Resumo: O princípio da separação de poderes mostra-se como pilar do constitucionalismo moderno inaugurado pela Revolução Francesa e o movimento de independência política dos Estados Unidos da América. Foi, de igual forma, adotado expressamente pelo texto da Constituição Americana de 1.787, bem como por todas as Constituições Brasileiras a partir da Republicana de 1.891, estando previsto atualmente no artigo 2º da Constituição Federal de 1.988. O crescente exercício de competência normativa por entes administrativos nos EUA e no Brasil, fenômeno observado a partir da primeira metade do século XX, tem levado doutrinadores e Tribunais a rever posições até então consolidadas sobre a natureza e o alcance de mencionado princípio, bem como de tópicos do direito constitucional como a delegação de funções legislativas. O presente trabalho tem como escopo revisar teorias e precedentes jurisprudenciais adotados nos EUA e no Brasil sobre o assunto, com especial atenção aos tópicos do exercício de competência normativa pelo Poder Executivo e da delegação de função legislativa pelo Congresso nesses dois países.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Princípio da Separação de Poderes. Função Normativa do Poder Executivo. Delegação de Funções Legislativas.
Sumário: 1. Introdução. 2. Separação de Poderes e Sistema de Freios e Contrapesos. 2.1. Poder Político e Funções Estatais. 2.2. Separação de Poderes x Freios e Contrapesos. 2.3. Separação de Poderes na Arquitetura Constitucional Americana e Brasileira. 3. Exercício da Função Normativa pelo Executivo. 3.1. Função Normativa e Função Legislativa. 3.2. A Experiência Americana com as Agências Reguladoras Independentes. 3.3 Função Normativa do Executivo no Brasil. 3.3.1 Idéias Gerais, Lei Delegada e Medida Provisórias com Força de Lei. 3.3.2. Poder Regulamentar no Brasil. 3.3.3. A Criação de Agências Reguladoras no Brasil: Nova Forma para um Velho Problema. 4. Delegação Legislativa. Possibilidade e Limites nos EUA e no Brasil. 4.1. EUA. 4.2. Delegação de Função Legislativa no Brasil. 5. Considerações Finais. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O sistema constitucional norte-americano e brasileiro quanto ao exercício das funções estatais foi influenciado pelas mesmas idéias iluministas e liberais propagadas na Europa continental a partir do século XVIII.
De fato, princípios político-filosóficos como o governo pelas leis (rule of law) e a separação de poderes divulgados por filósofos como John Locke e Montesquieu acharam seu caminho para o texto constitucional adotado pelos Estados Unidos ao final de seu processo de emancipação política, bem como para o constitucionalismo brasileiro após a proclamação da República em 1.889.
Nesse passo, não surpreende que o modelo de separação de poderes adotado pelos americanos com sua constituição de 1.787, consagrando uma divisão orgânica do exercício das funções estatais entre os ramos Legislativo, Executivo e Judiciário do governo tenha sido replicado nas constituições brasileiras a partir da primeira republicana, de 1.891.
Nada obstante, a divisão orgânica das funções estatais, que essencialmente elenca as três funções básicas de qualquer Estado (crias normas de caráter geral e abstrato para as diversas condutas humanas, aplicar tais normas a casos concretos e dirimir conflitos de acordo com o Direito vigente) preponderantemente a um “ramo” especializado do governo não parece estar indene de tensões no desenvolvimento de um Estado com cada vez mais atuação material e jurídica na vida social.
De fato, encarar a atribuição de competências (ou funções) normativas, executivas e judiciárias a cada um dos “Poderes” estatais como hipóteses exclusivas não parece, quer nos EUA quer no Brasil, ser atitude condizente com as práticas político-administrativas desenvolvidas nesses países a partir do século XX.
Nesse passo, mostra-se relevante notar, de início nos EUA a partir de finais do século XIX e depois no Brasil, já no século passado, a proliferação de entes administrativos dotados, por lei aprovada regularmente pelo Poder Legislativo, de competências normativas sobre largos setores econômicos e sociais nesses dois países.
No que toca aos EUA, a jurisprudência da Suprema Corte mostra-se, como será demonstrado ao longo do presente trabalho, aferrada à idéia de que o Congresso é o único depositário das competências legislativas previstas na Constituição, não lhe sendo lícito transferi-las a qualquer dos outros “Poderes” estatais.
A mesma Suprema Corte, contudo, e em evolução a um entendimento anterior, entende constitucional a delegação de poderes legislativos pelo Congresso ao Executivo, desde que acompanhada de parâmetros claros quanto à matéria a ser regulada, bem como de critérios para possibilitar o controle do exercício da competência delegada.
Nesse ponto, e em adiantamento a questão que será abordada especificamente no trabalho, mostra-se oportuno salientar que a Jurisprudência da Suprema Corte americana, fundada na singeleza da redação do artigo 1o, I, da Constituição norte-americana de 1.787[1], parece não distinguir entre função legislativa e função normativa, negando ao Poder Executivo, nesse sentido, mesmo as competências necessárias para o que no Brasil se denomina poder regulamentar da Administração, sem que este esteja previsto expressamente em lei do Congresso.
Assim, qualquer pretensão do Executivo norte-americano de normatizar a conduta de particulares deverá ser fundamentada em delegação legislativa feita pelo Congresso por meio de lei específica, que, por sua vez, poderá passar pela análise de sua constitucionalidade segundo critérios estabelecidos em precedentes da Suprema Corte dos EUA, como será demonstrado ao longo do presente artigo.
Sucede que, mesmo influenciado pelo mesmo ideário iluminista de separação de poderes, o Brasil adotou, ao longo de sua história constitucional, posição mais flexível quanto a este ponto específico.
De início, mostra-se oportuno ressaltar que já nossa primeira Constituição Republicana (1.891), embora assumidamente inspirada na americana de 1.787, reconheceu expressamente uma competência normativa ao Poder Executivo no chamado poder de expedir decretos, instruções e regulamentos para a fiel execução das leis aprovadas pelo Congresso.
Desse modo, parece ser há muito pacífico na doutrina e jurisprudência brasileiras a possibilidade de se distinguir entre função normativa e função legislativa, sendo que a primeira não seria exclusiva ao Poder Legislativo.
Ademais, a história constitucional brasileira revela também particularidades bastante originais quanto à sua adoção do princípio da separação de poderes. De fato, conquanto o princípio esteja presente em todas as nossas cartas constitucionais desde 1.891, a atual Constituição Federal de 1.988 traz dois casos expressos em que o Executivo é autorizado a atuar ativamente como legislador positivo, contrariando o esquema básico proposto por Montesquieu para a separação de poderes, como será visto adiante.
Em verdade, no Brasil a Constituição permite um caso de delegação legislativa expressa, qual seja, a de leis delegadas previstas no artigo 68 da CF/88, instrumento estranho ao sistema constitucional norte-americano.
De igual sorte, a CF/88, e dessa vez se afastando ainda mais do modelo clássico proposto pelo Iluminismo político do século XVIII, previu competência legislativa individual do Presidente da República por meio de instrumento denominado medida provisória com força de lei. Dito expediente, embora inicialmente divisado como emergencial, temporário e excepcional, vem sendo massivamente utilizado pelos Presidentes brasileiros, trazendo notório desequilíbrio nas relações entre os Poderes Legislativo e Executivo, como, também, será demonstrado em parte específica do presente artigo.
Tendo em conta, pois, as similaridades filosóficas que fundamentaram a redação da constituição norte-americana e da brasileira, mostra-se oportuno e relevante passar em revista os problemas e soluções encontrados em cada um dos países para adequar a previsão constitucional de um sistema de separação de poderes com o fenômeno da crescente atividade normativa do Executivo a partir do século XX.
Estes, portanto, o intuito e a natureza do presente trabalho: passar em revista as posições doutrinárias e jurisprudenciais norte-americanas e brasileiras sobre o princípio da separação dos poderes e a atividade normativa do Poder Executivo, com especial atenção ao tema a delegação de poderes legislativos nos dois países
2. Separação de Poderes e Sistema de Freios e Contrapesos
2.1. Poder Político e Funções Estatais
Uma das primeiras advertências necessárias antes de se iniciar o desenvolvimento do presente texto diz respeito à compreensão dos termos a serem adiante utilizados. Embora o uso cotidiano entenda os termos poder e função estatal como intercambiáveis, o rigor científico recomenda, ainda que em forma de esclarecimento prévio, apartá-los no início do presente trabalho.
De fato, como advertido há muito por José Afonso da SILVA (1.999, págs. 110-11), o poder político é fenômeno sócio-cultural indivisível e indelegável, razão pela qual se mostra tecnicamente questionável falar em divisão, separação ou mesmo delegação do poder.
