Resumo: Este trabalho buscou demonstrar que o direito de laje é realidade no Brasil, em especial, nas favelas. Não obstante, é fato social descuidado pelo legislador, que, omisso, deixou de regulamentar tais situações, as quais ficam, assim como os seus titulares, à margem da sociedade. Como reação à indiferença, as camadas populacionais excluídas passam a criar, paralelamente ao Estado, normas a serem aplicadas dentro de seu contexto social, de forma a proporcionar a sua inclusão social. Tais normas paraestatais constituem uma nova ordem jurídica que convive in latere com o que se denomina de ordenamento oficial. As associações locais chegam a, inclusive, criar mecanismos de controle e registro das compra e vendas firmadas pelos seus moradores. Esta situação retrata o pluralismo jurídico, pelo qual, as normas jurídicas não são criadas apenas pelos Estados, mas também por outras instituições que integram a sociedade.
Palavras chaves: Pluralismo jurídico. Direito de Laje. Favelas.
Abstract: This work is intended to demonstrate that the Slab Right is a fact in Brazil, specially in the slums. Therefore, it is a social fact neglected by the legislator, who, omitted, stopped to regulate such situations which stay, like his holders, alongside the society. In reaction to the indifference, the excluders layers of population start to create, in parallel to the State, standards to be applied inside his social context to provide his social inclusion. Such parastate standards constitute a new legal order that coexists in a wide sense with what is called of official ordinance. The local associations come, even, to create mechanisms of control and register of the purchases and sales secured by his residents. This situation shows the legal pluralism, for which the legal standards are not created only by the States, but also by others institutions which integrate the society.
Keywords: Legal pluralism. Slab Rigth. Slums.
Sumário: 1. Introdução; 2. O direito de laje – uma realidade das favelas brasileiras; 2.1. Brevíssimo histórico das favelas brasileiras; 2.2. Favelas e habitação; 2.3. O direito de laje; 2.3.1. Conceito; 2.3.2 Direito de laje como instrumento de acesso ao direito social de moradia; 2.3.3 A falta de legislação estatal adequada à realidade social; 3. O pluralismo jurídico e o direito de laje; 3.1 do monismo ao pluralismo jurídico; 3.1.1 O contexto do surgimento do monismo jurídico; 3.1.2 Uma análise do monismo à luz da teoria Kelseniana; 3.1.3 A crise do monismo e a corrente do pluralismo jurídico; 3.2. Pluralismo; 3.2.1 O direito extra-estatal; 3.2.2 Princípios estruturais; 3.2.3 O respeito à diversidade e a inserção social dos grupos excluídos; 3.3. Pluralismo jurídico e direito de laje; 4. Conclusões.
1 Introdução
As cidades brasileiras se desenvolvem, mas tal crescimento não consegue acompanhar a majoração populacional. Como conseqüência, as camadas de baixa renda acabam se instalando em aglomerados urbanos – locais de exclusão social. Na busca de acesso à moradia, essas pessoas, usando de criatividade típica dos brasileiros, acabam por se adaptar.
Surge, assim, o direito de laje, fato social corriqueiro no Brasil.
Trata-se de situação em que uma pessoa permite que outra construa sobre a laje de seu imóvel já edificado. Certo é que não ocorre apenas no âmbito das favelas brasileiras, mas o presente trabalho é voltado para esta realidade.
O direito de laje é comumente avençado, e, a despeito de ser solução para o problema da moradia, não é tal acontecimento social previsto no ordenamento jurídico brasileiro, o que evidencia um descaso do legislador.
Como reação à indiferença, as camadas populacionais excluídas passam a criar, paralelamente ao Estado, normas a serem aplicadas dentro de seu contexto social, de forma a proporcionar a sua inclusão social. Tais normas paraestatais constituem uma nova ordem jurídica que convive in latere com o que se denomina de ordenamento oficial.
É o que ocorre nas favelas brasileiras: as lajes são negociadas, construídas, as pessoas passam a nela morar, sem que haja qualquer amparo legal para tanto. As associações locais chegam a, inclusive, criar mecanismos de controle e registro das compra e vendas firmadas pelos seus moradores, como é o caso ocorrido na Favela Rio das Pedras, no Rio de Janeiro – a qual será tomada como uma ilustração para o presente trabalho.
O objetivo deste trabalho é demonstrar que o Estado não é a única e exclusiva fonte do Direito, existindo outras fontes legitimadoras, que criam sistemas voltados ao multiculturalismo e ao atendimento das necessidades sociais, como é o caso do Direito de Laje no Brasil, no âmbito das favelas brasileiras.
Para tanto, no capítulo 2 será examinado o direito de laje, com ênfase ao seu contexto nas favelas brasileiras e ao fato de que se trata de solução ao problema habitacional. Ainda neste capítulo, é apreciado o descaso do Estado e a manutenção da exclusão social.
O capítulo 3 versa sobre o pluralismo jurídico. Inicialmente, é apresentada a corrente monista, para a qual o Estado é o único criador de normas jurídicas. Após o exame da crise de tal corrente, é examinado o pluralismo como proposta de solução à exclusão social advinda do monopólio estatal de criação das leis.
Ainda no terceiro capítulo é feita uma relação entre o direito de laje e o pluralismo jurídico, tendo como ponto de partida a situação concreta constatada na Favela Rio das Pedras, no Rio de Janeiro, em que foi criado um Cartório para o registro das compra e vendas de lajes locais.
As informações foram coletadas através da pesquisa bibliográfica e documental. Recorreu-se a acervos públicos e particulares, publicações periódicas, artigos científicos, dicionários, bem como textos relativos ao assunto em sites da Internet.
