Resumo: O Direito de Família na atualidade deve sofrer uma (re)leitura a partir da interdisciplinaridade e multidiscilpinaridade. Além disso, o Direito de Família precisa ser entendido a partir das normas constitucionais, pautando-se, principalmente, no princípio da dignidade humana. Diante da natural ordem evolutiva das relações sociais, o Direito de Família passa a se voltar, essencialmente, ao cidadão, adotando-se uma aplicação pautada na repersonalização dos direitos inerentes à família. Assim, ao invés de aclamar a tríade revolucionária francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), a Constituição reconheceu a solidariedade social como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, buscando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Em decorrência, a família passa a ser entendida como um ambiente social, no qual seus integrantes possam se desenvolver plenamente, numa perspectiva solidarista, tendo como valores precípuos a cooperação, a igualdade substancial e a justiça social. O princípio da solidariedade, ao lado do princípio da dignidade humana, constitui núcleo essencial da organização sócio-politico-cultural e jurídica brasileira. A família não deve mais ser entendida como uma relação de poder e dominação, mas como uma relação de cunho, primordialmente, afetivo. Na visão contemporânea do ensino jurídico, o direito de família deve estar embasado numa visão multidisciplinar/interdisciplinar do Direito, considerando-se, não somente os aspectos jurídicos, mas, também, os psicológicos e sociais dos envolvidos nas situações familiares.
Palavras-Chave: Princípio da solidariedade. Teoria humanista. Direitos humanos. Vínculos de Filiação. Direito de família contemporâneo.
Abstract : The Right to Family currently must undergo a (re) reading from the interdisciplinary and multidiscilpinaridade. Moreover, the Law of Family needs to be understood from the constitutional rules, geared to, primarily, on the principle of human dignity. Due to the natural evolutionary order of social relations, the Law of Family goes back to, essentially, the citizen, is adopting an application based on repersonalização rights inherent in the family. Thus, rather than praise the French revolutionary triad (liberty, equality and fraternity), the Constitution recognized the social solidarity as fundamental objective of the Federative Republic of Brazil, seeking to build a society free, fair and caring. As a result, the family is understood as a social environment in which its members can develop fully, in a solidarity, with the values precípuos cooperation, substantial equality and social justice. The principle of solidarity, next to the principle of human dignity, is essential core of the organization socio-politico-cultural and legal Brazilian. The family should not be perceived as more a relationship of power and domination, but as a stamp of respect, first and foremost emotional. In view of the contemporary legal education, the right to family life should be based on an integrated multi / interdisciplinary of the law, considering not only the legal aspects, but also the psychological and social considerations involved in family situations.
Keywords: The principle of solidarity. Humanistic theory. Human rights. Ties of affiliation. Of contemporary family law.
Sumário: 1 O princípio da solidariedade como novo paradigma nas relações de afeto. 2 O humanismo e as relações familiares contemporâneas. 3 Os direitos humanos fundamentais como forma de proteção dos direitos da criança. 4 A paternidade socioafetiva caracterizando o Princípio da Solidariedade.
“Quando conseguimos superar o egoísmo, o individualismo, a ganância, o autoritarismo e passamos a consolidar a solidariedade, a fraternidade, a partilha, a misericórdia, a compaixão, o oco e motor do nosso agir é o outro, que passa a não mais ser visto como nosso concorrente e, sim, como nosso co-responsável na construção de uma sociedade diferenciada”[1].
1 O princípio da solidariedade como novo paradigma nas relações de afeto
Com a evolução dos fatos sociais e, consequentemente, do Direito, historicamente a Constituição deixa de ser um limite à atuação do Estado e passa a ser voltada ao cidadão, adotando novos valores: os valores individuais (liberais) são substituídos por valores sociais. Adotam-se princípios constitucionais que se integram às normas infraconstitucionais.