Igual cuidado com o ponto tinha Celso Ribeiro BASTOS (2.001, pág. 351), ao afirmar a incongruência de se pretender dividir o poder estatal:
“Vale, entretanto, notar que, qualquer que seja a forma ou o conteúdo dos atos do Estado, eles são sempre fruto de um mesmo poder. Daí ser incorreto afirmar a tripartição de poderes estatais, a tomar essa expressão ao pé da letra. É que o poder é sempre um só, qualquer que seja a forma por ele assumida. Todas as manifestações de vontade emanadas em nome do Estado reportam-se sempre a um querer único, que é próprio das organizações políticas estatais”.
Assim, mostra-se oportuno destacar a maior precisão de expressões como função do Estado ou função do poder político, que dizem respeito ao exercício da presumível vontade do Estado por meio de seus órgãos constitucionalmente instituídos. As funções, estas sim, são elementos discerníveis de maneira material e finalística (ainda que não subjetivamente, com base apenas no órgão que a exerce) e, portanto, divisíveis (bem como,ainda que hipoteticamente, delegáveis).
Mostra-se aqui oportuna a transcrição de trecho da obra de SILVA (1.999, pág. 112) em que, de forma sintética e feliz, descreve-se cada uma das três funções estatais em que se tradicionalmente divide o exercício do poder político ou o governo. Esclarece o autor citado:
“A função legislativa consiste na edição de regras gerais, abstratas, impessoais e inovadoras da ordem jurídica, denominadas leis. A função executiva resolve os problemas concretos e individualizados, de acordo com as leis; não se limita à simples execução das leis, como às vezes se diz; comporta prerrogativas, e nela entram todos os atos e fatos jurídicos que não tenham caráter geral e impessoal; por isso, é cabível dizer que a função executiva se distingue em função de governo, com atribuições políticas, co-legislativas e de decisão, e função administrativa, com suas três missões básicas: intervenção, fomento e serviço público. A função jurisdicional tem por objeto aplicar o direito aos casos concretos a fim de dirimir conflitos de interesse”. (destaques no original)
A experiência histórica iniciada com a Revolução Francesa fez que cada uma das funções estatais fosse exercida de modo especializado por um determinado órgão ou conjunto de órgãos estatais, como forma de se atender ao pressuposto ideológico trazido por doutrinadores políticos ligados ao ideário burguês dos séculos XVII-XVIII, no sentido de que as funções do Estado não deveriam estar concentradas em um única pessoa ou conjunto de pessoas.
Perceba-se, contudo, que a especialização das funções estatais será sempre questão de fundo e não de forma, isto é, mesmo quando eventualmente exercidas todas por uma só pessoa (como no caso hipotético de um Estado Absolutista), mostra-se perfeitamente possível discernir qual delas estará sendo exercida em dado momento, desde que observados os critérios acima mencionados.
Nada obstante, é fato que a mesma Revolução Francesa que instaurou o movimento constitucionalista moderno (junto com o movimento pela independência política dos EUA), fez da separação das funções estatais pedra-de-toque do chamado Estado Constitucional, a ponto de, no artigo XVI da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1.789, afirmar que o Estado em que não fossem separados o exercício de funções estatais, não haveria verdadeira constituição[2].
Relevante notar, contudo, que a confusão entre funções do Estado e poder político é antiga. A própria Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão mencionada utiliza a expressão separação de poderes para o fenômeno que aqui se deseja chamar especialização de funções, atitude aparentemente repetida tanto pelo Constituinte Norte-Americano de 1.787[3] quanto pelo brasileiro de 1.988[4].
Dessa forma, embora seja feito um esforço consciente no uso das expressões função legislativa, executiva e judiciária, mostra-se inócuo lutar contra a locução separação de poderes, adotada pelo próprio texto constitucional brasileiro de forma expressa.
2.2. Separação de Poderes x Freios e Contrapesos
Como visto linhas acima, a própria idéia de constitucionalismo moderno inaugurada em fins do século XVIII por franceses e norte-americanos parece exigir uma forma de governo em que as funções estatais sejam distinguidas e executadas por órgãos ou departamentos distintos do Estado, dando-se a tal premissa o nome de teoria da separação dos poderes.
As fontes filosóficas que inspiraram tais preceitos políticos devem ser buscadas na reação burguesa ao chamado Estado Absolutista, em que um único indivíduo (o monarca absoluto) via-se como titular e executor de todas as funções estatais, criando normas de condutas para aplicação geral, aplicando-as ao caso concreto e julgando as contendas havidas entre os particulares ou entre estes e o Estado.
Por óbvio, mesmo no Estado do “antigo regime” o monarca não desempenhava materialmente todas as funções diretamente. Havia órgãos que, seja com sua delegação expressa seja com seu consentimento, desempenhavam, desde a baixa idade média, várias das competências públicas[5].
Nada obstante, a concentração de funções estatais em uma só pessoa foi vista pelos autores do Iluminismo como fonte dos males políticos da sociedade do século XVIII, caracterizando-a como fruto da irracionalidade e do despotismo.
De fato, o teórico político mais relevante do Iluminismo, Charles Louis de Secondat, conhecido por seu título nobiliárquico de barão de La Brède e de MONTESQUIEU (2.010, pág. 166), preconizava o direito do cidadão ao exercício das funções estatais por órgãos distintos, como visto na transcrição de sua obra abaixo trazida:
“A liberdade política, em um cidadão, é essa tranqüilidade de espírito que decorre da opinião que cada um tem de sua segurança; e, para que se tenha essa liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo que um cidadão não possa temer outro cidadão. Quando em uma só pessoa ou em um mesmo corpo de magistratura, o Poder Legislativo está reunido ao Poder Executivo, não pode existir liberdade, pois se poderá temer que o mesmo monarca ou o mesmo Senado criem leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o poder de julgar não estiver separado do Poder Legislativo e do Executivo. Se o Poder Executivo estiver unido ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria o legislador. E se estiver ligado ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo então estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de criar leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes e as querelas dos particulares”.
Como se percebe do trecho acima trazido, o pensamento de MONTESQUIEU discernia claramente a existência de distintas funções estatais (poderes). Não é correto afirmar, contudo, que a distinção elaborada implicava o exercício isolado e exclusivo de cada um por diferentes órgãos do Estado.
Em verdade, como bem aponta Eros Roberto GRAU, para MONTESQUIEU o exercício de cada uma das funções estatais por um órgão ou departamento deveria sofrer influência (mesmo que apenas obstativa) de outro, para que, segundo a famosa locução do autor francês, “o poder limitasse o próprio poder”.
De fato, notou GRAU (2.008, pág. 230) que “o que importa verificar, inicialmente, na construção de Montesquieu, é o fato de que não cogita de uma efetiva separação de poderes, mas sim de uma distinção entre eles que, não obstante, devem atuar em clima de equilíbrio”.
A idéia de equilíbrio e de contenção de poder pelo poder, também clássica no constitucionalismo moderno, foi desenvolvida com maior felicidade pelos federalistas americanos no movimento que precedeu à elaboração da Constituição Federal de 1.787, havendo recebido a designação de freios e contrapesos (checks and balances).
Sucede, contudo, que, se a separação de poderes vista no modelo elaborado por MONTESQUIEU foi elaborada seguindo um ideal racionalista destinado a garantir a liberdade e o sossego do cidadão individual, a matriz norte-americana voltou-se a suprir um desejo bem mais pragmático de assegurar um governo responsável perante os cidadãos e eficiente para a nova república então fundada no lado ocidental do Atlântico.
Deveras, os próprios constitucionalistas norte-americanos apontam que os redatores da Constituição Federal de 1.787 (os chamados Framers) tinham pouca uniformidade conceitual quanto à teoria da separação de poderes a par de que esta deveria ser adotada no novo país. Veja-se, por oportuno, o relato de Lawrence H. TRIBE sobre o assunto (2.000, pág. 127):
“A doutrina da separação de poderes que tem evoluído durante os últimos duzentos anos é menos um produto de filosofia política que de uma experiência prática. Noções modernas de separação de poderes não podem ser facilmente deduzidas das inclinações políticas dos Framers, qualquer que seja a força normativa que tais inclinações possam ter hoje. ‘Tanto os framers quanto os homens que participaram da primeira administração sob a nova constituição (muitas vezes, claros, as mesmas pessoas) estavam preocupados mais com a melhoria da eficiência e capacidade do governo nacional que com a criação de um sistema de governo baseado em princípios abstratos de filósofos políticos’. Apesar de conceitos quanto a separação de poderes hajam tido algum peso na formação das perspectivas daqueles que construíram o novo governo, ‘as percepções expressadas não eram doutrinárias – em parte porque não havia doutrina clara’. Apesar de que a afirmação possa ser um tanto exagerada, pode-se razoavelmente dizer que ‘os indícios históricos sugerem que as idéias dos framers sobre a separação de poderes era incipiente e imprecisa, e que eles tinham poucos arranjos institucionais consensados além do princípio básico que deveria haver uma separação de poderes[6]”’.
