O papel dos conselhos municipais na implementação das políticas públicas do estado

1. APRESENTAÇÃO

O presente trabalho foi elaborado como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do Curso de Especialização em Administração Pública realizado pela Universidade Estadual de Feira de Santana em Parceira com a FUNDESP – Escola de Serviço Público, atual fundação Luis Eduardo Magalhães (FLEM) como requisito parcial para obtenção do grau de especialista.

A opção pelo tema “Conselhos Municipais” foi em razão da experiência acumulada pelo autor em atividades junto a entidades do movimento social, ONG’s nacionais e mundiais, universidades e na organização dos trabalhadores rurais e urbanos pela exigibilidade dos direitos individuais e coletivos conquistados na Constituição Federal de 1988. Sem dúvida, a temática daparticipação popular nos governos locais é um tema central no processo de consolidação da cidadania e da democracia no país.

Além disso, é preciso adotar o novo paradigma de administração pública previsto na CF/88 colocando no centro da decisão política o cidadão. A reforma administrativa voltada à afirmação da cidadania supõe a implementação de mecanismos de participação popular, contrapondo-se à tendência de privatização e de esvaziamento do espaço público. Neste sentido, a modernização do serviço público implica na participação da sociedade civil na definição das políticas de governo.

As políticas públicas no Brasil, e em especial na Bahia, têm se caracterizado, ao longo do tempo, pela submissão a interesses políticos e econômicos. A elite política brasileira conservadora e oligárquica, sempre teve sua intervenção orientada pelo favor, pelo compadrio e pelo clientelismo, marcando a nossa história econômica e social de práticas assistencialistas que serviam ao fisiologismo e à formação de redutos eleitorais.

É nesse contexto, que a CF de 1988, inaugura uma nova política, quando o legislador constituinte em função das pressões da sociedade civil organizada, propõe como modelo de atuação: A municipalização das políticas públicas, sob argumento de que o município tem melhores condições de prestar assistência social à população, pelo fato de estar mais próximo do povo e mais atento as questões culturais e regionais.

Com a municipalização das políticas públicas, o governo federal, por força da legislação existente, passa a exigir dos municípios a criação de conselhos municipais (de educação, da saúde, loas, etc.) orientados pelo princípio da paridade na sua composição, composto de representantes do município e da sociedade civil organizada (igreja, sindicatos, associações, etc.) visando permitir a participação popular na administração pública.

Os Conselhos de gestão representam uma conquista do processo de democratização vivido pelo Brasil em sua história recente, que resultou da luta da sociedade civil organizada e dos movimentos populares, que contou a contribuição de técnicos do governo (médicos, educadores, etc.) e parlamentares sensíveis às questões sociais.

Com uma formação que prevê a participação de representantes dos vários segmentos sociais, princípio da paridade entre usuários e prestadores do serviço público, os conselhos se tornaram mecanismos de controle, planejamento, implementação e fiscalização das políticas públicas, em campos como a educação, saúde, a assistência social e a área que envolve criança e adolescente. Devido à efetividade de suas ações, e por integrar o próprio texto constitucional, atualmente, eles assumem uma importância crescente como núcleos de participação da população, principalmente de setores excluídos, que dessa forma buscam interferir nas decisões governamentais, em nível federal, estadual e municipal.

Portanto, os Conselhos de Gestão, entre eles os Conselhos municipais, têm hoje em dia uma atuação decisiva no processo de democratização do poder local, da ampliação do controle social sobre a gestão pública e na radicalização da democracia.

Porém, será que os conselhos municipais estão garantindo a efetiva participação popular? Será que realmente estamos conseguindo com esta iniciativa a democratização da gestão da coisa pública? Ou será que permanece o clientelismo e fisiologismo de outrora?

Segundo alguns especialistas, os conselhos de gestão enfrentam vários obstáculos para cumprir suas propostas. Um dos mais significativos é a resistência do poder executivo de expor suas decisões ao debate aberto com a opinião pública. Por esse motivo, há o risco de os conselhos ser alvos de tentativas de instrumentalização por parte de governantes que desejam, muitas vezes, torná-los meros veículos de legitimação de suas políticas. Em outros casos, seu funcionamento é dificultado pela inexistência de condições mínimas de infra-estrutura, ou então suas decisões e propostas simplesmente são ignoradas pela esfera governamental. É preciso encontrar respostas concretas, sob pena de mais uma vez uma conquista popular se perder na ineficiência do Estado.

Além disso, iniciativas como o Programa Comunidade Solidária[1], que foi articulado pelo governo federal sem a participação da sociedade civil, tentam fazer tábua rasa de conquistas que, apesar de todas as deficiências, foram obtidas pela ação dos conselhos em vários setores.

A discussão deste assunto se torna hoje muito oportuna, para a sociedade civil e para os governos locais na perspectiva de que os espaços criados com os conselhos se tornem efetivos no planejamento, controle social e execução de políticas públicas comprometidas com a construção da cidadania.

Este trabalho pretende estudar este instrumento de participação popular, que são os conselhos municipais, visando dotar a sociedade civil e os executivos municipais de conhecimentos fundamentais a criação e gestão destes conselhos.

“No ano do centenário de Canudos, dedico este trabalho àqueles que insubmissos à iniqüidade e ao despotismo, perseveraram e morreram na luta pelo ideal de fraternidade e igualdade entre os homens.

