Resumo: O artigo analisará o impacto das exigências presentes na Lei de Registros Públicos Brasileira, sobre as crianças nascidas com ambiguidade genital e que, muitas vezes são submetidas, ainda em tenra idade a procedimentos de redesignação sexual. Além do disposto, também serão discutidos os impasses legais enfrentados por essas crianças e suas famílias, frente à obrigatoriedade presente no Direito Brasileiro (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973) de que toda criança nascida viva, seja registrada no prazo máximo de 15 (quinze) dias, devendo esse registro conter, entre outras coisas, o nome dado pelos pais à criança e o seu sexo (BRASIL, 1973). Para isso, como reforço teórico, serão utilizados os doutrinadores Luís Roberto Barroso, Carlos Alberto Bittar, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald para as discussões sobre direitos fundamentais e direitos da personalidade da criança intersexual. Serão também abordados, textos dos autores Maciel-Guerra, Gueraa Júnior e Fausto-Sterling para as análises do tratamento médico da intersexualidade pela medicina no Brasil, incluindo a análise da Resolução nº. 1664 do Conselho Federal de Medicina, entre outros autores. Por fim, o presente estudo será concluído com análise de soluções encontradas por outros países, como a Alemanha e a Austrália para adequarem suas legislações as necessidades das crianças intersexuais, oferecendo-as a possibilidade de existirem fora da compreensão binária, tradicional do gênero humano. [1]
Palavras-chave: Intersexualidade; Registro Civil; Direito Internacional; Direitos da Personalidade; Conselho Federal de Medicina.
Sumário: Introdução; 1. A descoberta do sexo biológico; 2. A visão médica da intersexualidade; 2.1. Resolução nº 1664/2003 do Conselho Federal de Medicina; 3. A intersexualidade e os direitos da personalidade; 3.1. Direito à integridade física; 3.2. Necessidade de autonomia frente as escolhas que envolvem o próprio corpo; 4. Soluções internacionais para a reforma da Lei 6.015/73. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O artigo versará sobre a situação das pessoas intersexo no Brasil, são consideradas pessoas intersexo, as nascidas com órgãos sexuais externos que não se encaixam por completo ao que a sociedade e a medicina compreendem pelo sexo masculino e feminino, estima-se que de cada mil crianças nascidas, de 20 a 50 delas possuam alguma alteração nos órgãos sexuais, alterações essas que serão classificadas pela medicina como uma má formação congênita no sexo.
Como a ambiguidade genital pode se fazer presente de inúmeras maneiras, como por exemplo, no sexo reverso e disgenesia gonadal (MACIEL-GUERRA; GUERRA JUNIOR, 2005, p. 1) o termo “intersexo” será utilizado, no presente trabalho como um conceito guarda-chuva, a ser utilizado sempre que o texto fizer referência a uma situação em que, a equipe médica, apenas pelo exame da genitália externa da criança, não conseguir determinar o sexo biológico da mesma.
Faz importante ressaltar, que o sexo biológico não pode ser entendido apenas como aquele demonstrado pela aparência dos órgãos sexuais externos, e sim, também, por aquilo que pode ser aferido nos exames do cariótipo e dosagem dos hormônios sexuais.
Para fins de limitação, deverá ser compreendido por “criança” neste trabalho, os absolutamente incapazes, de acordo com o Código Civil (BRASIL, 2002), que estejam presentes dentro do marco etário estabelecido pela lei 8.069 (BRASIL, 1990). Ou seja, o estudo, terá como objetivo lançar luz sobre a situação do Registro Civil das pessoas de até 12 anos, nascidas no Brasil, que possuam desenvolvimento sexual diferente (DSD).
O tema central desse artigo, tornar inevitável uma crítica a grande margem discricionária, entre o que se convencionou, através de áreas como a medicina e a biologia, a ser entendido como pertencente ao sexo masculino ou sexo feminino.
E como essa distinção conceitual plena, entre um e outro, acaba por interferir na própria criação de uma identidade de gênero, que passar a ser regida por uma necessidade social de que haja completude entre os órgãos humanos responsáveis pela reprodução. O que não ocorre na prática, e ainda impede que uma quantidade considerável de pessoas que naveguem entre esses dois polos, sejam vistos como “normais” e socialmente aceitos.
A necessidade imposta atualmente, pela lei de Registro Civil, de registrar o sexo da criança ainda em seus primeiros dias de vida, acaba por colocar, mesmo de forma não intencional, a família possuidora de um bebê intersexual, diante de um desafio: registrar a criança com um nome e sexo provisório, podendo ser necessário no futuro, realizar à averbação desse registro em juízo. Ou, retardar o registro da criança, até que se tenha um diagnóstico mais definitivo, privando-a, de ser reconhecida pelo Estado como um cidadão de direitos, e de usufruir dos serviços garantidos pelo país aos seus nacionais.
