O direito mesclava-se com a moral na época dos escolásticos. Sendo assim, a lei humana (falível, per se) deveria refletir princípios da lei natural, representando a participação do homem na lei eterna. Na seara criminal presenciou-se a eticização superlativa do direito (ou legalização da moral) tendo por conseqüência bárbaras punições, como se o modo de pensar ou de sentir de cada um pudesse ser plasmado ou induzido pela força, sempre em direção à catarse.
É bem certo que nem o direito nem a moral têm algum ponto de contato com a efetividade, pois a prevenção eficaz do crime não deve se limitar ao aperfeiçoamento das estratégias e mecanismos de controle social, onde as quantidades de leis crescem abruptamente e onde as penas se tornam cada vez mais degradantes.
Na visão de Kant, o jurista instruído não busca as leis que garantem o meu e o teu na sua razão (se proceder, como deve, enquanto funcionário do governo), mas no código oficialmente promulgado e sancionado por autoridade suprema.
Sendo assim, na concepção de Kant, o intérprete jurídico tem por escopo o conjunto das leis codificadas como critério definidor do direito. Esse profissional deve possuir prudência jurídica (iurisprudencia), no sentido de escolher sempre o melhor caminho para o bem-estar próprio e alheio (HECK, 2000, p. 18).
Contudo, o que se presencia no ordenamento pátrio são causas imaginárias (“alma do imputado”, “espírito da lei”, “vontade livre e consciente”) e conseqüentemente efeitos imaginários (“pecado”, “redenção”, “castigo”). O direito penal brasileiro tornou-se o mundo das ficções, falsificando, desvalorizando e negando a efetividade.
Pedir uma modificação “qualificativa” da pessoa do delinqüente é sem dúvida, pedir demasiado. Esperar tal milagre no que tange a intervenção do Estado é desconhecer por completo as atuais condições de cumprimento da pena privativa de liberdade e o efeito que esta produz no homem.
Não parece razoável que o Estado garanta a ressocialização do condenado, quando não é capaz sequer de assegurar sua integridade física. Apesar desta, o esforço concentrado em legitimar a área penal está sendo dirigida ao conceito ontológico da pessoa que praticou o delito.
Os preceitos e os juízos morais não se baseiam no direito ou em qualquer outro sistema positivo de normas, mas tão somente na autonomia da consciência individual (GRUNDEL, 1998, p. 170).
A lei de Hume[1] estabelece toda forma patológica que sempre intermeia a normatividade e efetividade referente aos valores de justiça. É realmente evidente que somente o abandono de qualquer moralismo jurídico consente à ciência do direito a possibilidade de reconhecer a validade das normas jurídicas. Ficam, portanto, excluídas da ciência jurídica positiva todas as conotações ideológicas de tipo moral e política, antes mesmo que meramente legais, pois deve restar garantida a certeza do direito, igualdade e liberdade dos cidadãos, puníveis somente por fatos objetivamente determinados e não por características subjetivas ou ainda, por formas/fatos desviantes não expressamente proibidos pela lei enquanto delitos.
No entendimento de Heck (2000, p. 27)
A moral esclarecida não inspira medo e não se move por medo. Ela não existe para os outros, mas vincula o agente moral a outros, enquanto seres racionais a ele.
Consoante a visão utilitarista iluminista o direito e o Estado não possuem nem representam valores, sendo inadmissível estes possuírem fins morais desvinculados dos interesses das pessoas ou constituírem fins em si próprios, justificando-se por meio da tarefa de perseguir objetivos de utilidade concreta em favor dos cidadãos e garantir-lhes os “certos remédios” em prol da segurança jurídica. A imoralidade pode ser considerada e almejada em certas condições necessárias, mas jamais por si só suficiente para justificar politicamente a intervenção coercitiva do Estado na vida dos cidadãos.
Uma norma não mais endereçada a indivíduos, mas comprometida com a excelência de determinada situação social, designa o conceito aristotélico da lei. A geração da igualdade é corrigida por uma justiça comutativa que retribui aos desiguais um tratamento desigual, isto é, estabelece quais distribuições desigualitárias de bens são justas e quais distribuições igualitárias de bens são injustas.