Assim, podemos apontar que, conquanto correlacionadas, as idéias de separação de poderes adotadas por MONTESQUIEU e pelos constituintes norte-americanos (Framers) não eram inspiradas pelos mesmos fundamentos nem necessariamente buscavam a atingir os mesmos objetivos primários.
Nada obstante, pode-se sem dúvida traçar alguns pontos comuns a ambas as vertentes da separação de poderes mencionadas.
A primeira é a da conveniência de identificação do exercício de cada uma das funções estatais com um determinado departamento do governo, que seria constitucionalmente encarregado de exercê-la de forma autônoma (mas não livre de qualquer interferência dos outros departamentos).
Nesse sentido, a concepção do Poder Legislativo como órgão estatal formulador de políticas gerais possuía um objetivo pragmático. Uma vez que os congressistas em uma democracia precisam (ou pretendem) ser periodicamente reeleitos, sua atuação normativa seria influenciada por uma “prospecção” da aceitabilidade das normas propostas pelo seu eleitorado. Ao fazer leis genéricas, os legisladores individuais veriam reduzido seu interesse imediato na sua aplicação a casos concretos, cuidando de criar normas mais “impessoais” e “justas”.
Ao Executivo, a aplicação da lei ao caso concreto mostra-se como uma atividade previsível e finalística, isto é, dada a generalidade da norma e a concretude da conduta humana nela prevista, o ato administrativo seria um silogismo influenciado por uma finalidade específica.
Ao Judiciário, por sua vez, competeria examinar conflitos concretos envolvendo a aplicação da lei genérica ao caso concreto, bem como aferir a constitucionalidade/legalidade da atividade (normativa e administrativa) do Estado.
A outra idéia comum a MONTESQUIEU e aos Framers é a de que os “poderes” devem ter ao menos a capacidade de obstar o exercício da função estatal típica dos outros ramos governamentais.
De fato, MONTESQUIEU (2.010, pág. 171) advertiu que
“Se o Poder Executivo não tem o direito de controlar os empreendimentos do corpo legislativo, este tornar-se-á despótico, pois, como pode atribuir a si todo o poder que pode imaginar, destruirá todos os outros poderes”.
A advertência do Barão parece ter sido tomada em conta pelos federalistas americanos, que incluíram no artigo 1o, inciso II da Constituição Americana a possibilidade do veto presidencial sobre todo e qualquer projeto de lei aprovado pelas duas casas do Congresso (embora não tenham sido generosos como o Constituinte Brasileiro de 1.988, que permitiu também a capacidade legiferante ativa do Presidente por meio das chamadas medidas provisórias com força de lei, previstas no artigo 62 da Constituição Federal de 1.988).
2.3. Separação de Poderes na Arquitetura Constitucional Americana e Brasileira
A constituição norte-americana de 1.787 foi a primeira experiência prática duradoura do constitucionalismo fundamentado na Iluminismo do século XVIII e no conceito de uma divisão racional do exercício das funções do poder político em diferentes ramos ou departamentos estatais. Nesse sentido, mostra-se documento de suma importância histórica e prática para o estudo da aplicação da teoria da separação dos poderes adotada de forma hegemônica em todo o continente ocidental ao longo dos séculos XIX e XX.
Sucede que, como já afirmado linhas acima, os Framers (propositores originais da Constituição americana) não parecem haver pretendido avançar para além de um desenho básico em que se registrasse a divisão do exercício das funções estatais entre departamentos distintos da União recém-formada.
De fato, o artigo 1º da Constituição norte-americana limita-se a conceder “todos os poderes legislativos” a um Congresso bicameral, a ser formado por representantes dos eleitores (Câmara dos Representantes) de cada Estado – membro da União e de representantes dos próprios Estados – membros[7].
De igual modo, a alocação da função executiva a um Presidente da República foi feita de forma singela pelo artigo 2o da Constituição americana, sem qualquer especificação quanto ao modo ou limites de seu exercício[8]. As disposições constitucionais expressas quanto ao Presidente trazidas pelo artigo 2o da Constituição americana dizem respeito aos requisitos para o exercício do cargo e forma de eleição, o papel do Presidente como chefe das forças armadas nacionais e sua competência para, com a aquiescência de 2/3 do Senado, celebrar tratados internacionais com potências estrangeiras.
Por fim, o artigo 3o é ainda mais econômico no que toca ao chamado Poder Judiciário, definindo apenas um órgão necessário (a Suprema Corte) e remetendo ao Congresso a disciplina para a criação de outras cortes e da competência recursal da Suprema Corte (a competência originária do tribunal é traçada no artigo 2o, II, 2 da Constituição).
Percebe-se, deste modo, que os constituintes americanos originários previram uma divisão orgânica das funções estatais, mas não parecem ter ido além de traçar linhas bastante gerais e abstratas quanto à matéria.
Tendo em conta a generalidade das normas constitucionais americanas sobre a separação de poderes, compreende-se facilmente a importância de buscar nos precedentes da Suprema Corte a interpretação prática sobre o topos aqui discutido, ainda mais quando reconhecido o valor do precedente judicial nos sistemas da common law como o norte-americano.
Assim, e parafraseando um famoso jurista brasileiro, mostra-se mais proveitoso perquirir o que a Suprema Corte entende ser a compreensão dos Framers sobre a separação dos poderes do que propriamente buscar maior exegese sobre a obra jurídica legada por aqueles.
A atual Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88), fruto de uma longa evolução tanto dogmática quanto experimental, foi sensivelmente mais analítica sobre a separação de poderes do que a americana de 1.787.
De fato, a CF/88 inicia seu texto com uma clara assunção de um sistema tripartite quanto ao exercício das funções estatais, alegando a existência de poderes “independentes e harmônicos” no âmbito da União[9].
Talvez mais relevante, o texto constitucional brasileiro fez da ameaça ao livre exercício das competências constitucionais de qualquer dos Poderes motivo para a intervenção nos Estados-membros, fato que demonstra um comprometimento mais expresso da CF/88 com a teoria da separação de poderes clássica[10].
De igual modo, a CF/88 foi mais analítica no tratamento dado ao sistema de freios e contrapesos originalmente posto em prática pelos americanos em 1.787. A par de prever os clássicos mecanismos do veto presidencial (art. 66, §1o) para projetos de leis aprovados pelo Congresso e o controle parlamentar sobre a indicação de certos ocupantes de cargos administrativos (art. 52, III), trouxe a prerrogativa do Congresso Nacional de sustar os atos normativos editados pelo Poder Executivo que extrapolem sua competência ou a delegação concedida (art. 49, V).
Nada obstante, a mesma CF/88 trouxe dois mecanismos estranhos à teoria clássica da separação dos poderes, a possibilidade de delegação do Congresso ao Presidente para a elaboração de lei (art. 68) e as politicamente traumáticas medidas provisórias com força de lei (art. 62)[11].
De qualquer maneira, vemos que tanto a constituição americana de 1.787 quanto à brasileira de 1.988 parecem ter adotado um esquema básico de separação de poderes fundado na eleição de órgãos constitucionais destinados cada um a executar primordialmente uma das funções de governo: traçar normas gerais e abstratas, executar políticas públicas e aplicar em concreto as normas trazidas pelas leis; e dirimir controvérsias concretas sob a aplicação do Direito no país.
Exposta, pois, a arquitetura constitucional positiva adotada pelos textos americano e brasileiro de um modo geral, cumpre neste momento ressaltar um fenômeno que, se não exatamente novo, ainda desperta algum desconforto entre juristas e políticos: o exercício de função normativa pelo Poder Executivo nos EUA e no Brasil.
3. Exercício da Função Normativa pelo Executivo
3.1. Função Normativa e Função Legislativa
Foi afirmado nas linhas acima que a produção de normas de conduta pelo Estado é usualmente identificada com a chamada função legislativa e conferida, nos sistemas constitucionais modernos, prioritariamente aos órgãos de representação democrática dos cidadãos (parlamentos, congressos, assembléias etc). A assertiva, conquanto não exatamente incorreta, mostra-se, ao menos no que tange ao Brasil, imprecisa.
De fato, a doutrina e a jurisprudência brasileiras sempre identificaram uma competência normativa ordinariamente conferida pelos diversos textos constitucionais ao Poder Executivo, em especial ao seu chefe máximo, o Presidente da República.
Sem dúvida, a competência normativa do Executivo sempre foi encarada como secundária ou derivada, isto é, dependente e limitada por parâmetros criados, de forma mais ou menos discricionária, pela lei emanada pelo Congresso Nacional a que a norma criada pelo Executivo deve, sempre, fazer referencia.
Assim, mostra-se possível asseverar que a função normativa mostra-se, em verdade, conceito distinto do que o de função legislativa, sendo cada um destes derivados com fundamento em critérios classificatórios diversos.