Sabendo que, os pais, precisam estar cientes, que um diagnóstico que aponte com o máximo de certeza o sexo da criança pode nunca vir a ser possível. Ou, quando possível e concreto, eles ainda sim, poderão optar pela não definição sexual da criança, como forma de evitar uma violação da vontade dessa a respeito de um tema que envolve de maneira tão íntima o seu corpo, faculdade já possível em diversos países ao redor do mundo, como será abordado posteriormente.
Para melhor compreensão do tema, será abordada a Resolução nº 1664/2003 do Conselho Federal de Medicina (BRASIL, 2003) usada como referência por médicos de todo país no tratamento e acompanhamento dos intersexuais. E o problema do tratamento dado à ambiguidade genital de “urgência biológica e social”, que acaba por estimular a realização de cirurgias, muitas vezes com fins meramente estéticos.
Bem como, o risco de violação de direitos da personalidade ligados à integridade física, integridade psíquica e expressão sexual, é alto, já que, essas cirurgias, são muitas vezes, irreversíveis.
Graças à proximidade do tema, será abordado o princípio da dignidade da pessoa humana, pressuposto da própria existência do Estado Democrático de Direito. E as mudanças legislativas, jurisprudenciais que tem surgido em todo mundo buscando preservar a qualidade de vida das pessoas intersexuais nascidas em seus territórios.
1 A DESCOBERTA DO SEXO BIOLÓGICO
A delimitação do sexo de um ser humano começa antes mesmo de seu nascimento, hoje, com a possibilidade de se utilizar o ultrassom para averiguar o saudável desenvolvimento dos bebês, tanto os médicos, quanto os pais, são capazes de tomarem conhecimento da aparência externa da genitália das crianças antes do parto.
“Os conhecimentos desenvolvidos em bioquímica, embriologia, endocrinologia, psicologia e cirurgia deram aos médicos o controle sobre o sexo do corpo humano” (FAUSTO-STERLING, 2009, p. 5).
A partir dessa percepção, os familiares passam a preparar um modo de vida para a criança tendo como ponto de partida o sexo observado, e a equipe médica que os assiste passa a investigar a saúde do nascituro de acordo com o sexo pré-estabelecido.
“O regime heteronormativo tem absoluta necessidade de assegurar a diferenciação entre os gêneros masculinos e femininos. Da mulher e do homem se espera exclusivamente o sexo de natureza heterossexual. Mais do que qualquer outra coisa, mulheres devem ter preservada sua função reprodutiva e sua vagina deve estar pronta para receber em seu interior o pênis masculino. Enfim, “ser homem”, é não “ser mulher” (DIAS, 2014, p. 303).
O primeiro ponto importante é que para a medicina, além do processo de diferenciação sexual, que permitirá o conhecimento inconteste do sexo do bebê, é necessário que ocorra, anteriormente, a determinação sexual que representa o início do transcurso da diferenciação dos sexos.
“O processo de determinação sexual pode ser definido como o que resulta na formação de testículos ou ovários, enquanto o de diferenciação sexual diz respeito aos processos subsequentes à formação das gônodas, ou seja, o surgimento dos ductos genitais e da genitália externa” (MACIEL-GUERRA; GUERRA JÚNIOR, 2002, p. 5).
Para que a determinação sexual aconteça da maneira pregada pela medicina como sendo a esperada, é fundamental, que a fecundação do zigoto que originará a criança tenha ocorrido no formato cromossômico XX, ou XY. “O sexo genético do zigoto é estabelecido pela fertilização de um óvulo normal por um espermatozoide contendo um cromossomo X ou um Y. Em humanos, o sexo heterogamético (XY) é masculino e o homogamético (XX), feminino” (MACIEL-GUERRA; GUERRA JÚNIOR, 2002, p. 6).
O processo de diferenciação do sexo é considerado pela literatura médica como finalizado após a defluência da puberdade e a chegada à fertilidade.
“Essas mudanças representam uma das fases de um processo que começa no feto e prossegue pela puberdade até a maturação sexual completa e a fertilidade. Portanto, a puberdade não é um evento isolado, mas um estágio crítico na sequência do processo de diferenciação sexual” (MACIEL-GUERRA; GUERRA JÚNIOR, 2002, p. 14).
Outro ponto profundamente estudado pela literatura médica no processo de diferenciação sexual é a chamada “diferenciação psicossexual”, os defensores dessa teoria dividem o comportamento humano em áreas que basicamente fazem referência à identidade sexual, ao papel sexual e a orientação sexual.
Segundo MACIEL-GUERRA e GUERRA JÚNIOR, a identidade sexual deveria ser definido como a identificação de si próprio como homem ou mulher; já o papel sexual, significaria os aspectos do comportamento nos quais os homens diferem das mulheres culturalmente; e por fim, a orientação sexual se referiria à escolha do parceiro sexual, seja homo, hétero ou bissexual (2002, p. 15).
Com base na divisão acima detalhada, a medicina considera sexualmente “normal” o indivíduo que possua harmonia entre as etapas biológica de determinação e diferenciação sexual, bem como, possua os critérios psicossexuais em harmonia.