2 O DIREITO DE LAJE – UMA REALIDADE DAS FAVELAS BRASILEIRAS
As favelas são realidade marcante na sociedade brasileira e estudos aprofundados acerca de sua histórica, seus aspectos sociológicos e antropológicos são, com freqüência, feitos no Brasil, por nacionais e estrangeiros.
Seja pela marginalização, seja pela ausência de políticas públicas capazes de minimizar as diferenças sociais, um número expressivo de pessoas passa a viver em agrupamentos a que se denomina de favelas, por falta de condições de acessarem os demais espaços urbanos.
Objetiva-se, com o presente capítulo, evidenciar o contexto em que está inserido o direito de laje, situação à parte do Estado brasileiro, comumente estabelecida entre os habitantes das favelas como uma forma de viabilizar o acesso ao espaço da cidade, o acesso à moradia.
Sem a pretensão de esgotar o assunto, este capítulo destina-se, inicialmente, a fazer um sucinto exame das favelas brasileiras, apresentando, para ilustrar, algumas estatísticas realizadas por órgãos oficiais nas últimas décadas, que auxiliam a compreender o que ali ocorre.
Após apreciar o contexto em que está inserido, o direito de laje será apreciado, com análise do seu conceito, de suas finalidades, da exclusão deste corriqueiro instituto da legislação estatal brasileira e do caso especial da favela Rio das Pedras, no Rio de Janeiro, em que foi criado um cartório interno para o registro das compra e vendas de laje ali realizados.
2.1 BREVÍSSIMO HISTÓRICO DAS FAVELAS BRASILEIRAS
A história do Brasil registra desde o período de colonização a existência de espaços de segregação, como era o caso das senzalas em relação à casa grande. Os quilombos são também nítidos exemplos destes lugares de exclusão, em que os negros, escapados das fazendas e engenhos, lutavam para sobreviverem.
Com o passar dos anos os espaços de segregação direcionam-se também para o meio urbano.
GARCIA afirma que os ex-escravos e pobres das cidades coloniais passaram por novos desafios com o advento da cidade republicana, a qual foi construída visando os interesses da aristocracia dominante à época[1].
A referida autora aduz que (2009, p. 144):
“Como nas cidades européias estudadas por Engels (1979, 21), os bairros insalubres, tanto em Salvador como no Rio de Janeiro, produziram epidemias de todo tipo […] Em Salvador, por exemplo, “algumas epidemias foram recorrentes e dizimaram muitas pessoas desde 1850 (Fernando & Gomes, 1993, 59)
A capital federal, embora fosse a maior cidade do Brasil em 1900 […] era uma cidade com ruelas estreitas, sujas, cheia de cortiços, onde se amontoava a classe trabalhadora, tal como nas cidades européias no início da Revolução Industrial.”
Traçando um histórico da ocupação da cidade do Rio de Janeiro, CORREA afirma que na primeira década republicana verificava-se falta de política pública apta a solucionar os problemas sociais que ali surgiam. A autora observa que com o fim da escravidão, o número de desempregados e subempregados aumentou, sem que o mercado de trabalho tivesse condições de absorvê-los. Este cenário é agravado com o êxodo rural e o aumento da presença estrangeira no Brasil, influenciando no aumento da população do Rio, que “teve que absorver quase 200 mil novos habitantes na virada do século”. (2008, p. 998)
Segundo PERLMAN, o primeiro registro de uma favela no Rio de Janeiro se deu no recenseamento de 1920, que registrou aglomeração de casas no denominado Morro da Providência, sendo esta organizada por veteranos da Guerra dos Canudos. A quantidade de pessoas instaladas nas favelas, na década de 30 foi significativamente majorada, o que se deveu ao êxodo rural e à escassez de moradia. Ainda nos dizeres de PERLMAN (2002, p. 41), “cerca de um milhão de pessoas moravam no Rio em 1968-69”.
JACINTO e MOREIRA, parafraseando GUIMARÃES, informam que a formação de favelas em Belo Horizonte praticamente coincide com a fundação da capital mineira. Nas duas primeiras décadas de existência de Belo Horizonte, já existiam assentamentos na zona urbana da cidade e o censo realizado em 1912 apontava a precariedade de quase um terço de suas mais de seis mil construções, classificadas como barracos.
Planejada segundo os padrões urbanísticos mais avançados da época, e tendo como finalidade sediar o aparato administrativo do governo, a área prevista para abrigar os operários de Belo Horizonte não era o bastante para atender ao fluxo de trabalhadores. Assim, as invasões se constituíram na solução de moradia da população mais pobre.
Segundo dados do IBGE/2005: de 6,5 milhões de pessoas que vivem no País em aglomerados subnormais, a metade está nos estados de São Paulo (2,07 milhões) e do Rio de Janeiro (1,38 milhão). Dois em cada três desses brasileiros moram nas capitais onde o número de moradores das favelas cresceu 39,3% na década de 1990, passando de 3 milhões para 4,2 milhões.
Também segundo dados do IBGE/2008:
“a existência de favelas é maior nos municípios mais populosos: quando considerado o total de 5.564 municípios brasileiros, cerca de 33% declararam ter favelas; mas, considerando-se aqueles entre 100 mil e 500 mil habitantes, o percentual chega a 84,7% e, dos 37 municípios com população acima de 500 mil habitantes, todos, exceto Cuiabá (MT), informaram a existência de favelas. O percentual de municípios que declararam a existência de favelas é maior nas regiões Norte e Nordeste (41%), enquanto a presença de loteamentos irregulares é mais informada nas regiões Sul (62,4%) e Sudeste (59,0%)”.
