O reforço da legitimidade democrática das agências reguladoras

Resumo: A doutrina tradicional procura justificar a constitucionalidade do poder normativo das agências reguladoras por meio da adequação das características das agências com o texto constitucional, notadamente os princípios da legalidade e da separação dos poderes. Sob o ponto de vista da Ciência Política e da Sociologia, entretanto, esta teorização acaba se tornando insuficiente, sobretudo em função do alegado déficit de legitimidade democrática das agências. A utilização de meios de consulta e participação popular nos procedimentos de produção normativa das agências permite reforçar grandemente a legitimidade democrática destas entidades, conforme aplicação vanguardista das teorias de Habermas e Paulo Todescan Lessa Mattos.


Palavras-chave: Direito Constitucional e Administrativo. Agências Reguladoras. Poder Normativo. Legitimação democrática.


Sumario: 1 – Introdução; 2 – Visualização do problema da legitimação democrática das agências; 3 – O paradigma da democracia discursiva de Habermas; 4 – Legitimidade democrática das agências com base na teoria de Habermas; 5 – Comentários sobre a pesquisa de Paulo Todescan Lessa Mattos; 6 – Conclusão. Referencias.


1. Introdução


O modelo regulatório adotado no Brasil, como bem sabido, é uma verdadeira importação do modelo americano com certas nuances, a fim de compatibilizá-lo com as normas da Constituição Federal de 1988. Na verdade, foram copiadas as soluções adotadas também na Inglaterra, bem como em diversos outros países de origem no Civil Law, a exemplo da França, Itália e Portugal.


Existem opiniões doutrinárias das mais diversas para justificar a constitucionalidade do poder regulatório por parte das agências reguladoras. Predominam as correntes que defendem a legitimidade do poder normativo em função do regime de sujeição especial e em função da teoria da deslegalização.


A corrente que trata do regime de sujeição especial defende a possibilidade de produção de atos normativos pelas agências em face daqueles que estejam submetidos a um vinculo especial, decorrente normalmente da condição de delegatário de serviços públicos, sendo respeitadas, naturalmente, as regras gerais previstas em lei e os limites da desconcentração normativa, a serem observadas obrigatoriamente pelo regulador.


A corrente que defende a teoria da deslegalização, por sua vez, preconiza que o ato regulatório decorre diretamente da lei e será legítimo se observar os seus preceitos gerais (standards), parâmetros e limites fixados na lei, os quais pautam a concretização (execução) da norma primária pela autoridade reguladora.


Percebe-se claramente a proximidade entre as correntes, pois em ambos os casos os preceitos e as regras gerais contidos em lei devem ser observados, sob pena de extrapolação do poder normativo e invalidade da norma emitida pela agência. A maior diferença consiste no fato de que na primeira corrente as normas se dirigem aos delegatários stricto sensu, enquanto que na segunda se destinam ao setor regulado.


Estas correntes doutrinárias, especialmente a primeira, tiveram boa aceitação no Brasil, inclusive no âmbito do Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema, quando do julgamento da medida cautelar da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1668-DF, em 1997. O Tribunal se posicionou pela constitucionalidade do poder normativo das agências, tendo se alinhado com a primeira corrente, mais conservadora, que encara os atos regulatórios como terciários, tendo deixado claro, ainda, que os atos normativos das agências podem ter efeitos externos.[1]


Assim, percebe-se que os esforços doutrinários nacionais procuram, normalmente, uma interpretação que consiga harmonizar os princípios da legalidade e da separação dos poderes com a atuação normativa autônoma desses entes autárquicos, a fim de identificar parâmetros normativos de controle da discricionariedade administrativa. Isto é, sempre sob um enfoque jurídico-normativo, observando-se os princípios da legalidade e da separação dos Poderes.


Entretanto, alguns autores não consideram a constitucionalidade formal suficiente para justificar a legitimidade do poder normativo das agências, especialmente se forem considerados também os pontos de vista da Ciência Política e da Sociologia.


