Sumário: 1. Apresentação 2. Os antecedentes da responsabilização civil 3. A conceituação de lesado, dano e indenização 4. A responsabilidade civil e os atos jurídicos lícitos 5. A Responsabilidade civil e o ato ilícito 6. O sistema da responsabilização civil 7. A função reparatória e as garantias fundamentais 8. A sistematização da responsabilidade no Código Civil de 2002 9. O regramento da Responsabilidade no Código Civil de 2002 10. O enriquecimento sem causa e a indenização 11. Considerações finais
1. Apresentação
O Código Civil Brasileiro de 1916, embora o dinamismo das relações humanas, resistiu à sua reformulação por mais de oitenta anos, enquanto os Tribunais viam-se compelidos a resolver lides constituídas por situações fáticas não previstas na lei, mas freqüentes em decorrência de novos hábitos, condutas sociais e conceitos de direitos humanos. Exemplo disso foram as questões atinentes à igualdade entre homens e mulheres; aos direitos de filhos gerados fora de casamento existente; aos efeitos patrimoniais da união constituída sem casamento; à ampliação das necessidades modernas para fins de proteção alimentar de dependentes; às obrigações contratuais e extracontratuais em relações de consumo; ao reconhecimento e especialização de direitos difusos, transindividuais e coletivos; e às novas concepções de direitos materiais e subjetivos aferidos pelo reconhecimento de valores atinentes à personalidade e dignidade humana – na gama de garantias fundamentais instituídas nas modernas cartas constituintes, inclusive a brasileira. A nova codificação, Lei nº 10.406, de 10.01.02, cuja edição se arrastou por aproximadamente cinqüenta anos de discussão e propostas, vigente a partir do ano de 2003, resulta do esforço de grandes juristas e de legislador envolvidos no propósito de espelhar o sentimento da sociedade brasileira, sobrepondo, desde sua sistematização, os valores humanos aos patrimoniais.
Este trabalho – mais um dentre os que decorreram do magistério de uma palestra pelo autor sobre os novos fundamentos da responsabilidade civil, em agosto de 2003, como parte de um Ciclo de Estudos promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil e a Fundação Universidade Federal do Rio Grande sobre o Novo Código Civil Brasileiro – desenvolve-se enfocando o Instituto sobre aspectos teóricos (conceitos e fundamentos básicos) e críticos (interpretação dos dispositivos da nova lei), relacionando-o aos direitos fundamentais, mediante considerações pessoais sobre dispositivos da novel codificação.
O estudo, elevado por tal propósito, inicia com sucinta exposição de antecedentes primitivos da responsabilidade civil e sua evolução na legislação brasileira; desenvolve exposição teórica sobre temas afetos ao Instituto, como os atos lícitos e ilícitos, o dano e a indenização; aborda sua questão nuclear que é a responsabilização no novo código, interada pelos fundamentos das garantias fundamentais; e culmina com deduções institucionais próprias.
2. Os antecedentes da responsabilização civil
O antecedente mais remoto dentre os mecanismos adotados pelo homem em face da lesão patrimonial consistia na reação instintiva, semelhante a do animal, pela qual a reparação se dava com a vingança, pela força ou coragem, individual ou coletiva, valendo a máxima do “mal pelo mal”, “olho por olho, dente por dente”, sem limites físicos e pessoais.
No ordenamento dito racional destaca-se: a Lei das XII tábuas, que conservava resquícios da retaliação; a composição entre o ofensor (lesante) e a vítima (lesado) mediante a prestação da poena (pagamento em dinheiro); a Lex Aquilia do Direito Romano dando origem à distinção e à verdadeira noção de responsabilidade civil e penal e ensejando a teoria da responsabilidade ou culpa aquiliana que basicamente exige a prova da antijuridicidade do ato; e, a noção moderna dos séculos XVI a XIX, destacando-se o Código Civil Francês Napoleônico que consagrava a culpa como fundamento da responsabilidade civil.
O direito brasileiro tem como legislação mais remota o Decreto 2.681/1912 que regulava o transporte ferroviário e estabelecia a responsabilidade pela perda ou roubo da mercadoria valendo-se da expressão culpa presumida, de modo que para ser afastada exigia a prova da ocorrência de força maior ou caso fortuito.
O Código Civil de 1916, logo em seguida, num único dispositivo conceitual, art. 159, consagrou o princípio da responsabilidade civil pela culpa, que passaria a depender da prova de ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência do agente. Noutras disposições, arts. 1.518 a 1.533, regulou a responsabilidade civil por ato ilícito tratando dos agentes, como o pai, o patrão, o hoteleiro, o dono da coisa; as pessoas jurídicas em atividades industriais, tangenciando o que hoje se denomina de culpa pelo risco; a responsabilidade do médico, do farmacêutico; os danos à honra, como a injúria, calúnia, crimes de violência sexual, e ofensivos à liberdade pessoal, ainda que apenas nos seus reflexos materiais, pois ainda não se desenvolvido o conceito do dano moral puro.