Pretende-se, com o presente estudo, iniciar um diálogo acerca do direito de família contemporâneo, racionalizando-se o direito de família à luz da axiologia constitucional, em especial à dignidade da pessoa humana, através de uma visão inter-multidisciplinar. Assim, a visão contemporânea em questão está intimamente relacionada às questões referentes a constitucionalização do direito civil, ou seja, a República Federativa do Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, que adotou princípios constitucionais cuja eficácia depende, além de instrumentos que viabilizem o seu exercício, de uma nova visão e novas posturas frente ao direito de família tradicional.
O campo das relações familiares está profundamente relacionado com diversas áreas do conhecimento humano, como a psicologia, a sociologia, a antropologia, a filosofia e outras; esquecidas durante um longo período pelo tradicional estudo do Direito. Paradoxalmente, alguns profissionais que atuam no âmbito do direito familiar, possuindo conhecimento das outras áreas conexas, estão incorrendo no perigoso equívoco de atuarem em momentos ou procedimentos que não lhe cabem por falta do devido domínio profundo do assunto necessário, dando este sim, uma visão interdisciplinar e transdisciplinar[2].
Surge então, um sério risco: ao invés de se evoluir no sentido das novas tendências do direito de família no mundo contemporâneo, acabar-se-á subestimando e tratando com superficialidade outras áreas, as quais trazem ao mundo jurídico a necessidade de elucidá-las para uma plena solução de conflitos familiares.
O direito privado, consoante menciona Pedro Oliveira da Costa[3], é revisitado, arraigado por princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana, que deve ser respeitada acima de todas as coisas (CF, art. 1º, III), e o da solidariedade (CF, art. 3º, I). Assim, ao invés de aclamar a tríade revolucionária francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), a Constituição reconheceu a solidariedade social como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, buscando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Para Maria Celina Bodin de Moraes, o texto constitucional, ao imputar ao Estado e a todos cidadãos o encargo de construir uma ‘sociedade solidária’, através da distribuição de justiça social, agregou um novo valor aos já existentes. Referencia ainda a autora, que a disposição não se trata, apenas, de impor limites à liberdade individual, atribuindo intera relevância à solidariedade social: “o princípio cardeal do ordenamento é o da dignidade humana, que se busca atingir através de uma medida de ponderação que oscila entre os dois valores, ora propendendo para a liberdade, ora para a solidariedade”[4].
Em decorrência, esse princípio acaba repercutindo nas relações familiares, pois o indivíduo somente pode ser apreendido pelo Direito em sua dimensão coexistencial, “uma vez que a vida sem os outros nada mais é do que uma abstração, afastada da realidade”[5].
Assim, denota-se que a solidariedade perpassa os limites do individualismo existencial. “A família deixa de ser considerada um valor em si mesma, passando a ser entendida como merecedora da tutela jurídica na medida em que represente um ambiente no qual seus integrantes possam se desenvolver plenamente[6]. O individualismo, exaltado na lógica “cada um por si e Deus por todos”, conforme menciona Maria Celina Bodin de Moraes, “foi substituída pela perspectiva solidarista, em que a cooperação, a igualdade substancial e a justiça social se tornam valores precípuo do ordenamento”[7].
O princípio da solidariedade familiar implica respeito e consideração mútuos em relação aos membros da família[8].
Esse modelo atual de família é considerado como família sociológica, na qual se verifica a prevalência de laços afetivos entre seus integrantes; os pais assumem exclusivamente a educação e a proteção de seus filhos, independentemente da existência de algum vínculo jurídico ou biológico entre eles.
O princípio da solidariedade, ao lado do princípio da dignidade humana, constitui núcleo essencial da organização sócio-politico-cultural e jurídica brasileira. “A solidariedade familiar é fato e direito; realidade e norma. No plano fático, convive-se no ambiente familiar para o compartilhamento de afetos e responsabilidades. No plano jurídico, os deveres de cada um para com os outros impuseram a definição de novos direitos e deveres jurídicos”[9].
