Resumo: Este artigo tem como objetivo fundamental analisar o posicionamento vacilante do STF quanto à admissibilidade da reclamação constitucional por violação ao efeito vinculante de precedente oriundo de controle abstrato de constitucionalidade, diferenciando-o da coisa julgada erga omnes e concluindo pelas possíveis posições a serem adotadas pelo STF.
Palavras-chave: precedente judicial; eficácia vinculante; ratio decidendi; teoria da transcendência dos motivos determinantes; controle de constitucionalidade; coisa julgada erga omnes; reclamação.
Abstract: This article aims to analyze the variability of the STF statements regarding the admissibility of the Reclamação Constitucional due to violation of the precedent’s binding effect established in the abstract constitutional review, distinguishing it from the erga omnes effects of the res judicata and concluding towards the possible positions to be adopted by the STF.
Keywords: judicial precedent; binding effect; ratio decidendi; constitutional review; erga omnes effects of the res judicata.
Sumário: Introdução. – 1. A coisa julgada erga omnes formada em controle abstrato de constitucionalidade: 1.1. Considerações gerais; 1.2. Limites objetivos da coisa julgada material; 1.3. Limites subjetivos da coisa julgada material e controle abstrato de constitucionalidade: a coisa julgada erga omnes. – 2. Eficácia vinculante do precedente: 2.1 Considerações gerais; 2.2. Eficácia vinculante no direito inglês: 2.2.1. Eficácia horizontal e vertical; 2.2.2. Ratio decidendi e obiter dictum; 2.3. Eficácia vinculante no direito alemão: 2.3.1. Considerações gerais; 2.3.2. Limites subjetivos do efeito vinculante; 2.3.3. Limites objetivos do efeito vinculante. – 3. Diferença entre a coisa julgada erga omnes e a eficácia vinculante do precedente. – 4. As decisões tomadas em controle abstrato de constitucionalidade e o papel da reclamação constitucional. – 5. O posicionamento vacilante do STF: 5.1. O posicionamento do STF quanto ao cabimento de reclamação constitucional por violação à eficácia vinculante dos precedentes oriundos de controle abstrato de constitucionalidade; 5.2. A coisa julgada material da ADPF 130/DF; 5.3. Reclamação constitucional, julgamento da ADPF 130/DF e o posicionamento vacilante do STF. – 6. Perspectivas dadas pelo CPC/2015 – Conclusão. – Referências.
INTRODUÇÃO
O controle abstrato de constitucionalidade, após a CF/88, ganhou espaço no cenário jurídico brasileiro, o que passou pela ampliação do rol dos legitimados para a propositura das ações correspondentes e desembocou numa detalhada regulamentação, atualmente encontrada na CF e nas Leis Federais de n. 9.868/99 e 9.882/99.
Frente à importância dessa modalidade de controle de constitucionalidade, o ordenamento jurídico brasileiro conferiu “eficácia contra todos e efeito vinculante” às decisões de mérito tomadas nestas demandas, ao passo que estabeleceu a reclamação constitucional como via judicial apta à preservação da autoridade das decisões tomadas pelo STF nestes casos.
Diante deste cenário, este artigo busca compreender o alcance dos institutos da eficácia contra todos (coisa julgada erga omnes) e do efeito vinculante, sobretudo em sede controle abstrato de constitucionalidade, para, por fim, diferenciá-los.
Fixadas estas premissas, passa-se ao estudo do papel da reclamação constitucional e do tratamento incoerente que o STF tem dado à matéria, em especial à admissibilidade da reclamação constitucional por violação ao efeito vinculante do precedente oriundo de controle abstrato de constitucionalidade.
Ao concluir pela incongruência dos posicionamentos do STF, chega-se ao impasse, sendo apresentadas duas possíveis alternativas condizentes com a teoria dos precedentes judiciais.
Com relação à legislação utilizada neste artigo, faz-se necessário um esclarecimento introdutório. Considerando que o objetivo do trabalho é analisar o posicionamento do STF e que as decisões apresentadas foram proferidas na vigência do CPC/1973, esta é a legislação tomada como base para a fixação dos conceitos básicos, sobretudo os dos limites da coisa julgada. No entanto, ao final, são tecidos alguns comentários sobre as perspectivas proporcionadas pelo CPC/2015.
1. A COISA JULGADA ERGA OMNES FORMADA EM CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE
1.1. Considerações gerais
O ponto de partida do desenvolvimento deste artigo reside na definição dos limites subjetivos e objetivos da coisa julgada material, chegando-se, por fim, ao conceito de coisa julgada erga omnes.
Quando se questionam os limites objetivos da coisa julgada material, busca-se responder ao seguinte problema: qual parcela da decisão judicial produz tais efeitos?
Já quando a coisa julgada é vista sob o prisma dos seus limites subjetivos, o questionamento é outro: quem está sujeito a tal efeito, só as partes processuais ou também é possível que terceiros sejam alcançados?
1.2. Limites objetivos da coisa julgada material
A resposta aos questionamentos sobre os limites objetivos da coisa julgada material, para os fins deste artigo, exige conclusões sobre alguns pontos: a) os elementos de uma decisão judicial e os seus conceitos; b) o dispositivo da decisão de mérito tomada em sede de controle abstrato de constitucionalidade; c) os elementos da decisão que fazem coisa julgada material.
Como sugeria o art. 458 do CPC/1973, a sentença era composta de relatório, fundamentação e dispositivo. O primeiro elemento – relatório – consistia no “espelho resumido e racional dos autos e do modo como o processo se desenvolveu”[1]. O segundo era a motivação, onde eram resolvidas as questões de fato e de direito, como indicava o art. 458, II, do CPC/1973. O terceiro elemento era o que, neste momento, merece maior atenção.
O dispositivo era caracterizado como a parte da decisão na qual o magistrado estabelecia um preceito concreto e imperativo que regeria a demanda trazida ao Poder Judiciário[2], conclusão que poderia ou não versar sobre o mérito, isto é, acerca do próprio pedido feito pela parte.
Podia-se afirmar que, numa decisão judicial que resolvesse o mérito, o dispositivo era a resposta dada ao pedido formulado pelo autor, num juízo de procedência ou improcedência[3].
Considerando-se o conceito de pretensão como exigência da subordinação de interesse alheio ao próprio[4] e que o pedido a representa[5], é possível concluir que, numa decisão de mérito, o dispositivo punha fim a este conflito de interesses, regulando a situação jurídica dos envolvidos e indicando quem deve se subordinar[6].
Partindo de uma classificação ternária das ações e, por consequência, das decisões de procedência, as sentenças podem ser distinguidas, segundo o seu conteúdo, em: a) condenatórias, quando reconhecem direito a uma prestação; b) constitutivas, quando certificam um direito potestativo e extinguem, alteram ou criam uma situação jurídica; c) meramente declaratórias, quando põem fim a uma crise de certeza, simplesmente certificando a existência ou inexistência de uma relação jurídica[7].
Considerando que os pedidos formulados se encaixam em uma destas três categorias, pode-se afirmar que o dispositivo tem como conteúdo um preceito condenatório, constitutivo ou meramente declaratório.
Com relação às demandas de controle abstrato de constitucionalidade, há controvérsia específica acerca do conteúdo da sentença que julga inconstitucional determinado ato (declaratório ou constitutivo negativo). Atualmente, prevalece na doutrina e na jurisprudência a ideia de que a sentença que julga procedente ADI ou improcedente ADC é meramente declaratória, já que o ato impugnado seria nulo e que o juízo seria de mera certificação dessa situação jurídica preexistente[8]. Independentemente da visão que se adote, devem ser fixados o pedido e o dispositivo em uma ação de controle abstrato de constitucionalidade.
Ao ajuizar uma ADI, ADC ou ADPF, o legitimado deve formular pedido expresso de “declaração” de inconstitucionalidade/constitucionalidade ou de não recepção do objeto de controle, este último nos casos de normas anteriores à CF, impugnáveis mediante ADPF[9]. São estes, então, os possíveis pedidos formulados em sede de controle abstrato de constitucionalidade e que compõem o objeto litigioso do processo.
De acordo com os conceitos trabalhados neste tópico, é possível concluir que é sobre algum desses possíveis pedidos que trata o dispositivo da decisão tomada em sede de controle abstrato.
