Os acontecimentos recentes que vem tumultuando o território político na França retratam uma batalha que se contrapõe à grande vitória das classes dominantes obtida no final do século passado. Nestes anos, os corações e mentes da opinião pública foram embalados pelas cantigas neoliberais celebrando a perversidade do capital como produto de relações necessárias. As pessoas vem sendo convencidas de que a necessidade econômica concreta está por cima do campo dos sonhos e governos e as empresas devem fazer o que for preciso para preservar os interesses do mercado. Ao proclamar que é preciso ser realista, o Capital legitima a banalização de uma razão perversa como perspectiva básica do sistema, iluminando tudo com o enganoso pressuposto de que não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos.
Somente no final do século é que começou a se esboçar a reação à predominância desta visão estruturando-se um pólo de opinião sob a bandeira do pressuposto de que um outro mundo é possível. Um novo lugar social em que a preocupação com as pessoas e não com os lucros venha a ser o parâmetro de referência das escolhas políticas e econômicas. Estas reflexões são essenciais para compreender o confronto que está levando centenas de milhares de pessoas aos protestos de rua nas cidades franceses. Estudantes e sindicalistas batem-se contra uma nova lei, denominada de contrato de primeiro emprego[1] que permite às empresas em geral contratar pessoas menores de vinte e seis anos, com o direito de despedi-las sem motivação, durante o período dos primeiros dois anos.
Numa das matérias da imprensa francesa a respeito da polêmica vemos[2]: ““eu não quero uma sociedade que funcione sob o medo de ser despedido a qualquer momento”, diz Celina, estudante de História em Lille”. O sistema francês, como regra geral, privilegia o contrato por tempo indeterminado no qual não pode haver a dispensa imotivada. Embora existam dezesseis outras formas de contratação[3], a demissão sem motivo somente havia sido admitida num anterior (e mais tímido) modelo de contrato de primeiro emprego[4] limitado às empresas com menos de vinte empregados. A lei que aprovou o chamado CPE universaliza para todas as empregas a possibilidade de dispensa imotivada do jovem empregado. O movimento estudantil, as centrais sindicais (CGT, CFDT, FO, CFE-CGC, CFTC, FSU, Solidaires, UNSA, UNEF, Cé, UNL, FIDL) e 68% da opinião pública francesa[5] estão reclamando a não implementação deste modelo. Esta resistência vislumbra que a suposta inovação é um passo decisivo na direção de suprimir a proteção do empregado no contrato por tempo indeterminado, caminhando para que a dispensa sem motivo venha a tornar-se uma forma predominante de terminação contratual.
A questão da dispensa imotivada é o tema central do debate. O empregador deve ter o direito absoluto de livrar-se do empregado a qualquer momento, sem qualquer explicação ou a terminação do contrato deve ser condicionada à existência de uma causa justa e real ? É uma encruzilhada específica dentro da grande encruzilhada entre a razão perversa que subordina tudo à necessidade empresarial e a escolha por um outro mundo possível em que o ser humano seja a base de referência das organizações.
No Brasil, a Doutrina interpreta a Constituição Federal no sentido de entender que a ordem jurídica escolheu privilegiar o direito de despedir sem motivo como pedra fundamental do sistema de rescisão dos contratos trabalhistas. A convenção 158 da OIT que vigorou por aqui em pouco tempo, teria o efeito de restringir este suposto direito potestativo absoluto se não houvesse sido esterilizada rapidamente pelo Supremo Tribunal Federal que lhe negou tal efeito[6]. Recusados seus efeitos quanto à dispensa imotivada, ficou por ali como um espantalho de papel até que FHC deu término ao espetáculo melancólico, quando faltavam dois dias[7] para o término do prazo para denúncia.
A rescisão contratual implica em fazer com que o trabalhador perca o seu sustento e o de sua família acarretando ao dispensado toda a sorte de sofrimentos. No entanto, o ato de despedir é transformado em produto inevitável de um conjunto de relações que apontam para um destino inexorável. Não há qualquer consideração a respeito do lado ético de produzir este mal a um ser humano porque se estabelece como premissa que a ética não produz lucros e a economia não leva em conta este tipo de parâmetro.