CARTA DO RECIFE

Os participantes do segundo seminário nacional “Para que Participação Popular nos Governos Locais?”, promovido pelo Fórum Nacional de Participação Popular nas Administrações Municipais em conjunto com a Prefeitura do Recife e com apoio da SUDENE, nos dias 8,9 e 10 de novembro de 1995, tendo em vista as eleições municipais que ocorrerão em 1996, considera importante tornar público uma síntese dos debates travados nesses dias de trabalho:

O cenário internacional, marcado pelo processo de globalização da economia e de fragilização dos Estados Nacionais, coloca uma nova pauta de questões para o poder local, projetando-o no debate político sobre as alternativas de organização do Estado. São principalmente os municípios que estão desafiados a enfrentar mudanças qualitativas nos métodos de gestão pública.

Adotar um novo paradigma de administração pública significa revolucionar por dentro a máquina do Estado, como se organiza e como se presta o serviço público, colocando no centro o cidadão. A reforma administrativa voltada à afirmação da cidadania supõe a implementação de mecanismos e canais de participação popular, contrapondo-se à tendência de privatização e de esvaziamento do espaço público. Neste sentido, a modernização do poder público implica a participação da sociedade na definição das políticas de governo.

A construção de uma nova cultura política democrática, que supere os vícios do autoritarismo, do paternalismo e do clientelismo na relação entre Estado e sociedade, pressupõe a defesa da participação como direito fundamental a cidadania; pressupõe uma nova ética no trato da coisa pública, tanto dos governantes como da sociedade civil, centrada na responsabilidade social, no reconhecimento da diversidade cultural e da pluralidade política dos atores sociais.

Este seminário, ao reunir mais de 300 pessoas de todo o país, representações parlamentares, prefeituras, lideranças de movimentos sociais, de associações de classes, organizações não governamentais e pesquisadores, cuja atuação é decisiva no processo de democratização do poder local, questiona e problematiza as diversas práticas participativas em curso nos municípios. Que avanços podem ser identificados no sentido da ampliação do controle social sobre a gestão pública, na perspectiva de radicalização da democracia?

Considerando que a democracia é um processo em construção, a participação da sociedade local na gestão significa reconhecer:

 O direito igual à participação através da garantia do acesso à informação que, permita a formação e a capacitação do cidadão para intervir na gestão pública;

Que a conjugação entre a participação representativa, que se realiza através do parlamento, e a participação direta da população na gestão fortalece a democracia;

Que a participação da sociedade nos governos locais se realiza através de uma multiplicidade de espaços e mecanismos, pontuais e sistemáticos, de acordo com a realidade de cada município, não se reduzindo apenas a uma só modalidade;

Que é fundamental institucionalizar os canais e mecanismos de participação da população na gestão. No entanto, a legalidade não assegura o processo participativo se não houver vontade política e efetiva partilha de poder;

Que a participação nos canais institucionais não pode substituir a mobilização da população ou outras formas legítimas de pressão da sociedade civil sobre o poder público;

Que é necessário denunciar as iniciativas de formalização da participação social nos governos municipais, quando realizadas com o intuito de respaldar determinado discurso democrático, usado segundo interesses políticos conjunturais de governantes, ou para acobertar interesses corporativos de grupos sociais.

Nessa perspectiva, estão colocados para os diversos atores sociais, os seguintes desafios:

1 – Que os movimentos sociais brasileiros principais atores do processo de democratização do país, resguardem sua autonomia política e assumam cada vez mais um papel propositivo na elaboração das políticas públicas, assim como no acompanhamento e na fiscalização da sua execução.

2 – Que as ONGS comprometidas com a radicalização da democracia no país, invistam esforços na criação de laços de solidariedade e de espaços de diálogo entre as diferentes forças democráticas, organizando processos de sistematização, intercâmbio, análises e formulação de políticas públicas alternativas.

3 – Que as prefeituras se empenhem no processo de democratização administrativa e política da gestão municipal, que abram espaço à participação social nas decisões de governo e resgatem a dívida social legada pelo autoritarismo.

4 – Que os legislativos municipais assumam o papel político de negociador dos principais interesses sociais que envolvem a construção de um projeto global e plural de cidade, constituindo-se efetivamente como espaço aberto, permeável às aspirações da população.

Nessa perspectiva, todos os que estão comprometidos com a democratização do Estado e da sociedade brasileira têm a expectativa de que os candidatos a prefeito e a vereador assumam, como prioridade de governo, a descentralização do poder político, o fortalecimento das representações sociais, a transparência administrativa, a abertura de espaços à participação da sociedade nas decisões, no acompanhamento e na fiscalização das políticas públicas e do orçamento municipal. [2]

Recife, novembro de 1995”

2. INTRODUÇÃO

Como Já foi explicitado anteriormente, as políticas públicas no Brasil sempre foram marcadas por uma cultura burocrática/autoritária do Estado brasileiro e por uma herança conservadora e clientelista de nossa transição democrática, o que muitas vezes, acaba por inviabilizar os aspectos mais positivos de uma experiência de participação no poder local. A construção de nova ordem democrática no país se faz nos marcos do neoliberalismo, o que causa uma fragmentação das políticas sociais no Brasil, que, não sendo sequer compensatórias, acentuam as desigualdades sociais e têm baixa efetividade. A ideologia neoliberal esforça-se para apresentar a política econômica e a estabilização da moeda como eminentemente sociais, deixando de lado as políticas redistributivas. Essa é sem dúvida nenhuma a orientação política do atual governo FHC.