O aumento da complexidade das relações sociais é muitas vezes utilizado como argumento para reforçar a tese de que o Poder Legislativo não está adaptado para atuar em searas relacionadas com a regulação do domínio econômico. Haveria a necessidade de regulação técnica, a qual seria melhor desempenhada por órgãos reguladores estritamente técnicos  e especializados, em detrimento do Parlamento.


Entretanto, tal argumento desloca o foco do problema das questões de dogmática constitucional para o discurso da exigência de eficiência da atividade reguladora (elemento externo à ciência jurídica).


Neste ponto, têm-se algumas correntes doutrinárias que pregam que os mecanismos de controle externo e de participação popular nos processos decisórios das agências exercem um importante papel na justificação das agências. O propósito desse estudo é investigar essas correntes e propor um modelo mais completo de legitimação destes entes autárquicos.


2. Visualização do problema da legitimação democrática das agências


Dentre os principais mecanismos de controle acima mencionados, podem-se distinguir a supervisão ministerial, a revisão judicial das decisões, a atuação do Tribunal de Contas e a possibilidade de fiscalização e até mesmo de extinção das agências pelo Poder legislativo. Em relação aos mecanismos de participação pública, destacam-se as consultas públicas, as audiências públicas, as denúncias, o canal da ouvidoria, etc.


O alto grau de autonomia e os poderes quase-legislativos das agências ensejam muitas indagações no campo do Direito e da Ciência Política. Todos estes questionamentos, entretanto, se originam de um problema fundamental: o suposto déficit de legitimidade democrática da atuação normativa das agências: a dificuldade de se justificar a existência de órgãos normativos com aparente origem não democrática.


Alexandre Santos de Aragão comenta que:


“A insurgência de espaços administrativos efetivamente autônomos frente ao poder executivo central, do que as agências reguladoras independentes constituem o exemplo mais relevante em nosso Direito Positivo, é uma exigência da eficaz regulação estatal de uma sociedade também diferenciada e complexa. Todavia, a adoção de um modelo multiorganizado ou pluricêntrico de Administração Pública traz riscos à legitimidade democrática da sua atuação”.[2]


 Marcelo Rangel Lennertz, por sua vez, observa que a justificação deste poder normativo deve ser feita com base em elementos jurídico-formais, bem como por elementos provenientes da ciência política e da sociologia. Assim, ele critica as teses tradicionais de justificação do poder normativo das agências em função do seu pouco aprofundamento:


“a questão da legitimidade democrática da atividade de produção de normas pelas agências reguladoras tem sido abordada de forma reducionista e insuficiente. Os debates sobre o tema, em geral, se limitam a uma perspectiva jurídico-formal, no qual as propostas de solução são pensadas a partir da “melhor interpretação” dos princípios constitucionais da separação dos Poderes e da legalidade.”[3]


Segundo o autor:


“[…] esse conceito jurídico-formal de legitimidade, fundado sobre um paradigma liberal do Direito e da democracia, que é tão abstrato a ponto de ser indiferente à realidade, não se presta a fazer o que deveria ser sua principal função: explicar o fundamento normativo do poder político que o Estado – no caso, as agências reguladoras – detém de fato na sociedade.”[4]


 Este seria o motivo pelo qual esse conceito formal de legitimidade não seria suficiente para investigar as condições de legitimidade destas entidades reguladoras.