Finalmente, outros antecedentes do sistema jurídico brasileiro estão na Lei nº 4.717/65, tratando da Ação Popular e da defesa do patrimônio público; na Lei 5.250/67 sobre a responsabilidade da imprensa; na Emenda Constitucional 1/69 e Lei 6.453/77, prevendo o dano nuclear fundado no risco; ainda a Emenda Constitucional 1/69 com a Responsabilidade Objetiva do Estado pela teoria do risco administrativo; a Lei 7.347/85 e a Ação Civil Pública por dano ao ambiente, ao consumidor e a outros interesses difusos ou coletivos; e a Lei 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor, consagrando a culpa objetiva e hipossuficiência.
3. A conceituação de lesado, dano e indenização
O conceito de vítima ou lesado ensejou discussão acirrada no final do século passado, expandindo-se para que se admita, além do dano ao indivíduo, que também possa ocorrer dano a pessoas jurídicas e a pessoas indeterminadas, neste caso os danos transindividuais, coletivos ou difusos, em relações de consumo ou de interesse ambiental. Assim, por exemplo, lesado pode ser o adquirente de um veículo vendido sem um equipamento obrigatório, como também a comunidade que por sua falta poderá sofrer um dano ambiental; lesado pode ser tanto o lindeiro de uma propriedade em que se estabeleça uma atividade nociva à saúde humana, como a coletividade que estará sujeita aos efeitos daquela atividade pela propagação de gases ou pela lesão a bens comuns, como o patrimônio histórico, os rios ou as florestas.
A evolução conceitual do dano parte de sua idéia mais simples e tradicional de sinônimo de lesão, evoluindo para ser reconhecido como expressão material da lesão, resultado do ato ilícito lesivo, resultado da conduta lesiva, efeito da lesão jurídica, até ao que hoje se reconhece, como a expressão jurídica, material ou imaterial, da conduta, lícita ou ilícita, lesiva a outrem.
A moderna e atual conceituação do dano autoriza a sua classificação segundo critérios diversos. Observa-se, quanto ao tipo, que além do tradicional dano material e do dano moral sujeito a reflexo material, a tônica do final do século XX foi o direito à indenização pela ofensa causada à personalidade, o dano moral puro, aquele causado à honra subjetiva de pessoa física, que se projeta no seu íntimo; e o dano à honra objetiva de pessoa física ou jurídica, aquele que se projeta perante terceiros. No mesmo sentido, consolidou-se a idéia do dano sob o mais amplo aspecto, ocasionado à coletividade, ao ambiente e ao consumidor, decorrentes de condutas lícitas ou ilícitas.
O dano não decorre apenas de ofensa à contratualidade, mas, também, à extracontratualidade. O extracontratual, como orienta ARNALDO RIZZARDO[1], “consuma-se com a infração de um dever legal. Nele, a antijuridicidade se produz como conseqüência do ataque a um direito absoluto do prejudicado. Envolve o desrespeito à lei, às normas que traçam a conduta humana e está fundado na culpa aquiliana.”
Na contrapartida, destaca-se a evolução do conceito de indenização, primeiro como simples projeção do prejuízo, depois como projeção material do dano, projeção do que se perdeu ou deixou de ganhar, equivalência ao dano efetivo e ao dano potencial e, como equivalência ao dano efetivo e subjetivo.
A dificuldade para estipular-se a indenização não se dá apenas quando se trata de dano material indireto, mas, principalmente, quando a lesão atinge o interior da vítima.
No caso do dano ao consumidor ou ao ambiente – relações intimamente ligadas aos direitos e garantias fundamentais – ganha particular atenção a potencialidade e a subjetividade do dano, porquanto o efeito do ato lesivo muitas vezes não pode ser dimensionado, como no caso da propaganda que induz ao consumo coletivo de um produto que pode ser nocivo à saúde, ou da contaminação radioativa que se propaga por séculos.
4. A responsabilidade civil e os atos jurídicos lícitos
No ensinamento de MARIA HELENA DINIZ[2] a responsabilidade civil “é a obrigação de reparar dano causado a outrem por fato de que se é autor direto ou indireto” e, noutro enfoque que se considera prático:
“a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem responde, por alguma coisa a ela pertencente ou por simples imposição legal.”
Por conseqüência, a responsabilidade civil pode se dar de forma simples, quando tem por causa o fato pessoal do responsável; ou complexa, quando decorre de fato alheio, por culpa in eligendo, ou de fato das coisas, por culpa in vigilando, como é o caso do empregador, da empresa, do responsável pelo incapaz, no primeiro caso, e do dono de um animal ou de um prédio, no segundo.
Os atos jurídicos lícitos – pela assunção de riscos inerentes à conduta – devem ensejar a mesma responsabilidade que os ilícitos ou antijurídicos que, extrapolando o próprio direito, adentram e lesam o de outrem, excedendo os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes.