Ao Estado autoritário, burocratizado e elitista se contrapôs a perspectiva de um Estado democrático, ágil e com forte poder regulador para enfrentar reconhecidas desigualdades sociais. Alternativas que tinha como pressuposto a definição de políticas permeadas pela pluralidade dos interesses da sociedade e a disputa de hegemonia nas decisões de Governo. Entretanto, a transição democrática e a retomada do processo participativo no Brasil não resultaram em uma reforma do Estado com participação da sociedade civil. Ao contrário, com a transição negociada e até certo ponto consentida, as chamadas reformas de base foram adiadas indefinidamente e tornaram-se hegemônicos o discurso e a prática do neoliberalismo, na esteira das mudanças ocorridas na política e na economia mundial. O Estado neoliberal se encolhe e se omite até mesmo nas funções estratégicas de governo e nas políticas essenciais. Hoje, o discurso oficial só reconhece mérito a livre iniciativa, advoga o fortalecimento da sociedade civil, porém em contraposição à perspectiva de democratização do Estado, afastando-se das concepções da social-democracia.

O que poderemos esperar em termos de motivação e de participação da sociedade brasileira em defesa da coisa pública, se partidos e forças sociais chegam ao poder em crise com o papel do Estado, sem criatividade para fazer avançar o sistema de educação e sem vontade política para apoiar decididamente a municipalização das políticas públicas?

Cabe, portanto, perguntar se não é o caso de acentuarmos, no referencial de participação social, a dimensão de luta independente pela transformação do modelo econômico e social contida nas experiências de participação popular autônoma, procurando ressaltar sua função estratégica para a mudança da correlação de forças na sociedade, na luta social real, e para conferir representatividade e sentido estratégico ao processo de participação institucional e democratização do Estado.

Vários autores adotam a expressão cidadania ativa numa perspectiva de soberania popular, de direitos humanos e no contexto da democratização do Estado e da sociedade. A possibilidade de participação direta no exercício do poder político confirma a soberania popular como elemento essencial da democracia e reforça a necessidade de se somarem direitos políticos aos direitos sociais. Cidadania significa conquista e criação de espaços sociais de lutas e instituições permanentes para a expressão política, como partidos, legislação e órgãos do poder público. A cidadania ativa é aquela que instituiu o cidadão essencialmente como criador de direitos para abrir novos espaços de participação política·.

Segundo Bava[3], a cidadania só pode expressar-se na ação coletiva, no espaço público, no processo de negociação em torno de interesses sociais. Nesse processo, a sociedade civil deve desenvolver sua capacidade de propor, pressionar, interferir na dinâmica do Estado e da sociedade. A construção de direitos sociais e políticos é o que identifica a democracia e se não houver a criação de espaços públicos os interesses que estão em jogo não se explicam. É importante reconhecer e legitimar os espaços públicos para que haja a oportunidade de identificar os interesses conflitantes e estabelecer a negociação entre os diferentes atores sociais.

Na legislação, os conselhos de gestão são definidos como órgãos colegiados de composição e natureza mistas, destinados às atividades de controle, planejamento e gestão. São instâncias políticas, com poder de decisão, que tem na sua composição representantes de instituições e segmentos sociais com uma lógica própria de atuação, portanto com estruturas específicas de poder de decisão que deverão relacionar-se entre si. Em nosso estudo pretendemos questionar se as experiências desenvolvidas determinam novas práticas no setor e também se os conselhos têm contribuído para a construção de formas efetivamente democráticas de planejamento e gestão pública na educação – em outros termos, se asseguram o processo de democratização do Estado, como instrumento de denúncia, de combate às desigualdades sociais e de controle da gestão pública. Face à questão de como superar a relação Estado fornecedor/cidadão consumidor de assistência, em sua lógica não universal ou social, propõe resgatar a dimensão política do conjunto das políticas sociais nos planos individual e coletivo, para ir além da idéia de democratização do consumo de assistência à educação e criar um espaço cada vez maior de discussão da educação como direito a cidadania e serviço público.

Novamente a questão que se coloca no processo de descentralização do Estado e a redistribuição de poder entre Estado e sociedade, mediante uma democratização da gestão social, com democratização da sociedade, maior participação e controle público no planejamento e na ação governamental, num quadro de ordem política excludente no plano sócio-econômico e concentradora de poder no plano político-institucional, e o questionamento do Estado fornecedor de políticas sociais, como exemplifica Liszt Vieira:

“ A mudança de padrões longamente estabelecidos assusta sempre os conservadores, temerosos da anarquia. Quando, porém, as coisas desmoronam e o centro não se sustenta, é bom lembrar que, como disse, certa vez, Tocqueville, a anarquia não é o maior dos males que uma democracia deve temer, mas o menor.”. [4]

3. HISTÓRICO

Característico do pensamento mercantilista, em que o bem-estar da sociedade era identificado com o bem-estar do Estado o monarquismo absolutista do século XVII apresentava as seguintes características: O Estado assumiu novas funções relativas a um controle e uma intervenção crescente sobre o econômico e o social. Precisou adequar-se institucional e organizacionalmente a essas novas funções, promovendo um importante centralização administrativa constituindo um arcabouço jurídico-legal considerável e formando uma burocracia estatal organizada e sofisticada a ponto de estar capacitada a defender os interesses do Estado, num contexto em que a sociedade devia servir à esfera estatal . O Estado aparecia como portador exclusivo da verdade técnica e do poder decisório e executivo. A participação não chegava a ser passiva; mas se caracterizava como alvo de um Estado intervencionista.