Demonstrando a efetividade de tal princípio, o Tribunal de Alçada de Minas Gerais, ao julgar a Apelação Cível n. 408.555-5 referende à indenização por danos morais decorrente da relação paterno-filial, reconheceu a solidariedade como meio paradigmático da família:
“A família não deve mais ser entendida como uma relação de poder, ou de dominação, mas como uma relação afetiva, o que significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não somente do sangue. No estágio em que se encontram as relações familiares e o desenvolvimento científico, tende-se a encontrar a harmonização entre o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, até como necessidade de concretização do direito à saúde e prevenção de doenças, e o direito à relação de parentesco, fundado no princípio jurídico da afetividade. O princípio da afetividade especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), que preside todas as relações jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional”[10].
As relações familiares, portanto, “devem ser analisadas dentro do contexto social e diante das diferenças regionais de cada localidade. Sem dúvida, a socialidade também deve ser aplicada aos institutos do Direito de Família, assim como ocorre com outros ramos do Direito Civil. A título de exemplo, a socialidade pode servir para fundamentar o parentesco civil decorrente da paternidade socioafetiva. […] Isso tudo porque a sociedade muda, a família se altera e o Direito deve acompanhar essas transformações”[11]. Nessa perspectiva, a paternidade sócio-afetiva apresenta-se como um desdobramento do princípio da solidariedade, objetivo fundamental da República Federativa do Brasil.
A solidariedade é um sentimento recíproco que estabelece um vínculo moral entre as pessoas e à vida, criando laços de fraternidade. E é assim que as relações de afeto entre pais e filhos devem ser entendidas, superando-se a concepção individualista de pessoa humana.
2 O humanismo e as relações familiares contemporâneas
O humanismo teve suas primeiras manifestações ainda no período grego, onde a religião e as crenças populares influenciavam o direito e a política.
Os ideais de Santo Agostinho bem como da Igreja Católica também nos trazem a essência do Humanismo, priorizando a figura da pessoa para a realização do bem comum, onde o homem é visto como ser único e igual, apesar de, em algumas circunstâncias da história e em prol de interesses escusos, fatos distorcerem tais objetivos, como por exemplo, o período a Santa Inquisição.
Orides Mezzaroba molda o espírito da teoria humanista de uma forma simples, porém completa, quando diz que:
“O termo humanismo, em regra geral, sintetiza toda uma corrente de pensamento voltada para o homem, em favor do homem. O pensamento humanista advoga a defesa de comportamentos éticos morais voltados a liberdade de pensamento e de criação, a fraternidade e a tolerância entre os diferentes, a institucionalização de direitos voltados ao resguardo e ao respeito do bem-estar e da dignidade da pessoa humana. […] Assim, pode-se concluir que “todos os homens são iguais e são sujeitos dos mesmos direitos e deveres fundamentais”[12].” (grifo nosso).
Partindo deste conceito, torna-se evidente o caráter moral, do qual é revestida a teoria humanista. Conforme Rogério Gesta Leal, o humanismo fundamenta-se fora da concepção de direito e de Estado que conhecemos, ou seja, antecede a norma positivada, orientando-se “no âmbito da ética, da natureza humana, do direito natural ou dos valores”[13].
Nesse sentido, o direito de família encontra espaço junto a teoria humanista, tendo em vista estar revestido da noção de moral e bem comum, características estas intrínsecas do “ninho”[14] que se pretende construir quando da repersonalização da família contemporânea, ou seja, a afetividade resgatando a dignidade da pessoa humana, que, no dizer de José Marcelo Vigliar, significa primar por “interesses de grupos menos determinados de pessoas, sendo que entre elas não há vínculo jurídico ou fático muito preciso[15]”.
A teoria humanista surgiu a partir das grandes revoluções, pois está intimamente ligada aos Direitos Humanos, onde reza que são aqueles direitos que podem ser ameaçados apenas pela própria humanidade, mas que não podem encontrar vigência, também aqui, senão graças à própria humanidade.