Paulo Todescan Lessa Mattos vai mais além:


“O que está em questão é saber em que medida pode ser legítima e democrática a decisão sobre o conteúdo da regulação por um órgão colegiado não-eleito e com autonomia decisória em relação à administração direta, em contraposição à decisão monocrática de um ministro de Estado nomeado pelo presidente da República eleito pelo voto popular. Ou, ainda, em que medida é legítima a definição de políticas públicas para um setor da economia por meio de uma agência reguladora independente, na medida em que, ao exercer sua função normativa, acaba por especificar (exercendo efetivamente poder normativo) o conteúdo das normas gerais definidas em lei pelo Poder Legislativo (eleito) ou em decreto do presidente da República (eleito).”[5]


Ele prossegue afirmando que:


“As agências reguladoras independentes são autorizadas pelo Congresso a: (i) editar normas, exercendo função quase-legislativa; (ii) decidir conflitos, exercendo função quase-jurisdicional ao aplicar e interpretar normas; e (iii) executar leis, exercendo função quase-executiva de formulação de políticas públicas. E, no caso do exercício das funções executivas, as agências têm, do ponto de vista legal, garantias de independência decisória e podem, ao formular políticas públicas, contrariar os interesses políticos do presidente eleito democraticamente. Dessa forma, muitas das decisões das agências envolvem escolhas políticas traduzidas em normas editadas (political choices that ‘make law’), que têm que ser legitimadas”.[6]


Realmente, apesar da produção normativa das agências ser predominantemente técnica, parece claro que também envolve uma inegável parcela de decisionismo político. Para a elaboração das normas os dirigentes das agências precisam, sim, fazer escolhas valorativas que não se enquadram na idéia de competência exclusivamente técnica, mas que invadem o campo da discricionariedade e da política.


Desse modo, o paradoxo que se forma é o seguinte: as características de independência decisória e de estabilidade dos dirigentes têm o mérito de proporcionar nítidas vantagens do ponto de vista econômico. Isto é, permitem a manutenção de um ambiente adequado para que as atividades econômicas produzam resultados positivos e, ao mesmo tempo, asseguram a proteção dos direitos e interesses dos consumidores.


Apesar desses bons resultados, o modelo apresenta o seu maior problema justamente no ponto de vista político e jurídico-formal, qual seja: a dificuldade de se justificar a obediência a uma autoridade administrativa cujos dirigentes não são eleitos e cujas decisões não estão sujeitas à revisão por parte das autoridades eleitas democraticamente (ressalvados os casos excepcionais comentados neste estudo).


3. O paradigma da democracia discursiva de Habermas


Paulo Todescan Lessa Mattos realizou uma profunda pesquisa para tentar resolver o problema da legitimidade. Ele afirma que os modelos tradicionais são insuficientes para explicar a complexidade do funcionamento do estado regulador e justificar a sua legitimidade. São modelos presos a um paradigma liberal de direito, focados na adequação lógico-formal de normas à hierarquia do ordenamento.[7] O autor sugere uma saída utilizando elementos da teoria discursiva do direito e da Democracia de Jürgen Habermas,[8] que será sumarizada nos parágrafos seguintes.


Na obra Direito e Democracia entre Facticidade e Validade, Habermas propõe um novo modelo de justificação da legitimidade do poder público nas sociedades modernas contemporâneas, as quais se caracterizam por um alto grau de complexidade e diferenciação funcional. A idéia do autor é embasar esse novo modelo em elementos diversos dos tradicionalmente utilizados. Os modelos tradicionais, segundo ele, se baseiam em teorias com fundamento na moral e no direito e apresentam um conteúdo ultrapassado e insuficiente. A maioria vê no Poder Legislativo o único representante legítimo dos interesses da sociedade, prendendo-se, assim, aos velhos dogmas da concepção liberal de democracia.[9]


A proposta do autor alemão consiste na Teoria da Ação Comunicativa, com base em um novo tipo de racionalidade, a racionalidade comunicativa, decorrente das relações interpessoais na sociedade e entre a sociedade e as instituições políticas do Estado. Ele afirma que existe um grande potencial de racionalidade nas ações voltadas para o entendimento mútuo (ações comunicativas), potencial este que seria capaz de superar o problema da legitimação do poder político na atualidade.


Estas ações comunicativas consistem em instrumentos capazes de viabilizar a participação popular no processo decisório, de modo a inserir etapas de discussão e de convencimento mútuo, a fim de se chegar a resultados que, em função da racionalidade, pudessem ser acatados voluntariamente ou pelo menos reconhecidos como legítimos e democráticos pelos administrados.