A idéia de participação comunitária apareceu no início deste século, representando um novo padrão de relação Estado-sociedade , para dar resposta a graves problemas  que atingiam a sociedade. Caracterizou-se por se dirigir aos mais pobres; por ressaltar os valores da educação, do trabalho e do coletivismo como caminhos do progresso; por priorizar a descentralização administrativa e a organização comunitária, entendendo que o êxito do trabalho social dependia do grau de integração com as pessoas enquanto comunidade, no seu próprio meio. A comunidade é definida como social e culturalmente homogênea, como identidade própria e uma suposta predisposição à solidariedade e ao trabalho voluntário de auto-ajuda.  Enfatiza-se a capacidade de a comunidade se unir, se organizar, se esforçar, enquanto solução em si mesma. A população deixa de ser alvo inerte de uma ação controladora e passa a ser chamada a cumprir um papel minimamente ativo e consciente.

Fenômeno emergente no cenário internacional desde a década de 60, com os chamados movimentos sociais urbanos, a concepção de participação popular está associada a um novo referencial teórico, em que a categoria comunidade é substituída pela categoria povo, aqui designando a parcela da população excluída  do acesso a bens e serviços. Há uma aproximação com o marxismo ao se abordar a questão da segmentação social como elemento explicativo, que decorre da forma como está organizada a produção, sendo o Estado encarregado de garantir a reprodução permanente e ampliada desse processo. As políticas públicas se subordinam a essa lógica e atendem à necessidade de manter e reproduzir o sistema, sendo também vistas como geradoras de desigualdades. O Estado passa a ser um opositor contra o qual se dirige o processo político  de participação. As melhorias sociais são obtidas através de conquistas, o acesso deve ser obtido através da pressão, do movimento.

Nos anos 70, a participação passa a ter o sentido explícito de luta e contestação contra as limitações governamentais à tentativa de conquista da educação pelas classes populares. O espaço de participação ultrapassa os limites do setor de educação, alcança o conjunto da sociedade e do Estado e ocorre uma radicalização da prática ao se articular a mobilização  dentro das instituições de educação com as formas de luta, resistência e organização das classes populares: associações de bairro, clubes de mães, cooperativas de consumo, conselhos de educação etc.

A participação nas decisões é cada vez mais valorizada em detrimento da participação nas ações, como forma de garantir o redirecionamento das políticas e práticas para atendimento das necessidades do povo. A organização popular está voltada para o enfrentamento com o Estado e o sentido da participação é o de acumular forças para a batalha permanente pela mudança geral do modelo existente.

O Estado de direito moderno reconhece a necessidade de defender a sociedade contra os eventuais excessos no funcionamento da máquina estatal, através da divisão de funções entre os poderes e de mecanismos recíprocos de controle, em nome da sociedade.

A novidade nos anos 80 é justamente a idéia de que esse controle seja feito pela sociedade através da presença e da ação organizada de seus segmentos. O processo de democratização trouxe à cena novos atores e questões na esfera das relações Estado-sociedade. Do lado da sociedade, torna-se visível a presença de uma diversidade de atores. Do lado do Estado, vai-se firmando sua dimensão de espaço de representação e pactuação. O processo de participação deixa de ser restrito aos setores sociais excluídos pelo sistema e pretende dar conta das relações entre o Estado e o conjunto de indivíduos e grupos sociais, cuja a diversidade de interesses e projetos integra a cidadania, disputando com igual legitimidade espaço e atendimento pelo poder estatal.

Segundo Teixeira[5] a formação de conselhos como canal de participação da sociedade na constituição do poder político não é uma questão recente:

“os teóricos marxistas clássicos já os concebiam como órgãos embrionários de um governo revolucionário, cujos delegados recebiam um mandato imperativo e revogável, isto é, deveriam seguir estritamente as instruções dos representados e poderiam, a qualquer momento, ser suspensos de suas funções.”

Experiências efetivas desta forma de participação são encontradas, desde a Comuna de Paris, os sovietes na Rússia, os conselhos operários na Alemanha, Itália e mais tarde na Espanha, representaram tentativas de construção de um poder autogerido, base para a instituição de um novo Estado, articulando a esfera econômica à política, fundamentando-se na revogabilidade dos mandatos, assunção de funções administrativas e em forma de democracia direta.[6]

Nos países capitalistas constituíram-se como formas alternativas de poder e gérmens de novas estruturas políticas. A discussão se trava em torno da relação dos conselhos com os sindicatos e o partido e do seu papel de autogoverno. Vale a pena  ressaltar que órgãos internacionais como o Banco Mundial e o PNUD[7], orientam os governos nacionais no sentido da criação de conselhos de gestão como forma de melhorar o planejamento das ações e aplicação dos recursos e combater a imprevidência de alguns governantes.

No Brasil é relativamente recente a prática dos chamados Conselhos de Gestão na administração pública, entendidos enquanto perspectiva de participação independente dos cidadãos no processo de planejamento e tomada de decisões junto ao Estado.

Nas décadas de 70/80, a questão dos conselhos se insere na agenda política de duas formas. De um lado, na forma de “conselhos comunitários” criados pelo poder público para negociar demandas dos movimentos populares, face à crescente mobilização das populações, principalmente as residentes nos bairros de periferia.