O afeto possui isso de particular: une independentemente de vínculos e liames. Parece encontrar-se em um mundo de possibilidades onde o não-conhecer não anula a intensidade do sentimento que aflora. É conquistado de forma inesperada, onde as pessoas envolvidas doam-se uma a outra, não esperando retorno senão a valoração do próprio sentimento.
Para nós, a teoria humanista é mister nesta questão, pois a solidariedade une mundos ao passo que a solidão vive de separações e de distâncias. O que a solidariedade coloca em discussão é exatamente o confim da solidão do ser indivíduo, reduz-lhe a imperatividade e, portanto, favorece aproximações solidárias. Assim, é preciso dar o primeiro passo para o reconhecimento jurídico do afeto na entidade familiar em detrimento ao reconhecimento das relações meramente biológicas. Conforme certifica José Bernardo Ramos Boeira, “ter um filho e reconhecer sua paternidade deve ser, antes de uma obrigação legal, uma demonstração de afeto e dedicação, que decorre mais de amar e servir do que responder pela herança genética”[16].
O reconhecimento nunca é constitutivo de alguma nova realidade, ele se limita a declarar um estado ou uma ação já existente. No caso da paternidade socioafetiva, o direito deverá levar em consideração os elementos caracterizadores, ou seja, o nome, o trato e a fama, preferindo a apreciação dos dois últimos com relação ao primeiro, que nem sempre está caracterizado. Na visão de Jacqueline Filgueras Nogueira,
“o vínculo de sangue tem um papel definitivamente secundário para a determinação da paternidade; a era da veneração biológica cede espaço a um novo valor que se agiganta: o afeto, porque o relacionamento mais profundo entre pais e filhos transcende os limites biológicos, ele se faz no olhar amoroso, no pegá-lo nos braços, em afagá-lo, em protegê-lo, e este é um vínculo que se cria e não se determina”[17].
O modelo de filiação baseado nas relações de afeto é o único que garante a inclusão social, edificada no relacionamento diário e afetuoso, formando uma base emocional capaz de assegurar um pleno e diferenciado desenvolvimento do ser humano.
3 Os direitos humanos fundamentais como forma de proteção dos direitos da criança
Em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, deve-se considerar a pessoa como fim e não como meio/instrumento, contra os processos de coisificação (e mercantilização) do ser humano.
Nesse sentido, o princípio da dignidade da pessoa humana reafirma a noção de alteridade, como respeito da pessoa pelo outro, materializada no oferecimento de condições de possibilidade para sua existência digna.
O reconhecimento da dignidade da pessoa humana na ordem jurídico-constitucional do Estado Democrático de Direito brasileiro é claramente manifesto no texto de nossa Lei Fundamental, especialmente em seu primeiro artigo, quando invoca a dignidade da pessoa humana, a igualdade de todos perante a lei, bem como a inviolabilidade das garantias civis fundamentais (direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade).
O entendimento acerca do direito à vida deve ser ampliado para além da existência física, fazendo jus ao fundamento da dignidade da pessoa humana que inclui a integridade física, condições de gozo de uma vida com qualidade, com saúde, em meio ambiente propício para tal, ou seja, no presente caso, direito a integração familiar. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet,
“em suma, o que se pretende sustentar de modo mais enfático é que a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental que “atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais”, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões”[18].
A relação entre a dignidade da pessoa humana e o direito a inclusão familiar encontra respaldo no princípio da igualdade, que vê na desbiologização das relações de filiação, a garantia da aplicação do sentido real da família contemporânea, qual seja, a afetividade.
A concepção ontológica sobre a dignidade como qualidade própria do ser humano amplia a noção para além da autonomia individual, centrando atenção ao oferecimento de possibilidades para que essa dignidade se realize em igualdade de condições para todas as pessoas. Isso implica no respeito e comprometimento de todos para com uma (con)vivência digna, uma vez que todos devem ser considerados iguais, conforme assinalamos anteriormente, devendo a ordem jurídica reconhecer e proteger essa condição[19], ou seja, estamos buscando a humanização das relações através da valorização do ser humano como pessoa de direitos, o que nos remete ao resgate da concepção da teoria humanista para a promoção do bem comum.