Assim, numa ADI cujo pedido é a declaração de inconstitucionalidade de dada lei federal, o acórdão que julgar o mérito conterá um relatório, uma fundamentação e, no dispositivo, um preceito que definirá a constitucionalidade ou inconstitucionalidade daquela lei em específico[10].
Entender que o dispositivo envolve apenas o ato normativo ou a lei impugnada é essencial para a boa compreensão do restante do trabalho, em especial quando passar-se à diferenciação entre a coisa julgada erga omnes e a eficácia vinculante do precedente.
Com relação à parcela da decisão que fazia coisa julgada material, os arts. 468 e 469 do CPC/1973 indicavam a clara opção legislativa por somente atribuir os efeitos da coisa julgada material à parte dispositiva (desde que resolvesse o mérito)[11], não gozando da referida imutabilidade os juízos sobre os fatos e demais motivos apresentados, ainda que determinantes para a decisão[12].
Desta forma, na vigência do CPC/1973, era possível extrair três conclusões sobre os limites objetivos da coisa julgada material formada em controle abstrato de constitucionalidade: a) no sistema brasileiro, somente o preceito estabelecido no dispositivo produzia os efeitos da coisa julgada material; b) numa decisão de mérito, o dispositivo representava a resposta ao pedido formulado pelo autor; c) em ADI, ADC ou ADPF, o dispositivo estabelece um preceito sobre a constitucionalidade ou compatibilidade do ato normativo ou lei impugnada em específico.
1.3. Limites subjetivos da coisa julgada material e controle abstrato de constitucionalidade: a coisa julgada erga omnes
Com relação aos limites subjetivos, o CPC/1973 trazia como regra a coisa julgada inter partes, isto é, somente eram atingidos pelos efeitos da decisão de mérito aqueles que participassem do processo, não sendo prejudicados direitos de terceiros[13], salvo algumas exceções, como o adquirente de coisa litigiosa (art. 42, CPC/1973).
Assim, a sentença de mérito (declaratória, constitutiva ou condenatória), a princípio, só resolvia o conflito de interesses entre as partes, ou seja, só tutelava os direitos daqueles envolvidos na demanda.
Esta regulação da coisa julgada material, aplicável à grande maioria dos casos, não foi eleita pelo constituinte e pelo legislador para algumas demandas específicas. Para tais hipóteses, os limites da coisa julgada foram ampliados, adotando-se o regime da coisa julgada erga omnes, que alcançava a todos, independentemente de terem ou não participado do processo[14].
Nos casos da coisa julgada erga omnes, portanto, a decisão de mérito (declaratória, constitutiva ou condenatória) efetivamente tutela o direito de todos e regula as suas situações jurídicas, tornando-se indiscutível.
Ao tratar do controle abstrato de constitucionalidade, o legislador e o constituinte foram expressos ao impor a “eficácia contra todos”, nos termos do art. 102, §2º, da CF[15], do art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868/99[16], e do art. 10, §3º, da Lei n. 9.882/99[17].
Para os fins deste artigo, é suficiente fixar a premissa: nas decisões tomadas em controle abstrato de constitucionalidade, todos os jurisdicionados (limite subjetivo) ficam sujeitos ao dispositivo (limite objetivo) da coisa julgada material.
2. EFICÁCIA VINCULANTE DO PRECEDENTE
2.1. Considerações gerais
A eficácia vinculante dos precedentes judiciais envolve a obrigatoriedade de certos sujeitos em obedecer à interpretação do direito dada por determinados órgãos judiciais ao apreciarem casos concretos, aplicando-a a demandas similares.
Para os fins deste artigo, o tema envolve dois pontos básicos: a) os destinatários desse dever; b) a extensão da vinculação, isto é, a regra jurídica que deve ser seguida.
Quando se trata da eficácia vinculante dos precedentes judiciais, é possível dizer que há dois ordenamentos jurídicos que, ao tratarem do tema, merecem maior destaque: o inglês e o alemão, analisados nos tópicos que se seguem.
2.2. Eficácia vinculante no direito inglês
2.2.1. Eficácia horizontal e vertical
Neste ponto, são estudados os destinatários da eficácia vinculante, isto é, definem-se aqueles que, segundo uma teoria dos precedentes judiciais, estão obrigados a seguir a norma jurídica oriunda de uma decisão judicial.
A eficácia vertical está relacionada à vinculação dos tribunais inferiores aos precedentes criados pelos tribunais que lhes são superiores. Essa é, segundo Rupert Cross e J. W. Harris, a primeira regra do precedente no direito inglês[18].
Esta obrigatoriedade de ordem hierárquica é uma exigência lógica de um sistema de precedentes, pois a distribuição de competências dentro do Poder Judiciário (recursais ou originárias), a atribuição de função interpretativa ao órgão superior (como, no Brasil, ao STF e ao STJ em questões constitucionais e de legislação federal, respectivamente) e a busca pela uniformidade de entendimento só fazem sentido quando os órgãos inferiores estão subordinados aos posicionamentos adotados por aqueles que lhes são superiores.
A obediência à interpretação dada pelos tribunais superiores preserva a isonomia, na medida em que impede que tribunais de mesma esfera tratem diferentemente casos similares, mas consagra principalmente as garantias de duração razoável do processo e do acesso à justiça, pois dispensa que a parte maneje mais um recurso vertical para que, somente após o seu processamento, ela tenha acesso à interpretação pacificada nas instâncias superiores.
Outra regra básica[19] de um sistema de precedentes diz respeito à eficácia horizontal, que consiste na exigência lógica de que um tribunal seja coerente e se vincule aos seus próprios precedentes.
A eficácia horizontal está muito ligada à proteção da segurança jurídica e da isonomia, pois busca inibir uma jurisprudência imprevisível, confere coerência aos posicionamentos dos tribunais e permite tratar casos similares de forma parecida.
Com relação aos destinatários da eficácia vinculante, pode-se dizer, portanto, que ela corresponde à obrigatoriedade imposta aos órgãos judiciais em respeitar os precedentes dos tribunais que lhes são superiores, ainda que contrários à sua convicção particular, e em obedecer às suas próprias interpretações, evitando mudanças repentinas e instabilidade interna.
Estas duas facetas da eficácia vinculante dos precedentes judiciais se complementam e se destinam a dar maior confiança ao Poder Judiciário, pois, além de inibir incoerência entre os posicionamentos adotados pelas diversas instâncias do Poder – eficácia vertical -, também exigem que um tribunal, que luta para que os seus inferiores respeitem os seus precedentes, vincule-se aos seus entendimentos e não os modifique sem razão relevante.
2.2.2. A ratio decidendi e o obiter dictum
Definidos os possíveis destinatários do dever de obediência, passa-se ao estudo daquilo que é objeto da vinculação, ou seja, da regra jurídica que deve ser obedecida pelos órgãos inferiores (eficácia vertical) ou pelo próprio responsável pelo precedente (eficácia horizontal).
Antes mesmo do estudo dos conceitos de ratio decidendi e de obiter dictum, é preciso pontuar uma premissa básica: somente a ratio decidendi tem efeitos vinculantes[20].
O magistrado, para decidir um caso, enfrenta questões de fato e de direito[21], ou seja, para se chegar à solução da demanda (parte dispositiva), devem ser analisadas, na fundamentação, estas questões[22].
Nesse cenário, ressalte-se que somente a parcela da decisão judicial sobre matéria de direito pode ser considerada como precedente[23], isto é, não se qualificam como precedentes[24] os posicionamentos judiciais que decidam controvérsias fáticas, somente aqueles que resolvem os efeitos que podem ser extraídos de cenário fático considerado incontroverso.
É preciso compreender que o magistrado, ao julgar, pode (e às vezes é obrigado) a formular diversas regras jurídicas, algumas indispensáveis e outras prescindíveis à conclusão contida no dispositivo.
Diante deste cenário, o direito inglês trabalha com dois tipos de regras jurídicas criadas por uma decisão judicial: ratio decidendi e obiter dictum, conceitos que são mutuamente excludentes, isto é, é considerado ratio decidendi aquilo que não for obiter dictum e vice-versa.
Neste artigo, adota-se o conceito dado por Rupert Cross e J. W. Harris, segundo o qual a ratio decidendi pode ser definida como qualquer regra de direito implícita ou explicitamente tratada pelo magistrado como passo necessário à sua tomada de decisão, considerando-se a sua linha de raciocínio ou uma parte da sua instrução para o júri[25].