Neste contexto, pode-se situar a conduta daquele que exercendo atividade lícita, como a produção industrial, elabora produto que não atende à expectativa do contrato, ou gera, ainda que inevitavelmente, efluentes (fumaça e gases), ou expede seus produtos em recipientes sem retorno, não biodegradáveis (plásticos); ou em atividade ilícita comercializa um produto com vício, captura espécies em extinção, explora minério em áreas proibidas, produz incêndio criminoso em florestas ou despeja nas águas, clandestinamente, agentes poluidores.
Aos atos jurídicos lícitos, de acordo com o art. 185 do Novo Código Civil, aplicam-se, no que couber, desde que não sejam negócios jurídicos, a matéria regulada no Título I, Do Negócio Jurídico. Não houve, assim, menção expressa à circunstância de que os atos jurídicos lícitos também ensejam a mesma responsabilidade que os ilícitos, tangenciando a questão apenas no art. 187. Dentre as secções do Título mencionado considera-se o relevo daquelas que tratam dos defeitos do negócio jurídico. A par do “dolo”, da “coação”, e da “fraude a credores”, denota-se o “erro ou ignorância”, a “lesão” e o “estado de perigo”, que levam à nulidade do negócio ou do ato, bem como ao dever de reparar danos.
A regra de anulabilidade do negócio jurídico ou do ato lícito é a seguinte:
Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio.
A definição de quando o erro é substancial está contida nos incisos do art. 139: quando interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a alguma das qualidades a ele essenciais; quando concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que nela tenha influído de modo relevante; e quando, sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio jurídico.
A lesão é tratada no código como sinônimo de dano quando se trata de disciplinar o equilíbrio da relação obrigacional. Observe-se:
Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
§ 1o Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico.
§ 2o Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.
O estado de perigo, por seu turno, tratado num único artigo, consiste em revolucionária inovação, quiçá divorciada do senso comum. Configura-se quando alguém levado pela necessidade de obter recursos – para salvar-se de grave dano, ou a alguém da família – conhecida da outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.
Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.
Parágrafo único. Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias.
No mesmo sentido, sem pretender esgotar o tema que por envolver dano tangencia a reparação, aponta-se o preceito da resolução de obrigação por onerosidade excessiva. Prescreve a Lei:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Na situação em comento está envolta a moderna teoria da imprevisão. O novo texto afasta a regra individualista do pacta sunt servanda para revigorar a antiga cláusula rebus sic stantibus, minorando a valia da estipulação contratual para afastar o dano diante de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis na vigência de contrato longevo.
Ao final, parece que os novéis institutos apenas ampliam ou qualificam situações que levam ao enriquecimento sem causa.
5. A Responsabilidade civil e o ato ilícito
A responsabilidade civil tem como pressuposto a conduta de alguém, ainda que omissiva, e a ocorrência de lesão a outrem, a vítima ou lesado.
A definição dos atos jurídicos ilícitos ou antijurídicos, comissivos ou omissivos voluntários, por negligência ou imprudência, está no art. 186 do Novo Código que diz serem aqueles que extrapolam o próprio direito, adentram e lesam o de outrem. Nota-se que ao lavrar que aquele que, “por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito,” inovou quanto ao anterior que não previa a lesão moral, mas coerente com a doutrina e a jurisprudência que já motivaram seu reconhecimento no texto constitucional de 1988.
No art. 187 o ato ilícito é qualificado pelo uso excessivo de um direito, assim se entendendo aquele que “manifestamente” exceda “os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes”. No caso, não é razoável concluir-se que estejam sendo equiparados os atos lícitos e ilícitos, pois não é possível conceber-se excesso de direito ou abuso de direito, pois quem excede os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes está cometendo ato ilícito e, portanto, não tem direito algum. Se o legislador pretendeu referir-se ao ato ilícito da “exploração”, deixou de defini-lo, restando entende-lo como aquele que fere o senso comum, o que é muito subjetivo para caracterizar ilicitude. No direito Romano tinha-se como abuso o que excedesse em mais do que a metade do valor de mercado.
A ilicitude se descaracteriza pelas situações previstas no art. 188: legítima defesa, exercício regular de direito reconhecido (inciso I); ou deterioração da coisa alheia ou lesão física, a fim de remover perigo iminente (inciso II) caso em que o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo (parágrafo único). No caso da segunda hipótese, que não tem precedente no Código de 1916, deixou o legislador de conceituar o perigo iminente. Mas, por certo, ninguém terá reconhecido o direito de conduzir o veículo para cima de pedestres que estejam num acostamento para evitar colisão fatal com outro veículo; ao contrário daqueles que numa situação de pânico coletivo, como em decorrência de um incêndio, em fuga pisoteiam outrem.
A ação regressiva, sem qualquer dificuldade, está regulada como segue:
Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado.
Parágrafo único. A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se causou o dano (art. 188, inciso I)
6. O sistema da responsabilização civil
O anseio natural exige, e a ordem jurídica impõe, o cumprimento do dever de ressarcimento dos danos causados a outrem, o que se dá pelo denominado sistema da responsabilização civil que modernamente admite diversas teorias. O tradicional princípio da responsabilidade pela culpa abriu-se para recepcionar teorias de responsabilidade pelo risco, ensejando revolucionária modificação nos fundamentos da responsabilidade civil.