Quando se invoca os princípios da dignidade humana e da igualdade como elementos essenciais na legitimação do afeto, estamos nos reportando inclusive ao direito transindividual de viver em ambiente saudável e sustentável. Nos reportamos, portanto, a melhor qualidade de vida (e, consequentemente, vida digna) inclusive às gerações futuras, partindo-se do pressuposto de uma concepção ampla acerca do que seja essa dignidade, olhando além da postura (simplista) biológica.
Das preocupações acerca das necessidades e das transformações econômicas, sociais e culturais ocorridas nas sociedades (contemporâneas), percebe-se claramente que o assunto requer amplo debate e superação de desafios, fundamentalmente para que a humanidade não perca as conquistas sociais e garantias atualmente conquistadas.
Contudo, se pretendermos lutar pela realização de uma vida digna para todos, deve-se alcançar uma visão do direito como agente transformador das estruturas da sociedade, valorizando o propósito realizador da Carta Magna que, conhecida como Constituição “cidadã”, devido ao conteúdo democrático, entre outros fatores, traz um elenco de direitos sociais como cerne, e entendidos como fundamentais. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet,
“a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. […] onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças”[20].
Assim, a atuação da jurisdição Constitucional deve dispensar maior atenção. O valor essencial à vida em sociedade deve ser resgatado, especialmente por seu conteúdo garantidor da dignidade humana e da igualdade, que no final representa sua própria condição de efetividade.
4 A paternidade socioafetiva caracterizando o Princípio da Solidariedade:
A vida impõe avanços na estrutura das leis para que o mundo de fato não as supere e se distancie. Nesse sentido, atualmente, o conceito de paternidade não se restringe mais ao ato da procriação; há a necessidade de outro elemento, caracterizado pelos laços de afeto, passando a ser não só ato físico, mas, principalmente, ato de opção, entendida como uma intensa relação amorosa, de autodoação,de gratuidade, de vontade se tornar-se pai.
Wimer Bottura Junior “salienta a importância dos pais demonstrarem afeto e ternura, que são características humanas […]. O afeto é muito importante, na formação da personalidade, porque é a base da segurança, da autoestima”[21].
A primeira necessidade do ser humano é sentir-se aceito e protegido. A criança, quando nasce, necessita sentir calor humano para que perca o medo e a insegurança que seu nascimento gerou, pois saímos de uma situação protetora, o útero materno, e entramos num mundo novo e desconhecido, cheios de ruídos, cheiros e luz.
A criança precisa sentir que pertence à sua família, e somente consegue ter essa sensação se dos pais vier a proteção, manifestada através do afeto e de cuidados inerentes entre pais e filhos. Certamente, se tiver suas necessidades adequadamente supridas nos momentos certos viverá melhor seu presente e caminhará para um futuro com grandes possibilidades de ser saudável e feliz.
Wimer Bottura Junior, definindo o universo complexo das relações familiares, afirma que
“os pais precisam dos filhos. Não para satisfazer as expectativas sociais, mas sim, para tê-los como objeto de seu afeto e responsabilidade. Na verdade, pai e filho precisam um do outro e é maravilhoso quando ambos percebem e sentem que um complementa a existência do outro. Complementar é se confirmar como ser humano ao gerar uma vida […]. Eu só vou tocar, ficar e brincar com meu filho porque é bom pra mim e para ele. Esta é a verdadeira troca na relação pai-filho”[22].
É sob esse novo enfoque do fenômeno da paternidade que nos filiamos: da valorização das relações de afeto em detrimento das relações jurídicas ou biológicas, pois estas não são suficientes para demonstrar a relação paterno-filial, que é estabelecida com relação àquele que estiver mais próximo, mais íntimo da criança.