Por exclusão, toda regra de direito que não tenha sido tratada, implícita ou explicitamente, pelo magistrado como passo necessário à sua tomada de decisão, seria considerada obiter dictum, o que abarcaria as considerações hipotéticas sobre como se resolveria caso diverso do ligado ao processo. O obiter dictum, como o dito, é uma regra jurídica criada por decisão judicial que não goza de eficácia vinculante.
Conclui-se este tópico relembrando, portanto, que somente a ratio decidendi tem efeitos vinculantes.
2.3. A eficácia vinculante no direito alemão
2.3.1. Considerações gerais
Ainda sob a vigência da Constituição de Weimar, alguns autores alemães passaram a defender que, no âmbito da jurisdição estatal, a chamada força de lei não se limitava apenas àquilo que foi efetivamente julgado, mas também impedia a aplicação de normas de conteúdo idêntico ao daquela que foi afastada, ainda que não tenham sido objeto de decisão, em virtude da eficácia geral[26].
A doutrina, à época, não era consensual quanto ao alcance da expressão força de lei, isto é, não havia concordância quanto à abrangência somente à parte dispositiva ou sua extensão aos fundamentos determinantes da decisão, sendo possível afirmar que parcela dominante defendia a limitação ao dispositivo[27].
A Lei Fundamental de Bonn, datada de 1949, não tratou do efeito vinculante e apenas garantiu eficácia erga omnes às decisões da Corte Constitucional alemã[28].
O reconhecimento expresso do efeito vinculante das decisões tomadas pela Corte Constitucional somente veio com a Lei Orgânica da Corte Constitucional alemã, de 1951, que consagrou o instituto no seu §31, (1)[29].
2.3.2. Limites subjetivos do efeito vinculante
Tal qual o feito no tópico anterior, o estudo do efeito vinculante começa pela definição dos seus destinatários, ou seja, pela identificação daqueles que estão sujeitos a esta eficácia.
De acordo com a Lei da Corte Constitucional alemã, o efeito vinculante das suas decisões de mérito atinge os demais órgãos constitucionais federais (Presidente da República, Governo Federal, Parlamento Federal, Conselho Federal) e estaduais, os tribunais e as autoridades administrativas federais e estaduais, abrangendo também as municipais[30].
Dessa enumeração, percebe-se que, ao contrário do direito inglês, as decisões da Corte Constitucional alemã não gozam da chamada eficácia vinculante horizontal, isto é, a Corte Constitucional não está vinculada aos seus próprios precedentes, podendo adotar posição diversa em caso similar. Assim, o órgão só deve respeito à coisa julgada material (parte dispositiva), podendo, em casos futuros, privilegiar entendimento contrário aos fundamentos do paradigma[31].
2.3.3. Limites objetivos do efeito vinculante
Os limites objetivos do efeito vinculante, à semelhança do que foi visto quando da análise do direito inglês, envolvem a apuração de qual parcela da decisão possui este efeito.
A discussão começa de um ponto básico e já analisado: o efeito vinculante é restrito à parte dispositiva ou alcança também a fundamentação?
O histórico narrado permite concluir que o legislador alemão teve o cuidado de diferenciar o instituto da força de lei, que envolve a obediência à parte dispositiva, do efeito vinculante das decisões de mérito tomadas pela Corte Constitucional alemã, conferindo a elas uma eficácia transcendente[32].
Discute-se, ainda, quais as considerações da motivação que gozam do efeito vinculante, isto é, se só os fundamentos determinantes para o dispositivo produzem este efeito ou se as considerações marginais (obiter dictum) também têm esta aptidão.
Com relação a este tema, a Corte Constitucional alemã tem entendimento no sentido de que somente transcendem o caso concreto os fundamentos determinantes, que devem ser observados nos casos futuros[33].
Gilmar Ferreira Mendes ainda menciona proposta de Klaus Vogel, segundo o qual a eficácia vinculante, de fato, transcenderia o dispositivo e alcançaria a “norma decisória concreta”, que consistiria na ideia jurídica subjacente ao dispositivo com aptidão para aplicação em casos similares[34].
Pode-se concluir, portanto, que o direito alemão trabalha com a ideia da transcendência dos motivos determinantes da decisão, fundamentação que passa a ser de observância obrigatória por todos aqueles destinatários da eficácia vinculante (limites subjetivos).
3. DIFERENÇA ENTRE A COISA JULGADA ERGA OMNES E A EFICÁCIA VINCULANTE DO PRECEDENTE
É possível afirmar que a eficácia erga omnes da coisa julgada e o efeito vinculante do precedente judicial devem ser tratados, nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes, como “institutos afins, mas distintos”[35].
A diferenciação entre tais institutos parte de uma ideia basilar: ao decidir o caso concreto, o magistrado cria duas normas jurídicas: a que efetivamente resolve a demanda e a que lhe serve de suporte[36].
A primeira delas – a que resolve a demanda – corresponde à parte dispositiva, é apta à formação da coisa julgada material, como o visto, e se destina à regulação controvérsia levada ao Poder Judiciário.
Já a segunda espécie é a norma que sustenta a parte dispositiva, isto é, são as normas jurídicas formuladas na fundamentação com aptidão generalizante e que servem de suporte para a conclusão individual à qual chega o magistrado: o dispositivo.
Pode-se dizer, então, que esta norma jurídica de segunda espécie compõe a ratio decidendi ou os motivos determinantes da decisão judicial.
Quando se analisa, por exemplo, a constitucionalidade de uma lei baiana, de 2015, sobre direito eleitoral, se está diante de uma crise de certeza quanto à compatibilidade daquela legislação com o art. 22, I e parágrafo único, da CF.
É sobre esta controvérsia que o STF, em sede de controle abstrato (ADI ou ADC, no caso), seria chamado a decidir efetivamente: esta lei estadual é constitucional?
Ao decidir esse caso, o STF certamente utilizaria como fundamento o art. 22, I e parágrafo único, CF, e se valeria, provavelmente, da seguinte premissa: compete privativamente à União legislar sobre direito eleitoral e, na ausência de autorização em lei complementar, é inconstitucional lei estadual que trate da matéria.
Perceba-se que esta premissa pode ser reformulada para ficar ainda mais claro o seu caráter de norma jurídica com aptidão generalizante: toda lei estadual sobre direito eleitoral que não tiver autorização prevista em lei complementar é inconstitucional, em virtude da ofensa ao art. 22, I e parágrafo único, da CF.
Fixado este fundamento, o STF certamente chegaria a um acórdão, de caráter declaratório ou constitutivo negativo, dependendo da corrente que se adote, com o seguinte dispositivo: a lei baiana em questão é inconstitucional.
Como o analisado no início deste trabalho, a eficácia erga omnes de uma decisão judicial está relacionada ao seu dispositivo.
No caso de uma norma declarada inconstitucional em sede de controle abstrato de normas, a eficácia erga omnes elimina a crise de certeza[37] quanto à vigência daquela norma, de sorte que o dispositivo, alcançando a todos, faz com que ela não seja mais aplicada a ninguém.
Todos estes atingidos, em virtude da eficácia erga omnes, têm a sua situação jurídica efetivamente decidida, ainda que não tenham, autonomamente, buscado o Poder Judiciário[38].
A eficácia vinculante do precedente atua de maneira diversa.
Como o visto, a ratio decidendi e os motivos determinantes estão ligados às razões utilizadas pelos julgadores para decidir certa demanda.
No exemplo dado, o efeito vinculante obrigaria os seus destinatários a chegar à mesma conclusão quando o cenário fático apresentasse: a) lei estadual sobre direito eleitoral; b) ausência de autorização em lei complementar. Conclusão diversa desobedeceria à norma jurídica criada no caso paradigma, e, por óbvio, a ratio decidendi ou os seus motivos determinantes.
Veja-se, portanto, que o efeito vinculante do precedente se desprende do ato específico cuja constitucionalidade foi analisada (objeto da eficácia erga omnes) e se direciona à aplicação do mesmo entendimento a casos similares[39].
Não se pode, por consequência, ter como correto o entendimento de Teori Albino Zavascki, que, ao diferenciar a coisa julgada erga omnes e o efeito vinculante, afirma que aquela se refere à tutela do direito de todos os destinatários da norma (tal qual o defendido neste artigo) e que esta equivale à correspondente submissão das autoridades (Poder Judiciário e Administração Pública) com atribuição para aplicar a norma questionada[40].