As favelas fazem parte do cenário das cidades brasileiras. Basta passar os olhos pelos centros urbanos para que se constate a sua existência.
2.2 FAVELAS E HABITAÇÃO
Segundo RODRIGUES (2003, p. 40), as causas sociais das favelas são as mais variadas possíveis, e, em regra, estão ligadas à falta de moradias suficientes para atender à demanda de crescimento das cidades:
“A favela surge da necessidade do onde e como morar. Se não é possível comprar uma casa pronta, nem terreno onde auto-construir, tem-se que buscar uma solução. Para alguns essa solução é a favela. A favela é a conjugação de vários processos: da expropriação dos pequenos proprietários rurais e da superexploração da força de trabalho no campo, que conduz a sucessivas migrações rural-urbana e também urbana-urbana, principalmente de pequenas e médias para as grandes cidades. É também produto do processo de empobrecimento da classe trabalhadora em seu conjunto.”
Como se colhe do trecho acima transcrito, a favela é uma resposta à insuficiência da capacidade de absorção das cidades em face do aumento populacional destas.
Segundo PERLMAN (2002, p. 32), é provável que nos países em desenvolvimento não se esteja conseguindo o necessário aumento das oportunidades de trabalho, serviços urbanos, infra-estrutura, acomodações e capacidade administrativa, que permita absorver o atual crescimento populacional.
O fato de serem descuidados pelo poder público faz com que tais aglomerados[2], que sempre foram combatidos, também pelo uso da força[3], se proliferem, aumentando, via de conseqüência, a exclusão social.
É a favela a imagem estigmatizada da exclusão social marcada pela pobreza, pela violência, pela marginalização, pela degradação da pessoa humana, e principalmente pelo afastamento do Estado. Ela nasce, cresce e se reproduz a partir da informalidade da forma de habitação, mas que se reflete na exclusão da saúde, da educação, da segurança, do mercado de trabalho, de infra-estrutura básica, da dignidade (CARBONARI).
2.3 O DIREITO DE LAJE
2.3.1 Conceito
O direito de laje – vulgarmente chamado de puxadinho – consiste na cessão da parte superior (laje) de uma construção a terceira pessoa, para que esta edifique outra unidade. Tal situação resulta em duas ou mais unidades distintas, com titulares distintos: uma embaixo e outra, construída sobre a primeira, e assim sucessivamente.
Acerca do direito de laje, CARBONARI assevera que este consiste “no poder de disposição que o proprietário da construção tem sobre o espaço aéreo imediatamente superior à sua construção, e que, pela cultura popular desenvolvida nas favelas, lhe pertence por direito”.
A alienação da laje para que sobre ela outrem possa construir é fato comum nas favelas e subúrbios nacionais[4], basta lançar um olhar sobre a estrutura destes aglomerados que constatamos a verticalização das construções ali existentes. A despeito disso, não é reconhecida pelo ordenamento jurídico pátrio.
CORREA constata que o direito de laje é uma realidade não amparada em lei. Segundo pesquisa de campo por ela realizada na favela de Rio das Pedras, na cidade do Rio de Janeiro, a autora conclui que é o direito de laje instituído através de uma “comercialização de espaço para moradia, que está acima da superfície, como meio indispensável à sobrevivência da população, de seus familiares e da participação na comunidade local”. (CORREA, 2008, p. 1006)
Segundo a referida autora (2008, p. 1009):
“O crescimento vertical se socializou dentro do contexto da própria favela apoiado no ‘direito de laje’. Tal direito é aceito na comunidade, e se atualiza de diversas formas. A mais comum se dá quando um morador primitivo vende à outra pessoa o ‘direito’ de construir moradia sobre a laje de sua casa. Esse ‘direito’ é admitido entre as partes, mesmo quando o ‘contrato’ ocorre em situações especiais, como a do futuro morador primitivo do terreno de superfície, vender [sic] sua ‘laje’, sem ter construído sua casa, ou seja, sem a ‘laje’ estar feita.
Outra conseqüência que decorre do ‘direito de laje’ seria a pluralidade de construções de unidades autônomas, edificadas sobre a laje do morador primitivo […] Essa realidade imobiliária tem grande avanço na ocupação do espaço urbano nas favelas do Rio de Janeiro, manifestando-se, inclusive como uma forma de especulação e significativa circulação de capital nas comunidades.”
A autora registra, ainda, a ocorrência de casos em que é vendida laje ainda inexistente (venda de laje futura). Nestas situações, o vendedor aliena a laje para que terceiro nela construa, todavia, tal laje ainda não foi construída. Com o dinheiro recebido, é que a casa inicial é edificada, para, somente após, o adquirente edificar a sua casa nos termos do contrato.
Esse tipo de situação acaba por gerar renda àqueles que alienam sua laje. Outra justificativa que deve ser considerada é a redução do custo para a aquisição da casa própria, do acesso à moradia, para aquele que adquire o direito de construir sobre a laje, porquanto este não terá que adquirir um terreno para nele edificar.
A construção sobre lajes já existentes é, destarte, um fenômeno corriqueiro, porém a despeito de ser trivial, não é regulamentado no ordenamento jurídico pátrio, ficando caracterizada uma lacuna neste tocante.
2.3.2 Direito de laje como instrumento de acesso ao direito social de moradia
Através do contrato em que transfere o direito de laje, o morador primitivo, que pode ser possuidor, titular de direito real de concessão de uso etc, autoriza ao adquirente construir na laje de seu imóvel. Tem-se, assim, a verticalização dos bens e o aumento de moradias para diversas pessoas.