O fundamento da validade da noção de “posse de estado de filho”, não se estabelece pelo simples fato biológico; há de haver muito mais! Os deveres do pai para com o filho, o sustento, a educação, a formação moral e religiosa – o relacionamento pai-filho se fortifica com o passar dos dias acrescido de afeto[23].
Nos valemos da sabedoria popular “pais são quem criam”, o que pode ser traduzido nas ações do dia a dia, no comprometimento e na entrega que se faz incondicionalmente, inesperadamente.
Quando buscamos traduzir a figura materna ou paterna, não no sentido científico, mas verdadeiro da palavra, jamais virá a nossa mente os laços consangüíneos que nos unem, mas sim, o carinho, o apoio, o abraço, os conselhos (mesmo os mais duros), pois este é o verdadeiro sentido de ser pai!
O vínculo de afinidade ou de aliança não é um vínculo de sangue, e sob esta mirada de vertente, o parentesco resulta da construção do convívio diário, com afeto, dedicação e esforço. Em verdade, qualquer adulto pode converter-se num pai psicológico, dependendo da qualidade da interação com a criança, porquanto, o verdadeiro pai é aquele que efetivamente se ocupa da função parental. Rolf Madaleno nos lembra do maior exemplo de desprendimento de relações consangüíneas e de total entrega afetiva, quando fala de José, pai afetivo de Jesus, filho de Deus, que o aceita e recebe como se filho seu fosse, ensinando-lhe seu ofício e lhe dando seu nome[24].
“A formação da família já se dava à margem da esfera jurídica, a preocupação com os sujeitos sobrepunha-se àquela relativa à adequação ao modelo legal. Ganhou dimensões significativas um elemento que anteriormente estava à sombra: o sentimento. E, com ele, a noção de afeto, tomada com um elemento propulsor da relação familiar, revelador do desejo de estar junto a outra pessoa ou pessoas, se fez presente”[25].
A família sociológica se assenta no afeto cultivado dia a dia, alimentado no cuidado recíproco, no companheirismo, cooperação, amizade, cumplicidade. O afeto está presente nas relações familiares, tanto na convivência entre o homem e a mulher, como na relação entre pais e filhos, não necessariamente advindos do imprescindível vínculo biológico.
Essa nova e importante concepção, evidencia que a estrutura familiar continua tão importante para a sociedade quanto aquela conceituada no início do século passado, pois o Estado se vale do contexto familiar para a promoção de políticas públicas de inclusão social, a partir do momento que considera o afeto e a solidariedade como elementos de caracterização do núcleo familiar.
A criança que encontra-se em uma família desestruturada, tende a necessitar mais a assistência do Estado paternalista, o que não é bom, pois é sabido que esta forma de atenção às necessidades sociais não consegue ser efetivamente aplicada devido aos problemas sócio-econômico-culturais. É por isto que Jacqueline Filgueras Nogueira escreve que
“na prática social, as relações de afeto são mais importantes que as oriundas de consangüinidade, pois o entendimento majoritário é de que pais são os que criam, não os que procriam, de tal forma que se deve considerar como verdadeiro pai aquele que, embora não o seja do ponto de vista biológico, é o homem que ama, cria, educa e alimenta uma criança, assumindo todas as funções inerentes de pai, sendo este considerado como tal por esta criança”[26].
A adoção é a prova cabal de que a convivência vai construindo pouco a pouco o mesmo sentimento que nasce aos pais biológicos (e responsáveis) quando do nascimento do filho, pois como ato de escolha que é, prevalece a relação de afinidade e afetividade.
Deve o Estado, portanto, facilitar e incentivar cada vez mais esse instituto, tomando-se como norte a teoria humanista, os princípios de direitos humanos fundamentais e o princípio da solidariedade, conforme defende Rolf Madaleno: “[…] deve a lei seguir pela trilha do fim social previsto no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, para admitir serenamente, a paternidade socioafetiva à vista do fim social. (grifo do autor)[27].