Habermas entende que certas condições são necessárias para que o processo decisório tenha maiores chances de produzir um consenso:


“(a) publicidade e inclusividade: ninguém que pudesse fazer uma contribuição relevante com relação à pretensão de validade objeto da controvérsia deve ser excluído; (b) iguais direitos de se engajar em comunicação: todo mundo deve ter a mesma oportunidade de falar sobre o assunto discutido; (c) exclusão de enganação e ilusão: participantes devem ser sinceros no que eles dizem; e (d) ausência de coerção: a comunicação deve ser livre de restrições que impeçam o melhor argumento a ser levantado e que determinem o resultado da discussão”.[10]


Assim, procedimentos decisórios que prevejam efetivos elementos de participação e discussão social implicariam na produção de normas com legitimidade reforçada pela racionalidade comunicativa. Esta forma democrática de elaboração normativa tem como vantagem a possibilidade de proporcionar uma larga aceitação voluntária por parte da sociedade. Trata-se do efeito ilocucionário, isto é, a aceitação da norma ou enunciado como válido e racional, aliado ao convencimento de que a norma ou enunciado deve ser cumprida.[11]


Habermas não comete a ingenuidade de defender que a aceitação racional das normas geradas por este processo democrático de elaboração seria suficiente para garantir o seu efetivo cumprimento. Pelo contrário, ele reconhece que apesar destes atributos contribuírem positivamente para o cumprimento voluntário das normas, eles não são suficientes para efetivamente assegurar a obediência. Assim, ele remete o interprete às formas tradicionais de imposição de eficácia para as leis (ex. sanção, poder de polícia).


Nesse momento, de acordo com o citado autor, predominariam os efeitos perlocucionários[12] da norma: os destinatários passam a cumpri-la em função da probabilidade da incidência das sanções. O efeito ilocucionário, apesar de não preponderar neste momento, ainda desempenha função importante, como fonte de legitimação e justificação racional da norma. A tese de Habermas se destina a explicar o conteúdo de legitimidade e democracia destas normas, não abordando, portanto, o problema da eficácia.


4. Legitimidade democrática das agências com base na teoria de Habermas


Paulo Todescan Lessa Mattos defende que o pensamento de Habermas é adequado para compreender a questão da legitimidade das agências reguladoras. Com efeito, ele elaborou uma teoria com base justamente na aplicação do paradigma da democracia discursiva de Habermas aos mecanismos de participação popular existentes no âmbito destes entes.[13]


Como ele ressalta, a ausência aparente de mecanismos de controle e responsabilização (accountability) das agências reguladoras é considerada um dos motivos do seu déficit democrático, não obstante o fato das teorias tradicionais justificarem a sua legitimidade sob o ponto de vista jurídico-normativo.


Segundo a teoria de Paulo Mattos, esta reduzida legitimidade democrática pode ser compensada pelos ganhos que podem ser obtidos com os instrumentos da democracia participativa no processo de produção normativa das agências, os quais implicariam na legitimação discursiva das agências.


Este ganho tem, inclusive, explicação sociológica. Segundo o autor:


“É possível afirmar que a adoção de mecanismos de consultas públicas e audiências públicas pode significar um avanço em termos de accountability do processo decisório sobre políticas setoriais no Brasil. Isso ocorreria na medida em que a ‘caixa-preta’ dos ministérios perde relevância no processo decisório, permitindo que outros grupos de interesse, que não apenas aqueles com acesso privilegiado aos canais de circulação de poder político na relação Presidente-Congresso, participem do processo decisório e tenham os seus interesses ouvidos no interior das novas agências”[14]


Conclui ele que nestes canais de participação popular estaria contido um grande potencial democrático capaz de legitimar a atuação normativa das agências reguladoras, potencial este que não foi considerado seriamente pelos estudos até então realizados. Quando muito, a mera existência formal destes canais já era tida pelos autores como suficiente. Na visão do citado autor, entretanto, a legitimação só se consumaria com a efetiva utilização destes institutos, não sendo suficiente o aspecto formal.