“A identidade sexual é usualmente estabelecida por volta dos dezoitos aos trinta meses de vida, em especial na ausência de anomalias genitais, e é reforçada quando as características sexuais secundárias são concordantes” (MACIEL-GUERRA; GUERRA JÚNIOR, 2002, p. 15).
É perceptível, a partir do que foi discutido, que a área médica possui entendimento rigído em relação aos assuntos que versam sobre a sexualidade humana, de modo, a não permitir que algum arranjo biológico, genético ou psicossexual diferente do fixado, seja visto como natural.
“Nos últimos anos, o dogma prevalecente é o de que a identidade sexual é concordante com o sexo de criação nos pacientes com ambiguidade genital, desde que a criança seja criada sem dúvida no sexo registrado e com a correção cirúrgica apropriada da genitália” (MACIEL-GUERRA; GUERRA JÚNIOR, 2002, p. 15).
E dessa maneira limitada que a medicina vem tratando a ambiguidade genital, distribuindo cirurgias corretivas aos sujeitos intersexuais como única solução possível ao “erro biológico” do qual são portadores.
“Por um lado, o “tratamento” médico da intersexualidade foi certamente desenvolvido como parte de uma tentativa de libertar as pessoas de uma dor psicológica presumida (embora não fique evidente se a dor é da paciente, dos pais ou do médico). E se aceitamos o princípio de que em uma cultura divida pelo sexo, as pessoas só conseguem realizar seu maior potencial de felicidade e de produtividade se tiverem a certeza de pertencer a um de apenas dois sexos conhecidos, então devemos reconhecer que a medicina moderna tem sido extremamente bem sucedida” (FAUSTO-STERLING, 2009, p. 5).
Buscando auxiliar a impedir violações da liberdade de autodeterminação, do princípio basilar da dignidade da pessoa humana e do direito à livre expressão sexual, a intersexualidade deve ser analisada sobre o prisma dos direitos da personalidade, dos direitos fundamentais e da dignidade humana, o que será realizado em tópicos posteriores.
2 A VISÃO MÉDICA DA INTERSEXUALIDADE
Neste item será debatida a forma como a área médica trata, hodiernamente, o processo de formação do sexo feminino e masculino seja do ponto de vista genético, biológico ou hormonal. Assim, como será abordado o olhar médico sobre a ambiguidade genital.
2.1 RESOLUÇÃO Nº 1664/2003 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
Publicada em maio de 2003, a Resolução nº 1664/2003 estabelece as diretrizes para o tratamento médico das chamadas “anomalias de diferenciação sexual”, como dito anteriormente, intersexualidade é um termo abrangente, que será utilizado para se referir aos mais diversos casos de ambiguidade genital, mais conhecidas no meio médico pela terminologia em destaque.
“Art. 1º São consideradas anomalias da diferenciação sexual as
situações clínicas conhecidas no meio médico como genitália
ambígua, ambigüidade genital, intersexo, hermafroditismo verdadeiro,
pseudohermafroditismo (masculino ou feminino), disgenesia gonadal, sexo reverso, entre outras”. (2003, p. 1)
O documento da Resolução nº 1664/2003 é formado por sete artigos, a exposição de motivos, e um anexo contendo os exames e procedimentos considerados mais seguros, do ponto de vista da precisão técnica, para o diagnóstico e tratamento das ambiguidades genitais.
A regulamentação pelo Conselho Federal de Medicina, órgão responsável por regular e fiscalizar o exercício da Medicina no Brasil, do tratamento oferecido aos pacientes intersexuais representa um importante avanço.
Uma vez que, somente através do estabelecimento de normas médicas claras e definidas será possível garantir aos pacientes e seus familiares o exercício do trabalho médico de forma ética e zelosa, como afinal, dispõe o próprio CFM na Resolução em estudo.
“CONSIDERANDO que o alvo da atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo zelo e o
melhor de sua capacidade profissional” (2003, p.1).
O artigo 4º da Resolução nº 1664/2003, expõe os avanços mais importantes na área, ao tornar obrigatória a presença de uma equipe multidisciplinar para diagnosticar e tratar o intersexual, e estabelecer que sendo o paciente consciente de sua condição, e podendo ele opinar, deverá ser consultado sobre a definição de seu sexo.
Entretanto, a regulamentação, apesar de bem motivada, apresenta dois graves defeitos: o primeiro versa sobre a demora de sua elaboração e publicação, o que fez com que, a insegurança no diagnóstico e tratamento das ambiguidades genitais se perpetuasse até 2003.
O segundo alude sobre a forma como a definição sexual é apontada como único caminho possível para garantir ao intersexual uma vida plena, de modo a ser ela, realizada o mais breve possível, vindo a ser considera como “[…] uma urgência biológica e social” (2003, p. 3).
A discussão tema deste trabalho chega a ser mencionada na exposição de motivos da Resolução, mas o argumento de defesa da não intervenção cirúrgica em crianças intersexuais é desmerecido pela inexistência de pesquisas em longo prazo que comprove que a definição sexual tardia garantiu aos menores, maior harmonia com seus corpos.