Já em 1979, em São Paulo, um decreto do prefeito criava um “conselho comunitário”, formado por associações de classe, entidades, movimentos religiosos e associações de bairros. N o governo Montoro, esse processo foi ampliado para o Estado todo, elegendo o discurso participativo e da descentralização como ideologia oficial e a “ação comunitária” como política governamental. Instituíram-se vários tipos de conselhos, desde o da “Condição Feminina”, “do negro”, “da juventude”, “Idosos”, “Deficientes Físicos”, de “Comunidades Locais” até Conselhos Municipais, para “promover o estudo e a solução dos seus problemas” e, em troca, “ampliar sua base de legitimidade”. Na realidade, constituíram-se em mecanismos de ritualização de demandas ou instrumentos de cooptação de lideranças.[8]

Também no Rio de Janeiro a partir de 1982, houve uma tentativa de formar conselhos em algumas secretarias de Estado, de natureza consultiva e efêmera, já que todas as decisões concentravam-se no gabinete do governador. Em 1996, a Prefeitura criou os Conselhos Governo/Comunidade por região administrativa, com representação de associações de moradores e outras entidades, sem caráter deliberativo, entendidos como fórum de negociação, porém de vida curta.[9]

Experiências como estas, suscitaram discussões teóricas e políticas nos partidos de esquerda, universidades e entre os próprios movimentos. Foram referências importantes para lutas desenvolvidas na Constituinte em torno de arranjos institucionais que permitissem um mínimo de participação da sociedade no controle, fiscalização e proposição de atos e decisões governamentais. Serviram de base também para proposições na Constituinte, como a do sistema Único de saúde, cuja a emenda popular fundamentou-se na 8º Conferência Nacional de Saúde, com a participação de 5 mil pessoas, apoiadas por 160 entidades da sociedade, e ainda para emendas sobre participação popular, instituindo alguns instrumentos e mecanismos para viabilizá-la.[10]

Com a eleição de 1988, em que algumas prefeituras passaram ao controle de partidos como o PT, a discussão se acirra, inclusive internamente, envolvendo questões como natureza dos conselhos, competência, composição, iniciativa de criação, relação com o Estado:

“A  questão central dizia respeito a ser ou não o conselho um órgão embrionário de um novo poder, de uma forma de democracia direta, com autonomia em relação ao Estado; a posição ao final prevalecente o concebia como uma das formas de participação visando mudanças na gestão pública e na elaboração de políticas, tendo em vista sua democratização e transparência, portanto, como canal de relação entre Estado e sociedade, espaço de administração de conflitos.”[11]

Quanto ás competência e natureza dos conselhos, ou seja, ao seu caráter decisório ou consultivo, as posições não eram alinhadas à primeira questão, alguns descartando esta dicotomia, preferindo pensar o conselho como espaço de negociação, com decisões partilhadas.[12] Outro afirmavam o caráter consultivo como forma de manter a independência e autonomia dos movimentos em relação ao Estado, não se comprometendo com as decisões resultantes de uma correlação de forças, em geral desfavorável.

Alguns defendiam a natureza deliberativa como forma de constituição de um novo poder num processo de acumulação de forças, outros buscavam a democratização através da formulação de políticas públicas voltadas para os interesses populares.

Esse debate persiste, envolvendo outras questões que se relacionam com o problema da institucionalização de mecanismos que possam garantir a continuidade da participação popular, independente de que o partido esteja no poder. Se os administradores eleitos naquela época tiveram a cautela de não implementar nenhuma das posições em debate e procuraram estimular canais informais, com o decorrer do tempo viram que era necessário fixar regras, procedimentos, ainda que frutos do debate público e baseados nas experiências já desenvolvidas. Como ocorreu com o “orçamento participativo”.

Por outro lado, o processo político desenvolvido a partir de 1984, com a participação organizada de vários segmentos da sociedade, conduziu à instituição de uma série de mecanismos e canais de interlocução entre os quais os Conselhos setoriais, cuja generalização e implementação compulsória a partir do governo federal nos parece bastante problemática.

  Na realidade, o processo envolvia mais que a formalização dos conselhos, implicando o reconhecimento oficial de espaços autônomos de interlocução da sociedade e de formulação de demandas; isso exigia apenas a publicação dos regimentos internos, elaborados e discutidos pelos movimentos e a sua aceitação pela prefeitura como canal de mediação com a população: “Em casos como o de Campinas, o que se pleiteava era a regulamentação do uso da terra, pois a Assembléia do Povo já se constituía como interlocutora legitimada, ainda que sem nenhuma institucionalização.”[13]

Ao lado dessas iniciativas, com a crise do Estado agrava-se a precariedade dos serviços públicos, principalmente na áreas de previdência e saúde. A ampliação das demandas e a crescente mobilização e organização popular levam setores do Estado a uma maior interação com a sociedade, buscando ouvir as reivindicações da população selecionando-as e enquadrando-as institucionalmente, ao mesmo tempo que também modificam, de certo modo, os métodos e concepções tecnocráticas.[14]

São assim incorporadas as representações dos prestadores de serviços, profissionais de saúde e usuários. Elas não têm poder deliberativo porém tematizam as questões de saúde numa perspectiva crítica em relação ao modelo assistencialista vigente, com propostas de reforma do sistema.

Esse processo na área de saúde desemboca na VIII Conferência de Saúde, que em 1986 reúne 5 mil representantes dos diversos segmentos sociais, além dos governamentais. Os delegados foram eleitos a partir de conferências estaduais, que discutiram as questões de saúde:

“…Para essa evolução foi fundamental a experiência, nos anos 80, dos Conselhos e Comissões Interinstitucionais (Conasp, Comissões das AIS, Conselhos de saúde propostos na VIII Conferência Nacional de Saúde), com representações mistas dos diversos segmentos da sociedade e do poder público. Em termos de prática em saúde, representou a defesa do fortalecimento do setor público, da unificação hierarquização, regionalização e descentralização do modelo assistencial, com estímulo à atenção ambulatorial e à participação da sociedade no processo de mudanças. Esses órgãos colegiados permitiram integrar os gestores públicos, regular sua relação com a iniciativa privada e a sociedade, controlar as transferências financeiras e estabelecer a co-gestão dos recursos, além da democratização do controle e avaliação dos serviços. “[15]

