O Poder de Polícia da FUNAI e a utilização de arma de fogo por seus servidores

Resumo: O presente artigo tem por finalidade investigar qual é a extensão do poder de polícia da FUNAI e, ainda, se os servidores desse ente público estariam autorizados a utilizar arma de fogo no exercício de tal mister.

Palavras-chave: poder de polícia –  arma de fogo – atividade de risco –  previsão legal

Sumário: Introdução; 1. O Poder de Polícia da FUNAI; 2. Da periculosidade das atividades desempenhadas pelos servidores da FUNAI e da impossibilidade de utilização de arma de fogo para defesa pessoal; 3. Justificando a divergência de tratamento entre os servidores da FUNAI e do IBAMA; Conclusões

Introdução

Em que pese a extensa carta de direitos assegurados aos povos indígenas pela Constituição Federal de 1988 e pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a promoção e a proteção de seus interesses, tradicionalmente, tem se mostrado bastante conflituosa. Não são raras as notícias de confrontos envolvendo índios e não-índios, especialmente no que diz respeito a questões fundiárias.

Como forma de disciplinar e proteger os interesses desses povos, a Lei nº 5. 371, de 05 de dezembro de 1967, criou a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, atribuindo-lhe o “exercício do poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio”.

Por sua vez, o Decreto nº 7.056, de 28 de Dezembro de 2009, que reestruturou a entidade, trouxe em seu texto a confirmação do exercício do poder de polícia como uma das finalidades da FUNAI.

Considerando a gravidade de alguns confrontos e o risco sofrido pelos servidores da FUNAI, o presente artigo tem por finalidade investigar qual a extensão desse poder e se os servidores dessa autarquia estariam autorizados a utilizar arma de fogo no exercício de seu mister.

1. O Poder de Polícia da FUNAI

Segundo Di Pietro[1], “poder de polícia é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”. De forma semelhante, Carvalho Filho[2] o conceitua como “a prerrogativa de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade”.

No exercício de referido poder, a Administração Pública regulamenta as leis e controla a sua aplicação, seja preventivamente –  por meio de ordens, notificações, licenças e autorizações – ou repressivamente – mediante a imposição de medidas coercitivas, tais como a dissolução de reunião, a interdição de atividade, apreensão de mercadorias deterioradas etc.

Como todas as atividades da Administração Pública, o poder de polícia está adstrito ao princípio da legalidade. É dizer, seus atos não podem contrariar a letra da lei e, mais do que isso, a Administração só pode agir quando a lei a autorize expressamente. Assim, aos particulares somente se pode impor obrigações ou proibições que estão previstas em lei ou ato normativo.

Sobre o tema, vale citar as precisas palavras de Sundfeld, para quem, "inexiste poder para a Administração Pública que não seja concedido pela lei”[3]. Noutros termos, “o que ela não concede expressamente, nega-lhe implicitamente"[4].

No caso da FUNAI, observa-se que o poder de polícia lhe foi expressamente atribuído pelo art. 1º, VII, da Lei nº 5.371, de 05 de dezembro de 1967, que atribuiu poder de polícia da FUNAI:

“Art. 1º Fica o Governo Federal autorizado a instituir uma fundação, com patrimônio próprio e personalidade jurídica de direito privado, nos termos da lei civil denominada "Fundação Nacional do Índio", com as seguintes finalidades:(…)
VII – exercitar o poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio
”. (Grifou-se).

O dispositivo acima foi regulamentado pelo art. 1º, incisos I a V, da Instrução Normativa nº 005/PRES, de 27 de outubro de 2006, que estabelece as medidas de polícia passíveis de serem tomadas por esta Fundação, observe-se:

“Art. 1º – Compete à Funai exercer o poder de polícia na defesa e proteção dos índios e suas comunidades, bem como de sua cultura, organização social, costumes, línguas, crenças, tradições, terras e patrimônio, material e imaterial, podendo:

I – interditar, por prazo determinado, prorrogável, as terras indígenas, para proteção do território e das comunidades indígenas que o habitam;

II – restringir a entrada de terceiros nas terras indígenas e delas retirá-los se houver evidência de prejuízo ou risco para as comunidades indígenas que as habitam e seu patrimônio;

III – apreender veículos, bens e objetos de pessoas que estejam explorando as riquezas naturais existentes nas terras indígenas ou violando direitos e patrimônios indígenas;

IV – adentrar propriedades particulares e ocupações irregularmente instaladas em terras indígenas a fim de realizar levantamento, laudos e vistorias em qualquer etapa do procedimento de identificação e demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas;

V – interditar obras e suspender atividades que coloquem em risco a vida, saúde, cultura e crenças dos povos indígenas e aquelas que afetem direta ou indiretamente seu habitat, meio ambiente e terras.” (Grifou-se).