“Há quem advogue a causa de não intervenção até que a pessoa
possa autodefinir-se sexualmente. Entretanto, não existem a longo
prazo estudos sobre as repercussões individuais, sociais, legais,
afetivas e até mesmo sexuais de uma pessoa que enquanto não se
definiu sexualmente viveu anos sem um sexo estabelecido”. (2003, p. 3)
Não obstante, apesar de ser a ausência dessas pesquisas uma verdade no estudo da intersexualidade e seu principal desafio, é desnecessário afirmar que, do mesmo modo, não há maiores indícios de que a definição sexual realizada logo após o nascimento, ou durante a infância resguarde melhor a dignidade como pessoa da criança.
O caráter dado pela Resolução nº 1664/2003 de urgência do ponto de vista biológico e social acaba por pressionar a equipe médica pela rápida definição do sexo de criação a ser recomendada aos pais, bem como a realização da cirurgia de adequação de genitália para tornar o corpo da criança adequado ao sexo escolhido.
“Acaba por afirmar que a própria exposição de motivo, ao afirmar a existência de uma “urgência biológica e social”, que requer pronta intervenção de modo a evitar “graves transtornos”, pode servir de instrumento de pressão para a equipe, na medida em que surge a situação de drama vivido pelos familiares” (DIAS, 2014, p. 307)
A luta contra o tempo enfrentada pela equipe médica ao atender uma criança intersex parece incoerente de acordo com a própria regulamentação que a estimula, já que, a norma médica estabelece a racionalidade e a profunda análise do caso como essenciais na descoberta do sexo de criança, o que pode demandar uma quantidade considerável de tempo.
“O maior objetivo dessa equipe não será apenas descobrir qual é a etiologia da anomalia da diferenciação sexual, mas sim obter uma definição racional sobre o sexo de criação mais recomendável” (2003, p. 3).
A todo tempo a Regulamentação demonstra uma preocupação excessiva com a forma como procedimento cirúrgico e o tratamento da adequação sexual ocorrerão, esquecendo-se de abarcar temas preciosos como de qual forma a família deve ser comunicada sobre a intersexualidade dos menores, a necessidade de que os familiares estejam cientes da natureza meramente cosméticas de boa parte dos procedimentos cirúrgicos e a possibilidade real de desajuste do sexo elegido.
“Nesta circunstância, o núcleo social e familiar fica ambivalente e com sentimento de culpa nos primeiros momentos, pois é senso comum que a identidade sexual deve ser construída pelos familiares e sociedade, gerando, assim, forte ansiedade” (2003, p. 5).
Ademais, como demonstra o trecho acima, a norma regulamentadora em estudo apresenta maior preocupação com a inquietação que a intersexualidade pode gerar nos pais das crianças nascidas sobre tal condição, do que com a defesa dos interesses do menor intersex, que sofrerá todas as consequências que a definição sexual prematura, e sem observância à liberdade de escolha pode ocasionar.
“As metas dessa política são genunínamente humanitárias, refletindo o desejo da comunidade médica de que essas pessoas possam se “encaixar” tanto física como psicologicamente, entretanto, as pressuposições por trás desse desejo – de que existem apenas dois sexos, de que a heterossexualidade é normal, de que existe apenas um verdadeiro modelo de saúde psicológica – permanecem praticamente sem serem examinados” (FAUSTO-STERLING, 2009, p. 2).
É importante ressaltar, que não é intuito deste trabalho negar de forma absoluta a importância dos serviços médicos prestados aos intersexuais e aos seus familiares, entretanto, é necessário questionar se o tratamento dado de urgência social e biológica servem aos indivíduos intersex, ou somente funcionam com mecanismos de correção de uma sexualidade considera fora dos padrões médios da sociedade.
3 A INTERSEXUALIDADE E OS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Atualmente, os direitos da personalidade encontram-se expressamente previsto no Código Civil 2002, que destinou todo o capítulo segundo à temática.
Estudando os artigos 11 à 21, é possível aferir que a preocupação do legislador não foi em conceituar o que vem a ser os direitos, papel, em regra, melhor desempenhado pela doutrina.
“[…], a garantia de uma proteção mínima à personalidade é fruto da preocupação afirmada pelo avanço cultural do ser humano que, atualmente, repele toda e qualquer ideia que possa comprometer sua plena integridade” (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p.171).
E sim, de assegurar mecanismos de defesa contra possíveis violações, como pode ser observados, nos artigos 11 e 12 transcritos abaixo.
“Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau” (BRASIL, 2002)
A notável e necessária atenção dada pelo ordenamento jurídico brasileiro aos direitos da personalidade deriva especialmente, da sua natureza constitucional, uma vez que, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88, trouxe em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana, como fundamento basilar da República Brasileira, devendo este, servir de princípio norteador de todo o direito nacional (BRASIL, 1988).
“[…] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos” (SARLET, 2006, p. 60).