A inserção na Constituição de princípios e diretrizes constantes da emenda popular sobre o Sistema Único de Saúde consolidou um processo iniciado bem antes, fruto das pressões de movimentos populares e de articulações de entidades profissionais. E exigiu novas mobilizações para seu detalhamento e posterior implementação, enfrentando interesses de grupos privados, refratários às mudanças e ás diretrizes democratizantes.[16]

Processo semelhante, com resultados um pouco diferentes, deu-se com a área de Educação. Desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1961), estavam previstos o Conselho Federal e os Estaduais, porém com atribuições mais burocráticas e composições elitistas, através de figuras de “notório saber”. A participação de unidades de ensino era concebida com um papel limitado e conservador, no sentido de colaborar com a manutenção dos prédios e funcionamento dos estabelecimentos. Na regulamentação dos dispositivos constitucionais, os movimentos sociais não obtiveram muito êxito, tal a força dos grupos de pressão privatistas.

Em relação às questões do meio ambiente, assistência social, direitos humanos, direitos da criança e do adolescente e moradia, as entidades que apresentaram  propostas democratizantes se defrontam, ainda hoje, não só com a resistência das elites burocráticas, como também com os grupos de interesses contrários, com os quais se buscam discussões e negociações para fazer avançar uma regulação mais democráticas dessas políticas.

No campo da assistência social, a partir de um projeto de lei apresentado na Câmara com sugestões das diversas organizações da sociedade civil, foi possível discutir com o governo e realizar 11 seminários regionais para coletar sugestões. Em parte, elas foram acolhidas na lei afinal promulgada[17], após 5 anos de mobilizações, pressões, negociações.

Esses são exemplos de que se constrói no país uma nova forma de conceber a gestão governamental, não como uma mera formalização de procedimentos a cargo de doutos e técnicos, mais resultantes de um processo contraditório de interlocução entre atores diferenciados, numa pluralidade de espaços públicos. Nesses espaços, interesses e concepções são explicitados, negociações são realizadas em busca de um consenso, ainda que provisório e limitado, com a elaboração de parâmetros mínimos para orientar a ação dos diversos atores.

4. CONSELHOS MUNICIPAIS

“Há 80 anos, os operários e camponeses da Rússia derrotavam o antigo regime e construíam um novo poder, a República dos Conselhos (soviets).

Nós dizemos: outros outubros virão, porque a classe trabalhadora resiste e busca os meios de se recompor, de se erguer* .

4.1) Definição Jurídica:

A Constituição Federal de 1988, regulamentou em seus artigos uma série de reivindicações das organizações populares em seus muitos artigos. A participação popular na elaboração das políticas públicas, através da atuação em Conselhos de gestão, sejam eles, federais, estaduais ou municipais, foi assegurada nos artigos 203 e 204 do texto constitucional que assim prescreve:

“Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivo: I- a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o ampara às crianças e adolescente carentes; III- a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV- a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V- a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência  e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Continua a CF/88 no artigo 204:

“Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social  serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: I- descentralização político administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social; II- participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação de políticas e no controle das ações em todos os níveis.” 

Seguindo a orientação do texto constitucional o legislativo brasileiro passou a regulamentar a implementação dos vários conselhos propostos, em leis especiais, das quais destacamos  o ECA[18], art. 88, inciso II, …a constituição e implementação de Conselhos de Direitos, órgãos deliberativos e controladores das ações (…)” em que está “assegurada a participação popular paritária (…)” nos municípios, Estados e no plano federal. E a lei federal nº 8742 de 7 de dezembro de 1993, que determina que a assistência social deve ser prestada, preferencialmente pela União e pelos municípios.É importante observar que os Conselhos Municipais também estão previstos nas leis orgânicas dos municípios. Para Alexandre Fortes[19] os Conselhos Municipais são:  “órgãos responsáveis pela elaboração, integração e controle das políticas públicas voltadas para a assistência social.”

4.2) Elementos e Características:

Face à diversidade dos conselhos já implantados no país e sobretudo diante da heterogeneidade de situações, principalmente nos municípios, para definirmos o que são conselhos municipais?

Caberia uma sistemática da prática desses mecanismos, tendo em vista possíveis mudanças nos diplomas legais. É também necessária, em termos mais imediatos, a proposição de algumas diretrizes para orientar a atuação dos movimentos e entidades da sociedade civil.[20]

É preciso examinar como se deu a formação dos conselhos que, em nível de municípios, geralmente estão previstos nas Leis Orgânicas. Em muitos casos, sua criação na esfera municipal foi provocada por organizações da sociedade civil, na área de saúde a partir das Conferências Municipais de Saúde, ou até mesmo por projetos de lei de iniciativa popular.

A questão central é saber como se deu o processo de discussão das competências, papel, composição, plano de ação e forma de escolha dos representantes da sociedade.

A determinação do de vincular o repasse de recurso a prazos rígidos levou a que em muitos municípios não houvesse nenhuma mobilização e a escolha dos representantes se fizesse por indicação dos prefeitos. No caso dos Conselhos de Direitos das Crianças e Adolescentes, a pressão e visão formalistas de juizes e promotores não possibilitou maior discussão da sociedade civil, apesar do apoio à sai implantação.

Se é certo que o funcionamento desses conselhos depende muito do seu processo de criação e da participação ativa da sociedade, o fato de existirem em 1993 cerca de 3 mil Conselhos de Saúde e 1834 Conselhos de Direito da Criança cria Condições, se não de um controle social do Estado nessas áreas, pelo menos de uma discussão mais ampla das questões relacionadas com as políticas sociais.