Kelsen (apud Heck, 2000, p. 74) aparta a moral e direito por meio do conceito da coerção. Embora a moral e o direito sejam constituídos por normas positivas, para Kelsen a moral perfaz uma ordem positiva sem caráter coercitivo. De outro lado, Kant separa a legislação ética da jurídica por meio do conceito da motivação. Assim, embora ambas as legislações sejam regidas por leis, somente na primeira a lei constitui o móvel do agir moral.
O agir humano não consiste na atividade de seus processos fisiológicos, tampouco nas de seus mecanismos psíquicos, como v.g, de imaginação, percepção, pensamento, emoção, vontade… A essência do agir não está nos instrumentos anímicos e fisiológicos que intervém a atividade; o puro “querer” põe em funcionamento os mecanismos que o homem dispõe, tanto que não se pode confundir o agir humano com os seus instrumentos, porque a estrutura do agir consiste “em que” se quer agir, “por algo” e “para algo”.
A moral e o direito reelaboram o conceito de ação para restringi-lo a certas formas de conduta humana, precisamente aquelas que se concentram em torno da “execução de uma volição”, excluindo da compreensão pelo conceito grande número de atos humanos que não possam ser reconduzidos a alguma forma de manifestação de vontade (TOLEDO, 1999, p. 101).
O direito não pode prescindir das noções de dolo, culpa, boa-fé, precisando a todo o momento considerar o foro íntimo, o aspecto interno da ação.
Muito complexa reside a problemática em conceber um diagnóstico científico do problema criminal (objetivo, sereno e desapaixonado) e resenhar uma política criminal consentânea e ao mesmo instante equânime se se logo partir para a anormalidade do fenômeno delitivo com atitudes hostis, carregadas de preconceitos e mitos.
O sentimento de segurança jurídica não aceita que uma pessoa seja provada de bens jurídicos, com finalidade puramente preventiva numa medida imposta tão somente pela a inclinação pessoal do delito, sem levar em consideração a extensão do injusto cometido e o grau de autodeterminação que foi necessário atuar.
Para se criminalizar uma pessoa é exigível que no mínimo esta tenha iniciado ou efetivamente praticado a ação, onde deve restar conflituosa por sua real lesividade , pois a mera “capacidade de realização” não satisfaz tal conjuntura.
Lembremos que no sistema penal pátrio, os requisitos da tipicidade e ilicitude são requisitos basilares (e indispensáveis) para um processo de criminalização idôneo.
A doutrina utilitarista iluminista aplicada ao delito (ao tipo penal), comporta o fato de que o direito penal não possui a tarefa de impor ou até mesmo reforçar determinada, se atendo ao impedimento de ações danosas a terceiros, pois uma ação não pode ser considerada reprovável porque esta é tida por imoral/ indecente. Para se proibir e punir exige-se ofensa a bens jurídicos concretamente relevantes. O papel do legislativo está em coadunar a segurança dos cidadãos, impedindo que os mesmos causem danos a outrem, sem contudo “ditar” a moralidade a estes.
No âmbito do processo impõe que o julgamento não verse sobre o caráter da personalidade do réu, mas somente sobre os fatos penalmente proibidos sob o manto da legalidade e que constituem as únicas coisas que podem ser provadas pela acusação e refutadas pela defesa. Assim, o juiz não deve indagar sobre a alma do imputado, emitir veredictos morais sobre sua pessoa. O cidadão pode ser punido no máximo por aquilo que fez, jamais pelo que aparenta ser (FERRAJOLI, 1998, p. 178).
A alegação de o delinqüente ser “voltado para a prática delitiva” é retórica, pois juizes não têm habilitação técnica para proferir juízos de natureza antropológica, psicológica ou psiquiátrica, não dispondo o processo judicial de elementos hábeis (condições mínimas) para o julgador proferir “diagnósticos” desta dimensão (CARVALHO, 2003, p. 103).
Por fim, na justificação da pena, comporta que a sanção penal não deve possuir “fins terapêuticos”. O Estado não possui o direito de alterar, reeducar, redimir, recuperar a personalidade do réu.
Em todo caso, circunscrever o tratamento ressocializador a uma intervenção clínica na pessoa do condenado durante o cumprimento da pena é algo insatisfatório, porque o problema da reinserção tem conteúdo funcional que transcende à mera e parcial faceta clínica, e esta responsabilidade é de todos e não só da Administração Penitenciária.
Cabe ressaltar que o sentimento de segurança jurídica exige que a lei traduza pela imposição de guardar a pena uma certa relação com a gravidade da lesão aos bens jurídicos e com a magnitude do injusto e com o grau de culpabilidade.