É preciso ressalvar que os direitos da personalidade apesar de constituírem uma criação jurídica estatal, buscam proteger o ser humano em sua essência, devendo por tanto, serem tomados sobre manto constitucional, assim como ocorre com o princípio da dignidade da pessoa humana.
“Não é demais alertar que a dignidade da pessoa humana não pode ser reduzida apenas a um valor inato à natureza humana (algo inerente à sua própria natureza), sendo induvidoso um sentido cultural na acepção da expressão, sendo fruto do aperfeiçoamento da espécie humana” (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 172).
Graças às peculiaridades dos bens jurídicos sobre a proteção dos direito da personalidade e a sua importância para o indivíduo como pessoa, a doutrina e o Código Civil tem traçado algumas características sobre eles.
Será adotado no presente estudo, o rol de características, elaborado por Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 187), que traz além da intransmissibilidade e da irrenunciabilidade, o caráter absoluto, ilimitado, imprescritível, impenhorável, inexpropriável e vitalício dos direitos da personalidade, entre outras particularidades.
A partir das características detalhadas tem-se que, os direitos da personalidade são direitos pertencentes ao homem em sua condição de ser humano, cada individuo possui direitos personalíssimos próprios, que nascem com sua concepção e morrem com o fim de sua própria vida, não sendo o rol do Código Civil de 2002 por tanto, taxativo.
“[…] absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, vitalícios, necessários e oponíveis erga omnes, como tem assentado a doutrina, como leciona, aliás, o art. 11 do novo Código” (BITTAR, 2004, p. 11, grifo do autor).
Desse modo, entende também Carlos Roberto Gonçalves ao dispor: “Essa proteção começa conforme dispõe o art. 2º do Código Civil, desde a concepção ([…]) e se estende até a sua morte, modernamente representada pela paralisação da atividade cerebral, circulatória e respiratória” (2014, p. 194).
Como correspondem aos mais elementares e cruciais bens jurídicos há uma dever subjetivo de não lesar que alcança toda a sociedade (oponibilidade erga omnes), bem como, disposições jurídicas que vedam a sua venda, limitação ou disposição.
Entre as características atribuídas ao longo dos anos, pelos mais diversos doutrinadores aos direitos personalíssimos, a que mais tem a agregar no estudo em curso é o caráter absoluto. Por ser, através dele, feita a defesa de que não havendo risco à saúde da criança, a cirurgia de adequação de genitália só deverá ser realizada com o consentimento informada dessa, em momento posterior, considerado também por ela oportuno, independentemente do que parecer mais adequado a equipe médica ou aos pais.
“Os direitos da personalidade são absolutos porque possuem eficácia contra todos (ou seja, são oponíveis erga omnes), impondo-se à coletividade o dever de respeitá-los. É um verdadeiro dever geral de abstenção, dirigido a todos” (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 174, grifo do autor).
Apesar de haver algumas flexibilizações quanto o direito à imagem e a cessão de partes do corpo para transplantes, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald fazem um importante adendo, as flexibilizações relacionadas aos direitos personalíssimos não podem ferir o portador em sua dignidade (2014, p. 173).
A partir dessa reflexão, surge o questionamento, como manter a dignidade como pessoa das crianças intersexuais, ao obriga-las a aceitarem flexibilizações radicais do direito ao próprio corpo?
Uma vez que, apesar de estarem, em teoria, tendo sua vontade representada por seus pais ou responsáveis, a lesão à integridade física é inegável, visto que, muitos dos intersex são submetidos a vários procedimentos cirúrgicos que alteram consideravelmente suas anatomias.
3.1 DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA
O primeiro plano do estudo sobre a possibilidade jurídica da realização de cirurgias de adequação de genitália em crianças intersexuais de acordo com o direito brasileiro, passa pelo estudo do corpo, que é o objeto de interferência do procedimento cirúrgico. E também, pela análise dos direitos e garantias previstos no ordenamento pátrio para proteção do corpo e suas funcionalidades.
“O bem jurídico visado é a incolumidade física e intelectual. Preservam-se, com o direito reconhecido, os dotes naturais e os adquiridos pela pessoa, em nível físico e em nível mental, profligando-se qualquer dano ao seu corpo ou a sua mente. Condenam-se atentados ao físico, à saúde e à mente, rejeitando-se, social e individualmente, lesões causadas à normalidade funcional do corpo humano, sob os prismas anatômico, fisiológico e mental” (BITTAR, 2004, p.77)
O rol dos direitos da personalidade do Código Civil, é importante ressaltar mais uma vez, trata-se de enumeração meramente ilustrativa. Entretanto, a colocação do direito à integridade física entre esses conceituados direitos, demonstra a preocupação do legislador em sancionar qualquer possibilidade de ataques à projeção corpórea do individuo na sociedade.
“A vida humana reclama, pois, especialíssima proteção, impondo a repulsa contra todo e qualquer risco contra a degradação ou destruição de sua integridade, especialmente em épocas de importantes descobertas científicas pela engenharia genética e de crescimento social e econômico constante (e, ás vezes, desenfreado), não raro colocando em risco a integridade física do ser humano” (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 204).