Não se ambiciona com este trabalho apreciar as condições em que as construções são realizadas[5]. Pretende-se, sim, examinar a relevância do direito de laje, seja porque este é realidade social brasileira, seja porque através do direito de laje oportuniza-se o acesso à moradia, previsto constitucionalmente como direito social fundamental[6].
Certo é que os direitos sociais podem assumir feição prestacional, como também feição de liberdades.
No que tange à moradia, SARLET (2009, p. 282) destaca que esta pode ser vislumbrada como um direito positivo – aí assumiria o enfoque prestacional -, assim também como um direito subjetivo negativo – no sentido de permitirem a oposição a atos contrários à sua concretização, o que ocorre, por exemplo, com a vedação de penhora sobre o bem de família, destinado à moradia.
Não obstante a relevância do aspecto negativo de proteção do direito de moradia, interessa a este trabalho a sua feição positiva, no sentido de que ao Estado compete assegurar positivamente o acesso à moradia, através de normas e medidas.
SARLET (2009, p. 284), sobre os direitos sociais a prestações, aduz que
“não se dirigem à proteção da liberdade e igualdade abstrata, mas sim, como já assinalado alhures, encontram-se intimamente vinculados às tarefas de melhora, distribuição e redistribuição dos recursos existentes, bem como à criação de bens essenciais não disponíveis para todos os que dele necessitem.”
No que tange ao direito à moradia, em seu enfoque prestacional, este poderá ser viabilizado e efetivado tanto por meio de normas específicas[7], quanto através da adoção de prestações materiais, como ocorre com o financiamento para a aquisição de casas próprias. (SARLET, 2009, p. 331)
Seguindo este raciocínio, a previsão legal do direito de laje, com a regulamentação de sua instituição e promoção ao seu acesso, acabaria por promover o acesso à moradia, assegurando ao indivíduo o ingresso ao mínimo existencial.
Por conseguinte, abarcar o direito de laje no ordenamento pátrio seria um meio de efetivação da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental consagrado na Constituição Federal de 1988.
2.3.3 A falta de legislação estatal adequada à realidade social
A despeito de ser uma prática social reiterada, não foi o direito de laje inserido em qualquer diploma legal, resultando em clara dissonância entre os fatos sociais e o direito estatal.
É realidade social brasileira a contratação entre particulares em que o proprietário, o possuidor ou o titular de direito real de concessão de uso aliena a terceiro o direito de construir na laje de seu imóvel. Porém, como já observado, a contratação em apreço não é tratada pelas normas jurídicas em vigor, estando configurado um flagrante descompasso entre o Direito e a realidade. Conseqüência disso é, além da ausência de compatibilidade entre as normas e a vida social, a marginalização de muitas situações constituídas à parte do Direito oficial.
Tal fato resulta no crescimento vertical e desordenado das favelas, o que poderia e deve ser superado através das políticas públicas de desenvolvimento, voltadas à efetivação dignidade da pessoa humana.
Pelo que se percebe neste caso em particular, Direito e realidade, a despeito de relacionados entre si[8], estão em evidente desarmonia, seja porque a produção legislativa não consegue acompanhar os fatos sociais, ou, o que é mais adequado ao caso do direito de laje, por falta de vontade legislativa.
Apreciando o descompasso entre Direito e realidade social, DIAS (2010, p. 26) aduz que:
“Pretende o direito, em tese, abarcar todas as situações fáticas em seu âmbito de regulamentação. Daí a instituição de modelos preestabelecidos de relações jurídicas relevantes a sustentar o mito da completude do ordenamento. Entretanto, a realidade social é dinâmica e multifacetada. Ainda que tente a lei prever todas as situações dignas de tutela, as relações sociais são muito mais ricas e amplas do que é possível conter uma legislação. A moldura dos valores juridicamente relevantes torna-se demasiado estreita para a riqueza dos fatos concretos. A realidade sempre antecede ao Direito, os atos e fatos tornam-se jurídicos a partir do agir das pessoas de modo reiterado. A existência de lacunas no direito é decorrência lógica do sistema e surge no momento da aplicação do direito a um caso sub judice não previsto pela ordem jurídica.”
Segundo FACHIN, a demanda suscitada pela realidade impinge ao Direito uma providência: a de adequar-se às exigências da sociedade, com características plurais, respeitando-se, assim, a diversidade – o indivíduo, enquanto pessoa humana dotada de dignidade, em primeiro lugar. (2000, p. 39)
O déficit legislativo[9] é devido a dois fatores principais. O primeiro diz respeito à dificuldade que o legislador tem de acompanhar a evolução dos fatos sociais – a velocidade em que estes ocorrem – o que aguça a separação entre o jurídico e o real. Há, também, a falta de vontade de legislar. Mesmo diante do clamor da sociedade para que determinados fatos sejam abarcados pelo Direito, deixa-se de atender à realidade, por apatia, inércia, ou mesmo, por resistência.
Como bem destaca MONREAL (1988, p. 24), em alguns casos, o legislador não está disposto a adaptar-se ao curso histórico determinado pela realidade e pelas necessidades sociais. A conseqüência deste descompasso entre o Direito e a realidade acaba por resultar em obstáculo para o progresso social.
No caso do direito de laje, fato social ordinário, o que se tem é a ausência de amparo legal[10], que tem como conseqüência direta a sua marginalização. Seja porque se prega classicamente que os direitos reais são apenas os tipificados em lei e a listagem legal tem o caráter taxativo, seja porque, a despeito de ser fato comum, ficou o legislador inerte, deixando de regulamentar esta situação.