A submissão destas autoridades com relação à norma questionada é exigência da coisa julgada erga omnes, já que o dispositivo alcança a todos, inclusive as autoridades públicas. O efeito vinculante, como se viu, se desprende da norma especificamente questionada e se propõe a resolver casos similares ao paradigma, que envolvam outros atos, diferentes do questionado.
Também não é possível, como faz Teori Albino Zavascki, caracterizar o efeito vinculante pela admissibilidade de reclamação constitucional para a sua preservação[41], tema abordado no tópico seguinte. Há duas razões para tanto: a) esta via processual serve tanto à preservação da coisa julgada erga omnes quanto da eficácia vinculante; b) não é possível caracterizar um instituto pela via processual apta a tutelá-lo: o efeito vinculante tem significado próprio, como o visto acima, e a via processual correspondente é apenas uma questão de política legislativa, não interferindo no seu conteúdo.
Repita-se, então, uma conclusão essencial à compreensão deste trabalho: a eficácia jurídica erga omnes está ligada ao dispositivo (ao que foi efetivamente decidido no caso concreto), enquanto o efeito vinculante se prende à ratio decidendi ou aos motivos determinantes, institutos relacionados à motivação utilizada no caso paradigmático, tornando obrigatória a aplicação do mesmo entendimento a casos similares.
4. AS DECISÕES TOMADAS EM CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE E O PAPEL DA RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL
O art. 102, §2º, da CF, o art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868/99, e o art. 10, §3º, da Lei n. 9.882/99 definem que as decisões tomadas em controle abstrato de constitucionalidade têm efeito vinculante e eficácia contra todos.
Com relação aos limites subjetivos do efeito vinculante no direito brasileiro, o art. 102, §2º da CF, tratando da ADI e da ADC, define que são alcançados os “demais órgãos do Poder Judiciário” e a “administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”, enquanto o art. 10, §3º da Lei n. 9.882/99, sobre a ADPF, utiliza expressão mais genérica: “demais órgãos do Poder Público”.
Já os limites objetivos do efeito vinculante no direito brasileiro serão analisados mais adiante, já que não havia uma clara opção legal entre os modelos inglês e alemão, cabendo à jurisprudência tratar do assunto.
É possível afirmar, portanto, que o constituinte e o legislador optaram expressamente por prever dois institutos diferentes relacionados ao controle abstrato de constitucionalidade: a eficácia contra todos (erga omnes) e o efeito vinculante[42].
A mera atribuição destes efeitos não seria suficiente para regular a matéria a contento: era preciso estabelecer uma via que levasse rapidamente a conhecimento do STF eventual desrespeito às suas decisões.
Nesse contexto, o constituinte elegeu a reclamação constitucional como a via idônea para tanto, estabelecendo que ela é cabível para garantir a autoridade das decisões do STF[43].
A Lei n. 9.882/99, que trata da ADPF, foi ainda mais precisa e, em seu art. 13, definiu que cabe reclamação constitucional contra ato que contrariar a decisão do STF[44], que goza de eficácia contra todos e efeito vinculante, nos termos do art. 10, §3º da mesma lei.
Fixe-se, então, a premissa de que, a princípio, o constituinte e o legislador estabeleceram que a reclamação constitucional era o instrumento adequado para garantir a autoridade das decisões do STF e combater ato judicial ou administrativo que violasse decisão tomada em sede de controle abstrato de normas.
5. O POSICIONAMENTO VACILANTE DO STF
5.1. O posicionamento do STF quanto ao cabimento de reclamação constitucional por violação à eficácia vinculante dos precedentes oriundos de controle abstrato de constitucionalidade
Para os fins deste tópico e de acordo com o analisado ao longo do trabalho, devem ser relembradas e fixadas três premissas: a) a CF, a Lei n. 9.868/99 e a Lei n. 9.882/99 determinam que as decisões tomadas em controle abstrato de constitucionalidade têm efeito vinculante e eficácia contra todos; b) a eficácia contra todos (efeito erga omnes) é instituto jurídico diverso do efeito vinculante; c) a reclamação constitucional é, a princípio, a via adequada para combater ato judicial ou da Administração Pública que vá de encontro às decisões tomadas em sede de controle abstrato de constitucionalidade.
Da combinação dessas premissas, é inevitável questionar: é admissível reclamação constitucional contra decisão judicial que viola a eficácia vinculante do precedente oriundo de controle abstrato de constitucionalidade?
Tome-se um exemplo para elucidar o problema: imagine-se que o Estado da Bahia promulgou uma lei sobre usucapião, definindo o prazo de 2 anos para a aquisição da propriedade de bem imóvel. Esta lei é objeto de ADI e o STF a declara inconstitucional, sob o fundamento de que lei estadual que versa sobre direito civil viola o art. 22, I e parágrafo único, da CF.
Tempos depois, o Estado do Rio Grande do Norte edita outra lei estadual sobre a aquisição de propriedade de imóvel por usucapião, estabelecendo prazo menor do que o exigido pelo Código Civil. Determinado indivíduo é demandado e, em primeiro grau, é declarada a aquisição da propriedade por usucapião por parte do autor, segundo o prazo estabelecido na lei potiguar. O problema é: esse réu pode se valer de reclamação constitucional para cassar a sentença de primeiro grau que violou a fundamentação (ratio decidendi ou os motivos determinantes) da decisão tomada pelo STF no julgamento da ADI da lei baiana?
A discussão sobre a eficácia vinculante do precedente oriundo de controle abstrato de constitucionalidade ganhou corpo, no âmbito do STF, com o julgamento da Rcl 1987/DF, sob a relatoria do Ministro Maurício Corrêa[45].
O ato impugnado na oportunidade era de autoria da Presidente do TRT da 10ª Região, que determinou o sequestro de verbas públicas para pagamento de precatório trabalhista, em virtude da ausência de quitação tempestiva.
O reclamante sustentou que a única hipótese permitida de sequestro de verbas para quitação de precatórios era a preterição na ordem de pagamento e que a superveniência da EC 30/2000 não alterou a regulamentação da matéria. Para justificar o cabimento da reclamação constitucional, o reclamante afirmou haver violação do decidido na ADI 1662-SP[46].
Na ADI 1662-SP, por sua vez, o STF declarou inconstitucional em parte a Instrução Normativa 11/97 do TST, entendendo como inválidos os dispositivos que, regulando a expedição de precatórios trabalhistas, equiparava outras hipóteses à de preterição na ordem de pagamentos, permitindo, portanto, o sequestro de verbas públicas para essas novas situações.
Entre o ajuizamento da ADI 1662-SP (1997) pelo então governador de São Paulo e o julgamento de mérito (sessão de 30/08/2001), houve a promulgação da EC 30/2000, que alterou algumas regras referentes ao precatório.
Diante deste novo cenário jurídico, o MPF sustentou ter ocorrido a perda superveniente do objeto da demanda, questão que deveria ser analisada preliminarmente ao mérito.
No julgamento de mérito, o plenário do STF, para declarar a inconstitucionalidade dos itens III e XIII da Instrução Normativa 11/97 do TST (parte dispositiva, apta à formação da coisa julgada material com efeitos erga omnes, portanto), afastou a preliminar suscitada pelo MPF, sob o argumento de que a EC 30/2000 não alterou o regramento específico da matéria, e, no mérito, fundamentou a decisão na tese de que o constituinte foi específico ao fixar a única hipótese de sequestro de verbas públicas para pagamento de precatórios: a preterição na ordem de pagamentos, sendo inconstitucional a aplicação da medida em outras hipóteses.
Diante do resolvido na ADI 1662-SP, o Ministro Maurício Corrêa, ao proferir seu voto na Rcl 1987/DF, entendeu que qualquer outro ato judicial ou administrativo que determinasse o sequestro de verbas públicas para pagamento de precatório que extrapolasse a hipótese da preterição na ordem de pagamento violaria o decidido na ADI 1.662-SP, cujo dispositivo, repita-se, relacionava-se apenas à Instrução Normativa 11/97 do TST.
Em seu voto, o relator chegou a mencionar expressões como “conteúdo essencial” e “motivos determinantes” para conhecer da reclamação e julgá-la procedente.