A distinção, parece-nos, foi muito bem ressaltada por GRAU (2.008, págs. 240-242) que, valendo-se de proposta da doutrina italiana, assim colocou o tema:
“Ao referir a função legislativa, Alessi (1978/6-7 e 14) indica ser ela construída – tal como venho afirmando – a partir de uma perspectiva subjetiva, decorrente da adoção do sistema de divisão dos poderes. Consagrada tal adoção, resta confiada a determinados órgãos a tanto predispostos a tarefa suprema de constituir (integrar) o ordenamento jurídico. A tais órgãos –que constituem o Poder Legislativo -, pois, na colocação de Alessi, resulta confiada a tarefa de emanar estatuições primárias, isto é, que valem por força própria. Mas – continua Alessi – ao Poder Legislativo está atribuída também a emanação de certos atos que não estão efetivamente voltados à integração do ordenamento jurídico, albergando, portanto, diverso conteúdo e diversa finalidade. Cumpre mencionar, neste passo, os atos legislativos que se refere como lei em sentido formal. Trata-se de estatuições primárias, na medida em que emanadas do Poder Legislativo, ainda que sem conteúdo normativo; leis, embora não possam ser caracterizadas como normas jurídicas. (…)
Alessi conclui sua exposição contrapondo as noções de lei e de norma. Norma é todo preceito expresso mediante estatuições primárias (na medida em que vale por força própria, ainda que eventualmente com base em um poder nao originário, mas derivado ou atribuído ao órgão emanente), ao passo que lei é toda estatuição, embora carente de conteúdo normativo, expressa, necessariamente com valor de estatuição primária, pelos órgãos legislativos ou por outros órgãos delegados daqueles. A lei não contem, necessariamente, uma norma. Por outro lado, a norma não é necessariamente emanada mediante uma lei. E, assim, temos três combinações possíveis: a lei-norma, a lei não-norma e a norma não-lei. (…)
A partir das colocações de Alessi podemos referir a função legislativa como aquela de emanar estatuições primárias, geralmente – mas não necessariamente – com conteúdo normativo, sob a forma de lei. A noção de função legislativa, assim, é tautológica, fundada sobre um conceito formal. (…)
É necessário apontar, de toda sorte, neste passo, que a distinção entre função normativa e função legislativa impõe-nos a manipulação de critérios distintos: a noção de função normativa pode ser alinhada desde a consideração de critério material; a de função legislativa apenas se torna equacionável na consideração de critério formal. (…)
Mais ainda – cumpre reter também -, entende-se como função normativa a de emanar estatuições primárias, seja em decorrência de exercício do poder originário para tanto, seja em decorrência de poder derivado, contendo preceitos abstratos e genéricos”.
Infelizmente, as distinções ora traçadas não parecem ser comuns no direito constitucional norte-americano que, seja pela singeleza do texto de sua constituição seja pelas particulares formas de pensamento típicas em um sistema de common law, decide identificar os dois conceitos aqui traçados sob o nome de função (ou poder) legislativo, e reconhecê-la como atribuição típica do Congresso norte-americano.
A recusa em admitir a distinção entre função normativa e função legislativa nos EUA gerou um particular abalo no entendimento clássico sobre a teoria da separação dos poderes naquele país com a proliferação de órgãos e entes administrativos com uma acentuada competência normativa a partir da primeira metade do século XX, fenômeno a ser examinado no item precedente.
3.2. A Experiência Americana com as Agências Reguladoras Independentes
Como visto linhas acima, ainda que admitindo certo compartilhamento (ou cogerência) de funções típicas pelos diversos departamentos do governo (Poderes) da República, tanto a Constituição americana quanto a Brasileira trazem um claro esquema distributivo de competências. Nesse esquema básico, cabe ao Congresso o exercício da função normativa primária (legislativa ou legiferante), ao Presidente da República (Executivo), a aplicação das políticas públicas e leis traçadas pelo Congresso; aos Tribunais (Judiciário), a solução de controvérsias concretas quanto à aplicação do direito e o controle de constitucionalidade da atividade legiferante desenvolvida pelo Congresso, bem como da legalidade do exercício da função administrativa pelo Executivo.
Ocorre, todavia, que a primeira metade do século XX trouxe uma nova experiência jurídico-administrativa nos Estados Unidos da América, manifestada pela proliferação de entes administrativos com ampla competência normativa sobre determinados setores da economia americana, as chamadas agências regulatórias independentes.
Em verdade, o primeiro dos entes administrativos a possuir competência normativa sobre um setor econômico nos EUA foi criado ainda no final do século XIX, com a promulgação do Interstate Commerce Act em 1.887. A lei (act) previu a criação de uma comissão federal com poderes para regular preços máximos para tarifas cobradas por companhias que exploravam ferrovias, critérios de segurança para os serviços prestados, bem como outras competências regulatórias técnicas e econômicas[12].
Nada obstante, há consenso na doutrina americana no sentido de que as políticas trazidas no bojo do plano de recuperação econômica denominado New Deal pelo Presidente Franklin D. Roosevelt marcaram o momento crucial das chamadas agências reguladoras independentes como as entendemos hoje (BREYER, 2.008. Pág. 18).
As agências reguladoras criadas como instrumento para a efetivação das medidas jurídico-econômicas trazidas pelo New Deal foram dotadas pelo Congresso Americano com um amplo poder normativo, com competência para baixar atos que não poderiam ser tidos como mero “preenchimento de detalhes” de atos legais promulgados pelo Congresso[13].
Em verdade, o Congresso concedeu a várias agências criadas nos EUA competências amplas como estabelecer requisitos técnicos básicos para a prestação de alguns serviços, instituir preços máximos (price caps) para os serviços prestados e mesmo para impor regras de negociação de salários e benefícios com os empregados das companhias reguladas.
Sucede, contudo, que parece ter sido uma constante nos EUA o entendimento de que a interferência estatal na propriedade privada e na rotina estabelecida pelas forças de um mercado livre há de ser operacionalizada por meio de lei aprovada no Congresso, descabendo, portanto, ao Executivo imiscuir-se originalmente (e por sua conta e risco) em tais searas[14].
Perceba-se, ademais, que ao contrário da atual constituição brasileira, a constituição americana não previu a possibilidade de leis delegadas (menos ainda o instrumento das chamadas medidas provisórias), devendo toda lei provir necessariamente do Congresso.
Assim, a expressão do artigo 1o, I, da constituição norte-americana que alocou “todo o poder legislativo” no Congresso foi tradicionalmente interpretada pela Suprema Corte como incompatível não só com a criação de direitos e obrigação por entes administrativos sem respaldo direto em lei em sentido formal, mas também com a transferência (delegação) voluntária de tal poder pelo Congresso.
De fato, já no caso Shankland vs. Corporation of Washington (1.831) a Suprema Corte pronunciou-se no sentido de ser “um princípio geral de direito que o poder delegado não pode ser mais uma vez delegado [por seu delegatário originário][15]”.
Mais especificamente, desde 1.892, ao julgar o caso Field vs. Clark, a Suprema Corte assentou entendimento no sentido de que o Congresso não pode delegar seu poder legislativo, sendo este princípio “universalmente reconhecido como vital para a integridade e manutenção do sistema de governo traçado pela Constituição[16]”.
Assim, uma objeção teórica (e, nos EUA, bastante concreta por meio de sucessivos desafios judiciais) ao exercício de funções normativas pelas agências se deu pela chamada doutrina da indelegabilidade de poder legislativo (non-delegation doctrine), questão a ser exposta com mais detenção em seção subseqüente do presente trabalho.
3.3 Função Normativa do Executivo no Brasil
3.3.1 Idéias Gerais, Lei Delegada e Medida Provisórias com Força de Lei
No Brasil, a primeira constituição republicana e as subseqüentes promulgadas em períodos democráticos (ou seja, a de 1.946 e de 1.988) buscaram inspiração no modelo norte-americano, promovendo, contudo, sensíveis modernizações a um texto composto no final do século XVIII.
Nesse passo, a arquitetura básica para a repartição de competências da União observou de forma geral o exemplo de separação de poderes e freios e contrapesos posto em prática pelos americanos em 1.787. Nada obstante, desde a Constituição brasileira de 1.891 foi reconhecida de forma expressa ao Poder Executivo uma competência reguladora das normas gerais e abstratas promulgadas pelo Congresso Nacional[17].
Infelizmente, as aventuras autoritárias da política brasileira nos períodos entre 1.930-1.945 e 1.964-1.988 implicaram um agigantamento do Poder Executivo, de maneira que, mesmo em momentos em que a estrutura constitucional da separação de poderes permanecia formalmente vigente (como entre 1.934-1.937 ou 1.964-1.968), o uso da força coercitiva do Executivo contra os demais poderes estatais tornava qualquer estudo sobre normas constitucionais políticas inócuo face à realidade política observada.
De qualquer maneira, a última restauração do Estado de Direito no país com a promulgação da Constituição Federal de 1.988 restabeleceu a fórmula clássica de separação de poderes e freios e contrapesos tradicionalmente afirmada em nossa história constitucional[18].