Luiz Edson Fachin argumenta que a doutrina e a jurisprudência acolhem o valor jurídico do afeto, porquanto a “seiva que alimenta o Direito é a própria vida, concreta, real, não formada de conceitos estéreis e abstratos, de equações lógicas desprovidas da matéria que constitui a própria realidade individual e social”[28]. Segundo Romeo Grompone,
“a posse de estado é um verdadeiro reconhecimento quando um homem tratou constante e publicamente a um filho como se fôra seu, quando o apresentou como tal à sua família e à sociedade, quando lhe deu seu nome, quando invocando a sua qualidade de pai, proveu sempre a sua mantença, as suas necessidades e a sua educação, não sendo possível dizer que não o tenha reconhecido. É certo que este reconhecimento não consta em um documento, porém, o que pode se deduzir, é que é mais completo e decisivo”[29].
A realidade jurídica deve ser trilhada de acordo com a realidade social, devendo a lei adequar-se aos anseios da coletividade, pois de que adianta primarmos por uma verdade científica se esta não é exercida plenamente? A Constituição Federal prima pelos interesses individuais e coletivos, de forma que estes devem ser exercidos como direito de cidadania. À todos dever-se-ia dar o direito de ser parte integrante de um lar, de sentir que é amado e querido .Para Guilherme de Oliveira,
“o estado das pessoas, tal como o direito o considera, nunca se deixa reduzir a um dado biológico; a biologia é remodelada pelo homem. Toda a filiação contém, por isso, uma parte de adoção. Deve se falar de uma nova paz das família, que procura a verdade biológica mas que também toma em consideração a verdade sociológica quando ela parece ser favorável aos filhos. Isto porque o pai tende a não ser mais aquele que concebeu o filho, mas aquele que o protege e alimenta, aquele que o ajuda a fazer sua aprendizagem de homem”[30].
A lei deve seguir pela trilha do fim social previsto no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, para admitir serenamente, a paternidade socioafetiva no atual contexto sócio-jurídico, por ser de direito e de justiça.
Ser filho é algo mais do que ser geneticamente herdeiro de seu progenitor, porquanto a figura paterna não pode ter contribuído biologicamente para o nascimento daquele que é seu filho, porém possibilitou que o vínculo fosse construído sobre outras bases, que não genéticas[31].
A noção de posse do estado de filho vem ganhando destaque nas reformas do direito comparado; desta forma o terreno da afetividade está, aos poucos, colocando em xeque tanto a verdade jurídica quanto a certeza científica no estabelecimento da filiação, sendo que a maioria dos tribunais de justiça do país está se adaptando a esta realidade, por ser de inquestionável finalidade de inclusão social e de valorização da criança no que tange a sua essência como pessoa sujeito de direitos especiais.
O princípio da solidariedade está para o direito de família assim como o afeto está para o direito de filiação, através da valorização da paternidade socioafetiva. Representa dividir conversas, repartir carinho, conquistas, esperanças e preocupações; mostrar caminhos, aprender, receber e fornecer informação. Significa iluminar com a chama do afeto que sempre aqueceu o coração de pais e filhos socioafetivos, o espaço reservado por Deus na alma e nos desígnios de cada mortal, de acolher como filho aquele que foi gerado dentro do seu coração[32].
O coração é realmente conquistado pelos filhos, através de uma relação de afeto e solidariedade construída a cada dia, em ambiente de sólida e transparente demonstração de amor entre os envolvidos, pois o que realmente importa é ter vindo ao mundo para ser acolhido como filho no mais verdadeiro sentido da palavra.
É esta a sociedade e o futuro humano, digno e solidário que pretendemos deixar aos nossos filhos.
Mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Especialista em Direito Civil pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Professora e Coordenadora de Monografia Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo; líder do grupo de pesquisa “Direito Civil e Constituição”; advogada
Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul; Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Universidade Luterana do Brasil; Professora Universitária das disciplinas de Direito de Família, de Direito das Sucessões e de Direitos Humanos e Coordenadora Adjunta da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo – Campus Carazinho; advogada
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