes, também no tribunal paulista, rejeitou-se a tentativa de retificação do prenome “Xisto” sob a alegação de que fazia os ouvintes se lembrarem de “xisto betuminoso”, ou ainda de traços de italianismo, refutando-se ambos os argumentos, o primeiro porque não se interpretava ali a exposição ao ridículo e o segundo porque a palavra em italiano seria grafada “Sixto”.
Outro acórdão lembrado por Serpa Lopes vem do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN), datado de 5 de junho de 1944, ocasião em que se admitiu, em abstrato, a retificação do nome que expõe ao ridículo tanto quando já era constrangedor à época do assentamento como por fato superveniente ao registro. No caso, expendeu-se: “Se o nome de Mussolini, argumenta o Acórdão, antes da guerra era respeitável, contudo no período da guerra caiu num ridículo irremediável, universal” (Ibid., p. 196).
Ao final, em oposição ao último aresto, traz-se exemplo de extremo rigorismo vindo do TJSP, em acórdão de novembro de 1944, no qual se negou a mudança do prenome “Hitler”, considerando-se a prevalência do princípio da imutabilidade do nome, mesmo que este fosse hábil a ensejar a antipatia popular.
Importante observar que os casos exemplificados devem ser analisados ponderando-se o contexto histórico em que proferidas as decisões, em meio à Segunda Guerra Mundial, de modo que a própria ideia de imutabilidade suscitada no último acórdão hoje certamente estaria bem mais relativizada, a ponto de autorizar a alteração do mencionado nome.
Avançando-se na análise que parte da linguagem descritiva da ciência do direito, tem-se leitura mais atual apresentada por Walter Ceneviva (2010, p. 192), a quem o prenome que expõe ao ridículo deve ser entendido como prenome que pode sujeitar, mas não necessariamente sujeita o indivíduo ao ridículo. Salienta o autor: “É noção variável de pessoa a pessoa, subjetiva. O delegado agirá com moderação, respeitando tais convicções, só tolhendo a escolha quando aberrante da normalidade”.
Nesse diapasão, Ceneviva (op. cit., p. 192) restringe o exame do registrador ao prenome com potencial de ocasionar o ridículo, embora propugne que lhe cabe advertir ao declarante do nascimento que a combinação das iniciais dos patronímicos forma palavra, símbolo ou sigla com aptidão para criar aborrecimentos ao registrando. De toda forma, diante da insistência dos pais, não poderia o oficial colocar empecilhos, já que estaria se opondo a patronímico.
O comentarista ainda traz caso concreto em que registradora de São Paulo advertiu o pai da inviabilidade de se apor prenome que consistia na junção de uma série de consoantes que o tornavam impronunciável. Não obstante a ausência do caráter ridículo, não há dúvida de que o obstáculo foi convenientemente suscitado, podendo-se ao menos cogitar numa analogia[23] com o parágrafo único do art. 55 da LRP. Outrossim, também se recorda caso julgado na Comarca de Santos, em que o magistrado, acompanhando o entendimento do registrador civil, indeferiu a possibilidade de um pai acrescentar o algarismo romano “II” logo após prenome idêntico ao seu (verbi gratia, o pai se chamava João e pretendia que o filho se chamasse João II).
Por outro lado, há na jurisprudência administrativa paulista a admissão do uso de numeral romano em seguida ao nome completo do registrando, com fundamento na ausência de proibição expressa da legislação registrária (SANTOS, 2006, p. 74-5)[24].
Prosseguindo-se na tentativa de apresentar um quadro de variabilidade semântica, Reinaldo Velloso dos Santos (op. cit., p. 72), igualmente acostado de farta jurisprudência administrativa colhida no âmbito do TJSP, embora não apresente uma delimitação de sentido própria, explica que se o nome for incomum, é adequado questionar os pais sobre a origem e o significado do prenome. Se fornecerem resposta razoável, deflagra-se o registro, porém com a recomendação de mencionar-se no assento a origem do prenome, segundo o relato dos pais.