A doutrina costuma referir-se às Teorias Subjetiva, Objetiva e do Risco. No entanto, prefere-se, aqui, apresenta-las como Subjetiva e Objetiva, classificando de Simples e Qualificada as espécies da última em razão de estarem embasadas no que pode ser chamado de risco simples e risco ampliado, este também identificado como risco exacerbado.
A Teoria Subjetiva, embasada no conceito de culpa lato sensu, exige a prova da ocorrência do ato, comissivo ou omissivo, e do dano; nexo causal entre o ato e o dano e a prova da culpa do agente por erro de conduta, imprudência, imperícia ou negligência.
A Teoria Objetiva Simples, embasada no risco da atividade, afasta a possibilidade de ser discutida a culpa do agente. Entretanto, enseja duas vertentes quanto à possibilidade de discussão sobre a culpa da vítima mediante a inversão do ônus da prova. Uma, mais liberal, para excluir a do agente e outra, mais rigorosa, apenas para graduar a indenização.
A Teoria Objetiva Qualificada ou Ampliada, embasada no risco da atividade perigosa, impede, absolutamente, a invocação de culpa da vítima, admitindo que a atividade, por estar caracterizada pelo risco exacerbado, leva à responsabilização por seus resultados em face de terceiros.
Finalmente, considera-se que a dificuldade para aplicação das Teorias ao caso em concreto, quando a lei não é precisa, aflora numa questão processual ainda não pacificada e que consiste na incerteza do momento adequado para se identificar ou definir aquela aplicável. Ou seja, em qual dos três momentos significativos da atividade processual deve se definir a teoria adequada ao caso sub judice: apreciação da inicial, com ou sem pedido liminar; saneamento do processo, com a fixação de responsabilidade pela produção da prova; ou apenas na sentença. Ousando opinar aponta-se que o novo art. 927, Parágrafo Único resolve a questão. A regra continua consagrando a responsabilidade fundada na culpa e, somente quando a lei for expressa ou nos casos de atividades de risco se afasta sua indagação. Afora a excepcional oportunidade da tutela de urgência, antecipatória, que faz composição provisória, é na instrução, até o saneador, quando as questões fáticas devem estar bem delineadas que se deve definir a teoria aplicável sob pena de ofensa aos direitos e garantias fundamentais estabelecidos no art. 5º da Constituição que prevê, no inciso LV que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
7. A função reparatória e as garantias fundamentais
A função tradicional reparatória vem sendo modificada tendo em vista a ampliação conceitual do dano e a distinção de seus sujeitos, notadamente o dano imaterial e a coletivização, em decorrência do reconhecimento de garantias fundamentais à cidadania.
A Constituição do Brasil, no Título II, tratando dos direitos e garantias fundamentais, recepcionou uma das tônicas do Século XX, qual seja, o direito à reparação pelos danos causados à personalidade: o dano moral puro, o dano à honra subjetiva de pessoa, aquele que se projeta no íntimo; e, à honra objetiva de pessoa, aquele que se projeta perante terceiros. Estabelece a Carta Magna, assegurando a indenização:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
(…)
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
(…)
XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;
(…)
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
(…)
Denota-se, do texto constitucional, segurança ao direito de indenização por dano material ou moral, à honra, à imagem, à intimidade e à vida privada, em critério que se estende a qualquer outra forma de dano, ainda que por ato lícito, como aquele previsto no inciso XXV, pois este é o sentido do direito de ação assegurado no inciso XXXV, reproduzidos.
Aponta-se como primitiva a função indenizatória, seja reparatória, em se tratando de dano material, ou compensatória, quando o dano for moral. No entanto, torna-se cada vez mais aceita a função sancionatória, com caráter punitivo (EUA) ou preventiva (FRA), de modo a servir de desestímulo não apenas ao agente, mas a todos que como ele podem agir.Esta última parece ser função inerente à pena que, nos seus valores implícitos, tem o caráter de servir de exemplo à sociedade e de intimidar os que possam ser tentados a incorrer em conduta lesiva ou exercer atividades que possam ocasionar dano a outrem.
O legislador pátrio não costuma fixar critérios objetivos para regular a gravidade da culpa (afora disposições esparsas) necessários à quantificação do dano. Estes ficam, de regra, ao poder discricionário do Estado, através do Judiciário. Dado ao caráter preventivo, educativo, a condenação decorrente da função sancionatória deveria reverter para a sociedade, como na sanção penal que atende ao interesse coletivo; e ao lesado caberia a simples, mas plena, reparação do dano. Assim, a condenação deveria ser discriminada – indenização e pena – desestimulando, também, postulação superior ao dano ou compensação com o enriquecimento acima do justo, circunstâncias que realimentam o sentimento de dano diante da perspectiva da indenização.