De se notar, entretanto, que a atual matriz constitucional previu uma ampla atividade normativa do Poder Executivo, não apenas no que tange ao tradicional poder de regulamentar as leis com a expedição de decretos para seu fiel cumprimento (art. 84, VI), mas também hipóteses em que o Presidente participa (ou pode participar) ativamente do processo de criação de leis em sentido estrito.
De fato, resgatando uma hipótese prevista inicialmente na Constituição Federal de 1.946 em seu texto emendado, a CF/88 previu a possibilidade de elaboração leis delegadas (art. 68), um instrumento desconhecido na prática norte-americana.
A delegação prevista na atual CF/88 deve ser requisitada pelo Presidente da República ao Congresso Nacional que, anuindo com o pedido, concede-a por meio de resolução própria, trazendo os parâmetros fundamentais do diploma legislativo a ser editado pelo Executivo.
Ressalta-se que, embora a delegação feita pelo Congresso Nacional seja provisória e pontual, uma vez operada, resulta em diploma legislativo com exatamente a mesma forma e natureza das leis ordinárias produzidas em conjunto pela Câmara dos Deputados e o Senado Federal.
Perceba-se que o modelo previsto no Brasil é frontalmente contrário ao esquema teórico traçado por Montesquieu, que divisava para o Executivo apenas competências legislativas negativas, isto é, capacidade para vetar iniciativas do parlamento que contrariassem o interesse público ou a constituição do país.
No modelo adotado para a lei delegada, há verdadeiro exercício de função legislativa positiva pelo Presidente da República, com o consentimento expresso e prévio do Congresso Nacional.
Sobre a matéria, interessante a opinião dada Alexandre de MORAES (2.009, págs. 688-689) em que o ponto é abordado, verbis:
“Ressalte-se, pela importância, o caráter temporário da delegação, que jamais poderá ultrapassar a legislatura, sob pena de importar em abdicação ou renúncia do Poder Legislativo a sua função constitucional, o que não será permitido. Esta característica de irrenunciabilidade da função legiferante permite que, mesmo durante o prazo concedido ao Presidente da República para editar a lei delegada, o Congresso Nacional discipline a matéria por meio de lei ordinária. Além disso, nada impedirá que, antes de encerrado o prazo fixado na resolução, o Legislativo desfaça a delegação. Retornando a resolução ao Presidente da República, este elaborará o texto normativo, promulgando-o e determinando sua publicação, uma vez que se a ratificação parlamentar não for exigida, todo o restante do processo legislativo se esgotará no interior do Poder Executivo (delegação típica ou própria)”. (destaques no original)
Inovação ainda mais original em relação ao modelo previsto pelos norte-americanos em 1.787 se deu com a criação das chamadas medidas provisórias com força de lei pela Constituição Federal de 1.988.
Nessa espécie normativa, o Presidente da República encontra-se livre para editar unilateralmente normas primárias com eficácia vinculante imediata sem o consentimento prévio do Congresso Nacional, sobre uma gama enorme de assuntos da mais alta relevância.
A criação da medida pelo artigo 62 da CF/88 foi, como previsivelmente seria para qualquer observador atento do caráter político do Poder Executivo nacional, verdadeira porta de entrada do Presidente para o processo legislativo ativo no país.
De fato, apenas para o período compreendido entre 1999-2002, 57,8% das leis aprovadas no Brasil tiveram sua origem no Executivo, sendo 28% resultaram da conversão de medidas provisórias pelo Congresso Nacional[19].
As reformas constitucionais feitas em 2001 sobre a matéria não parecem haver surtido grande efeito sobre o ritmo de produção de medidas provisórias pelos sucessivos presidentes brasileiros, que, com o uso do instrumento, operaram verdadeiro seqüestro da agenda normativa do Congresso Nacional.
Por fim, perceba-se apenas que, se na lei delegada o Congresso Nacional exerce ao menos um critério prévio sobre a parcela de competência legislativa concedida ao Presidente, a medida provisória vige desde sua publicação unilateral, e, mesmo quando eventualmente não aprovada a posteriori pelo Legislativo, pode permanecer regendo as situações constituídas sob a sua égide por tempo indeterminado[20].
3.3.2. Poder Regulamentar no Brasil
Já foi dito alhures no presente trabalho que no Brasil, distintamente do observado nos EUA, sempre foi reconhecida uma competência normativa do Poder Executivo (em especial, de seu chefe máximo, o Presidente da República) para baixar atos destinados a “detalhar” as normas gerais e abstratas estabelecidas pela lei criada pelo Congresso.
A competência normativa do Executivo ora mencionada sempre foi encarada, contudo, como dependente de um texto normativo legal (isto é, oriundo do Poder Legislativo e aprovado segundo as normas de processo legislativo constitucionalmente previstas), ao qual devia obediência.
À competência normativa do Executivo nos moldes salientados consensou-se dar o nome de poder regulamentar, sendo seu principal fruto o chamado decreto de execução baixado pelo Presidente da República.
Veja-se, por exemplo, o que dizia Hely Lopes MEIRELLES (2.009, págs. 129-130), administrativista brasileiro de inegável filiação à escola clássica sobre a função normativa do Executivo desempenhada por meio do poder regulamentar:
“O poder regulamentar é a faculdade de que dispõem os Chefes do Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) de explicar a lei para sua correta execução, ou de expedir decretos autônomos sobre a matéria de sua competência ainda não disciplinada por lei. É um poder inerente e privativo do Chefe do Executivo (CF, art. 85, IV), e, por isso mesmo, indelegável a qualquer subordinado. No poder de chefiar a Administração está implícito o de regulamentar a lei e suprir, com normas próprias, as omissões do Legislativo que estiverem na alçada do Executivo. Os vazios da lei e a imprevisibilidade de certos fatos e circunstâncias que surgem, a reclamar providências imediatas da Administração, impõem se reconheça ao Chefe do Executivo o poder de regulamentar, através de decreto, as normas legislativas incompletas, ou de prover situações não previstas pelo legislador, mas ocorrentes na prática administrativa. O essencial é que o Executivo, ao expedir regulamento – autônomo ou de execução da lei – , não invada as chamadas ‘reservas da lei’, ou seja, aquelas matérias só disciplináveis por lei, e tais são, em princípio, as que afetam as garantias e os direitos individuais assegurados pela Constituição (art. 5o)”. (destaques no original)
Nesse passo, e resgatando as idéias já desenvolvidas no presente trabalho, pode-se ter como premissa que o chamado poder regulamentar do Executivo, pode ser enquadrado no conceito de função normativa descrito linhas acima. De se notar, contudo, que sua natureza é consensualmente tida como subordinada ao produto da função legislativa exercida pelo Congresso, isto é, as leis em sentido formal devidamente aprovadas pelo Poder Legislativo.
3.3.3. A Criação de Agências Reguladoras no Brasil: Nova Forma para um Velho Problema
As agências reguladoras independentes são, ao menos formalmente, fenômeno recente no Brasil.
Em verdade, a idéia de entes administrativos dotados de poder normativo sobre determinados setores econômicos não é exatamente nova no pais, mas apenas a reunião em um só ente de uma competência mais ampla, anteriormente dispersada por vários órgãos da Administração Pública brasileira. Veja-se, a propósito, a breve observação de Marçal JUSTEN FILHO (2.009, pág. 584) sobre o ponto ora destacado:
“A figura das agências reguladoras se insere no processo de dissociação entre a prestação de serviços públicos e sua regulação. Mais ainda, é resultado da proposta de assegurar que a disciplina dos serviços públicos seja norteada por critérios não exclusivamente políticos. É usual considerar as agências reguladoras como fenômeno inovador. E alguns reprovam tais novidades, imputando-lhe o cunho de inconstitucionalidade. No entanto, as inovações trazidas, isoladamente consideradas, são muito reduzidas. A maior parte das ‘novidades’ já se encontrava em instituições administrativas brasileiras muito antigas. Talvez, a grande inovação trazida pela proposta das agências reguladoras seja a concentração em uma única instituição autárquica de diversas características que existiam isoladamente em certos órgãos”.
De qualquer forma, as chamadas agências reguladoras independentes foram criadas no Brasil em movimento contemporâneo ao processo de “retirada do Estado” do desempenho direto de várias atividades econômicas e serviços públicos, comumente denominado “privatização[21]”.
As primeiras agências reguladoras foram criadas para disciplinar um setor de prestação de serviços públicos (os geração, transmissão e distribuição de energia elétrica) e uma atividade até então desenvolvida em regime de monopólio público (a prospecção e refino de petróleo e seus derivados) na segunda metade dos anos 1990.
Nesse passo, ainda que sem uma uniformidade na sua conformação jurídica, o Legislador brasileiro definiu um parâmetro mais ou menos similar para as várias agências criadas no impulso de “privatização”. Primeiro, foram todas criadas como autarquias federais incumbidas de um setor específico (energia elétrica, telecomunicações, petróleo e gás etc.). Segundo, foram dotadas de diretorias colegiadas, formadas por membros com mandato fixo e estabilidade relativa, apontados pelo Presidente e submetidos à aprovação do Senado Federal.