Bastante elucidativo é o voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, que defendeu a aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes, argumentando que o “efeito vinculante das decisões não pode estar limitado à sua parte dispositiva, devendo, também, considerar os chamados ‘fundamentos determinantes’”.
A discussão acerca da eficácia vinculante dos precedentes oriundos de decisão em controle abstrato de constitucionalidade foi introduzida no STF, portanto, a partir da teoria da transcendência dos motivos determinantes, de origem alemã, fato que muito se deve à influência do direito alemão nos estudos do Ministro Gilmar Mendes[47].
Por fim, no que diz respeito à Rcl 1987/DF, quanto à admissibilidade da reclamação constitucional, houve divergência dos Ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Carlos Britto. Admitida a reclamação constitucional, o Ministro Marco Aurélio foi o único a apresentar divergência quanto ao mérito. Por maioria, portanto, foi admitida e julgada procedente a Rcl 1987/DF.
Para além do julgamento de mérito da reclamação constitucional em questão, o importante, para este trabalho, é a admissibilidade da reclamação constitucional como meio hábil à cassação de ato judicial ou administrativo que viole o precedente oriundo de decisão tomada em sede de controle abstrato de constitucionalidade.
Reconhecer se, no caso concreto, houve violação à anterior decisão do STF é questão de mérito de cada uma das reclamações constitucionais e, por isso, demandaria trabalhos específicos de acordo com a matéria. O problema que envolve este artigo, repita-se, é o da admissibilidade da reclamação constitucional.
Apesar de ter sido inicialmente aceita[48], a teoria da transcendência dos motivos determinantes e, por consequência, a eficácia vinculante do precedente, para fins de cabimento da reclamação constitucional, foram perdendo espaço na jurisprudência do STF, sendo possível dizer que, atualmente, prevalece o entendimento de que não é admissível a reclamação constitucional que visa combater ato judicial ou administrativo que viole os motivos determinantes da decisão tomada em sede de controle abstrato de constitucionalidade[49]–[50].
Há alguns precedentes do STF[51] que são expressos ao exigir uma identidade material entre o ato impugnado (ou fundamento do ato impugnado) e a decisão paradigma, isto é, o STF, para admitir a reclamação constitucional, exige que o ato declarado inconstitucional ou incompatível com a CF sirva como base da decisão judicial ou do ato administrativo impugnado na reclamação constitucional.
Esta hipótese de cabimento da reclamação constitucional nada mais é do que o desrespeito à eficácia erga omnes da decisão tomada em controle abstrato de constitucionalidade, já que, enquanto a decisão paradigma eliminou a crise de certeza quanto à constitucionalidade ou compatibilidade de determinado ato normativo, o ato impugnado na reclamação constitucional continuaria a aplicá-lo, não obstante o decidido. Portanto, é um desrespeito à parte dispositiva da decisão paradigma.
Diante desse maciço posicionamento e a despeito das diferenças entre os institutos, é possível dizer que, para a jurisprudência do STF: a) os conceitos de coisa julgada erga omnes e efeito vinculante se confundem; b) só é cabível a reclamação constitucional que vise combater ato que supostamente violou a parte dispositiva da decisão tomada em sede de controle abstrato de constitucionalidade, refutando-se a teoria da transcendência dos motivos determinantes.
5.2. A coisa julgada material da ADPF 130/DF
Este artigo tem como principal objetivo demonstrar certa incongruência do posicionamento do STF quanto à teoria da transcendência dos motivos determinantes, ou, como sugere o título, a existência de um posicionamento vacilante quanto à matéria.
No tópico acima, ficou claro que o posicionamento do STF é, de forma pacífica e expressa, contrário à admissibilidade de reclamação constitucional para preservar a eficácia vinculante do precedente oriundo de controle abstrato de constitucionalidade.
A incoerência que este artigo pretende demonstrar é silenciosa, isto é, segundo o ora defendido, o STF, em certas oportunidades, acaba admitindo a reclamação constitucional nos casos mencionados, mas o faz inconscientemente ou, ao menos, sem declará-lo.
Fixado o posicionamento esperado do STF, passa-se à análise da incongruência, que começa pelo julgamento da ADPF 130/DF.
No direito anterior à CF/88, entrou em vigência a chamada Lei de Imprensa (Lei Federal n. 5.250/67), diploma editado durante o regime militar, que excetuava uma série de liberdades de imprensa e representava uma severa intervenção estatal na atividade, contendo dispositivos que permitiam a censura prévia[52].
Com a promulgação da CF/88, passou a ser questionada a compatibilidade, isto é, a recepção da Lei de Imprensa pela nova ordem constitucional.
Esta controvérsia chegou ao STF por meio da ADPF 130/DF, ajuizada pelo PDT, na qual foi questionada a compatibilidade da Lei de Imprensa com a CF/88, em especial com o disposto nos arts. 5º, incisos IV, V, IX, X, XIII e XIV, 220, 221, 222 e 223.
Na oportunidade, foi postulada a declaração de incompatibilidade total da Lei de Imprensa com a CF/88 e, subsidiariamente, que fosse declarada não-recepção de alguns dispositivos específicos.
O importante e suficiente para demonstrar a incoerência do posicionamento do STF é a determinação da parte dispositiva do julgamento da ADPF: a declaração de incompatibilidade total da Lei de Imprensa com a CF/88.
A exata identificação dos motivos determinantes ou da ratio decidendi do acórdão exigiria um trabalho próprio cujo sucesso na resposta seria duvidoso, já que é um acórdão com vários votos, cada um com a sua fundamentação. Nesses casos, há séria dificuldade na exata determinação dos motivos determinantes ou da ratio decidendi, já que é impreciso definir os pontos nos quais há aproximação e distanciamento entre os posicionamentos dos julgadores, problema que não é peculiar ao ordenamento brasileiro, chamando atenção até mesmo no direito inglês, acostumado a lidar com a eficácia vinculante do precedente[53].
De qualquer forma, sem compromisso de definir os exatos contornos da ratio decidendi ou quais foram os motivos determinantes, é possível, a partir da própria ementa da ADPF 130/DF, verificar alguns dos argumentos que justificaram a decisão pela não-recepção em bloco da Lei de Imprensa: a) a posição da imprensa como veículo de controle e revelação de temas relacionados ao Estado e à sociedade, apresentando-se como uma alternativa à versão oficial dos fatos e um meio para a formação do pensamento crítico; b) a liberdade de informação e de imprensa como instituto estritamente ligado à dignidade da pessoa humana e a um “mais evoluído estado de civilização”, sendo incompatível com a censura prévia; c) a expressa previsão do art. 220 da CF por uma ampla liberdade de imprensa, insuscetível de qualquer controle no seu exercício; d) impossibilidade de limitação infraconstitucional à liberdade de imprensa, só sendo admissíveis as restrições previstas na própria CF, como a vedação ao anonimato, o direito de resposta, etc.; e) a prevalência dos direitos de livre e plena manifestação de pensamento sobre os da intimidade, vida privada, honra e imagem; f) o regramento constitucional consagrou uma livre e plena liberdade de manifestação de pensamento e a compatibilizou com restrições posteriores a estes atos, como o direito de resposta, além dos regimes de responsabilidades civis, penais e administrativas; g) a independência entre a relação de proporcionalidade entre o dano sofrido e a indenização fixada, de um lado, e, de outro, o fato do ato praticado ter sido no exercício da liberdade de imprensa; h) a ligação entre a liberdade de imprensa e a concretização da democracia, o que impede o monopólio no setor; i) a CF não admite censura prévia da imprensa, não cabendo ao Estado, por qualquer dos seus órgãos e Poderes, definir o que pode e o que não pode ser publicado; l) a própria sociedade saberá filtrar a boa da má informação, repelindo os abusos cometidos.
Todo este raciocínio implicou uma conclusão: a incompatibilidade material total entre a Lei de Imprensa e a CF/88, sendo “de todo imprestáveis as tentativas de conciliação hermenêutica da Lei 5.250/67 com a Constituição”.
É bastante elucidativa a transcrição do último ponto da ementa, que resume o dispositivo da ADPF 130/DF: “12. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. Total procedência da ADPF, para o efeito de declarar como não recepcionado pela Constituição de 1988 todo o conjunto de dispositivos da Lei federal nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967”.