Quando se trata de dano a interesses difusos ou coletivos, ainda que sem precedentes, entende-se que as indenizações deveriam constituir um fundo público para o repristinamento ou campanha de conscientização no campo afetado. A competência para legislar a respeito está regulada pela Constituição Federal:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(III)
VIII – responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
(III)
8. A sistematização da responsabilidade no Código Civil de 2002
A moderna e atual conceituação do dano autoriza a sua classificação segundo critérios diversos. Observa-se, quanto ao tipo, que além do tradicional dano material e do dano moral sujeito a reflexo material, o Novo Código, de 2002, na linha dos direitos e garantias da Constituição/1988, trata do direito à indenização pelos danos causados à personalidade, o dano moral puro, à honra subjetiva e que se projeta no íntimo da pessoa física; e, à honra objetiva, de pessoa física ou jurídica, e que se projeta perante terceiros.
A codificação, dando tratamento ao tema na Parte Geral, Livro I, Título I, Das Pessoas Naturais, inseriu o Capítulo dos Direitos da Personalidade, atinentes à pessoa natural e logo estendido, sob ressalva, “no que couber” (art. 52) às pessoas jurídicas, deixando, neste caso, o enquadramento ao poder discricionário do juiz e, quiçá, inibindo o exercício do direito pela incerteza da tutela legal. Vale ressaltar-se que mediante a condição expressa no artigo, “no que couber”, não se recepciona o dano subjetivo à pessoa jurídica, pois este é o que se projeta no interior da pessoa, no sentimento e, isto é próprio da pessoa natural. A hipótese do dono ou sócio da empresa sentir-se moral e subjetivamente abalado, terá que ser encaminhada à esfera da lesão pessoal e não empresarial.
No primeiro artigo que trata dos Direitos da Personalidade, art. 11, está a regra de que eles são intransmissíveis e irrenunciáveis, e não comportam limitação voluntária e, no último, art. 21, a segurança de inviolabilidade da vida privada da pessoa natural que já era assegurada pela Constituição Federal como garantia fundamental.
Os arts. 12 e 21 asseguram o direito de ação para fazer cessar a ameaça ou a lesão a direito da personalidade e a reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções que a lei preveja (como as penas cominatórias e as penais), inclusive pela divulgação de escritos, palavra e imagem, exceto se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública (art. 20).
Nos parágrafos únicos dos arts. 12 e 20 está regulada a legitimidade para postular indenização ou impedir o ato lesivo quando afeto ao morto ou ao ausente: no caso do primeiro dispositivo (dano à personalidade), o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau, e no segundo (dano pela divulgação), o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. A lesão, em verdade, não é ao morto ou à sua memória, mas àqueles que a lei atribui o direito de ação e que serão os recompensados nos efeitos patrimoniais. O Código, neste caso, como em muitos outros, omitiu o convivente supérstite, deixando de atender ao preceito constitucional, art. 226 § 3º, que equipara as famílias constituídas pelo casamento ou pela união estável, declarando-as como entidade familiar e base da organização social.
Como reflexo do direito à personalidade, o art. 13 limita a livre disposição do corpo pela “própria pessoa”, salvo exigência médica, quando importar em diminuição permanente da integridade física ou contrariar bons costumes, excetuando no parágrafo único o transplante regulado por lei especial. Neste caso, autoriza a disposição do corpo, mesmo com os prejuízos apontados no caput, mas não dá diretriz à regulamentação: se destinado o órgão a um banco biológico para uso público; se pode ser dirigido a qualquer pessoa; se onerosa ou gratuita.
Por outro lado, o art. 14 diz que é válida a disposição gratuita do “próprio corpo”, no todo ou em parte, para uso pos mortem, com objetivos científicos, ou altruísticos, tirando a disponibilidade dos sucessores. A disposição revogável a qualquer tempo (parágrafo único), não pode ser onerosa (ainda que na modalidade de prêmio a terceiro). A fragilidade do texto em matéria de extrema complexidade permitirá que se entenda que a gratuidade imposta neste artigo admite onerosidade naquele outro.
A disposição do próprio corpo é também enfocada no art. 15 quando dispõe que ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento ou intervenção cirúrgica que ofereça risco à vida. Novamente foi tímido o legislador ao enfrentar a matéria que envolve forte conteúdo emocional e ético: não se utilizar os recursos da ciência para evitar a morte é deixar o corpo sob a certeza da morte natural, mediata ou imediata; quando o paciente não tem consciência ou responsável presente para decidir, é omitir o socorro. Faltou, no mínimo, ao legislador, definir o risco à vida (ou risco de vida como diz a lei) por tratamento ou cirurgia, posto que este já pode estar presente e qualificado pela gravidade do estado do paciente.
As últimas disposições quanto à personalidade estão dispostas nos arts. 16, 17, 18 e 19 regulando o direito ao nome (prenome e sobrenome); vedando o uso por outrem em publicações ou representações (limitação artística) que a exponham a desprezo público, ainda que sem intenção difamatória (o que é subjetivo); vedando o uso em propaganda comercial sem autorização; e estendendo proteção ao pseudônimo adotado para atividades lícitas (artística, política, comercial).