Por fim, todas as agências reguladoras foram dotadas de competência normativa (de grau bastante variável de acordo com cada lei de criação específica) para disciplinar seus setores, sempre tendo como parâmetro as balizas trazidas em suas leis de criação.
A adoção no Brasil de sistema semelhante (na forma e denominação, mais do que no conteúdo) ao praticado nos Estados Unidos levou, previsivelmente, a um profundo questionamento sobre a compatibilidade do exercício de poder normativo por entes administrativos com a realidade constitucional brasileira.
Perceba-se, nesse passo, que, como já visto acima, o reconhecimento do chamado poder regulamentar do Executivo no Brasil é fato incontroverso em nossa doutrina e expresso no texto constitucional vigente no país, diferente do que ocorre nos EUA, onde não há disposição expressa neste sentido na Constituição de 1.787.
De fato, o artigo 84, IV da Constituição Federal de 1.988 traz como competência do Presidente da República expedir decretos destinados a dar fiel execução das leis promulgadas pelo Congresso Nacional.
Nesse diapasão, e em consonância com a tradição jurídica brasileira, o exercício de função normativa derivada[22] destinada a trazer regras de operacionalização do direito criado pela lei elaborada pelo Congresso, sendo tal capacidade presumida e dispensada mesmo da necessidade de previsão expressa nos textos legais.
Veja-se, no sentido aqui comentado, trechos de duas decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria:
“Decretos existem para assegurar a fiel execução das leis (art. 84, IV, da CF/1988). A EC 8 de 1995 – que alterou o inciso XI e alínea a do inciso XII do art. 21 da CF – é expressa ao dizer que compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei. Não havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o assunto tende a ser adotada em lei formal. O decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição a exige. A Lei 9.295/1996 não sana a deficiência do ato impugnado, já que ela é posterior ao decreto[23]”.
“Trata-se de ação direta na qual se pretende seja declarada inconstitucional lei amazonense que dispõe sobre a realização gratuita do exame de DNA. (…) Quanto ao art. 3º da lei, a ‘autorização’ para o exercício do poder regulamentar nele afirmada é despicienda, pois se trata, aí, de simples regulamento de execução. Em texto de doutrina anotei o seguinte: ‘(o)s regulamentos de execução decorrem de atribuição explícita do exercício de função normativa ao Executivo (Constituição, art. 84, IV). O Executivo está autorizado a expedi-los em relação a todas as leis (independentemente de inserção, nelas, de disposição que autorize emanação deles). Seu conteúdo será o desenvolvimento da lei, com a dedução dos comandos nela virtualmente abrigados. A eles se aplica, sem ressalvas, o entendimento que prevalece em nossa doutrina a respeito dos regulamentos em geral. Note-se, contudo, que as limitações que daí decorrem alcançam exclusivamente os regulamentos de execução, não os ‘delegados’ e os autônomos. Observe-se, ainda, que, algumas vezes, rebarbativamente (art. 84, IV), determinadas leis conferem ao Executivo autorização para a expedição de regulamento tendo em vista sua fiel execução; essa autorização apenas não será rebarbativa se, mais do que autorização, impuser ao Executivo o dever de regulamentar’. No caso, no entanto, o preceito legal marca prazo para que o Executivo exerça função regulamentar de sua atribuição, o que ocorre amiúde, mas não deixa de afrontar o princípio da interdependência e harmonia entre os poderes. A determinação de prazo para que o chefe do Executivo exerça função que lhe incumbe originariamente, sem que expressiva de dever de regulamentar, tenho-a por inconstitucional. Nesse sentido, veja-se a ADI 2.393, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 28-3-2003, e a ADI 546, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 14-4-2000. Quanto ao parágrafo único do art. 3º, credencia ‘um Órgão Público’ para o efetivo cumprimento do objeto da lei, ‘mediante dotação orçamentária governamental’. Esse ‘credenciamento’ de ‘um órgão público’ indeterminado é tecnicamente incorreto, não me parecendo, todavia, inconstitucional. Inova o ordenamento jurídico no sentido de prover a efetividade material ou eficácia social do preceito veiculado pelo art. 1º da lei estadual. O texto desse parágrafo único do art. 3º conforma a regulamentação da lei pelo Executivo, que a desenvolverá de acordo com a conveniência da Administração, no quadro do interesse público. Ante o exposto, julgo parcialmente procedente o pedido formulado e declaro inconstitucionais os incisos I, III e IV, do art. 2º, bem como a expressão ‘no prazo de sessenta dias a contar da sua publicação’, constante do caput do art. 3º da Lei 50/2004 do Estado do Amazonas[24].”
Tal como já exposto acima e evidenciado pelos precedentes do STF ora apresentados, o poder regulamentar do Executivo no Brasil é tradicionalmente visto como competência própria, não se questionando sobre delegação (implícita ou explícita) de parcela de competência do Poder Legislativo. Existe, antes, para dar efetivo cumprimento às normas gerais e abstratas definidas pelo Congresso Nacional por meio de leis.
Esclarecido tal ponto, cumpre-nos agora apresentar as posições americana e brasileira sobre a possibilidade de real delegação de função normativa pelo Legislativo ao Executivo.
4. Delegação Legislativa. Possibilidade e Limites nos EUA e no Brasil
4.1. EUA
Já foi ressaltado linhas acima que os constituintes americanos (Framers) tinham como escopo divisar uma arquitetura constitucional que impedisse a acumulação de demasiado poder político em um único órgão do Estado, bem como preservasse um equilíbrio entre a autonomia dos Estados-Membros da federação e os interesses da união federal. Não se vincularam, ao menos até onde acordam os historiadores jurídicos norte-americanos, a uma teoria político-constitucional expressa, mas antes construíram alicerces políticos claros, porém suficientemente plásticos para uma construção jurisprudencial e prática com base em princípios gerais e o que se chama, no Brasil, de cláusulas abertas (de uso rotineiro e frutífero em sistemas de Common Law).
Nesse sentido, a singela afirmação contida no artigo 1o, I, da constituição americana de que “todo os poderes legislativos” mencionados naquele documento “eram conferidos a um Congresso dos Estados Unidos, composto de um Senado e de uma Câmara de Representantes” fundamentou, por praticamente um século, a crença de que apenas a lei criada pelo Legislativo poderia regular a vida e a propriedade dos cidadãos.
Sucede, contudo, que a proliferação de leis que conferiam ao Presidente da República (ou a órgãos/entes administrativos a ele subordinados) competências normativas para regular determinadas atividades econômicas (como a exploração de estradas de ferro) durante a primeira metade do século XX levou a doutrina e a Jurisprudência dos EUA a avaliar a adequação da aparente delegação de competência legislativa ao princípio da separação dos poderes tal como classicamente formulado.
Curiosamente, autores de escol demonstram que, passados tantos anos, não se produziu um consenso claro sobre o ponto até a presente data[25].
Nada obstante, e para os fins meramente expositivos do presente trabalho, basta ressaltar alguns pontos incontroversos sobre a chamada delegação de competência legislativa no Direito Americano.
Inicialmente, pode-se afirmar como sólida e inquestionável a posição que sustenta ser a competência legislativa do Congresso americano intransferível (isto é, indelegável in totum) a qualquer outro ramo do Estado ou órgão público. De fato, BREYER (2.006, pág. 37) assevera que[26]:
“A concessão de todo os poderes legislativos ao Congresso não é apenas uma alocação inicial, mas também definitiva. O Congresso não pode transferir seus poderes legislatativos para qualquer outra instituição. De certo, nenhuma disposição constitucional expressamente veda ao Congresso a opção por delegar seu poder legislativo para outros. Mas este é um princípio pacífico do Direito Americano, remontando ao menos até o precedente Shanklan de 1.831, como mencionado acima. Esta concepção da ‘doutrina da indelegabilidade’ é incontroversa; todos estão de acordo com ela”
A posição acima resumida, de tão genérica, apenas pode ser tida como baluarte de uma indelegabilidade (nondelegation) radical, mais próxima, em verdade, de uma vedação à transferência de competência legislativa do que propriamente de uma delegação (que presume a existência de ao menos limites temporais para a delegação operada).
De qualquer maneira, a chamada doutrina da indelegabilidade da função legislativa foi adotada expressamente pela Suprema Corte dos Estados Unidos em precedente ocorrido no ano de 1.935, quando do julgamento do caso Panama Refining Co. v. Ryan.
No julgamento mencionado acima, a Suprema Corte americana julgou inconstitucional a parte do National Industry Recovery Act (Lei de Recuperação da Indústria Nacional, um dos arcabouços jurídicos das políticas do chamado New Deal propostas pelo Presidente Franklin D. Roosevelt para o combate da Grande Depressão) que concedia ao Executivo competência para proibir o transporte interestadual de petróleo e seus derivados.