No Brasil, a classe média é o grande baluarte de apoio às relações de trabalho flexíveis e não percebe que está apoiando o sangramento em sua própria carne. Estudos recentemente divulgados[8], demonstram que “Entre 1980 e 2000, sete milhões de pessoas que ocupavam essa faixa da sociedade perderam seus empregos e não conseguiram recuperá-los. Em conseqüência, tiveram seu poder de compra reduzido, o padrão de vida rebaixado e, assim, saíram forçadamente da classe B para passar a tomar parte na classe C. Segundo o IBGE, em 1980 os assalariados que participavam do estrato social respondiam por 31,7% da População Economicamente Ativa (PEA). Vinte anos depois, porém, essa participação caiu para 27,1%.”.
A mídia a serviço do pensamento neoliberal, no entanto, inculca nestas vítimas, a convicção de que “os europeus chegaram a uma situação em que, sem cortar direitos de alguns, não há como estender a todos os benefícios da prosperidade econômica”[9]. Faz parte da estratégia do andar de cima convencer as vítimas de que suas desgraças fazem parte de um processo inevitável e necessário para o bem estar da economia. Os meios de comunicação de massa como as emissoras de televisão e certas revistas semanais fazem este trabalho sujo todo o tempo com extrema competência.
A inovação tecnológica e organizacional tem produzido enormes ganhos de produtividade e vale lembrar que[10]: “Medida pelo número de produtos que cada empregado fabrica por ano, a produtividade da mão-de-obra cresceu a uma taxa anual de 8%. O desempenho é cerca de vinte vezes superior ao da década de 80…” . Estes ganhos de produtividade, contudo, não são apropriados pela sociedade ou pela “economia” mas pelas pessoas do andar de cima da sociedade. Não existem aquelas coisas que a mídia chama de Mercado ou Capital. O Capital é uma relação entre pessoas mediada por coisas. Assim, são pessoas que se apropriam destes ganhos em detrimento de outras que simplesmente, afundam-se mais no sofrimento do desemprego ou subemprego.
A demissão imotivada como direito potestativo absoluto assume, neste cenário, o papel de alavanca jurídica que permite desincorporar rapidamente a massa de que vai se tornando desnecessária. Toda a correção de rota da empresa capitalista implica em livrar-se de pessoas e não há a menor preocupação com o destino das mesmas. Por outro lado, a convenção 158, repudiada por FHC sugere um mundo em que a demissão tenha que ser socialmente motivada. E se esta motivação tiver a ver com a necessidade das empresas, exige-se a prévia consulta e negociação com o governo e os sindicatos. A França, onde vigora esta norma, apresenta o maior índice de produtividade da comunidade européia e ostenta um produto nacional bruto por hora de trabalho bem maior do que países onde vigora a dispensa imotivada, tais como, a Inglaterra e EUA.
No vazio deixado pela denúncia deste padrão internacional de justiça, o Brasil precisa urgentemente de uma modificação legislativa assentando que o emprego é um direito fundamental do ser humano porque é o que configura o exercício de seu direito ao trabalho. A perda deste direito fundamental não pode decorrer de uma prerrogativa de caráter potestativo não subordinada ao interesse social.
A resistência dos franceses à introdução, ainda que parcial, desta proposta perversa deveria servir de exemplo para os brasileiros lutarem pela revogação da demissão imotivada. Isto não acontece porque a mídia serviçal que bajula as classes dominantes joga todo seu peso para pintar a resistência como burrice, egoísmo, conservadorismo, de jovens cegos por não perceber como é “necessário” despir as relações de trabalho de qualquer conteúdo ético. Precisamos romper o fogo de barragem desta mídia serviçal e sem pudor para convencer o povo brasileiro da necessidade de exigir a motivação social para a dispensa de qualquer empregado.
Advogado, Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP e Professor na Universidade de São Francisco, em São Paulo
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