Finalmente, embora a legislação extravagante há muito viesse enfrentando a realidade – como em 1965, a Lei da Ação Popular, em 1985, a da Ação Civil Pública, e em 1990 o Código de Defesa do Consumidor – a nova lei omitiu-se de codificar a matéria dos danos transindividuais, coletivos ou difusos.
9. O regramento da Responsabilidade no Código Civil de 2002
O Novo Código sob o Título IX, Da Responsabilidade Civil, disciplina o tema começando a tratar, no Capítulo I, da Obrigação de Indenizar. Prescreve a nova codificação:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
O dispositivo, além de estabelecer a responsabilidade pela prática de ato ilícito, consagra como regra a culpa subjetiva, excepcionando a responsabilização por culpa objetiva para os casos de dano por atividade de risco ou outros casos especificados em lei. Um destes casos é previsto pelo próprio Código no art. 931, o da responsabilidade de empresários individuais e empresas por produtos postos em circulação. Estabelece o artigo:
Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação.
O mencionado artigo, tratando apenas da circulação de produtos, deixou de incluir naquela modalidade de culpa os fornecedores de serviços. Como a matéria é pertinente ao Código de Defesa do Consumidor, antevê-se controvérsia, para ser dirimida pelos tribunais, sobre a revogação do critério objetivo que praticamente personaliza as relações de consumo. É aquele Código que define, por sua especialização, aquela responsabilidade.
No regramento da responsabilidade por ato de incapaz o novo texto mantém a regra do código anterior ao absorver no art. 928 o mesmo comando dos arts. 1.518 e 1.521, respondendo seus bens e os do responsável legal. No entanto, dele pode se depreender duas inovações: a hipótese do responsável que não responde pela conduta do incapaz, presumindo não ter ele família e estar em situação transitória; e o critério de equidade na valoração do dano para poupar de provações o incapaz ou quem dele dependa. Nesta situação pode-se dizer que a reparação pode não ser plena e, ainda, deduzir-se que aqueles que dependam do incapaz, também o sejam, a menos que se admita que pessoas capazes possam ser dependentes de incapazes. Disciplina o Código:
Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes.
Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.
Mais um caso de responsabilidade objetiva está regrado pelo novo código quando se trata de responsabilidade por fato de terceiro (antigo 1.521), como o caso de atos cometidos por filhos menores, tutelados, curatelados, empregados e beneficiados pelo produto de crime, situações previstas no artigo 932 que foi alterado apenas para adequação terminológica: poder do pai por autoridade do pai e, patrão e amo por empregador. A regra anterior estabelecia a responsabilidade por presunção de culpa, posição intermediária para aceitar a objetiva, exceto para o caso hoje previsto no inciso V do art. 932, benefício com o produto de crime. O novo diploma estabelece:
Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.
O direito regressivo daquele que reparar dano ocasionado por outrem está regulado no art. 934, repetindo o antigo 1.524, que subtrai tal prerrogativa “se o causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamente incapaz”, qualidades que não constavam do texto anterior e que são dispensáveis, justamente por serem as hipóteses de responsabilização (estar sob a autoridade).
A responsabilidade por fato da coisa permanece sob o enfoque da conduta do responsável por animal ou prédio. O art. 936 substituiu o art. 1.527, danos causados por animal, mantendo a inversão do ônus da prova; acrescentando ao caput o que estava no inciso III, culpa do ofendido, e no inciso V, força maior; e, suprimindo os dispositivos que permitiam ao dono provar que fora zeloso, inciso I, que o animal fora provocado por outro, inciso II, e que o fato resultara de caso fortuito, parte do inciso V.
No que se refere ao dano por ruína de edifício, o art. 937 repete o texto anterior, art. 1.528, sendo imprescindível provar a descúria do dono, pois o texto aponta como causa a “falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta”. Assim, entende-se, é caso de culpa subjetiva.
No caso da responsabilização do ocupante de prédio por dano ocasionado pela queda ou arremesso de objetos, o art. 938 manteve o sentido do revogado art. 1.529, ajustando a terminologia, casa por prédio. Não exigindo prova da culpa, autoriza entenda-se que ela seja presumida.
A responsabilização do credor pela cobrança judicial de dívida não vencida está prevista no art. 939 obrigando-o a esperar o tempo faltante, a descontar os juros que seriam devidos e a pagar as custas em dobro; enquanto que a demanda por dívida já paga ou em postulação maior do que for devido, art. 940, obriga a pagar, no primeiro caso, o dobro e, no segundo, o equivalente ao excesso, ressalvada a ocorrência de prescrição. As penas, de acordo com o art. 941, não são aplicáveis se o autor desistir da demanda antes da contestação, ressalvado o direito de reparação do dano que o réu prove ter sofrido. Os mencionados dispositivos repetem os antigos 1530, 1531 e 1532, acrescentando, apenas, a ressalva quanto aos prejuízos que, por dependerem de prova, presume-se, não abarcam o dano moral puro.