Na argumentação adotada pela Suprema Corte, ficou consignado que o poder de proibir o comércio interestadual de bens nos Estados Unidos é matéria que, se entendida como constitucional, demanda exercício de função legislativa e, portanto, cinge-se às competências do Congresso nos moldes determinados pelo artigo 1º, I, da constituição americana.
Veja-se, por oportuno, trecho relevante da decisão em comento[27]:
“(…) 4. Presumindo (mas não afirmando) que o próprio Congresso tenha o poder que se pretende delegar ao Presidente pelo §9(c) da Lei de Recuperação da Indústria Nacional, isto é, o poder de vedar o transporte interestadual e o comércio internacional de petróleo e derivados de petróleo produzidos ou retirados de armazenagem além das cotas permitidas pela autoridade estadual, a tentativa de delegação é claramente nula, porque o poder que se pretende delegar é poder legislativo, e em local algum do diploma legal o Congresso delimitou ou indicou qualquer política ou parâmetro para guiar ou limitar o Presidente no exercício de tal delegação. As assertivas do §1º, do Título I da mencionada lei são simplesmente uma introdução de caráter generalista, deixando a política legislativa em relação a sujeitos específicos a ser determinada, se tanto, pelas seções subseqüentes. Esta Corte não vislumbra nada no §1º ou em qualquer outro trecho da lei que limite ou controle a autoridade que se pretende conferir pelo §9(c). O esforço [interpretativo] diligente e criativo para identificar tal critério resulta, de qualquer modo, em uma amplitude de ação tão dilatada que essencialmente confere ao Presidente as funções de uma legislatura, mais do que aquelas de um mandatário da Administração Pública executando uma política determinada pelo Legislativo.
5. A questão de se a delegação [de função legislativa] é permitida pela Constituição não é respondida pelo argumento de que deve ser presumido que o Presidente atuou, ou irá atuar, pelo que ele entenda ser o interesse público. A questão não versa sobre motivos, mas sobre competência constitucional, para a qual os melhores motivos não são substitutos.
6. Se o Congresso pode conferir tais poderes legislativos ao Presidente, poderá fazê-lo a qualquer grupo de servidores ou a mandatário de sua escolha, e os poderes conferidos poderão afetar não apenas o transporte de óleo ou o óleo produzido além do autorizado pelos Estados, eles poderão afetar o transporte interestadual de qualquer mercadoria, com ou sem fundamento nos requisitos estabelecidos pelos Estados; em verdade, aparentemente não haveria fundamento para negar prerrogativa similar a delegação em respeito a outros sujeitos regulados.
7. O princípio que proíbe o Congresso de abdicar, ou de transferir para outros, as competências legislativas essenciais que lhes são conferidas pelo artigo 1o, I, e artigo 1, VIII, §18 da Constituição têm sido reconhecido por esta Corte em todo os casos em que a questão foi levantada.”
Perceba-se, contudo, que a decisão da Suprema Corte destacou de forma expressa que a aparente delegação de função legislativa operada pelo Congresso norte-americano seria especialmente reprovável porquanto não haveria estabelecido qualquer parâmetro para aferição da competência transferida com a política pública (legislativa) definida pelo Congresso na lei promulgada.
Assim operando, a Suprema Corte parece haver permitido uma brecha na “fortaleza” da indelegabilidade (nondelegation), qual seja, a possibilidade de uma delegação que trouxesse parâmetros (standards) claros a serem necessariamente observados pelo Poder Executivo.
Ademais, a doutrina constitucional americana não deixa de salientar que o ano de 1.935 foi o primeiro, e o único até agora, em que a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de um ato normativo da Administração com base na aplicação do princípio da indelegabilidade da função legislativa (nondelegation doctrine)[28].
De fato, após declarar a inconstitucionalidade de algumas leis relacionadas à política do New Deal em 1.935, a Suprema Corte americana passou a insistir que a complexidade da vida social moderna autorizaria a delegação pontual de parcela de competência legislativa ao Executivo, desde que acompanhada de parâmetros claros e sólidos para a atuação do delegatário. Com esta nova posição, a Suprema Corte, não sem críticas doutrinárias, passou a exercer verdadeiro controle quanto à razoabilidade (sem jamais, contudo, utilizar tal expressão) dos poderes normativos concedidos ao Presidente ou a outros entes/órgãos administrativos.
A posição atual da Suprema Corte mostra-se bastante clara no caso Mistretta v. United States.
Em 1.984, o Congresso americano aprovou a Lei de Reforma das Sentenças (Sentencing Reform Act), que, dentre outras providências, criou uma Comissão de Sentença (U.S. Sentencing Commission) constituída por 7 membros (com um máximo de 3 juízes federais). A comissão foi agraciada com a competência de traçar parâmetros gerais (guidelines) para sentenças penais, a serem observadas compulsoriamente pelos juízes federais em casos por eles julgados.
Em 1.987, John Mistretta foi condenado pelo crime de tráfico de drogas por uma corte federal no Estado americano do Missouri, que se utilizou dos parâmetros traçados pela comissão federal para sentenças criada pela lei de 1.984. Em sua defesa, o condenado alegou que a lei que estabelecia a Comissão de Sentença violava o princípio da separação de poderes, uma vez que, dentre outras irregularidades, concedia a órgão formalmente ligado ao Judiciário (mas cujos membros eram indicados pelo Presidente e aprovados pelo Senado) poderes para criar normas abstratas em matéria penal, atividade tida por ele como legislativa e, portanto, indelegável.
A Suprema Corte, por maioria[29], julgou que o Congresso havia estabelecido parâmetros claros e objetivos para a atividade da Comissão de Sentença, que, assim, não exerceria de modo inconstitucional competência reservada ao Congresso.
O voto condutor do Min. Harold BLACKMUN trouxe longa fundamentação para o acórdão, servindo em grande parte para a confecção da ementa do julgado (syllabus), de que trazemos apenas trechos relevantes para exemplificar o ponto ora abordado[30]:
“Porque o sistema indeterminado de sentenças existente resultou em sérias disparidades entre sentenças prolatadas por juízes federais para infratores de casos similares bem como em incertezas quanto à real data de soltura por agentes do Poder Executivo responsáveis pelo sistema de livramento condicional, o Congresso aprovou a Lei de Reforma das Sentenças em 1.984 que, dentre outras coisas, criou a Comissão de Sentenças dos Estados Unidos como um órgão independente no Poder Judiciário, com competência para promulgar parâmetros de sentença com caráter vinculante, estabelecendo uma ampla gama de sentenças-padrão para todas as categorias de infrações e infratores federais, de acordo com fatores específicos e minuciosos. Após a Corte Distrital haver declarado a constitucionalidade dos parâmetros elaborados pela Comissão contra as alegações do recorrente Mistretta (…) de que a Comissão fora constituída em violação ao princípio da separação dos poderes e de que o Congresso havia delegado competência excessiva para Comissão estabelecer os parâmetros, Mistretta declarou-se culpado do crime de formação de quadrilha para tráfico de drogas e foi sentenciado de acordo com os parâmetros[traçados pela Comissão federal] a uma pena de 18 meses de privação de liberdade e outras penas, havendo apresentado recurso. Esta Corte conheceu o recurso (…) para analisar a constitucionalidade os parâmetros [traçados pela Comissão de Sentenças].
DISPOSITIVO: Os Parâmetros para Sentença são constitucionais, já que o Congresso (1) não delegou de forma excessiva competência legislativa para a Comissão (2) nem violou o princípio de separação de poderes ao alocar a Comissão no Poder Judiciário, por requerer que juízes federais sirvam na Comissão e compartilhem sua autoridade com não-juízes, ou por conceder ao Presidente a prerrogativa de apontar membros para a Comissão e para removê-los por justa causa. As proteções estruturais da Constituição não proíbem o Congresso de delegar para um órgão formado por especialistas dentro do Poder Judiciário a intricada tarefa de formular parâmetros para a elaboração de sentenças consistentes com normas gerais tão sólidas quanto as apresentadas na lei, nem por se valer do conhecimento acumulado e a experiência do Poder Judiciário para criar política em matéria tão característica ao ofício dos juízes”.
A posição adotada pela Suprema Corte, como visto pelos precedentes acima mencionados, parece aproximar-se daquela defendida no Brasil para os parâmetros do chamado poder regulamentar do Executivo. Na ausência de disposição constitucional como o atual art. 84, IV da Constituição Federal brasileira de 1.988, os americanos construíram entendimento no sentido de que o exercício de funções legislativas pelo Poder Executivo é considerado constitucional na medida em que o ato dele resultante obedeça aos critérios maiores trazidos pela lei aprovada pelo Congresso.
Esclarecida a situação presente nos EUA, resta-nos, para os fins deste trabalho, abordar o posicionamento da doutrina e Jurisprudência brasileira sobre a delegação de funções legislativas e sua eventual compatibilidade com a ordem constitucional iniciada a partir da Constituição Federal de 1.988.