Ressalva, entretanto, as situações de registro tardio, nas quais o próprio registrando o solicita após ter atingido a maioridade, pois, nestas hipóteses, entende o jurista acima citado que o registrador não poderá recusar a escolha, ainda que potencialmente exponha ao ridículo, pois, segundo sua interpretação, a norma que se estrutura a partir do enunciado do art. 55, parágrafo único, da LRP “existe para tutelar o interesse do registrando quando escolhido o nome por outrem” (Id., Ibid., p. 73). Por conseguinte, em face da insistência do requerente, cabe ao oficial lavrar o assento consignando a irresignação do registrado.
Enfim, pelo panorama apresentado, nota-se a dificuldade ao tentar-se apresentar uma visão estritamente doutrinária da perspectiva semântica do prenome que expõe ao ridículo, já que a lembrança jurisprudencial é constante no discorrer do assunto, reforçando, em última análise, o argumento de que se trata tão somente de questão de fato.
De toda forma, esses primeiros comentários nos preparam para o ingresso na pragmática, atentando-se doravante para a maneira como os utentes da linguagem do direito aplicam a ideia de exposição ao ridículo do nome.
9. A ANÁLISE PRAGMÁTICA
Com efeito, consoante se pôde ressaltar há pouco, verifica-se indiscutível predominância jurisprudencial no tema concernente ao prenome que tem aptidão para expor ao ridículo, sobretudo porque há uma incrível dificuldade de delimitação semântica por parte dos juristas que se voltaram ao assunto.
De toda forma, começa-se a abordagem pragmática pela análise de importantes decisões exaradas por magistrados do TJSP.
Há caso emblemático de pedido de alteração de nome que inclusive rompe com a ideia simplista conforme a qual o controle só pode ser exercido sobre o prenome. Nesta hipótese, o requerente se chamava “Kumio Tanaka” e pleiteava a mudança para “Jorge”, porque a conjugação do prenome com o patronímico induzia, no coloquialismo português, a frase “Comi o Tanaka”, expressão obscena que desperta a zombaria.
O magistrado em primeiro grau denegou a pretensão do autor, porém em segunda instância a sentença foi reformada, entendendo-se incontestável a possibilidade de exposição a vexames do ridículo, sem ser razoável esperar que se materializasse o escárnio para só depois mudar de nome (CENEVIVA, op. cit., p. 193).[25]
Noutra demanda, recusou-se a supressão do patronímico “Pinto” sob a argumentação do interessado de que se remetia à gíria usada para fazer referência à genitália masculina. Na decisão, entendeu-se, em síntese, que o sobrenome sob análise, caso eliminado, ocasionaria o esquecimento de parte do histórico familiar e desmancharia a noção de cidadania.[26]
Intrigantemente, noutro aresto se decidiu que poderia, sim, haver a mudança de nome de criança sem prejudicar a personalidade familiar resultante do patronímico identificador da ascendência, pois a supressão do sobrenome de origem materna tinha o fito de preservação da uniformidade na composição nominal da filiação que fora aberta pelo registro do filho primogênito[27].
O TJSP também teve a oportunidade de deparar-se com pleito de alteração do nome “Jesusmina” para “Mirian”, de acordo com a alegação da requerente de que o seu prenome a expunha ao ridículo porque a religião judaica, por ela adotada, professava que o nome “Jesus” era indicativo de falso profeta. Tanto em primeiro como em segundo grau se indeferiu o pedido, não se reconhecendo a exposição ao ridículo e reafirmando-se o princípio da imutabilidade nominal. Conforme passagem relevante: “Zombar de uma pessoa por ter prenome até mesmo igual ao de outra, a quem se detesta, não é decorrência do defeito ou impropriedade do prenome, obviamente, mas de inadequada formação moral do zombador”[28].
Ainda no seio da jurisprudência administrativa paulista, tem-se decisão do Desembargador Luís de Macedo, à época Corregedor Geral da Justiça de São Paulo, que aprovou o parecer do Juiz Auxiliar da Corregedoria Eduardo Moretzsohn de Castro, cujo teor consistia na autorização do registro da criança com o prenome “Titílolá”.[29]
Conforme o magistrado parecerista, embora o nome pudesse suscitar estranheza, surpresa, ou ser considerado incomum, desconhecido, esquisito, desajeitado, exótico, diferente, inaceitável, não tinha, por outro lado, o potencial de causar zombaria, escárnio, ou colocar a portadora em situação vexatória, constrangedora.