A independência entre a responsabilidade civil e a criminal está consagrada no art. 935 que parece repetir o preceito do art. 1.525, revogado: há independência, mas não se discute mais na esfera cível os fatos e a autoria reconhecidos no juízo criminal. Observa-se que no texto anterior havia uma regra e uma exceção que poderiam estar estruturadas em caput e parágrafo e, que o atual mudou apenas a pontuação deixando o texto sem lógica, pois na primeira parte diz que é independente e na segunda recepciona efeitos da decisão criminal. Como estava, ou como parágrafo, havia melhor redação. Observe-se o texto atual:
Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.
Finalmente, os arts. 942 e 943, repetindo o texto dos revogados arts. 1518 e 1526 editam regras de responsabilidade patrimonial e de solidariedade dos agentes. No último, com preceito semelhante ao previsto no art. 5º XLV da Constituição Federal – como direitos e garantias fundamentais – estende a responsabilidade civil aos sucessores no limite do patrimônio que lhes for transmitido, o que significa, em verdade, limitação às forças da herança, pois o que se transmite, causa mortis, é o patrimônio líquido do falecido.
10. O enriquecimento sem causa e a indenização
A vedação ao enriquecimento sem justa causa à custa de outrem está prevista nos arts. 884 e 885 da nova codificação, mandando restituir o indevido e inovando quando assegura a atualização monetária do seu valor.
A restituição é afastada, como prevê o art. 886, se a lei conferir ao lesado outros meios para ressarcir-se do prejuízo sofrido, disposição que complicará a aplicação do tradicional instituto, pois com a abrangência indenizatória prevista no código e com as facilidades para desconstituir o negócio jurídico, normalmente há previsão legal para ressarcimento do dano no sentido lato.
No que se refere à quantificação do dano, os preceitos do Capítulo que compreende os artigos 944 a 954, misturam critérios para indenização com especificação de atos, circunstância que somente se admite porque em alguns casos determinam que seja levado em consideração o grau de culpa da vítima; e, embora estabeleça a extensão do dano como medida para aferir a indenização admite sua redução “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano”. Observe-se:
Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.
Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.
O art. 946, ao tratar de indenização afeta à obrigação indeterminada – cujo valor se apura por perdas e danos – orienta para que seja aferida na forma que a lei processual determinar – presume-se a liquidação de sentença – como se o caminho judicial não fosse o único à falta de previsão no contrato ou na lei. Determina o Código:
Art. 946. Se a obrigação for indeterminada, e não houver na lei ou no contrato disposição fixando a indenização devida pelo inadimplente, apurar-se-á o valor das perdas e danos na forma que a lei processual determinar.
No mesmo sentido é a solução quando se trata de obrigação de entrega, ainda que motivada por ofensa à posse:
Art. 952. Havendo usurpação ou esbulho do alheio, além da restituição da coisa, a indenização consistirá em pagar o valor das suas deteriorações e o devido a título de lucros cessantes; faltando a coisa, dever-se-á reembolsar o seu equivalente ao prejudicado.
Parágrafo único. Para se restituir o equivalente, quando não exista a própria coisa, estimar-se-á ela pelo seu preço ordinário e pelo de afeição, contanto que este não se avantaje àquele.
No art. 947 o legislador estabelece regra que, salvo melhor juízo, colide com a atual reforma do Código de Processo Civil que amplia o emprego da pena cominatória como meio coercitivo ao cumprimento da obrigação na sua espécie, pois praticamente dá ao devedor a faculdade de exigir a conversão da obrigação em perdas e danos. Diz o mencionado artigo:
Art. 947. Se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda corrente.
A indenização pelo ilícito penal está regulamentada pelos arts. 948 a 951. Neles, sem excluir outras reparações, a lei assegura, no caso de homicídio, o pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família, assim como alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima (art. 948); no caso de lesão ou outra ofensa à saúde, as despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença (art. 949); se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, as despesas do tratamento e lucros cessantes e pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu, assegurado ao lesado o direito de exigir paga de uma só vez.
A situação prevista no art. 951 envolve relação hoje regulada pelo Código do Consumidor, e para a qual aquele dispositivo manda aplicar as regras dos artigos anteriores. Diz o Código:
Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.
O dano moral também foi alvo de regulamentação quanto à reparação, embora timidamente, beirando à exclusão do puro, quando possível provar o dano material, por injúria, difamação, calúnia (art. 953), ofensa à liberdade individual por cárcere privado, prisão ilegal ou por queixa ou denúncia falsa e de má-fé (art. 954). Preceitua o Código:
Art. 953. A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido.
Parágrafo único. Se o ofendido não puder provar prejuízo material, caberá ao juiz fixar, eqüitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso.
Art. 954. A indenização por ofensa à liberdade pessoal consistirá no pagamento das perdas e danos que sobrevierem ao ofendido, e se este não puder provar prejuízo, tem aplicação o disposto no parágrafo único do artigo antecedente.