FACHIN (2000, p. 184) destaca que
“À medida que certos comportamentos – espelhados em um fato – geram efeitos jurídicos, tais fatos se impõem perante o Direito, obrigando-o a abrir-se para acolher o que, a rigor, estava na periferia desse mesmo ordenamento jurídico.”
Esta seria uma forma para a solução para o déficit habitacional evidenciado ao longo deste trabalho[11].
3. O PLURALISMO JURÍDICO E O DIREITO DE LAJE
A exata e única conceituação do que seja direito ainda está distante de ser formulada, diante das diversas correntes existentes, que apresentam para este, concepções bastante distintas.
Neste capítulo, procurar-se-á apresentar, em breves linhas, a concepção do direito adotada pela corrente denominada monismo jurídico. A seguir, enfatiza-se a crise enfrentada pelo paradigma então vigente e se passa a examinar a corrente a que se nomeia de pluralismo jurídico, para, ao final, relacioná-lo ao direito de laje.
3.1 DO MONISMO AO PLURALISMO JURÍDICO
3.1.1 O contexto do surgimento do monismo jurídico
A sociedade européia no fim do séc. XI, deixa, gradativamente, a sua estrutura feudal e agrária, em virtude do surgimento das cidades, do desenvolvimento do comércio e da indústria, e do incremento intelectual. O monismo jurídico é decorrência natural da queda do feudalismo, da criação dos Estados unitários, do florescimento do capitalismo e da ascensão da burguesia.
O período feudal era caracterizado por uma multiplicidade de centros internos de poder político, havendo, por conseguinte, uma diversidade de ordenamentos. Tratava-se de uma sociedade estamental, cujos limites de juridicidade e política eram definidos pela propriedade de terras (WOLKMER, 2001a, p. 25-37).
Nos dizeres de WOLKMER (2001a, p. 27), o sistema feudal compreendia “tanto uma descentralização administrativa, quanto uma fragmentação e pluralismo de centros de decisões”.
Tratava-se de sociedade tipicamente plural.
Os costumes, adaptáveis e fluidos por natureza, tiveram grande relevância no antigo direito europeu como um todo (sendo até hoje primordial na Inglaterra). Eram formados espontaneamente, podendo variar de local a local. Na baixa Idade Média, porém, os costumes passaram a sofrer uma série de intervenções.
Segundo narra CAENEGEM (2001, p. 50-65), no citado período, os costumes são reduzidos a termo, atividade a que se chamou de homologação[12] [13].
Percebe-se a evolução da sociedade e do direito europeu ao fim da Idade Média com a nítida tendência de busca do racionalismo – característica que irá marcar o próximo período histórico.
Segundo CAENEGEM (2001, p. 43):
“No fim do século XI, a sociedade européia ocidental finalmente deixou para trás a estrutura feudal e agrária arcaica que caracterizara a alta Idade Média. […] A economia agrícola fechada e essencialmente senhorial foi substituída por uma economia de mercado.”
Não só mudanças estruturais na sociedade ocorreram. Também no âmbito da política e do direito elas podem ser verificadas.
Segundo narra FERRAZ JUNIOR (1994, p. 66-73) na era Moderna tem-se o início do pensamento sistemático racional. O jurista passa a, na busca da convivência pacífica entre os cidadãos, estabelecer leis com caráter formal e genérico.
A partir do Renascimento, ocorre um processo de dessacralização do direito, o qual passa a ser sistematizado pelo Estado. É o que leciona WOLKMER (2001a, p. 40):
“na passagem da estrutura pluralista, policêntrica e complexa ‘dos senhorios de origem feudal’ para uma instância ‘territorial concentrada, unitária e exclusiva’, todo um processo de racionalização da gestão do poder, decorrente das ‘condições’ históricas materiais’ e da secularização utilitária que desloca o controle sócio-político da Igreja para autoridade laica soberana”.
Assim, neste momento, se coloca o Direito como criação exclusiva do Estado. Visava-se, através da legalidade, proporcionar estabilidade e segurança jurídica, de modo a satisfazer aos anseios da nova sociedade que se formava.
A partir do século XIX, o Direito se torna escrito, sendo momento de surgimento das codificações. O Direito é considerado como “um conjunto de normas que valem por força de serem postas pela autoridade constituída e só por força de outra posição podem ser revogadas” (FERRAZ JUNIOR, 1994, p. 75).
Há, destarte, a consagração do pensamento de que somente o Direito Positivo é verdadeiramente Direito. Tal mudança de paradigma se dá objetivando atender às necessidades burguesas, que objetivava maior segurança jurídica, para fins de viabilizar a circulação de riquezas e a promoção da igualdade (naquela oportunidade meramente formal).
Nos dizeres de WOLKMER (2000a, p. 67):
“A representação dogmática do positivismo jurídico que se manifesta através de um rigoroso formalismo normativista com pretensões de ‘ciência’ torna-se o autêntico produto de uma sociedade burguesa solidamente edificada no progresso industrial, técnico e científico. Esse formalismo legal esconde as origens sociais e econômicas da estrutura de poder, harmonizando as relações entre capital e trabalho, e eternizando através das regras de controle, a cultura liberal-individualista dominante.”
Verifica-se a concepção do Direito como o conjunto de “regras dadas (pelo Estado, protetor e repressor)” (FERRAZ JUNIOR, 1994, p. 83) que acaba por promover o individualismo dominante.