Para se chegar à conclusão acima, o julgador foi à etimologia do nome “Titítolá”, reconhecendo ser da língua iorubá, idioma falado por boa parte dos escravos trazidos para o Brasil entre os séculos XVI e XVIII, nela significando “continuamente honorável” –“tití” é advérbio que tem o sentido de “continuamente” e “lolá” significa “honorável, dignificante, venerável”.
Entendeu-se, então, razoável a atribuição do nome em comento, porque respeitava a tradição e a crença dos pais, de modo a relacionar-se com o meio social e familiar no qual inserida a criança. Se se tomasse uma decisão oposta, entendeu o magistrado que seria “rejeitar a origem genética da maioria do povo brasileiro e não aceitar o aspecto cosmopolita das raças do nosso país”. O mais interessante, porém, é que, no mesmo julgado, deixa-se em aberto a possibilidade de, no futuro, sofrendo a registrada concretamente situações vexatórias, pleitear ela mesma a mudança de nome.
Similarmente a essa decisão, outra causa também se deparou com prenome proveniente do iorubá, de forma que os pais, ao submeterem a questão à apreciação judicial, juntaram ao processo provas explicativas da origem do nome, as quais, todavia, não foram suficientemente persuasivas para convencer o juiz de primeiro grau[30].
Em sede recursal, porém, firmou-se o entendimento de que se deveria respeitar o aspecto cultural do nome, tendo-se em vista que “A formação étnica do povo brasileiro conta com grande contribuição de pessoas de ascendência africana, como é público e notório”. Por conseguinte, o Juiz Parecerista João Omar Marçura afirmou que o nome capaz de expor ao ridículo é aquele “digno de riso, de zombaria, de escárnio, ou seja, que se presta ao cômico”.
Embora o nome pudesse causar estranheza àqueles não integrantes da cultura afro, não ensejaria a ridicularização do seu titular, já que, para tanto, com fundamento nas lições supracitadas de Serpa Lopes, o ridículo deveria estar generalizado.
Enfim, admitiu-se o nome “Ayódelê Adôgunsilé Oduduwa Costa” com base na explicação de cada prenome, consistindo o primeiro deles em nome próprio masculino da língua iorubá e o terceiro em expressão que significa “o grande patriarca dos iorubás; fundador da dinastia iorubá, pai de todos os integrantes do aludido grupo étnico”[31].
Noutro processo, autorizou-se o prenome “Olho de Águia”, haja vista a ascendência indígena da criança e a aptidão do nome para identificá-la no meio em que vivia[32].
Mais um caso de nome indígena foi registrado na jurisprudência paulista, nesta ocasião referente ao prenome “Moraimã”, oportunidade na qual se julgou admissível porque significava “o belo antigo”, o que, na fundamentação desenvolvida pelo órgão judicante, além de não configurar a “exposição ao ridículo”, trazia conotação poética[33].
Caso muito recente, de agosto de 2015, dizia respeito ao prenome “Remí Flay”, obstado pelo registrador e pelo magistrado de primeiro grau por entenderem que a expressão “Remí” era o nome de uma bebida e não identificava com precisão o sexo do registrando, enquanto “Flay” se pronunciava da mesma forma como o verbo “fly” (“voar”) em inglês, de modo a subsumir-se ao previsto no art. 55, parágrafo único, da LRP.
Após interposição de recurso administrativo, houve o revés da decisão, afirmando-se que tanto registrador como juiz em primeiro grau haviam atuado com muito subjetivismo. Além disso, sublinhou-se ser normal o nome “Remí” no francês, pouco importando o fato de remeter-se também a uma bebida, seja porque o prenome não remonta automaticamente a ela, seja porque há várias bebidas que se referem a nomes. Quanto ao “Flay”, também não se visualizou a potencialidade de expor ao ridículo, afastando-se eventual problema na semelhança com o verbo oriundo do inglês. Arrematou-se da seguinte forma: “não se deve admitir que o subjetivismo do Oficial Registrador se sobreponha à esfera privada da família, à legítima manifestação de vontade dos pais, constitucionalmente garantida.”[34].