Parágrafo único. Consideram-se ofensivos da liberdade pessoal:
I – o cárcere privado;
II – a prisão por queixa ou denúncia falsa e de má-fé;
III – a prisão ilegal.
Finalmente, destaca-se que não obstante a codificação em comento não tenha quantificado a indenização por dano moral, o Senado Federal já discute proposta[3] de modificação do Novo Código para tarifa-la com valores[4] que levam em conta o grau da lesão em leve, médio e grave. O risco de tabelar-se a indenização é de que o lesante, seguro quanto ao valor prefixado, possa sopesar a conveniência do ato lesivo e comete-lo conscientemente, assumindo o ônus previamente, de modo que a indenização perca o seu caráter educativo.
11. Considerações finais
As modificações filosóficas do pensamento e a sua universalização pela dinâmica dos meios de comunicação atuais alteram os anseios do ser humano, individual e coletivamente. Assim, o que se tem juridicamente como princípio quando da elaboração de uma lei, torna-se, com o tempo, mero fundamento daquele sistema, sem constituir, entretanto, dogma à aplicação do direito ao caso em concreto.
Os juristas, críticos do direito – professores e doutrinadores – ou seus operadores – advogados, promotores e juízes – são levados a trabalhar com a literalidade da legislação e a realidade social para muitas vezes rever e inovar suas idéias, postulações e decisões, adequando-as ao interesse atual da sociedade.
A dinâmica legislativa, entretanto, não consegue desempenhar-se com a mesma agilidade do pensamento, da comunicação e do juízo de convicção que se forma num processo judicial; por maior que seja o idealismo e o empenho do legislador, o processo legislativo passa por percalços de ordem política (prioridades) e técnica (comissões e pareceres) que abarrotam o Poder Legislativo de projetos de leis e de regulamentações de medidas provisórias que acabam por retardar o pronto desempenho legislativo. A atual reformulação do Código Civil Brasileiro, por isso, discutida por mais de cinqüenta anos, quinze dos quais já sob o regime da Constituição de 1988, no geral consagrou mudanças sobre a Responsabilidade Civil que a doutrina já vinha apontando e que os tribunais já faziam operar nos seus julgamentos e que já tinham sido assimiladas pelo legislador constituinte, em particular no pertinente aos direitos e garantias fundamentais.
A Nova Lei – propositalmente para flexibilizar sua aplicação ou por omissão involuntária, posto que propostas de modificação estão sendo oferecidas antes mesmo de sua vigência – em muitos casos deixou ao clivo dos operadores do direito a adoção das melhores medidas de justiça, como quando diz constituir ato ilícito o excesso de direito, assim se entendendo aquele que manifestamente excede os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes; quando ao descaracterizar o ato ilícito deixa de conceituar o perigo iminente que autoriza dano a outrem; quando assegura anulabilidade de negócio ou ato sob o vício do erro substancial ou do estado de perigo subtraindo a certeza da validade daqueles; quando estende os Direitos da Personalidade às pessoas jurídicas, “no que couber”, deixando o lesado sem a certeza da tutela legal e inibindo o exercício do direito de ação; quanto a livre disposição do corpo, deixando de regular a opção do paciente pelo tratamento e, de conceituar ou definir os fins científicos e altruísticos a que pode se destinar a doação de órgãos; e, quanto aos reflexos do direito à personalidade, deixando de prever o direito do convivente supérstite promover a reparação diante de ofensa à memória ou uso indevido do nome do de cujus; omitindo-se de codificar especificamente a matéria dos danos transindividuais, coletivos ou difusos; entre muitas outras observações lançadas no corpo deste trabalho.
Finalmente, é preciso destacar-se que o legislador foi oportuno ao acolher a proposta dos juristas que contribuíram na elaboração do anteprojeto do Código dando à sua sistematização caráter humanístico, priorizando o homem em relação ao patrimônio e recepcionando, em diversos momentos de seu texto, os inarredáveis preceitos de garantias fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988, em particular destacados neste trabalho aqueles relativos à responsabilização civil, seu objeto nuclear, como o reconhecimento à indenização pela ofensa causada à personalidade, o dano moral causado à honra subjetiva de pessoa física e o dano à honra objetiva de pessoa física ou jurídica; consolidando a idéia do dano sob o mais amplo aspecto, inclusive pelas atividades de risco ampliado ou exacerbado, que por certo se aplicará às lesões à coletividade, ao ambiente e ao consumidor, relações intimamente ligadas aos direitos e garantias fundamentais que merece particular atenção por sua potencialidade e pela subjetividade do dano, porquanto o efeito do ato lesivo muitas vezes não pode ser dimensionado, como no caso da propaganda que induz ao consumo coletivo de um produto que pode ser nocivo à saúde, ou da contaminação radioativa que se propaga por séculos.
Advogado – OAB/RS nº 7.497; Professor de Direito Processual Civil da Fundação Universidade Federal de Rio Grande; Doutor em Direito Processual pela Universidad de Buenos Aires.
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