4.2. Delegação de Função Legislativa no Brasil
No Brasil, a idéia de delegação de poderes legislativos pelo Congresso Nacional ao Poder Executivo sempre foi doutrinariamente combatida, talvez como resultado das experiências antidemocráticas vividas no país com o agigantamento das competências (constitucionais ou assumidas de fato) pelos Presidentes brasileiros no decorrer do século XX.
Em verdade, Luís Roberto BARROSO (2.006, pág. 171), em interessante estudo sobre o fenômeno da delegação legislativa no país, deixou consignado a seguinte notícia histórica:
“É dentro desse contexto que se situa o tema da delegação legislativa, espécie de delegação de atribuições, por via da qual se opera uma transferência da função normativa, constitucionalmente deferida ao Poder Legislativo, a outros órgãos, notadamente os do Poder Executivo. Anote-se, de plano, que tal possibilidade, sempre foi, expressa ou implicitamente, vedada por todas as Constituições brasileiras, à exceção da de 1.937”. (destaque no original)
Nada obstante, o mesmo autor alerta que, apesar da suposta clareza e uniformidade dos textos constitucionais brasileiros sobre a adoção de uma separação de poderes estrita e da inviabilidade da delegação de funções legislativas pelo Congresso, fato é que estas ocorreram amiúde em nossa história, forçando, segundo o autor, a doutrina a esforçar-se para trazer suas posições mais para perto da realidade observada no país.
De fato, observa o mencionado autor que estudiosos brasileiros tentaram transportar ao Brasil nuances da nondelegation doctrine tal como adotada pela Suprema Corte norte-americana pós-1.935 (admissão da possibilidade de delegação, desde que acompanhada de parâmetros concretos para aferição e controle da atividade desenvolvida pelo Executivo), como se vê no trecho adiante trazido (BARROSO, 2006. Págs. 172-173):
“Tantas e tão freqüentes eram estas delegações legislativas – efetuadas em aparente confronto com a vedação constitucional – que a doutrina, embora esparsamente, passou a dedicar-se ao problema. Importaram-se, assim – et pour cause –, as formulações da doutrina e jurisprudência norte-americanas que em alguma medida procuravam validar certos casos de delegação. Duas linhas de fundamento foram desenvolvidas. Pela primeira, a teoria do filling up details (preenchimento de detalhes); seriam legítimas as delegações de competência legislativa ao Executivo quando a esse coubesse tão-somente minudenciar a aplicação da norma geral já editada. Algo, assim, em tudo e por tudo, análogo ao nosso poder regulamentar. A segunda teoria fundava-se em que a delegação legislativa não era vedada, desde que o ato emanado do órgão legislativo transferindo atribuições fixasse parâmetro, standards adequados e satisfatórios para pautarem a atuação legiferante do órgão delegado, limitando-a. A teoria da delegation with standards fez carreira na jurisprudência da Suprema Corte americana, que, no entanto, vez por outra, coibiu abusos”.
Sucede, contudo, que a Constituição Federal de 1.988, ao iniciar a fase jurídica de redemocratização do país, trouxe dispositivo que parece demonstrar um rompimento com eventuais posições compromissórias anteriormente tomadas quanto à delegação de função legislativa pelo Congresso.
De fato, no artigo 25, I do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o Poder Constituinte de 1.988 determinou a revogação de todos os dispositivos legais que autorizassem órgão da Administração Pública a regular matéria reservada como competência do Congresso Nacional pela nova Constituição, como visto na transcrição adiante trazida:
“Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a:
I – ação normativa;”
O dispositivo constitucional acima é encarado por parte da doutrina como sinal (a ser tomado em conjunto com outras normas espalhadas pelo corpo da CF/88) de que a delegação de função legislativa pelo Congresso estaria novamente vedada no novo regime jurídico-constitucional brasileiro[31].
Ainda que não aduzindo de forma expressa ao dispositivo constitucional acima mencionado em sua ementa (ou no voto condutor do acórdão), o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de rechaçar a tese da delegação de função legislativa no Brasil após a promulgação da vigente Constituição Federal.
De fato, ao tratar de questão de delegação legislativa ao Executivo em matéria” tributária, o Plenário do STF assim se manifestou[32]:
“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO TRIBUTÁRIO. LEI PARAENSE N. 6.489/2002. AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA PARA O PODER EXECUTIVO CONCEDER, POR REGULAMENTO, OS BENEFÍCIOS FISCAIS DA REMISSÃO E DA ANISTIA. PRINCÍPIOS DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DA RESERVA ABSOLUTA DE LEI FORMAL. ART. 150, § 6º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE.
1. A adoção do processo legislativo decorrente do art. 150, § 6º, da Constituição Federal, tende a coibir o uso desses institutos de desoneração tributária como moeda de barganha para a obtenção de vantagem pessoal pela autoridade pública, pois a fixação, pelo mesmo Poder instituidor do tributo, de requisitos objetivos para a concessão do benefício tende a mitigar arbítrio do Chefe do Poder Executivo, garantindo que qualquer pessoa física ou jurídica enquadrada nas hipóteses legalmente previstas usufrua da benesse tributária, homenageando-se aos princípios constitucionais da impessoalidade, da legalidade e da moralidade administrativas (art. 37, caput, da Constituição da República).
2. A autorização para a concessão de remissão e anistia, a ser feita “na forma prevista em regulamento” (art. 25 da Lei n. 6.489/2002), configura delegação ao Chefe do Poder Executivo em tema inafastável do Poder Legislativo.
3. Ação julgada procedente.”
Assim, parece-nos seguro afirmar que, à exceção das hipóteses em que a Constituição expressamente reservou participação criativa do Executivo no processo legislativo (por meio da elaboração de leis delegadas e da edição de medidas provisórias), não seria possível cogitar-se de real delegação de funções legislativas pelo Congresso Nacional ao Executivo no Brasil.
5. Considerações Finais
A experiência constitucional norte-americana na construção de um sistema de separação de poderes e de freios e contrapesos mostrou-se influnente no Direito brasileiro desde a primeira Constituição republicana, de 1.891.
Nada obstante, parece-nos seguro apontar que, embora similares em seus traços maiores, os sistemas constitucionais americano de brasileiro diferem sensivelmente quanto à compreensão do exercício da função normativa pelo Poder Executivo.
De fato, tendo em conta as peculiaridades do texto constitucional americano e sua experiência histórica no âmbito do Common Law, a Suprema Corte daquele país não discerne de forma expressa entre função normativa e função legislativa, utilizando este último termo para toda a atividade estatal de regulação das atividades particulares e privadas por meio de normas.
A falta de distinção acima apontada criou para a Suprema Corte a incômoda tarefa de harmonizar o sistema de separação de poderes com uma realidade sócio-jurídica em que o próprio Congresso americano transfere ao Executivo significativa competência para disciplinar aspectos cruciais do intercâmbio econômico e social da vida moderna.
A resposta dada pela Suprema Corte ao problema identificado após a Segunda Guerra Mundial parece ter sido a adoção de uma doutrina da indelegabilidade mitigada da função legislativa. Segundo a posição vislumbrada em casos como Mistretta v. Estados Unidos acima mencionados, a Suprema Corte admite que o Congresso confira ao Executivo uma competência normativa delegada, desde que esta se faça acompanhar de parâmetros claros para a identificação de objetivos e limites a serem observados pelo delegatário no exercício de seu encargo.
No Brasil, por sua vez, a atual Constituição Federal previu dois casos expressos em que o modelo clássico de separação entre as competências legislativa e executivas foram claramente subvertidas.
O primeiro, perfeitamente identificada como delegação legislativa propriamente dita, diz respeito à espécie normativa das leis delegadas previstas no artigo 68 do texto constitucional vigente.
No caso em tela, o processo de delegação legislativa tem início com pedido do Presidente da República ao Congresso Nacional, que tem absoluta discricionariedade para conceder ou não a delegação requerida, bem como para traçar os limites e parâmetros para a lei a ser confeccionada diretamente pelo Executivo.
O segundo caso contrário ao modelo clássico de separação de poderes diz respeito às chamadas medidas provisórias com força de lei, trazidas pelo artigo 62 da CF/88. Não se trata aqui exatamente de delegação legislativa propriamente dita, mas de reconhecimento de função legislativa anômala ao Presidente da República, a ser utilizada supostamente apenas em casos de urgência e relevância nacional.
Por fim, distintamente do ocorrido nos EUA, no Brasil doutrina e jurisprudência reconhecem há muito uma função normativa própria do Executivo. Trata-se do chamado poder regulamentar que, em sua forma consensual e pacífica, é encarado como prerrogativa do Presidente da República de baixar atos normativos destinados a dar fiel e plena execução às leis promulgadas pelo Congresso Nacional.
Referências bibliográficas:
Procurador Federal. Especialista em Direito Regulatório pela Universidade de Brasília – UnB.
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