Na sua obra, Mattos demonstra que no Brasil as experiências de regulação da economia diretamente pelo Poder Executivo, típicas do Estado social, estiveram sempre associadas a práticas antidemocráticas.[15] Observou ele que havia uma concentração exagerada de poder decisório em relação às políticas públicas na figura do Presidente da República e dos seus Ministros.[16] As decisões políticas eram confinadas, na maioria das vezes, aos gabinetes ministeriais, com a influencia direta do Presidente e de um reduzido e privilegiado grupo de pessoas que tinha acesso aos chamados anéis burocráticos. Ademais, poucos eram os mecanismos institucionalizados de controle democrático das decisões tomadas. Conclui o autor que este panorama, apesar de estar de acordo com a constituição (sob o ponto de vista formal), apresentava evidente déficit de legitimidade democrática.[17]


Assim, a reforma regulatória ocorrida no país a partir da década de 90 teve o mérito de retirar uma parcela significativa do poder regulatório da esfera eminentemente política e de atribuí-la às agências reguladoras (descentralização), órgãos independentes que atuam com base em critérios predominantemente técnicos. Esta mudança certamente contribuiu grandemente para uma maior democratização do processo decisório.


Desse modo, a instituição de mecanismos de participação democrática nas agências, a exemplo das consultas públicas, audiências públicas, conselhos consultivos,[18] conselhos superiores, bem como de elementos de transparência e de accountability, segundo Mattos, são potencialmente capazes de proporcionar uma grande legitimidade democrática ao ente regulador. Por meio destes espaços públicos institucionalizados a sociedade pode participar diretamente no processo de elaboração de atos normativos, em um ambiente de democracia discursiva.


Conclui ele, finalmente, que este novo modelo regulador de estado, representaria, se comparado ao modelo anterior, um grande avanço no sentido da legitimação deliberativo-procedimental das decisões da Administração Pública. As agências, neste contexto, fariam parte da criação de uma nova dinâmica política regulatória, pois:


“A formulação de políticas setoriais, que antes estava restrita aos gabinetes ministeriais, aos conselhos institucionalizados no interior da burocracia estatal da administração direta, subordinada às decisões políticas do Presidente da República e ao jogo de barganhas políticas com o Congresso, passou a ser feita de forma insulada por técnicos especializados, porém aberta ao público afetado pelas normas editadas pelas agências.”[19]


Esta tese supera os problemas decorrentes da inexistência de escolha democrática dos dirigentes das agências (ausência de accountability eleitoral) e de meios de controle por parte do Executivo. Ela proporciona legitimação democrática com base na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, decorrente dos meios institucionalizados de participação popular nos processos decisórios das agências.


É imperioso comentar as conclusões de Mattos. Esta atuação popular, a princípio, é de cunho meramente opinativo para a autoridade decisória, a qual poderá decidir de forma contrária aos anseios da sociedade (interesses difusos) e dos próprios delegatários (interesses do setor regulado).


Entretanto, a legitimação democrática decorre justamente da possibilidade de que as contribuições da coletividade sejam levadas em conta e possam influenciar as decisões das agências, em um ambiente dialético e comunicativo de gestação. Percebe-se que a participação apenas influi na decisão dos gestores, não se tratando, portanto, de uma forma de democracia direta.


Todavia, nada impede que venham a ser instituídas no futuro novas modalidades de participação, talvez até sob a forma de votação, com a possibilidade ou não de vinculação da autoridade regulatória aos seus resultados.[20]


5. Comentários sobre a pesquisa de Paulo Todescan Lessa Mattos


Paulo Todescan Lessa Mattos observou por meio de pesquisa empírica (de campo)[21] que nas intervenções populares na produção normativa das agências reguladoras predominam as contribuições feitas pelo setor regulado, estando em segundo lugar as participações de particulares em geral (interesses difusos) e, por último, a participação de associações de defesa do consumidor e outros órgãos não governamentais.