É esta, portanto, a crise de certeza resolvida pela ADPF 130/DF ou, para quem prefere, a alteração da situação jurídica: desde a promulgação da CF/88, ninguém mais está sujeito à Lei de Imprensa. É este o objeto sobre o qual recai a eficácia erga omnes da coisa julgada.
5.3. Reclamação constitucional, julgamento da ADPF 130/DF e o posicionamento vacilante do STF
De acordo com o posicionamento já apresentado, seria possível imaginar que o STF só admitiria reclamações constitucionais que tivessem o acórdão da ADPF 130/DF como paradigma, se o ato impugnado resultasse da aplicação da Lei de Imprensa, declarada incompatível com a CF em sede de controle abstrato de normas.
Por consequência, qualquer reclamação constitucional cujo ato impugnado violasse somente os motivos determinantes ou a ratio decidendi do acórdão que julgou a ADPF 130/DF não deveria ser admitida.
Fixado o posicionamento esperado do STF para estes casos, pode-se passar para a análise do tratamento dado especificamente à matéria.
A análise do tratamento vacilante dado pelo STF começa pelo caso que despertou a atenção para o problema apresentado neste trabalho: o caso Cid Gomes contra a Três Editorial Ltda., responsável pela revista “Isto É”.
Em 2014. A revista “Isto É” estava prestes a divulgar uma matéria que ligava as apurações criminais iniciadas com a Operação “Lava Jato”, o depoimento de Paulo Roberto Costa e o então Governador do Ceará, Cid Gomes.
Cid Gomes, então, ajuizou uma demanda em primeiro grau no TJCE (cautelar inominada) e a juíza plantonista concedeu tutela de urgência em favor do Governador do Ceará, determinando que a Três Editorial Ltda. se abstivesse de publicar qualquer matéria que o ligasse “ao depoimento de Paulo Roberto Costa, ou qualquer outro fato que diga respeito à operação ‘Lava Jato’ e que possa envolver direta ou indiretamente o Requerente, Sr. Cid Ferreira Gomes”. Além disso, foi fixada multa diária de R$ 5.000.000,00 por descumprimento.
Ciente da decisão, a Três Editorial Ltda. ajuizou a Rcl 18638/CE, argumentando que: houve violação ao decidido na ADPF 130/DF (declaração de incompatibilidade da Lei de Imprensa com a CF/88); a decisão impugnada configuraria censura prévia; que a magistrada decidiu sem conhecer o teor da matéria; e que as informações eram verídicas.
Além disso, não seria possível privilegiar o sigilo das investigações em detrimento da liberdade de expressão, que os fatos eram relevantes, que foi oportunizada a manifestação de Cid Gomes e que não haveria proibição de divulgação de matérias sobre investigações criminais envolvendo pessoas públicas. Foi formulado pedido cautelar para a suspensão da decisão em questão.
A relatoria da Rcl 18638/CE coube ao Ministro Luís Roberto Barroso.
Antes de se analisar a decisão do relator, é importante frisar: a decisão tomada pela juíza plantonista do TJCE, cujo teor está disponível nos autos da Rcl 18638/CE[54], não menciona a Lei de Imprensa em nenhum momento. A sua argumentação, ao contrário, é muito pautada no sigilo das investigações da Operação “Lava Jato”, nos possíveis danos à imagem e à honra do Governador do Ceará e no caráter relativo dos direitos fundamentais, inclusive da liberdade de imprensa.
Para este artigo, é importante o teor da decisão do relator relativa à medida cautelar requerida (Rcl 18638 MC/CE, publicada no DJe de 18/09/2014).
Em sua decisão monocrática, o relator destacou a proteção constitucional conferida à liberdade de imprensa, comentou sobre os direitos da personalidade e tratou especificamente do conflito entre a liberdade de expressão e os direitos de privacidade, ressaltando que alguns dos critérios que sugere para a resolução do problema foram adotados no julgamento da ADPF 130/DF.
Em sequência, o Ministro Luís Roberto Barroso fez as seguintes considerações fáticas sobre o caso – iniciando a análise dos critérios mencionados: a) haveria veracidade aceitável na notícia (como expressamente menciona, não seria exigível uma verdade incontestável), pois aparentemente não era uma divulgação deliberada de notícia sabidamente falsa; b) embora as informações sobre as investigações “aparentemente estejam protegidas por segredo de justiça”, não havia indícios de que os jornalistas fossem os responsáveis pela violação do sigilo; c) Cid Gomes ocupava cargo público e, por isso, a proteção à sua intimidade era mais branda; d) os encontros entre os supostos envolvidos não se realizaram em local protegido pelo direito à intimidade; e) o fato noticiado – desvio de recursos públicos – é de interesse público.
Para terminar com os critérios, o Ministro Luís Roberto Barroso destacou: a) é presumido o interesse público na divulgação de qualquer fato verdadeiro; b) há interesse público na divulgação de informações sobre órgãos públicos; c) como regra geral, deve ser dada prioridade às sanções posteriores à divulgação da informação, ao invés de se proibir a sua circulação.
Finalizando a argumentação para conceder a medida cautelar pretendida pela reclamante, o relator foi claro ao sintetizar as razões pelas quais entendeu ter ocorrido violação ao decidido na ADPF 130/DF. Pela clareza, merece transcrição literal:
“A decisão reclamada, no entanto, impôs censura prévia a uma publicação jornalística em situação que não admite esse tipo de providência: ao contrário, todos os parâmetros acima apontam no sentido de que a solução adequada é permitir a divulgação da notícia, podendo o interessado valer-se de mecanismos de reparação a posteriori. Assim sendo, a decisão reclamada aparentemente violou a autoridade do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, que é enfático na proibição da censura prévia.”
De acordo com o narrado, é fácil concluir que a decisão monocrática (Rcl 18638 MC/CE) não fez nenhuma menção à aplicação da Lei de Imprensa por parte da decisão atacada (que, de fato, não mencionou, como o dito).
Muito pelo contrário, o relator se valeu justamente dos argumentos que sustentaram o acórdão proferido na ADPF 130/DF e, por consequência, mostrou-se contrário à ponderação feita na decisão judicial oriunda do TJCE.
Assim, não houve afastamento da Lei de Imprensa por parte do relator, medida que estaria ligada à parte dispositiva da ADPF 130/DF e encontraria justificativa na eficácia erga omnes da decisão em controle abstrato de constitucionalidade.
Na realidade, ainda que sem mencionar, o Ministro Luís Roberto Barroso se mostrou favorável à utilização da reclamação constitucional para a preservação da eficácia vinculante do precedente oriundo de controle abstrato de constitucionalidade, pois, além de não apontar a aplicação da Lei de Imprensa (ato considerado incompatível com a CF) pela decisão judicial atacada, ele utilizou a fundamentação contida na ADPF 130/DF para conceder medida cautelar.
Esse não é um caso isolado. Há outras decisões curiosamente ligadas ao decidido na ADPF 130/DF.
Ao decidir Rcl 18290 MC/RJ (DJe 14/08/2014), o relator, Ministro Luiz Fux, se deparou com um pedido de suspensão de decisão judicial proferida nos autos do processo de n. 0121176-50.2014.8.19.0001, em trâmite na 23ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, cuja pretensão era a de reparação por danos morais.
A demanda originária, que tramitava no Rio de Janeiro, foi ajuizada por João Tancredo contra a Abril Comunicações S/A, responsável pela revista “Veja”, e Lauro Roberto de Salvo Souza Jardim, que mantinha um blog no portal eletrônico da citada revista.
Nos autos do processo originário, foi concedida a antecipação de tutela para os réus retirassem do referido portal eletrônico a notícia “A batalha da indenização” ou outra similar, sob pena de multa diária de R$500,00. Além disso, foi ordenado que os então demandados se abstivessem de incluir qualquer outra notícia com o mesmo conteúdo, sob pena de multa diária de R$5.000,00.
Ao apresentarem os fundamentos do pedido, os reclamantes sustentaram que o juízo originário não oportunizou a demonstração da licitude da reportagem, que, segundo apontam, conteria fatos verdadeiros de interesse público e consistiria em crítica legítima. Além disso, afirmaram que João Tancredo era pessoa pública, envolvido em polêmicas relacionadas ao Rio de Janeiro, e que não havia termos pejorativos na reportagem.