A pena não retribui o injusto nem sua culpabilidade, mas deve guardar certa relação com ambos, como único caminho pelo qual pode aspirar e garantir a segurança jurídica e não a afrontá-la, como bem assinala o mestre Zaffaroni (2004, pp. 114-5).
Num campo mais delimitado e como conseqüência da abrupta separação do direito e moral levada a extremos no decorrer da “era legiferante”, o Estado inconscientemente se embrenhou no perigoso terreno das teorias da profilaxia e da surrada defesa social[2]. Como corolário, a instrumentalização do ordenamento jurídico-penal fez surgir o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) consistindo num agravamento das sanções previstas para o cometimento da falta disciplinar grave a que alude o art. 52 da LEP (Lei de Execuções Penais), ou seja, a prática de “fato previsto como crime doloso” pelo preso. Ora, resta evidente que a simples prática de crime não pode gerar sanções até que seja ele objeto de julgamento e condenação transitada em julgado, assim é o princípio da presunção de inocência. O RDD, segundo a redação de então, prevê isolamento celular de até trezentos e sessenta dias, devendo o sentenciado ficar em sua cela por até dezesseis horas diárias, sendo permitida a visita de somente duas pessoas por semana. Desde logo ressalta a grave imprecisão legislativa, a começar porque a MP não regulou o evidente conflito do RDD com as citadas normas da LEP, as quais não foram expressamente revogadas. Nascido das cabeças sapientes desta nação, representantes do Estado Democrático de Direito adotou uma “resposta” imediata contra aquele tipo de preso, dito de “alta periculosidade”. O homem nesta concepção é pouco mais que nada.
Retorna-se ao positivismo criminológico, inserindo o comportamento do individuo na dinâmica de causas e efeitos que rege o mundo natural, em uma cadeia de estímulos e respostas, fatores determinantes internos, endógenos (biológicos) (MOLINA, 1992, p. 77).
O infrator é tido por um prisioneiro de sua própria patologia, um ser escravo de sua carga hereditária, enclausurado em si e separado dos demais, que mira o passado e sabe, fatalmente seu futuro: um animal selvagem e perigoso.
Dada a ocasião externa fútil, a índole arraigada do delinqüente revela-nos sua natureza íntima: rudeza brutal, crueldade destituída de toda sensibilidade, estúpido fanatismo, descuidosa leviandade, invencível repugnância ao trabalho, desregrada sensualidade que levam o agente a situações psicopáticas (Zustandsverbrechen).
Na mescla de Lombroso, Spencer e Darwin, o direito penal do autor tem por escopo a “forma de ser” do delinqüente, considerando o homem incapaz de autodeterminação[3].
A solução que ora se clareia é o da afirmação do “mínimo ético” denotado por Jellinek. Consoante desta proposição o direito representaria apenas o núcleo mínimo da moral, indispensável para a vida em sociedade, já que os conceitos de culpabilidade, ação injusta, punição possuem um caráter ético. Para tanto, basta considerarmos os princípios do Decálogo (TOLEDO, 1999, p. 10) incutidos na elaboração legislativa, verificável pelo conteúdo da proibição na grande maioria das normas penais e conteúdo das normas costumeiras de conduta.
A vertente ora proposta não pode se esquivar de certos dados ônticos essenciais à valoração do ato, desde que os dados objetivos sempre se sobreponham àqueles, os subjetivos (ZAFFARONI, 1989, p. 251-2).
Lembremos que o individuo não é um ser solitário, que se enfrenta com sua liberdade existencial sem condicionamentos, sem história, tampouco é uma concatenação de estímulos e respostas, ou mera máquina de reflexos e hábitos. Não é prisioneiro de seu código genético!
O homem que cumpre as leis ou resolve infringi-las não é um “pecador”, mas um homem que pode acatar as leis ou não cumpri-las por razões nem sempre acessíveis à nossa mente permeada de pré-juízos. O direito penal não deve se perder em um formalismo infecundo e estranho à vida, se não for penetrado e guiado pela convicção de que o crime não é somente uma idéia, mas um fato do mundo nos sentidos, um fato gravíssimo na vida do individuo como da sociedade; que a pena não existe por amor dela mesma, mas tem o seu fundamento e objetivo na proteção de interesses humanos.
Advogada. Especialista em Direito Internacional e Penal (Universidade Federal de Goiás).
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