Foi observado que, em relação ao grau de incorporação das contribuições, apesar da predominância quantitativa das contribuições do setor regulado, não houve evidência de que estas propostas tiveram maior aceitação que as oriundas da sociedade.[22] Pelo contrário, na amostragem considerada, o índice de incorporação das sugestões da coletividade foi superior, o que desqualifica a tese de que o setor regulado teria maior poder de influência do que a sociedade. De qualquer modo, o índice geral de aceitação e incorporação das propostas dos participantes das consultas públicas ainda é muito baixo.


A pesquisa revelou também que ainda existem graves deficiências procedimentais na consulta pública, dentre as quais: a) contraditório inexistente (não há possibilidade de réplica); b) ausência de motivação dos julgamentos das contribuições; c) ausência de publicidade.[23] Estas falhas implicam em uma baixa legitimidade procedimental e certamente desestimulam a participação da coletividade. Como fator positivo apontou o autor que, no caso da Anatel, agência pesquisada, o processo decisório é bem elaborado e prevê a obrigatoriedade das consultas internas (para contribuição dos servidores da agência) e das consultas públicas.


A conclusão do estudo de Mattos é a de que os mecanismos de participação pública têm um bom potencial democrático, com base na teoria deliberativa da democracia de Habermas. Este potencial, entretanto, pelo menos no caso da ANATEL, não foi atingido completamente, tendo em vista as deficiências mencionadas.


Marcelo Rangel Lennertz elabora uma crítica parcial ao pensamento de Mattos. Segundo ele, qualquer análise sobre a legitimidade democrática das agências deve ter uma etapa descritiva, voltada para a investigação da obediência às decisões das agências por parte de seus destinatários e dos fatores que influenciam a aceitação de tais decisões. Só então se partiria para uma segunda etapa, de análise normativa, a fim de se fundamentar normativamente a legitimidade democrática destes entes públicos.[24]


Assim, ele enumera duas preocupações a serem observadas neste estudo:


“A primeira é a adoção de um enfoque descritivo, voltado para a investigação da aceitação desse poder na sociedade. Importa verificar em que medida suas decisões são obedecidas por seus destinatários, bem como os fatores que, efetivamente, sustentam essa obediência ou desobediência. A segunda é a realização de uma análise normativa sobre os dados empíricos levantados, que leve em conta a gênese democrática do poder – isto é, que procure examinar, qualitativamente, se, entre aqueles que devem obedecê-lo, se verifica o reconhecimento da existência de boas razões para a obediência e se há a possibilidade de influência ou até mesmo alteração das decisões às quais devem obedecer caso delas discordem.”[25]


Assim, apesar de concordar com a parte principal do estudo de Mattos, Lennertz defende que a pesquisa empírica realizada sobre os processos internos da ANATEL (inclusive as consultas públicas), carece de rigor metodológico, além de não ter considerado, com a devida profundidade, os parâmetros de investigação por ele propostos. Assim, apesar de importante, esta parte da pesquisa de Mattos não seria representativa.


Apesar da crítica, o autor não apresenta uma solução factível. Apenas defende que a verificação in concreto (medição) da legitimação democrática com base no modelo de Habermas carece de um modelo empírico de experimentação, o qual ainda não foi completamente idealizado e, muito menos, experimentado.[26]


Feitas estas considerações, nosso pensamento está em consonância com a tese de Mattos acerca da legitimação das agências, pois não há duvida de que a participação popular no processo regulatório imprime um caráter democrático apto a reforçar a legitimidade dos atos regulatórios. Por outro lado, também consideramos procedente a crítica feita por Lennertz, pois a parte empírica desenvolvida no estudo de Mattos realmente é falha, não se prestando para medir de forma efetiva o grau de legitimidade democrática das agências.