Por fim, os reclamantes alegaram que a decisão atacada configuraria censura e, por consequência, afrontaria o resolvido na citada ADPF 130/DF, de sorte que requereram a suspensão da decisão em questão.
Ao fundamentar a decisão que deferiu a suspensão pretendida, o Ministro Luiz Fux, tal qual o Ministro Luís Roberto Barroso na Rcl 18638 MC/CE, não apontou em qual momento a decisão atacada aplicou a Lei de Imprensa ao caso concreto.
Em sentido contrário, o então relator narrou que, de fato, a ADPF 130/DF decidiu pela incompatibilidade entre a Lei de Imprensa e a CF/88, oportunidade na qual teria sido fixado que a nova ordem constitucional não compactua com nenhum tipo de censura prévia, ainda que decorrente do Poder Judiciário.
Nas palavras do Ministro Luiz Fux:
“O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, declarou não recepcionada pela Constituição de 1988 a totalidade dos dispositivos da Lei nº 5.250/1967, assentando que “a plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução político-cultural de todo um povo” de tal sorte que “a crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada”.
Em um exame perfunctório dos autos, típico das tutelas de urgência, verifico que a decisão reclamada parece afrontar o decidido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 130. (…).”
O trecho é bastante claro. O relator destacou que o acórdão da ADPF 130/DF assentou, isto é, fixou entendimento sobre o papel exercido pela imprensa e concluiu pela impossibilidade de censura prévia de qualquer reportagem. Assim, entendeu que a decisão combatida violaria o decidido na ADPF 130/DF.
Percebe-se, então, que o STF voltou conceder medida cautelar em reclamação constitucional por suposta violação ao decidido na ADPF 130/DF, o que ocorreu, mais uma vez, sem que houvesse menção ao dispositivo da referida ADPF, bastando violação à fundamentação utilizada em sede de controle abstrato de constitucionalidade, mais precisamente: a impossibilidade de censura prévia.
Há, ainda, outros casos que corroboram a incongruência ora apontada. Passa-se, agora, ao exame da Rcl 16074 MC/SP (DJe 06/08/2013), de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, mas cuja decisão monocrática ficou a cargo do Ministro Ricardo Lewandowski[55], Presidente em exercício à época.
A Rcl 16074/SP foi ajuizada pela Dublê Editorial Ltda. contra decisão oriunda da 27ª Vara Cível da São Paulo. Esta decisão teria ordenado o recolhimento de conteúdo do noticiário do “Consultor Jurídico”, conhecido site “conjur”, em virtude de matérias relacionadas ao autor da demanda originária, ordem que teria sido ratificada em sede de Agravo de Instrumento.
Como medida cautelar, a reclamante requereu a suspensão da decisão reclamada.
Em sua fundamentação, o Ministro Ricardo Lewandowski também deixou de apontar a violação, por parte da decisão do juízo paulista, da eficácia erga omnes oriunda do julgamento da ADPF 130/DF, isto é, não mencionou em qual momento a decisão reclamada aplicou a Lei de Imprensa, considerada incompatível com a CF/88.
Em sentido diverso, a decisão monocrática é fundamentada no papel da imprensa e na impossibilidade de censura prévia, chegando a transcrever trecho da ementa da ADPF 130/DF sobre a incompatibilidade entre a liberdade de imprensa e a censura prévia, inclusive a proveniente do Poder Judiciário, o que, obviamente, foi um dos fundamentos para que, na parte dispositiva da ADPF 130/DF, a Lei de Imprensa fosse considerada não recepcionada.
Como decorrência dessas considerações, o Ministro Ricardo Lewandowski concedeu a medida cautelar requerida, determinando a suspensão da decisão reclamada.
Fica claro, então, que, ao decidir monocraticamente a Rcl 16074 MC/SP, foi novamente prestigiada a eficácia vinculante do precedente e o seu controle mediante reclamação constitucional, uma vez que foi concedida medida cautelar em virtude de ordem judicial para retirada de notícia jornalística, o que violaria a liberdade de imprensa e caracterizaria censura prévia, situação que, como o visto, foi repelida na motivação da ADPF 130/DF.
Posicionamento peculiar é o do Ministro Celso de Mello em casos que envolvem reclamação constitucional e o julgamento da ADPF 130/DF. O atual decano do STF já mencionou, como nas Rcl 4532 AgR/PI. (DJe 12/08/2014) e Rcl 2107 AgR/SC (DJe 02/09/2014), ser favorável à ideia da transcendência dos motivos determinantes de decisões tomadas em controle abstrato de constitucionalidade e ao cabimento de reclamação constitucional em decorrência do desrespeito à eficácia vinculante de tal precedente. Entretanto, nos mesmos votos, ressaltou ser essa uma convicção pessoal e que, em nome da colegialidade, ele não insistiria em tal entendimento, já que a jurisprudência do STF se firmou em sentido contrário[56].
Entretanto, o Ministro Celso de Mello, ao proferir decisão monocrática na Rcl 18566 MC/SP (DJe 16/09/2014), foi expresso ao conceder a medida cautelar de suspensão da decisão reclamada por entender que ela violava a eficácia vinculante da ADPF 130/DF.
A 18566 MC/SP versava sobre decisão que teria ordenado a retirada de matéria do “Consultor Jurídico”, conhecido site “conjur” (mencionado linhas acima), noticiando o desfecho em primeiro grau de controvérsia sobre a encenação de uma peça que, embora de ficção, seria facilmente ligada à morte de Isabella Nardoni.
A mãe de Isabella Nardoni ajuizou uma demanda contra os responsáveis pela encenação da peça, processo que tramitava em segredo de justiça. Em primeiro grau, houve condenação do autor da peça ao pagamento de indenização por danos morais.
Ao tomar conhecimento que a Dublê Editorial Ltda. (que não era parte no processo) havia publicado no “conjur” uma matéria sobre a controvérsia e o andamento do feito, a juíza determinou a retirada do conteúdo. Contra esse ato judicial, foi ajuizada a Rcl 18566/SP.
O Ministro Celso de Mello, ao decidir sobre a concessão de medida cautelar para a suspensão do ato judicial reclamado (Rcl 18566 MC/SP), dedicou um ponto específico no sentido do cabimento de reclamação constitucional para preservar a eficácia vinculante do precedente oriundo de controle abstrato de constitucionalidade:
“Admissível , portanto, ao menos em tese, o ajuizamento de reclamação nos casos em que sustentada, como na espécie, transgressão à eficácia vinculante de que se mostra impregnado o julgamento do Supremo Tribunal Federal proferido no âmbito de processos objetivos de controle normativo abstrato, como aquele que resultou do exame da ADPF 130/DF, Rel. Min. AYRES BRITTO”.
Em sequência, o relator passou a fazer considerações sobre as concessões de medidas cautelares pelo Poder Judiciário, a sua possível relação com a censura prévia, o valor atribuído à liberdade de expressão pela ordem constitucional (incompatível com a censura prévia), a impossibilidade de utilizar o sigilo judicial como óbice à divulgação da matéria e o fato da reclamante sequer ser parte processual.
Assim, a decisão monocrática (Rcl 18566 MC/SP) optou por conceder a medida cautelar e suspender a decisão reclamada, tendo como fundamento a eficácia vinculante do precedente da ADPF 130/DF.
É possível encontrar outras decisões do STF com teor semelhante, sendo desnecessária a análise detalhada de todas: Rcl 18735 MC/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes (DJe: 03/10/2014); Rcl 18186 MC/RJ, Rel. Min. Carmen Lúcia (decisão do Ministro Ricardo Lewandowski, Presidente em exercício) (DJe: 07/08/2014); Rcl 16434 MC/ES, Rela. Min. Rosa Weber (DJe: 05/08/2014); Rcl 15243 MC/RJ, Rel. Min. Celso de Mello (DJe: 19/03/2013)[57]; Rcl 11292 MC/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa (DJe: 03/03/2011).
De acordo com o exposto, conclui-se que o STF, apesar de reiteradamente não admitir reclamação constitucional por violação à eficácia vinculante do precedente oriundo de controle abstrato de constitucionalidade, tem entendimento diverso quando se tratada do julgamento da ADPF 130/DF, ainda que não apresente os motivos do tratamento diferenciado.