Como se vê, o poder de polícia não se confunde com a atividade de segurança pública e, tampouco, com a atividade desempenhada pela polícia judiciária. Nos dizeres de Maria Sylvia zanella Di Pietro, “a primeira [polícia administrativa] se rege pelo Direito Administrativo, incidindo sobre bens, direitos ou atividades; a segunda [polícia judiciária], pelo direito processual penal, incidindo sobre pessoas[5]” (Grifou-se).

A propósito, o art. 144 da Constituição Federal dispõe que a segurança pública –  dever do Estado, direito e responsabilidade de todos – é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares.

Não por outra razão, o art. 5º da Instrução Normativa supra mencionada dispõe que a FUNAI poderá solicitar aos órgãos de segurança pública a cooperação necessária, quando as atividades necessárias à proteção das comunidades indígenas forem próprias da competência dos órgãos de segurança, observe-se:

“Art. 5º. A Funai poderá solicitar aos órgãos de segurança pública, especialmente, à Polícia Federal, Forças Armadas e auxiliares, a cooperação necessária à proteção das comunidades indígenas, sua integridade física e moral e seu patrimônio, quando as atividades necessárias a essa proteção forem próprias da competência dos órgãos de segurança”.

Diante dessas considerações, impõe-se concluir que o poder de polícia atribuído à FUNAI não autoriza a utilização de arma de fogo como instrumento de trabalho, por ausência de previsão legal.

2. Da periculosidade das atividades e da impossibilidade de utilização de arma de fogo para defesa pessoal

Por outro lado, não se pode ignorar o perigo inerente às atividades dos servidores da daquela autarquia que, frequentemente, são instados a apaziguar graves conflitos entre índios, madeireiros, garimpeiros e fazendeiros. Neste caso, poder-se-ia indagar sobre a possibilidade de se conferir porte de arma a esses servidores, não como instrumento profissional, mas sim como item de defesa pessoal.

A resposta a esta indagação também há de ser negativa. É que a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, não estendeu o porte de arma aos servidores da FUNAI, senão vejamos:

“Art. 6o É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para:

I – os integrantes das Forças Armadas;

II – os integrantes de órgãos referidos nos incisos do caput do art. 144 da Constituição Federal;

III – os integrantes das guardas municipais das capitais dos Estados e dos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei;

IV – os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de 50.000 (cinqüenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em serviço; (Redação dada pela Lei nº 10.867, de 2004)

V – os agentes operacionais da Agência Brasileira de Inteligência e os agentes do Departamento de Segurança do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República;

VI – os integrantes dos órgãos policiais referidos no art. 51, IV, e no art. 52, XIII, da Constituição Federal;

VII – os integrantes do quadro efetivo dos agentes e guardas prisionais, os integrantes das escoltas de presos e as guardas portuárias;

VIII – as empresas de segurança privada e de transporte de valores constituídas, nos termos desta Lei;

IX – para os integrantes das entidades de desporto legalmente constituídas, cujas atividades esportivas demandem o uso de armas de fogo, na forma do regulamento desta Lei, observando-se, no que couber, a legislação ambiental.

X – integrantes das Carreiras de Auditoria da Receita Federal do Brasil e de Auditoria-Fiscal do Trabalho, cargos de Auditor-Fiscal e Analista Tributário.”

Muito embora o rol acima não seja taxativo – já que o caput do dispositivo prevê a possibilidade de a legislação específica autorizar o porte de arma de fogo a outras categorias – o fato é que, até a presente data não há qualquer norma que permita a utilização de armas pelos servidores da FUNAI.

Além de não haver previsão legal para tanto, os servidores dessa autarquia não são treinados para manusear tais artefatos, podendo causar danos a terceiros. Esta situação acarretaria prejuízos não apenas às vítimas, mas também ao Estado – que seria obrigado a indenizá-las – e, em última análise, ao próprio servidor, que seria responsabilizado criminal, administrativa e civilmente.

3. Justificando a divergência de tratamento entre os servidores da FUNAI e do IBAMA

Assim como alguns servidores da FUNAI, os fiscais do IBAMA desempenham atividades de fiscalização consideradas perigosas e arriscadas. No entanto, os servidores da autarquia ambiental podem portar arma de fogo, inclusive ostensivamente, consoante conclusão exarada no parecer n. 194/2012 – CONEP/PFE-IBAMA-SEDE/PGF/AGU, de 28 de maio de 2012[6]. O que justificaria a divergência de tratamento entre os servidores dessas entidades?

A resposta para a indagação acima consiste no fato de que o porte de arma para os servidores do IBAMA encontra expressa previsão legal. Com efeito, o art. 6º da Lei n. 10.826, de 22 de dezembro de 2003, regulamentado pelo art. 34 do Decreto n. 5.123, de 1º de junho de 2004, previu a possibilidade de a legislação específica autorizar o porte de arma de fogo para outras pessoas além daquelas enumeradas em seus incisos.