6. Conclusão


Pelo visto, no Brasil a questão da constitucionalidade do poder normativo das agências reguladoras já foi bem pesquisada, sendo certo que as principais correntes doutrinárias defendem que estes atos normativos são terciários, subordinados à Constituição, às Leis (atos normativos primários) e aos Regulamentos (secundários).


Tais teses se tornam melhor embasadas se forem combinadas com outras, capazes de ressaltar o grau de legitimidade democrática das agências. É justamente este o pensamento de Paulo Todescan Lessa Mattos, o qual propõe a tese de que a legitimidade das agências pode ser reforçada por meio do desenvolvimento de meios institucionais de participação democrática na produção normativa destes entes.


Essa teoria é embasada na Teoria da democracia discursiva de Habermas, o qual defende que a legitimidade democrática das complexas ações do Estado pode ser aferida por meios dialéticos diversos, e não apenas seguindo o critério de origem no Poder Legislativo.


Assim, figuras tais como as consultas públicas, audiências públicas, denúncias e a ouvidoria funcionam, sob este enfoque, como meios viáveis de participação democrática do cidadão na produção normativa das agências. Tal participação, pelo menos no modelo brasileiro, não vincula a autoridade reguladora, porém tem o mérito de influir positiva e construtivamente na formação do convencimento da autoridade.


O desenvolvimento destes mecanismos certamente pode contribuir para o fortalecimento das instituições reguladoras e para a aceitação voluntária da normatização.


A pesquisa de Paulo Todescan Lessa Mattos aponta para o fato de que os meios de participação pública precisam ser aperfeiçoados, para que se tornem mais efetivos e acessíveis ao cidadão. Do mesmo modo, necessário um aprofundamento do próprio estudo, como bem destacou Marcelo Rangel Lennertz, de modo a ser possível teorizar meios de verificação do efetivo grau de legitimidade destas importantes instituições públicas.


Deste modo, a participação popular na produção normativa das agências, além de ser um excelente meio de exercício da cidadania, influi positivamente na atividade normativa dos órgãos reguladores e lhes conferem maior legitimidade.


 


Referências

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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007.

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VASCONCELOS, J. Democracia Pura: História e atualidade, reforma política, teoria e prática sobre governo sem políticos profissionais. São Paulo: Nobel, 2007.


Notas:

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADin-MC n° 1.668-DF. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, julgado em 20 de agosto de 1998. Publicado no Diário da Justiça em 31 de agosto de 1998. Para ilustrar, segue um trecho do voto do Ministro Sepúlveda Pertence: “[…] nada impede que a Agência tenha funções normativas, desde, porém, que absolutamente subordinadas à legislação, e, eventualmente, às normas de segundo grau, de caráter regulamentar, que o Presidente da República entenda baixar. Assim, […] entendo que nada pode subtrair da responsabilidade do agente político, que é o Chefe do Poder Executivo, a ampla competência reguladora da lei das telecomunicações. Dou interpretação conforme para enfatizar que os incisos IV e X referem-se a normas subordinadas à lei e, se for o caso, aos regulamentos do Poder Executivo.

[2] Cf. ARAGÃO. Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 218-219.

[3] LENNERTZ, Marcelo Rangel. Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: entre Facticidade e Validade. 2008. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008, p. 116.

[4] LENNERTZ, Marcelo Rangel. Op. cit., p. 48.

[5] Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador no Brasil: Eficiência e Legitimidade. São Paulo: Editora Singular, 2006, p. 339.

[6] Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 171.

[7] Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 28.

[8] Esta teoria está sistematizada na obra: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vols. I e II. 2ª Ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

[9] O pensamento liberal se funda em dogmas tais como o da legitimação por meio do sistema representativo eletivo e o da tripartição dos poderes. O modelo tripartite, por exemplo, é uma abstração científica que jamais chegou a ser empregada em sua forma pura, sendo certo que na prática, mesmo nas nações com perfil liberal mais exacerbado, sempre se observou instrumentos políticos de interferência entre os Poderes (checks and balaces).