A composição dos Conselhos é definida por lei federal como paritária em relação aos usuários, no caso da área de saúde; nos outros, a paridade não é especificada. Se a paridade for definida em termos de representação de órgãos governamentais e entidades da sociedade, pode tornar-se ilusória, na medida em que entre as entidades da sociedade estão incluídas, além das patronais, algumas que dependem de subvenções do governo e dificilmente tomarão posições independentes.

Por outro lado, as entidades filantrópicas geralmente têm uma tradição geralmente assistencialista, cartorial, conservadora e assumem uma lógica privatista, favorecendo a despolitização das questões. É importante levar em conta esses elementos, não para impedir que essas organizações possam se representar, mas para se ter consciência clara do conjunto de forças sociais favoráveis ou não ao processo  de democratização e publicização das questões que são objeto de competência dos conselhos.

A representatividade na composição do conselho diz respeito não apenas ao aspecto quantitativo, mas à sua capacidade de expressar os interesses do respectivo segmento social, revelada pelo seu engajamento na condução de lutas específicas. Em termos de conjunto, a composição reflete a presença dos diversos atores sociais, não só aqueles tradicionalmente inseridos na estrutura social, mas também as forças emergentes.

É importante também considerar o processo de escolha das representações, levando em conta que, em certos municípios, várias entidades competem pela representação de um mesmo segmento. Deve-se analisar se essas função é atribuída, por exemplo, a congressos ou conferências em que os delegados são eleitos pelos associados das entidades ou se cabe às respectivas diretorias das organizações ou, ainda, se a indicação é efetuada pelo chefe de governo de forma discricionária.[21]

Achamos ser necessário examinar o funcionamento dos conselhos não apenas sob o aspecto burocrático e de realização de reuniões, embora um mínimo de suporte administrativo seja imprescindível.

Importa, ainda, avaliar que ações foram propostas e realizadas, que debates públicos foram promovidos, qual o controle sobre os recursos aplicados e sobre as ações do poder público. Para que o conselho possa ter maior visibilidade na sociedade é preciso examinar seu grau de articulação com os diversos segmentos sociais, em que medida os seus componentes discutem previamente com suas entidades as pautas e proposições das reuniões e como dar a elas conhecimento de suas resoluções.

Apesar do caráter deliberativo formalmente atribuído aos conselhos, deve-se indagar se suas decisões se sintonizam com os interesses da maioria da população, sobretudo dos setores excluídos, ou se apenas referendam as decisões do poder executivo e dos grupos que lhe dão suporte. Precisa também ser analisado de que modo se efetiva o processo decisório, o papel de cada representação na discussão e na iniciativa de proposições.

São conhecidas as dificuldades para que as demandas e interesses dos setores excluídos cheguem até os centros de poder. Os conselhos podem constituir-se num canal para que isso aconteça, dependendo da composição, do maior e do menor poder de articulação entre os próprios representantes dos usuários e da sua capacidade de construir um consenso em torno das questões centrais de seu interesse.

Torna-se necessário acentuar o papel de controle social a ser exercido pelo conselho, entendido não apenas como mera fiscalização dos atos do executivo, mas sobretudo no sentido de avaliação, pela comparação dos dados realizados com parâmetro estabelecidos consensualmente.

Controlar a aplicação dos recursos implica analisar não só a honestidade dos gastos, mas também avaliar seu impacto econômico-social em termos de benefício para o conjunto da população, sua economicidade e oportunidade.

Essa dimensão do papel dos conselhos exige maior visibilidade e transparência das suas ações e dos atos do governo, práticas pouco comuns em nossa tradição político-administrativa. Portanto, pressupõe maior vinculação à sociedade, utilizando para isso mecanismos não institucionais (fóruns, comissões, etc.) além da própria atuação independente das entidades em termos de mobilização, pressão, debate público e interação com os meios de comunicação.      

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como já se observou, multiplicam-se os conselhos em várias áreas e setores. Se por um lado há o aspecto positivo de se tentar contemplar a diversidade de problemáticas que o país enfrenta, é preciso encarar as conseqüências perversas da fragmentação das demandas, com a visão setorial de problemas que estão imbricados numa realidade mais ampla e complexa, que exige a formulação de uma política social mais abrangente.

Esse problema torna-se mais grave ainda nos municípios menores, em que a sociedade é pouco ou nada organizada e os quadros disponíveis  são sobrecarregados com várias representações, além das funções que têm de desempenhar nas suas entidades e da dedicação à própria sobrevivência. Isso leva essas pessoas a uma participação menos qualificada e meramente formal ou à seleção dos espaços onde atuar.

Para contornar o problema da fragmentação o professor Elenaldo Teixeira[22] sugere o  funcionamento de plenárias agregando temáticas, entidades e movimentos, congressos e, principalmente, a realização de ações conjuntas, além de um fluxo contínuo de informações.

O processo de participação institucionalizada através de conselhos enfrenta sérios desafios, que exigem da sociedade muita energia criativa para enfrentá-los. Corre-se o risco do contágio pela “febre conselhista” protagonizada pelo governo, pulverizando a ação do Estado, transferindo seus encargos para a sociedade, via filantropia e/ou privatização.

 Os conselhos podem constituir-se em mecanismos de fortalecimento da sociedade civil e controle social do Estado, mantendo-se a autonomia de ambas as esferas, que têm suas lógicas próprias. Mas a atuação indiscriminada em conselhos, sem ancoragem na mobilização social, com única preocupação de ocupar espaços, pode levar à reprodução de práticas clientelistas e burocráticas.