A respeito do tema, convém lembrar que o Código Florestal revogado (Lei n. 4.771/1965) previa o porte de arma aos “funcionários florestais”.

“Art. 24. Os funcionários florestais, no exercício de suas funções, são equiparados aos agentes de segurança pública, sendo-lhes assegurado o porte de armas.”

 De forma semelhante, o art. 26 da Lei n. 5.197/1967 estendeu tal prerrogativa aos fiscais de caça, observe-se;

“Art. 26. Todos os funcionários, no exercício da fiscalização a caça, são equiparados aos agentes de segurança pública, sendo-lhe assegurado o porte de armas”. 

Apesar de o novo Código Florestal ter revogado a Lei n. 4.771/1965 e não ter previsto o porte de arma para servidores do IBAMA, o art. 26 acima transcrito permanece em vigor, podendo-se concluir que os servidores desta autarquia continuam exercendo a prerrogativa ora em discussão.

Essa foi a conclusão manifestada pelo parecer exarado pela Advocacia-Geral da União, acima mencionado[7], confira-se;

22. não é o que se espera, contudo, do Projeto de Lei do novo Código Florestal (PL 1876/1999), que, apesar de não definitivamente aprovado, parece pretender revogar o art. 24 da Lei n. 4.771/1964. Caso a simples revogação se confirme, ter-se-á, na futura Lei, apenas uma não previsão de porte de arma aos agentes do IBAMA, permanecendo, contudo, em vigor Legislação que prevê e regulamenta o uso do armamento pelos fiscais ambientais(LEei n. 5.197/967, Lei n. 10.816/2003, Decreto n. 5.123/24 e Portaria IBAMA n. 11/2009). (Grifou-se).

Ante o exposto, impende concluir que, apesar de as atividades desempenhadas por alguns servidores da FUNAI acarretarem riscos à vida e à integridade física, – assim como aquelas exercidas pelos fiscais do IBAMA – o legislador atribuiu o porte de arma apenas a estes últimos.

A título elucidativo, vale consignar que o art. 38 da Portaria IBAMA n. 11, de 10 de junho de 2009, que aprovou o Regulamento Interno da Fiscalização – RIF, exige do fiscal a comprovação de habilidade e de capacidade técnica do portador da arma, a serem reconhecidas pelo Departamento de Polícia Federal, verbis:

“Art. 38. O porte de armas e fogo, aprovado pelo DIPRO e emitido pela CGFIS, será concedido em caráter precário, pessoal e intransferível, com validade de até cinco anos, ao Agente Ambiental Federal, mediante:

I – comprovada aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestada em laudo conclusivo fornecido por psicólogo credenciado junto ao Departamento de Polícia Federal – DPF;

II – comprovada capacitação técnica em manuseio e uso de armas de fogo;

III- declaração pessoal de não estar respondendo por crime;

IV – parecer conclusivo produzido pela COIN acerca de sua conveniência.”

Pois bem. Se, pelo prisma substancial, a situação dos servidores das citadas autarquias mereceria tratamento equivalente, pelo prisma da legalidade, apenas a legislação do IBAMA respalda a utilização de armas de fogo por seus servidores.

Conclusão

Pelas razões acima alinhavadas, conclui-se que o poder de polícia atribuído à Administração não se confunde com atividade de segurança pública. Ademais, a periculosidade de determinada atividade, por si só, não autoriza a concessão do porte de arma, prerrogativa esta que só deve ser usufruída pelas pessoas expressamente designadas pela legislação. Assim, os servidores da FUNAI não podem utilizar de armamentos de fogo ou adquirir munições, a pretexto de exercer o seu poder de polícia, por ausência de previsão legal.

 

Referências
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo. 15ª edição. São Paulo: Atlas, 2003.
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. 1ª edição, 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003.
Parecer n. 194/2012 – CONEP/PFE-IBAMA-SEDE/PGF/AGU, de 28 de maio de 2012, Disponível em <http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateTexto.aspx?id Conteudo=174742&id_site=1514>, Acessado em: 26 de novembro de 2013.
Notas:
[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 15ª edição, Ed. Atlas, São Paulo, 2003, p. 111.
[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15ª edição, Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 64.
[3] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. 1ª edição, 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 29.
[4] Idem, p. 29.
[5]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 15ª edição, Ed. Atlas, São Paulo, 2003, p. 112.
[7] Apesar de o parecer em referência ter sido elaborado antes da aprovação do novo Código Florestal, suas conclusões permanecem válidas.

Informações Sobre o Autor

Beatriz Monzillo de Almeida

Procuradora Federal. Pós-graduação em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Graduação em Direito pela Universidade de Brasília – UnB.


Equipe Âmbito Jurídico

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