É possível defender o posicionamento do STF argumentando que a ADPF 130/DF trata de um valor muito caro à sociedade brasileira – liberdade de imprensa, de sorte que os casos que envolvam esse direito devem receber tratamento diverso dos demais, não se submetendo ao entendimento de não ser cabível reclamação constitucional por violação à eficácia vinculante de precedente oriundo de controle abstrato de constitucionalidade.
O afastamento da aplicação de um precedente judicial em virtude de diferenças fáticas é conhecido, aceito pela teoria dos precedentes e, no common law, recebe o nome de distinguishing. Para compreendê-lo, é preciso fazer algumas considerações sobre como um precedente é aplicado.
A aplicação de um precedente judicial exige, inicialmente, a identificação da ratio decidendi do caso paradigma, definindo-se os fatos fundamentais que compõem a sua “hipótese de incidência”.
Fixado o cenário fático que justifica a aplicação da ratio decidendi, passa-se à identificação dos fatos fundamentais do caso sob julgamento e à sua comparação com os do paradigma. A partir deste confronto, há duas opções: aplicar a ratio decidendi ou afastá-la em razão de diferenças fáticas, realizando-se o distinguishing.
Ocorre que o distinguishing não é cabível em virtude de qualquer diferença fática, somente sendo aceito quando a diferença é relevante e torna injustificável a aplicação da ratio decidendi.
Portanto, a opção pelo distinguishing exige uma argumentação convincente do magistrado na qual seja exposta a diferença fática relevante e demonstrada que a aplicação da ratio decidendi não é aconselhável, pois não há similitude suficiente entre os casos[58].
Entretanto, apesar de dar tratamento diferenciado quando os fatos se ligam à ADPF 130/DF, como num distinguishing, o STF não se desincumbe do seu ônus argumentativo para justificá-lo, apresentando, por consequência, um posicionamento incongruente sobre o cabimento da reclamação constitucional nas citadas hipóteses.
6. PERSPECTIVAS DADAS PELO CPC/2015
O CPC/2015 alterou dois dos temas trabalhados neste artigo: os limites objetivos da coisa julgada e o cabimento da reclamação (não denominada de “reclamação constitucional” pelo Código), além de ratificar a eficácia vinculante do precedente oriundo do controle abstrato de constitucionalidade feito pel o STF (art. 927, I).
O art. 503, §1º, do CPC/2015 estende os limites objetivos da coisa julgada à questão prejudicial, desde satisfeitos os requisitos lá previstos. Como este artigo trabalha com o controle abstrato de constitucionalidade, destinado a verificar a constitucionalidade ou compatibilidade de determinada norma com a CF, discussões acerca de questões prejudiciais não despertam interesse e não refletem nas premissas e nas conclusões apresentadas.
Por outro lado, o CPC/2015 traz regulamentação específica acerca da reclamação, chegando a revogar, em seu art. 1.072, IV, os dispositivos da Lei n. 8.038/1990, que tratava da sua tramitação nos tribunais superiores.
Em seu art. 988, III, o CPC/2015 define que cabe reclamação ao STF para “garantir a observância de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade”.
Já no §4º do art. 988, a legislação opta claramente por adotar a tese da transcendência dos motivos determinantes para fins de admissibilidade da reclamação que tenha como paradigma decisão tomada em controle abstrato de constitucionalidade. Nas palavras do CPC/2015, a admissibilidade da reclamação com base no art. 988, III, compreende “a aplicação indevida da tese jurídica e sua não aplicação aos casos que a ela correspondam”.
Pode-se ponderar que a tendência é a de que o STF reveja o seu entendimento e passe a admitir, em todos os casos, a reclamação com base em violação aos motivos determinantes contidos em decisão oriunda de controle abstrato de constitucionalidade.
No entanto, não se pode dar certeza dessas mudanças, por duas razões: a) este raciocínio já poderia ser extraído do ordenamento jurídico anterior ao CPC/2015 e, nem por isso, foi aplicado; b) há razões de ordem prática que podem ensejar um entendimento restritivo por parte do STF, já que, com apenas 11 ministros, pode passar a receber e ter que admitir incontáveis reclamações com fundamento mencionado, sem prejuízo das demais competências.
Esclarecendo o argumento apresentado na alínea b, destaque-se que, consultando as estatísticas disponíveis no portal eletrônico do STF, pode se verificar o aumento repentino no número de reclamações constitucionais protocoladas nos últimos anos, sobretudo a partir de 2008[59]. Relembre-se que, com a EC 45/2004 e com a regulamentação dada pela Lei n. 11.417/2006, a reclamação constitucional passou a ser admissível pela violação a enunciado de súmula vinculante, seja pela Administração Pública ou pelo Poder Judiciário.
Entre os anos de 1993 e 2007, segundo as estatísticas do STF, foram registradas 513 novas reclamações constitucionais, resultando numa média anual de 34,2 novos registros de reclamações.
Já entre 2008 e 2015, de acordo com a mesma fonte, foi registrado um total de 16.289 novos registros de reclamações constitucionais, segundo a seguinte disposição: 1.684 em 2008, 2.238 em 2009, 1.228 em 2010, 1.848 em 2011, 1.877 em 2012, 1.893 em 2013, 2.375 em 2014 e 3.146 em 2015. A média do período é de aproximadamente 2.036 novos registros de reclamação por ano, bastante superior à anterior.
Apesar das estatísticas apresentadas, não é possível aferir se o sistema passou a ser deficitário ou não, pois os dados indicam que, em todos os anos, houve mais julgamentos do que reclamações registradas, mas o próprio STF indica que estão incluídos, sob a rubrica de julgamentos, “decisões monocráticas (despachos) e decisões colegiadas (acórdãos)”[60], não sendo possível precisar se, para efeitos de cálculo, houve cômputo em duplicidade nos casos nos quais a reclamação apresentava julgamento monocrático e colegiado (em sede de “agravo regimental”).
Assim, mesmo com a jurisprudência altamente resistente à ideia de reclamação com base na transcendência dos motivos determinantes de decisão tomada em controle abstrato de constitucionalidade, percebe-se um substancial aumento no registro de novas reclamações, baseadas neste e em outros fundamentos. Com a abertura prevista no art. 988, §4º, do CPC/2015, o número tende a aumentar consideravelmente e esse é um fator que pode ser levado em consideração pelo STF ao interpretar o texto legal.
Percebe-se, portanto, que o CPC/2015 se propõe a pôr um fim à resistência do STF em admitir a reclamação constitucional por violação aos “motivos determinantes” de decisão tomada em controle abstrato de constitucionalidade, mas não é possível prever, de forma definitiva, que tal intento será alcançado.
CONCLUSÃO
Após considerações sobre a coisa julgada erga omnes, a eficácia vinculante do precedente, o controle abstrato de constitucionalidade, o papel da reclamação constitucional e a jurisprudência do STF, chegou-se ao objetivo deste trabalho: demonstrar o posicionamento vacilante do STF quanto ao tema.
Ao fazer esta análise, não se busca formular um juízo de valor sobre o cabimento da reclamação constitucional por violação à eficácia vinculante do precedente oriundo da ADPF 130/DF, isto é, este artigo não pretende oferecer resposta sobre a admissibilidade da reclamação constitucional nestas hipóteses.
O objetivo era demonstrar a incongruência do tratamento dado pelo STF e concluir com a apresentação de duas alternativas que parecem mais condizentes com os institutos analisados ao longo deste trabalho.
A primeira delas impõe a aplicação do mesmo entendimento a todos os precedentes decorrentes de controle abstrato de constitucionalidade, seja para admitir a reclamação constitucional ou para entender que ela não é cabível. Esta postura preserva a isonomia e consagra a regra básica de que casos similares devem receber o mesmo tratamento.
A segunda alternativa trabalha com a admissibilidade de reclamação constitucional somente com relação à ADPF 130/DF, em nítido distinguishing, mas exige uma fundamentação adequada, na qual sejam explicadas as razões que pelas quais o acórdão da ADPF 130/DF, por cuidar da liberdade de imprensa, deve receber tratamento diferenciado das demais decisões tomadas em controle abstrato de constitucionalidade.
Por fim, conclui-se que o CPC/2015 tende a modificar o entendimento do STF no que tange à resistência mencionada, mas não é possível, neste momento, afirmar que o entendimento será modificado.
Bacharel e Mestrando em Direito pela UFBA. Pós-graduado lato sensu em Direito Processual Civil pela UCSal. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
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