A idealização do papel dos conselhos  pode criar expectativas exageradas e conduzir  a maiores frustrações. Os recursos públicos destinados às políticas sociais são cada vez mais reduzidos. Impõe-se, pois, aos conselhos, nos diversos níveis, a tarefa crucial de discutir o orçamento público, não apenas o fundo específico do setor, mas as prioridades na distribuição dos recursos.

No caso específico dos municípios. É também necessária a discussão sobre a geração de receitas próprias, ‘já que os tributos de sua competência são ineficientemente arrecadados. Algumas gestões municipais têm demonstrado como essas receitas podem ser ampliadas e como as prioridades podem ser invertidas a partir da participação ativa da sociedade.

A problemática a ser enfrentada pelos conselhos e pela sociedade organizada é por demais complexa e requer maior qualificação da participação, além da priorização de certos espaços que ofereçam maiores potencialidades de transformação das relações sociedade/Estado.

A atuação das ONGs  nesse processo é de vital importância, seja como componentes dos conselhos, seja no papel de asessoria, na capacitação, na sistematização de dados e experiências bem sucedidas dos movimentos e entidades e na formulação de alternativas de políticas públicas. Esse suporte técnico poderá ser demandado também das universidades, que, principalmente em termos de conselhos de saúde, têm prestado significativo apoio.A construção dos conselhos como espaço de interlocução e articulação entre diferentes atores sociais e de controle social do Estado constitui-se, assim, não só num desafio, mas também numa oportunidade no sentido do fortalecimento da sociedade civil e da democratização do Estado.    

 

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Notas
[1] O Programa Comunidade Solidária é um programa social criado no governo Fernando Henrique Cardoso, que tem como objetivo principal o combate a fome no país, através de distribuição de cestas básicas a pessoas carentes.
[2] Este texto foi selecionado como epígrafe deste trabalho, por ter sido uma referência para todo o estudo. A carta do Recife resgata os debates realizados por 300 entidades da sociedade civil e do poder público, realizados no seminário nacional “Para que a participação popular nos governos locais?”, promovido pelo Fórum Nacional de Participação Popular nas Administrações Municipais, em parceria com a Prefeitura do Recife e a SUDENE, em novembro de 1995.
[3] Presidente da Abong (Associação Brasileira de ONG’s).
[4] Idem 3.
[5] TEIXEIRA, Elenaldo Celso, Cadernos Abong.
[6] Idem.
[7] Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
[8] Silveira, 1991.
[9] BRAGA, Saturnino. Governo-Comunidade: socialismo no Rio. RJ, Paz e Terra, 1989.
[10] MICHILES, Carlos e outros. Cidadão constituinte; a saga das emendas populares. RJ, Paz e Terra, 1989.
[11] Ibidem 7.
[12] DANIEL Celso. Gestão local e participação da sociedade. In VILAS-BOAS, Renata (org). SP, Pólis, 1994.
[13] Ibidem 7.
[14] Além dos espaços criados pelos movimentos mais organizados, setores da burocracia estatal, pressionados pelo Movimento Sanitário e de Saúde, criam na administração federal órgãos mistos, de composição paritária, como o CONASP – Conselho Consultivo de Administração de Saúde Previdênciária (1981) e as Comissões Interinstitucionais de Saúde.
[15] NEDRE, Carlos Alberto Pletz, Os Conselhos de Saúde, Cadernos Abong.
[16] Exemplo do jogo de pressões foi o veto ao artigo da Lei Orgânica de Saúde (a de nº 8080), que tratava exatamente da participação da comunidade através da Conferência de Saúde e do Conselho de Saúde e também da necessidade de elaboração de outra lei, afinal sancionada, repondo esse dispositivos (Lei 8142). Seguiu-se todo um esforço das organizações de base para implementação dos conselhos estaduais e municipais, em alguns municípios e Estados, precedidos de ampla discussão em Conferências de Saúde.
[17] Lei nº 8742, de 1993, Lei de Organização da Assistência Social (LOAS).
* Texto comemorativo aos 80 anos da Revolução Russa. 1917 – 1997.
[18] Estatuto da Criança e do Adolescente.
[19] Doutorando em história social do trabalho pela UNICAMP e coordenador do projeto planejamento e avaliação do Instituto Pólis.
[20] Algumas pesquisas já foram realizadas na área de saúde e também sobre experiências localizadas, principalmente em alguns municípios administrados pelo PTe municípios do Estado de São Paulo, além de trabalhos sobre conselhos estaduais (IBAM,1993).
[21] Achamos que alguns critérios poderiam ser formulados entre as próprias entidades, para definição daquelas que deveriam participar e também da forma de escolha mais democrática dos representantes. É mister levar em conta, por exemplo, experiência, capacitação técnica e política, expressão social do segmento, engajamento da organização nas lutas dos seus associados e no processo de democratização. Alguns conselhos têm contemplado na sua composição uma representação do poder legislativo ou do judiciário, o que não é muito recomendável, não só por ser algo imputado como institucional, como pela necessidade de impedir certos tipos de disputa de poder que são comuns em determinados municípios. Outros  conflitos e confrontos em relação às competências do próprio conselho são inevitáveis e podem ser até saudáveis.
[22] Ibidem 7.

Informações Sobre o Autor

Jose Claudio Rocha

Pesquisador permanente do Programa de Pós-Graduação Doutorado Multi-Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMC) e do Programa Mestrado Profissional em Gestão e Tecnologia Aplicada à Educação (GESTEC). É professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), coordenador do Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) e Pró-Reitor de Pesquisa e Ensino de Pós-Graduação da UNEB


Equipe Âmbito Jurídico

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