Neste momento, tem-se a constituição de uma legalidade dogmática com rígidas pretensões de ciência e a concepção de que o Direito advém apenas do Estado.
3.1.2 Uma análise do monismo à luz da teoria Kelseniana
Tome-se como exemplo de representante da corrente do monismo jurídico, o austríaco Hans Kelsen, que procede à equiparação entre o direito e a norma, considerando apenas norma a estabelecida pelo Estado.
O positivismo kelseniano objetiva atribuir pureza à ciência do direito, afastando do âmbito deste qualquer valor ou comunicação com outras áreas científicas, como a sociologia, a psicologia etc.
Kelsen pretendia demonstrar que a ciência do Direito, para ser pura, deveria estar desvinculada de valores e de questões da seara política. Tanto que, a todo momento, sustenta que não se pode justificar o direito pela moral.
Kelsen (2009, p. 04) sustenta que o ato praticado pelo indivíduo somente passará a ser jurídico acaso haja uma norma que a ele empreste o sentido objetivo. Ou seja, é a norma posta pelo Estado que irá atribuir ao fato uma significação jurídica, posto que “a norma funciona como um esquema de interpretação”.
Para Kelsen (2009, p. 05),
“O Direito […] é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. Com o termo “norma” se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira.”
Destarte, o Direito é equiparado ao sistema de normas que regulam as condutas humanas, impondo-se aos indivíduos como devem se comportar.
Contribuição kelseniana de grande relevo é a idéia de ordenamento jurídico, como um conjunto hierarquizado de normas jurídicas estruturadas na forma de uma pirâmide abstrata, pontuada e dominada pela norma fundamental e pela Constituição do Estado, que subordinam as normas jurídicas hierarquicamente inferiores.
Ou seja, as normas que estão na base da pirâmide encontram seu fundamento de validade nas hierarquicamente superiores exaradas pelo Estado e estas, na denominada norma fundamental.
Frise-se que para os monistas, as normas jurídicas são apenas as exaradas pelo Estado, seja pelo legislativo (normas gerais), seja pelo judiciário (normas individuais).
CAIRO JUNIOR (2001, p. 13) enfatiza que
“A escola do monismo jurídico reconhece a existência de normas paraestatais, todavia as mesmas só recebem o cunho de coercitibilidade com ratificação do Estado através de um ato formal – a lei – que o admite expressamente, ou seja, se não houver um pronunciamento favorável por parte do Estado, não haverá falar-se em norma jurídica.”
Esta concepção tradicional do sistema jurídico desconsidera a diversidade histórica e social, podendo-se afirmar que se trata de uma visão extremamente limitada.
Daí o advento de sua crise.
3.1.3 A crise do monismo e a corrente do pluralismo jurídico
Como visto alhures, o monismo jurídico é decorrência das modificações sociais ocorridas na passagem do feudalismo ao capitalismo, período em que, em nome da segurança jurídica e do individualismo, consolida-se o que WOLKMER (2001b, p. 15) denomina de “normativismo estatal positivista”.
Tal modelo, por ser embasado apenas na igualdade formal e por dar ênfase ao individualismo, acaba sendo injusto e ineficaz, resultando da desigualdade material e exclusão de várias camadas, que não fazem parte do que se costuma denominar de classe dominante.
Como enfatiza BONAVIDES (p. 197) “temos uma sociedade extremamente carente de estrutura de sobrevivência, à qual é imposta uma regulação que tem como princípio a igualdade de tratamento”.
Soma-se a esta desigualdade social a crise do capitalismo monopolista, resultado do processo de globalização mundial, dos quais decorre o desejo de uma nova ordem. Configura-se, assim, séria crise do paradigma da legalidade estatal moderna, que não consegue responder às demandas e aos anseios da sociedade.
Em reposta a esta crise, verifica-se o advento de corrente filosófica, jurídica e sociológica[14] que nega o Estado como única e exclusiva fonte do Direito. Segundo esta corrente, o Estado persiste sendo fonte criadora do Direito, mas não é a única, haja vista que existem outras fontes legitimadoras.
Como ressalta LUMIA (2003, 93), “o fato de o ordenamento jurídico ser constituído de um conjunto de normas cuja validade provém de uma única norma fundamental não obsta a existência de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos”, porquanto unidade não significa unicidade.
Trata-se do pluralismo, para o qual, o Direito não é restrito à lei posta pelo Estado.
3.2 PLURALISMO
3.2.1 O direito extra-estatal
Como visto, o paradigma tradicional que considera o Estado como o único criador das normas jurídicas está em crise.
Como observa CAIRO JUNIOR (2001, 11):
“Efetivamente, é difícil sustentar uma posição simplista segundo a qual o Estado é o único ditador de normas de conduta. A sociedade e seus grupos também são fonte criadora de normas, principalmente quando o Estado se mostra insuficiente ou ausente para cumprir com as obrigações decorrentes do pacto social.”
O pluralismo jurídico opõe-se ao monismo, na medida em que aponta para uma perspectiva plural, múltipla, que reconhece a existência de elementos heterogêneos e a diversidade nos campos sociais e tendo em vista que considera que além do Estado, há outros sujeitos/ instituições que criam o Direito.
A pluralidade de ordenamento jurídico não decorre, necessariamente, de uma multiplicidade de Estados, mas também de uma pluralidade de ordenamentos criados por instituições que se colocam acima – no caso do direito internacional – ou ao lado do Estado – que é o que releva ao presente estudo, em que se propõe o estudo do direito de laje nas favelas brasileiras.