Buscando potencializar a proteção dada ao direito à integridade física, a CRFB/88 apresentou em seu artigo 5º, inciso II, a proibição da forma mais ostensiva e condenável de violação a integridade física de uma pessoa: a tortura. “II – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.
A intenção do legislador constitucional com a disposição acima foi louvável, entretanto, a proibição expressa de prática tão vil e condenável, não pode cerrar os olhos dos juristas para outras violações do direito à integridade física, que ocorrem todos os dias, nos hospitais brasileiros e ás vezes com crianças menores de 1 (um) ano, como é o caso da cirurgia de adequação de genitália.
“A justificativa é que a pessoa de gênero diferente ou indefinido sofrerá preconceitos, e por isso procura-se adaptá-la. Trata-se de uma postura que sacrifica a individualidade biológica e psíquica em nome da normalidade” (DIAS, 2014, p. 299, grifo do autor).
Como já debatido no presente estudo, por se tratar de direito personalíssimo, limitações à integridade física do corpo do individuo só podem ser admitidas quando permitas em lei e com demonstração expressa da vontade do portador do direito.
“Ademais, importa esclarecer que a pessoa humana titulariza direitos que implicam o reconhecimento da titularidade sobre seu próprio corpo (aspecto físico da personalidade)” (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 207).
Desse modo, não deve ser admitido pelo Direito como aceitável que procedimentos cirúrgicos de adequação de genitália sejam realizados em crianças intersexuais, com base somente, no consentimento dos pais, por mais bem intencionados que estes estejam.
Como expõe Carlos Roberto Gonçalves:
“O direito à integridade física compreende a proteção jurídica à vida, ao próprio corpo vivo ou morto, quer na sua totalidade, quer em relação a tecidos, órgãos e partes suscetíveis de separação e individualização, quer ainda ao direito de alguém submeter-se ou não a exame e tratamento médico” (GONÇALVES, 2014, p. 194).
Os conceitos de direito à integridade física sempre trazem a necessidade de se proteger o corpo de forma ampla, em sua totalidade e individualização, desse modo, ao se falar de proteção ao corpo, é necessário falar também da proteção a sexualidade do corpo.
Longe de ser uma forma de mera objetificação da forma corpórea, a sexualidade que ele representa, ou pode vir a representar, quando usufruída de forma plena e consentida, garante a pessoa o exercício de sua autonomia privada de forma completa.
“A autonomia é o elemento ético da dignidade da pessoa humana. É o fundamento do livre arbítrio dos indivíduos, que lhes permite buscar, da sua própria maneira, o ideal de viver bem e ter uma vida boa. A noção central aqui é a de autodeterminação: uma pessoa autônoma define as regras que vão reger a sua vida” (BARROSO, 2012, p. 81).
E justamente na autodeterminação, que reside o cerne da questão aqui discutida, como garantir às crianças intersexuais, a possibilidade de se desenvolverem como pessoas autônomas e livres, para tomarem as decisões que se apresentarem como melhores ao longo da vida, quando o Estado Brasileiro nem sequer é capaz, de garantir a elas o direito de decidirem o sexo que carregarão por toda a vida e a formar como irão se apresentar ao mundo?
“No mais das vezes, a definição de um sexo mais serve para aplacar a angústia dos pais e não do filho, que pode vir a sentir-se mutilado, por ter sido submetido a intervenções cirúrgicas irreversíveis sem a possibilidade de ter se manifestado, o que afronta o princípio da autonomia da vontade. Daí a necessidade de ser garantida a opção do registro como sexo definido ou indeterminado” (DIAS, 2014, p.300, grifo do autor).
E inegável, frente ao que foi exposto, que a autonomia plena passa por um livre uso do próprio corpo pelo individuo, sem pressões e interferência externas de qualquer tipo, salvo em casos admitidos no ordenamento jurídico como é o risco iminente de morte.
“Os contornos da dignidade da pessoa humana são moldados pelas relações do individuo com os outros, assim como com o mundo ao redor. A autonomia protege a pessoa de se tornar apenas mais uma engrenagem do maquinário social” (BARROSO, 2012, p. 87).
Assim, a ação sobre o corpo da criança visando a modificação de suas características sexuais com objetivo de ordem estética, ou aceitação social deve ser duramente reprimida pelo direito brasileiro, por representar um sacrifício da própria dignidade da pessoa humana do ser em formação. Visto que, uma vez realizado o procedimento, estará a criança para sempre limitada a opção que lhe foi imposta.
“[…] a dignidade da pessoa humana, compreendida como vedação da instrumentalização humana, em princípio proíbe a completa e egoísta disponibilização do outro, no sentido de que se está a utilizar outra pessoa apenas como meio para alcançar determinada finalidade, de tal sorte que o critério decisivo para a identificação de uma violação da dignidade passa a ser (pelo menos em muitas situações, convém acrescer) o do objetivo da conduta, isto é, a intenção de instrumentalizar (coisificar) o outro” (SARLET, 2014, p. 51).