Por outro lado, de forma bastante curiosa por destoar dessa linha jurisprudencial que se trilhou até aqui, há decisão do TJSP que não acolhe o nome “Gah”, escolhido pelos pais com o intuito de “homenagear uma divindade hindu, Ganesha ou Gah, deus que remove os obstáculos e protege os seres, proporcionando-lhes potência espiritual e inteligência suprema”. Os requerentes argumentaram, ainda, que na comunidade na qual viviam era muito usual a existência de nomes que soavam estranhos à cultura ocidental, de forma que a criança já era inclusive conhecida pelo nome em comento naquela coletividade. Ao final, ainda se buscou repelir a ideia de exposição ao ridículo, explicando a relevância da escolha para os pais e o valor espiritual vinculado ao prenome[35].
No vertente julgado, sopesaram-se a repercussão no círculo restrito em que vivia a criança e a interação desta em sociedade atrelada à cultura ocidental, dando-se prevalência a este espaço maior, com o qual ela entraria em contato num futuro próximo – por exemplo, nas escolas –, sendo insatisfatória para afastar a zombaria a explicação de que seu nome se espelhava numa divindade hindu, ante a excepcionalidade, para a língua portuguesa, da escrita de prenome monossilábico[36].
Por último, deve-se aludir aos casos mais repetidos no cotidiano do registrador civil, que se referem às opções dos pais em grafar um nome comum ao português com letras que provêm de alfabeto estrangeiro, como “Kayo”, “Jakelyne” e “Wiwian”.
A decisão judicial examinada se debruçou sobre o nome “Gyowane”, inicialmente obstado por registrador e juízo de primeiro grau com base no fundamento de que se tratava de grafia imprópria à luz do alfabeto pátrio. Todavia, considerou-se essa posição excessivamente rigorosa, uma vez que, conquanto se reconhecesse o uso inadequado de letras não constantes do alfabeto, não se via exposição ao ridículo[37].
Sem tentar aqui inferir mais do que se estabeleceu em referido acórdão, parece, em nosso juízo, que a última hipótese versada não se confunde com a intenção de atribuir o nome “Ktia”, ao invés de “Kátia” ou “Cátia”. De fato, nesta última cogitação, há uma mutação de grafia que não só repercute na maneira de escrever, mas também na forma como se pronuncia o nome, sendo de rigor que o oficial de registro civil impeça similar escolha dos pais.
Tem-se notícia, ademais, de impedimentos impostos por oficiais de registro na prática, por exemplo, do nome “Piedro”, que configuraria uma mutação do nome de origem italiana “Pietro”. O oficial explicou ao pai a incorreção e este acatou o que lhe foi explanado, registrando seu filho com o nome “Pietro”. O mesmo registrador, porém, já relatou outros casos em que foi forçado a barrar nomes como “Xismen” (em homenagem às personagens da história de quadrinhos “X-Men”), “Alucard” (Drácula escrito ao contrário) e “Gesptsfl”, invenção dos pais, que simplesmente julgavam o nome bonito, sem, todavia, atribuir-lhe qualquer significado[38].
Consigna-se, no entanto, que nem sempre esse filtro de atribuição do registrador é acertadamente observado, ensejando então situações extravagantes – sem jamais pretender ofender as pessoas retratadas na reportagem –, por exemplo, a de prenomes a três irmãos como “Xerox”, “Fotocópia” e “Autenticada”, todos formulados pelo mesmo pai. O primeiro destes filhos, por sua vez, atribuiu a seu primogênito o nome de “Carimbo”, conforme nos relata notícia veiculada na imprensa televisiva[39].
CONCLUSÃO
Conforme se adiantou no início deste trabalho, procurou-se seguir rigorosamente a proposta de aplicação do constructivismo lógico-semântico numa área relacionada com a dissertação de mestrado, com a finalidade de encarar um problema extraído da prática registral pelas lentes de aludida corrente filosófico-metodológica.
Assim, buscou-se aqui a contextualização do caminhar da filosofia da linguagem como ponto de rompimento com a pretérita filosofia da consciência, desnudando a percepção de que a constituição da realidade se dá pela linguagem, única forma inteligível por intermédio da qual o homem consegue compreendê-la.