[10] HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 67, apud LENNERTZ, Marcelo Rangel. Op. cit., p. 62.

[11] HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. Vol. I. Transl. Thomas McCarthy. Boston: Beacon Press, 1984, p. 298, apud LENNERTZ, Marcelo Rangel. Op. cit., p. 60.

[12] HABERMAS, Jürgen. Racionalidade do Entendimento Mútuo…, p. 121, apud LENNERTZ, Marcelo Rangel. Op. cit., p. 60.

[13] Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit.

[14] MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 25.

[15] MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 109-154.

[16] Trata-se do fenômeno que O’Donnel denomina de democracia delegativa, consistente na idéia de que o governante, após ser eleito, teria o poder onipotente de decidir qual seria o interesse público do país, de modo que os mecanismos de controle do seu poder, bem como as próprias pressões da sociedade, seriam obstáculos inconvenientes à plena autoridade que acabara de receber por delegação. Cf. O’DONNEL, Guillermo. Democracia Delegativa. In: Revista Novos Estudos, n. 31, outubro de 1991, apud MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 23.

[17] Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 24-25.

[18] Estes conselhos são compostos total ou parcialmente por membros da sociedade.

[19] MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 25.

[20] Ressalte-se que existem várias propostas teóricas de participação política popular, com diferentes níveis de cientificidade, a exemplo da democracia direta, democracia semi-direta, democracia líquida, democracia participativa, democracia emergente, democracia pessoal, etc. Uma proposta muito interessante e que foi posta em prática na Suécia é a do partido independente DEMOEX, onde os seus representantes eleitos votam no parlamento com base nas diretrizes estabelecidas diretamente pela sociedade, por meio de um sistema de votação eletrônico na internet. O partido conseguiu eleger uma única candidata para a Câmara Municipal de Vallentuna (cidade do subúrbio de Estocolmo) em 2002, a qual se reelegeu em 2006. A experiência foi denominada democracia direta eletrônica ou e-democracy, tendo se originado nos pensamentos de Karl Popper e Henri Bergson sobre a chamada sociedade aberta. Sobre o tema, cf. VASCONCELOS, J. Democracia Pura: História e atualidade, reforma política, teoria e prática sobre governo sem políticos profissionais. São Paulo: Nobel, 2007, e o próprio site do partido: <http://demoex.net/en>.

[21] Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 262. O autor fez uma pesquisa nas consultas públicas realizadas pela ANATEL no período de 1998 a 2003, relativas à universalização dos serviços de telecomunicações, o que importou no total de dez procedimentos. Trata-se de uma amostragem pequena em relação à quantidade de normas expedidas pela Agência no mesmo período, mas permite uma visão aproximada de como estes instrumentos estão sendo utilizados na prática.

[22] O autor ressalta que as propostas apresentadas pela sociedade e pelo setor regulado não são necessariamente contrapostas, podendo haver coincidência de interesses.

[23]    Fizemos uma consulta ao site da ANATEL (www.anatel.gov.br) em julho de 2010 e constatamos que as falhas apontadas pelo autor se perpetuam até a atualidade. Observamos, ainda (por amostragem e sem qualquer pretensão metodológica rigorosa), que na imensa maioria das consultas não há qualquer resposta por parte do ente regulador.

[24]    LENNERTZ, Marcelo Rangel. Op. cit., p. 10.

[25]    Ibid., p. 10.

[26]    Cf. Ibid., p. 147-149.

Informações Sobre o Autor

Marcio Sampaio Mesquita Martins

Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, Procurador Federal em atuação no Estado do Ceará, pesquisador e autor de livros e artigos sobre temas de Direito Administrativo e de Direitos Fundamentais


Equipe Âmbito Jurídico

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