CAMPILONGO (2000, p. 119) assevera que a criação das normas jurídicas não mais tem procedência unitária estatal, embasada nas ficções do príncipe e da soberania popular. Ao lado da legislação estatal, a sociedade passa a produzir novos meios de obtenção de consenso.
Segundo WOLKMER (2000a, p. 119-120), em um espaço público descentralizado, cujo traço característico é a pluralidade, a juridicidade surge de processos sociais auto-reguláveis, decorrentes de grupos, comunidades locais, associações, que privilegia determinado grupo comunitário, buscando defender os seus interesses.
Para SANTOS (2000, p. 151), o poder circula em diversas esferas da sociedade sendo enfatizado que a despeito de existirem outros planos, merecem ser destacados como espaços paralelos de produção de normas, o contexto doméstico (patriarcado), o contexto da produção (exploração), o contexto da cidadania (dominação) e o contexto mundial (relações de troca desigual). Ao primeiro corresponderia o direito doméstico; ao segundo, o direito de produção; ao terceiro, o direito territorial e o último corresponde ao direito sistêmico.
Nos dizeres do autor português (2000, p. 151),
“Cada contexto é um espaço e uma rede de relações dotadas de uma marca específica de intersubjetividade que lhes é conferida pelas características dos vários elementos que o constituem. Esses elementos são: a unidade da prática social, a forma institucional, o mecanismo do poder, a forma de direito e o modo de racionalidade.”
Diante da pluralidade de esferas de poder, reconhecem-se as diferentes instâncias de juridicidade, alheias ao Estado.
3.2.2 Princípios estruturais
WOLKMER (2000a, p. 174-183) elenca como princípios valorativos do pluralismo a autonomia, a descentralização, a participação, o localismo, a diversidade e a tolerância Neste trabalho, prefere-se, porém, denominá-los de princípios estruturais, por se entender que não expressam valores, mas são elementos da própria essência desta corrente.
A autonomia diz respeito aos poderes e à liberdade de articulação e mobilização que os movimentos coletivos ou as associações detêm. “A ‘autonomia’ se manifesta não só diante do poder do Estado mas no próprio interior dos vários interesses particulares, setoriais e coletivos”. (WOLKMER, 2000a, p. 175)
A autonomia é, portanto, princípio informador do pluralismo relacionado ao poder que emana das instituições independentes do poder governamental.
Por descentralização entende-se o deslocamento do poder político-administrativo para outras esferas, visando a redistribuição de competências e fortalecimento das identidades locais. O exercício do poder é distinto do que ocorre no monismo – poder de forma unitária. No pluralismo, o poder é exercido de forma fragmentada, descentralizada.
Por sua vez, o localismo tem por objetivo favorecer as condições que permitam a produção direta, fortalecimento regional das ações coletivas. (WOLKMER, 2000a, p. 175-176). Trata-se, assim, da autonomia conferida ao poder local, descentralizado.
A diversidade é pertinente ao respeito à diferença. “O sistema pluralista provoca a difusão, cria uma normalidade estruturada na proliferação das diferenças, dos dissensos e dos confrontos”. (WOLKMER, 2000a, p. 176)
O pluralismo está relacionado à “multiplicidade dos possíveis” e as desigualdades sociais verificadas são reflexos da própria diversidade.
Diretamente relacionada à diversidade, tem-se a tolerância, pelo qual enfatiza-se o respeito à diferença, à autodeterminação que o indivíduo possui. Nos dizeres de WOLKMER (2000a, p. 177) a tolerância implica “o bom-senso e a pré-disposição de aceitar uma vida social materializada pela diversidade de crenças e pelo dissenso de manifestações coletivas”, tratando-se da maior virtude do pluralismo democrático.
É de se enfatizar, finalmente, que o pluralismo jurídico não corresponde ao uso alternativo do Direito, mas a um processo de construção de outras formas jurídicas, possibilitando que o Direito seja identificado com setores majoritários da sociedade. (WOLKMER, 2000b, p. 21)
3.2.3 O respeito à diversidade e a inserção social dos grupos excluídos
O pluralismo jurídico opõe-se ao monismo, considerando a historicidade e os fatores sociais como conformadores do campo jurídico. Voltado para a fluidez da sociedade atual, visa a proporcionar condições de igualdade e de inserção dos excluídos pelo Direito estatal.
Neste sentido, o pluralismo é comumente vislumbrado como um meio de afastar o direito das classes dominantes, tratando-se de projeto emancipador e de respeito à diversidade, apto a propiciar a democracia.
WOLKMER (2010, p. 41) aduz que numa sociedade formada de comunidades e culturas diversas, a democracia propiciada pelo pluralismo expressa o reconhecimento da diferença, dos valores coletivos pertinentes a cada grupo e a cada comunidade.
Os sujeitos passam de meros expectadores a conformadores da ordem jurídica, promovendo a sua inclusão no meio social
dalaneze (2010, p. 79) assevera que
“O pluralismo […] permite regulações alternativas, a utilização do informal ao lado do formal, o reconhecimento de outras racionalidades, e não somente a científica, uma lógica que englobe flexibilidade, admissão do risco e da complexidade. […] Nesse sentido, o pluralismo jurídico pode ser porta-voz de denúncias, contestações, rupturas e implementações de novos direitos. O pluralismos jurídico reconhece a complexidade, fruto de vários sistemas jurídicos concomitantes, cada um com sua própria racionalidade; por isso, é preciso admitir a idéia de convivência com crises, riscos e rupturas, pois a simples admissão dessas cirscunstâncias e também a existência de outras fontes de produção de normas jurídicas já permitem que o direito se aproxime dos grupos sociais e inicie, de forma participativa e socializada, a composição dos conflitos. Eis aí o fundamento de sua legitimidade.” (sem grifos no original)
Como visto, a evolução do capitalismo repercutiu diretamente no contexto social e econômico das sociedades, de modo a evidenciar as desigualdades entre os indivíduos e a resultar na exclusão de determinadas camadas sociais. Como conseqüência, tem-se a criação de diversos centros de conformação do Direito, visando à redução das ditas desigualdades, propiciando a inserção dos excluídos e o seu acesso à democracia.