Em seguida, apresentou-se a formação do constructivismo lógico-semântico, que se vale das balizas fincadas pela filosofia da linguagem, analisando o direito por tal perspectiva, com extremo cuidado na construção de um raciocínio coeso e preciso.
Para tanto, os autores filiados a essa escola se valem da relação triádica embutida nos signos, representativa da conexão triangular existente entre suporte físico, significado e significação, os quais, se transpostos de imediato para a realidade do direito, confundem-se, respectivamente, com os textos positivados pelo legislador (ou outra autoridade dotada de competência normativa), a realidade à qual se remetem tais escritos e as noções excogitadas pelo intérprete a partir dos dispositivos legais lato sensu.
Outrossim, acrescenta-se a esse raciocínio a utilização da semiótica como método analítico do direito, consagrando-se então a investigação dos textos jurídicos nas perspectivas sintática, semântica e pragmática, a primeira concernente ao aspecto lógico ou estrutural, a segunda preocupada com o conteúdo e significado dos termos e a terceira mais atenta ao emprego das expressões pelos usuários da linguagem, tanto no tocante à inserção estrutural como no respeitante às significações por eles atribuídas.
Logo, não há dúvidas de que o enlace da relação triádica dos signos com a semiótica propicia a oportunidade para se trazer luz à atividade interpretativa, ponto em que o constructivismo lógico-semântico quebra com as formulações da clássica hermenêutica jurídica para afirmar que é o intérprete-aplicador quem constrói o sentido dos textos, com base em referenciais, vivências, horizontes culturais, ideologia e contexto no qual imerso. Aqui, portanto, é preciso reter os três pilares da hermenêutica, consistentes na leitura, interpretação e compreensão, já que há uma linha evolutiva que se inicia no ato de ler, passa pela construção dialética de sentido e termina na absorção do resultado interpretativo.
Para se complementar essa trajetória intelectiva, reitera-se, assim, a carga axiológica que reveste não só a interpretação, mas também o ato de positivação do direito, seja na seleção dos antecedentes normativos, seja na imputação dos comandos deônticos. Com essas observações, quer-se sublinhar que as variações valorativas, culturais e vivenciais influenciam diretamente o resultado interpretativo que cada sujeito alcança, ainda que todos tomem como ponto de partida o mesmo texto escrito.
Esses pressupostos de teoria geral do direito de acordo com a percepção do constructivismo lógico-semântico são o bastante para ingressarmos na questão registral concernente ao controle atribuído ao oficial de registro civil das pessoas naturais sobre nomes que tenham o potencial de expor ao ridículo (art. 55, parágrafo único, da LRP).
De início, demonstrou-se a dificuldade de aclarar-se o que significa um nome idôneo a “expor ao ridículo”. O texto de lei menciona apenas o prenome, mas a própria experiência forense nos provou que há a possibilidade de o ridículo ser ocasionado pela combinação de prenome com patronímico.
Na linguagem descritiva da ciência do direito, por sua vez, viu-se a escassez de posições que visam a uma delimitação semântica, uns relegando o problema aos fatos, outros se posicionando no sentido de ridicularização generalizada a todo e qualquer grupo social, de forma que, se o nome não expuser ao ridículo ainda que num estrito círculo de convivência do registrado, é o suficiente para o oficial não criar óbices ao pretendido pelos pais. Lembre-se, ainda na trilha doutrinária, do parâmetro de aberração da normalidade, critério que, todavia, parece-nos apenas repetir por palavras diversas o que positivou o legislador.
Logo, na seara jurídico-científica, nota-se predominar a subjetividade ou relatividade ao definir a exposição ao ridículo, sem dúvidas havendo zona consensual entre os aplicadores do direito – algo necessariamente verificável em toda variação interpretativa –, porém simultaneamente se constatando situações limítrofes, nas quais para uns estará configurado o potencial de expor ao ridículo, enquanto para outros não restará caracterizada referida hipótese.
Direcionando-nos à pragmática, similar dissonância se avista no exame em paralelo dos diversos julgados ou entendimentos de registradores reunidos nesta pesquisa. Se tentarmos divisar uma linha interpretativa a partir das decisões advindas do TJSP, pode-se afirmar de maneira geral, ressalvando o julgado que rejeitou o nome “Gah”, que a jurisprudência administrativa paulista se orienta para uma postura mais liberal, com os escopos de preservar a vontade dos pais e de atentar para a cultura e o contexto social em que se encontra o casal.