Desse modo, conclui-se que o uso de cirurgias de adequação de genitália em crianças intersex, quando a condição não apresentar verdadeiro óbice a manutenção da saúde do menor, nada mais é que a transformação do corpo da criança em instrumento para a manutenção de uma ordem sexual binária chancelada pela doutrina médica.
Esse uso da representação corpórea do intersexual como satisfação e manutenção dos padrões sociais deve ser a todo custo rechaçada pelo direito, sob o perigo de restrição dos direitos da personalidade, e como reflexo, da própria dignidade da pessoa humana na face da autonomia da vontade.
3.2. NECESSIDADE DE AUTONOMIA FRENTE AS ESCOLHAS QUE ENVOLVEM O PRÓPRIO CORPO
A discussão acerca da intersexualidade e a forma de tratamento médico oferecido hoje, à população intersex brasileira, foi iniciada através de uma explanação sobre a transformação da medicina em um biopoder capaz de gerenciar a vida humana em todos os seus âmbitos.
Foi demonstrado que essa mudança ocorreu de forma tão profunda, que mesmo quando a decisão médica se afasta dos desejos individuais dos pacientes, a confiança depositada na medicina como ciência infalível, faz como que a vontade dos profissionais da saúde seja vista como soberana e absoluta, devendo o paciente apenas aceitar o diagnóstico.
“Esse tipo de relação, apropriadamente, denominada paternalista, atribuí ao médico o poder de decisão sobre o que é melhor para o paciente. Similar à relação dos pais para com os filhos, foi durante longo tempo considerada a relação ética ideal, […]” (BARBOZA, 2012, p. 55).
Entretanto, não é razoável permitir que as ciências ligadas à saúde humana continuem possuindo tamanho controle sobre a vida, a ponto de com o apoio do direito, decidirem de maneira unilateral até onde irá à capacidade de um indivíduo para autodeterminar seu destino.
“O paciente tem direito a recusar o procedimento proposto, optar por outro, inclusive de revogar o consentimento dado anteriormente, enfim, decidir sobre o que lhe é mais conveniente, segundo suas próprias convicções pessoais. Nisso reside sua autonomia” (BARBOZA, 2012, p.61).
Deve ser garantido através dos instrumentos jurídicos já presentes no ordenamento pátrio, que os intersexuais dotados de capacidade civil possam decidir sobre a formar como lidarão com seus corpos e a maneira como os aplicarão na busca de uma vida a ser usufruída com dignidade.
E aos intersexuais incapazes ou relativamente capazes, deve ser assegurado que, qualquer procedimento cirúrgico ou tratamento não considerado essencial para a sobrevida do sujeito, seja postergado até a maioridade civil.
“A pessoa não é um ser acabado, mas um processo, um vir-a-ser. Como tal, deve ter o poder de fazer as escolhas que desejar. Dentre essas escolhas deve estar incluída a possibilidade de manipula livremente o próprio corpo, de utilizá-lo como espaço de autorrealização” (FAVIER, 2013, p. 76, grifo do autor).
É claro, que mesmo sendo a escolha de ser submeter, ou não, a um tratamento médico deixada para o próprio intersexual, não há meios de garantir que a decisão tomada por ele irá atender a todas suas expectativas. Entretanto, assumir os riscos dos caminhos elegidos é uma consequência da própria existência humana que não pode ser roubada com base na possibilidade de algum desacerto.
Resumidamente, cabe somente aos intersexuais elegerem entre viver como intersexual e enfrentar diariamente o infatigável julgamento social que recaí sobre tudo aquilo que não se encaixa como normal. Ou, levar a vida como indivíduo pertencente a somente um dos sexos biológicos atualmente reconhecidos, o que amenizará as cobranças sociais, contudo, também poderá diminuir as chances de realizações no âmbito pessoal.
“Convém destacar que o conteúdo do que, concretamente, poderia resultar em melhores chances de vida boa só pode ser definido subjetivamente. Ou seja, uma vez que a o potencial criativo das pessoas é ilimitado, existem incontáveis formas de vida boa, de modo que determinada modificação pode ser uma melhoramento para uma pessoa, e não para outra” (LARA, 2014, p. 83).
Como é perceptível, o dilema parcamente representado, é de difícil resolução já que não possui respostas adequadas, que assegurem a felicidade ou o bem-estar. Todavia, a opção permanece na seara da pessoalidade do indivíduo, devendo à medicina, os familiares, a coletividade e até mesmo o próprio direito, funcionarem como mecanismo de apoio e esclarecimento, nunca de normalização.
4 SOLUÇÕES INTERNACIONAIS PARA A REFORMA DA LEI 6.015/73
A partir de todos os temas discutidos nos tópicos anteriores, é notável a urgência da modificação da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973) de modo a garantir as crianças intersexuais, maior proteção jurídica, através da desnecessidade de se determinar um sexo biológico, ao registrar a criança recém-nascida.