3.3 Pluralismo jurídico e direito de laje
As favelas são uma realidade das cidades brasileiras, sendo também, o retrato da marginalidade.
Os seus habitantes, visando a proporcionar melhores condições de vida, o desenvolvimento de sua comunidade e a promover a paz, acabam por instituir associações que atuam paralelamente ao Estado, estabelecendo normas e criando mecanismos de ordem de convivência social.
Examinando o contexto das favelas brasileiras, especificamente, Pasárgada, no Rio de Janeiro, SANTOS (1988, p. 14) chega a afirmar que “a associação de moradores transformou-se, assim, gradualmente num fórum jurídico, à volta do qual se foi desenvolvendo uma prática e um discurso jurídicos – o direito de Pasárgada”.
Continua o autor português destacando que:
“O Direito de Pasárgada é um direito paralelo não oficial, cobrindo uma interacção jurídica muito intensa à margem do sistema jurídico estatal (o direito do asfalto, como lhe chamam os moradores das favelas, por ser direito que vigora apenas nas zonas urbanizadas e, portanto, com pavimentos asfaltados” (1988, 14).
Destarte, é comumente criada uma ordem jurídica paralela à estatal.
A título de exemplo, cite-se a situação verificada na favela Rio das Pedras, no Rio de Janeiro: como alternativa a ausência de previsão no ordenamento oficial das compra e vendas de lajes, a Associação da Favela Rio das Pedras, no Rio de Janeiro criou um Cartório interno em que são registrados estes negócios jurídicos firmados entre os moradores locais.
É o que informa CORREA (2008, p. 1010) no trecho abaixo transcrito:
“Outra peculiaridade encontrada em Rio das Pedras é que a administração das demandas resultantes de tipos de moradia é feita pela Associação de Moradores, onde ocorre o registro de seus nomes, endereços e das "propriedades" que possuem. Na medida em que as aquisições imobiliárias são registradas, constituem “propriedades” de seus "donos". No modelo estatal, quando o registro oficial da escritura de compra e venda é levado ao Registro Geral de Imóveis (RGI), configura a aquisição do direito de propriedade e sua conseqüente transferência. De maneira análoga, em Rio das Pedras existe uma espécie de "cartório" que faz o registro dos contratos de compra e venda de terrenos de superfície e de lajes.
Essa modalidade de registro de aquisição de propriedade é completamente legitimada na comunidade. […]
As funções da Associação de Moradores de Rio das Pedras não se limitam apenas a reconhecer as "aquisições" de terrenos e de lajes, mas ela também assume papel judicializador (sic) nos conflitos que decorrem dessas aquisições. […]”
Como dito alhures, a compra e venda da laje é corriqueiramente firmada pelos moradores das favelas nacionais como uma opção de acesso ao espaço urbano e à moradia, consagrada constitucionalmente como um direito fundamental.
A despeito de sua relevância social (e mesmo sendo um importante instrumento de acesso à moradia), o legislador nacional permanece silente, inexistindo no direito positivo estatal qualquer norma para a sua regulamentação.
Diante deste silêncio estatal, os moradores das favelas, como se verifica no exemplo acima transcrito, acabam por criar normas próprias, a serem aplicadas pelo seu grupo social, de forma a prestigiar a sua autonomia e a sua inclusão social.
Trata-se, assim, de uma alternativa ao normativismo oficial e à inércia do Estado de inserir tal realidade social no “direito do asfalto”.
4. CONCLUSÃO
No presente trabalho foi apresentada uma breve análise sobre o direito de laje e sua relação com o pluralismo jurídico.
Iniciou-se o artigo com a análise das favelas brasileiras posto ser no âmbito desta muitas vezes realizadas as compra e vendas de laje. Buscou-se demonstrar a conjuntura do direito de laje, que acaba por ser uma solução das camadas carentes da população para acesso à moradia.
Ficou evidenciada a relevância deste fato social, haja vista que o direito de laje é um instrumento em favor do direito fundamental à moradia, o qual, por também assumir um enfoque prestacional, deve ser buscado pelo Estado, através de medidas positivas como a criação de normas aptas a efetivamente viabilizá-los.
Conclui-se que a omissão legislativa quanto ao direito de laje é descaso que acaba por alhear tais fatos sociais, por deixá-los na informalidade, inviabilizando o progresso social e a efetivação do acesso à moradia digna.
Destarte, diante da passividade e da indiferença do Estado em não regular tal situação, os grupos sociais criam normas aplicáveis entre si, normas estas não exaradas pelo Estado.
A corrente do pluralismo jurídico, baseada na pluralidade e no respeito à diferença, entende que o Estado não é o único criador das normas jurídicas, estando atenta à realidade social e à insuficiência do Estado como criador exclusivo do Direito.
Através da criação de ordens jurídicas paralelas ao Estado, oportuniza-se às camadas menos favorecidas o ingresso ao espaço da cidade e à moradia, o acesso à própria dignidade humana, que é direito de todos, que deveria ser promovido pelo Estado, mas não o é.
Mestranda em Relações Sociais e Novos Direitos, pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
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