Entretanto, interessante observar que a própria taxação que se faz por meio da expressão “liberal” já faz parte de nossa interpretação, reconhecendo, portanto, nossa própria valoração do material analisado.
Em suma, por meio desse singelo caso da exposição ao ridículo que um nome pode sugerir, tem-se a impressão de, com arrimo no constructivismo lógico-semântico, haver alcançado o propósito inicial de escancarar as causas das construções interpretativas dissonantes nos hard cases (ou “zonas cinzentas”), principalmente em razão do enorme peso valorativo-cultural que recai sobre estas atividades hermenêuticas, consequentemente gerando incertezas no cotidiano registral. Dessa maneira, o que, à primeira vista, caracteriza a ridicularização no juízo de qualificação do registrador, pode, na opinião dos pais, ser um belíssimo nome, compreendendo-se esta divergência somente se relevados os horizontes culturais, as vivências e os demais referenciais inerentes a cada intérprete pertencente a uma sociedade plural e heterogênea como a brasileira[40].
Assentados esses esclarecimentos, na tentativa de apresentar nossa interpretação no desfecho deste artigo – confessando, com fulcro nas premissas do constructivismo, a imensa persuasão da vivência, do contexto e dos horizontes culturais sobre este intérprete –, propugna-se por linha de pensamento próxima àquela constatada na jurisprudência administrativa bandeirante, que prestigia o desejo dos pais, ponderando concomitantemente as circunstâncias culturais, vivenciais e valorativas da entidade familiar.
Parece-nos, conseguintemente, que a conversa do oficial com o declarante do nascimento é fundamental para se perquirirem os motivos que incentivaram a atribuição de nome que pode fugir a uma suposta normalidade, sendo de todo razoável aceitar composição que, malgrado estranha ao português, seja plenamente consonante com outra cultura ou língua falada pelos pais, ainda que, como última contestação, ela possa soar estranho para um círculo bem amplo de pessoas que partilham de cultura brasileira genérica.
Sopesando-se alguns argumentos de viés afetivo[41], não se pode perder de vista que a escolha do nome pelos pais envolve muitas expectativas e cargas emocionais investidas no recém-nascido, de modo que uma frustração do almejado, por mais bem fundamentada que ela se apresente, pode ferir sentimentos ou até mesmo crenças ou convicções pessoais que resvalam no direito à intimidade.
Esse posicionamento, entrementes, não pode ser conduzido a exageros.
Quando se afirma que é preferível respeitar a vontade e a cultura dos pais, não se defende a invenção de grafias que destoam dos nomes conforme o português ou a língua estrangeira da qual ele provém. Pelo contrário, nessas situações, em face de escritas que se distanciam muito da maneira como usualmente concebido, é recomendável o diálogo com os pais para que lhes seja explicada a oposição ao nome. No entanto, se ainda assim insistirem na escolha, prefere-se o acatamento do pedido, consignando-se em declaração escrita a persistência destes diante da advertência do registrador.
Logo, conforme nossa linha interpretativa, resta ao oficial de registro civil das pessoas naturais apenas a rejeição de nomes que indubitavelmente soem ridículos, classificando-os, portanto, naquela zona interpretativa consensual, na qual inexiste debate sobre a ridicularização. Para não deixarmos a questão em termos lacônicos, exemplifica-se, por recordação dos casos tratados anteriormente, com nomes que seriam por nós vetados, tais como: “Xismen”, “Gesptsfl” (ou qualquer outra composição que engendrasse um amontoado de consoantes impeditivas de sonoridade), “Xerox”, “Fotocópia”, ou “Carimbo”.
Portanto, afora as situações descritas no último parágrafo, entende-se que prevalece a vontade dos pais, lembrando-se sempre a possibilidade de ulterior mudança prevista pela legislação, quando o registrado tiver maturidade para fazê-lo sozinho ou, se menor, com a ajuda de representante legal, sem grandes obstáculos para conseguir modificação que atenda à sua autoestima[42], conforme arts. 56 e 57 da LRP.
Registrador civil das pessoas naturais
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