A lei nº 6.015, cumpriu seu propósito de regular, a forma como ocorre o registro civil de pessoas naturais no Brasil, como uma lei fruto da sociedade da década de 70, entretanto, as estipulações do texto de lei não satisfazem mais os anseios sociais da sociedade contemporânea.
Sendo, portanto, vital que se verifique, o quanto antes, por parte do Poder Legislativo, uma alteração do artigo 55 da lei em discussão que dispõe:
“1° o dia, mês, ano e lugar do nascimento e a hora certa, sendo possível determiná-la, ou aproximada;
2º o sexo e a cor do registrando;
3º o fato de ser gêmeo, quando assim tiver acontecido;
4º o nome e o prenome, que forem postos à criança;
5º a declaração de que nasceu morta, ou morreu no ato ou logo depois do parto;
6º a ordem de filiação de outros irmãos do mesmo prenome que existirem ou tiverem existido; […]
7º Os nomes e prenomes, a naturalidade, a profissão dos pais, o lugar e cartório onde se casaram, a idade da genitora, do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílio ou a residência do casal. (Redação dada pela Lei nº 6.140, de 1974)
8º os nomes e prenomes dos avós paternos e maternos;
9º os nomes e prenomes, a profissão e a residência das duas testemunhas do assento”.
Somente através dessa sutil modificação, o país alcançará uma posição de proteção à intersexualidade, como uma condição de diferenciação pessoal e não, como uma enfermidade a ser prontamente ocultada ou consertada.
Hoje, felizmente, já é factível, encontrar ao redor do globo, exemplos de países que adotaram o terceiro gênero sem grandes problemas, como a Alemanha que em maio de 2013 passou a permitir, que bebês que receberam o diagnóstico de ambiguidade genital, fossem registrados como sexo indefinido[2].
Em meados de 2014 a Austrália, através de uma decisão da Suprema Corte Australiana, também avançou em sua legislação, ao passar a aceitar, que pessoas fossem registradas como gênero neutro, ou seja, não pertencentes ao sexo masculino ou feminino[3].
Apesar de representarem progressos louváveis, as duas medidas padecem da falta de regulamentação específica, por exemplo, de como funcionária a aplicação do terceiro gênero em documentos de utilização internacional, como é o caso do passaporte, ou como seria regulado o casamento civil, em que, um dos cônjuges seja intersexo.
Por isso, para que a mudança legislativa sugerida surta o efeito desejado, é essencial que haja elaboração de leis que regularize a presença do sexo indeterminado ou não identificado nos atos da vida civil.
A despeito de representar, uma diminuta transformação, na forma com o Direito tem tratado a ambiguidade genital, o acolhimento por parte do Poder Judiciário do desenvolvimento sexual diferente, no registro civil, funcionará como porta de entrada dos intersexuais, como cidadãos respeitados pelo ordenamento jurídico, o que refletirá, na forma como a própria sociedade vê a intersexualidade, provocando maior esclarecimento e aceitação sobre o tema.
Assim, é primordial ter em mente que, unicamente por intermédio, do reconhecimento da individualidade, é que o direito dará aos intersexuais voz como cidadãos, para reivindicarem, melhores condições de vida e políticas de combate ao preconceito até então vigente na sociedade.
CONCLUSÃO
O presente estudo teve como objeto analisar, a situação enfrentada no Brasil, pelas crianças nascidas intersexuais e seus familiares, apontando as dificuldades do ponto de vista legislativo e biomédico.
Para isso, foi necessário submergir, com profundidade ao conceito de intersexualidade, nos tópicos iniciais, utilizando muitos conceitos da área médica, que tem tratado, através dos anos, a ambiguidade genital.
Sendo assim, o segundo tópico se voltou para o exercício da medicina no Brasil, analisando, com ajuda de autores locais atuantes na área médica, a importância dada à descoberta do sexo biológico. Demonstrando, com ajuda da Resolução nº 1664/2003, os maléficos, que a elevação da medicina como detentora do conhecimento absoluto sobre os corpos humanos pode ocasionar, mesmo que as razões médicas pareçam bem intencionadas.
De outro modo, no quarto capítulo, a raiz jurídica do problema foi retomada, sendo explorados, os conceitos de direitos da personalidade, dignidade da pessoa humana e capacidade de autodeterminação. Institutos do direito, essenciais na luta pela garantia de uma vida plena aos cidadãos brasileiros, e que por tal motivo, não poderiam deixar de serem lembrados, ao se falar de cirurgia de adequação de genitália em menores de 12 anos.
O trabalho foi finalizado com a utilização de avanços legislativos e jurisprudenciais da Alemanha e Austrália, para traçar uma sugestão de melhoria da lei de Registro Públicos vigente, de maneira que esta garanta aos intersexuais, o respeito de sua condição individual, frente a não obrigação de escolha por parte dos pais, do sexo do recém-nascido no momento da elaboração da certidão de nascimento.
Acadêmica de Direito na Faculdade de Direito de Vitória
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