Resumo: O mundo da fraude à execução tributária ganhou capítulo novo a partir do julgamento do Recurso Especial Representativo de Controvérsia 1.141/990. A atitude simples e pura de desfazer-se de bens, antes que os perca para o executivo fiscal, restou bastante dificultada. Com o novo entendimento, ganha a sociedade e, em maior medida, a ética processual, tão incipiente no ordenamento jurídico brasileiro.
Sumário: 1. Introdução. 2. Do voto do ministro Luiz Fux.
1. Introdução
A arte de fraudar a execução sofreu um duro golpe. Doutro modo, a sofrível execução fiscal, com alcance abrangente, mas com eficácia diminuta, recebeu um alento. O afago veio do Recurso Especial Representativo de Controvérsia nº 1.141.990/PR da relatoria do Eminente Ministro Luiz Fux. Tal julgado traz, a nosso sentir, o verdadeiro espírito que o legislador quis imprimir ao art. 185, caput, do CTN, seja na redação primeira, seja na redação atual: extirpar ou dificultar a fraude à execução dentro do executivo fiscal.
Constava da redação primitiva do artigo 185 do Código Tributário Nacional, verbis “Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa em fase de execução”.
Já a redação atual do normativo, alterada pela Lei Complementar n.º 118, de 09 de fevereiro de 2005 (com entrada em vigor a partir de 09 de junho de 2005), passou a considerar que ”Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.
A única alteração foi a supressão da expressão “em fase de execução”. Ao passo que na legislação pretérita exigia-se, para caracterizar fraude à execução fiscal, a judicialização da matéria, cumulada com a citação do executado/alienante, a atual requisita apenas o débito esteja inscrito em dívida ativa.
Contudo, tanto frente à norma anterior quanto à atual, o Superior Tribunal de Justiça impunha outro requisito, qual seja, a necessidade de averbação da penhora no registro ou na matrícula do bem, nos termos da sua Súmula 375, expressada na seguinte redação “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
Faticamente, tais normativos pouco ou nada se diferenciavam, pois ainda que as alienações não ocorressem antes do ato citatório ou da própria inscrição em dívida ativa, eram, de regra, feitas antes do registro da penhora. Esbarrava-se em requisito objetivo poderoso que transformava a execução fiscal, no mais das vezes, em mera penalidade processual contra o executado/alienante.
Demais disso, é notório que o “calote fiscal” começa a ser engendrado quando a empresa principia a apresentar problemas de solvibilidade. Daí, até a constituição do crédito, notificação, inscrição em dívida ativa, ajuizamento, citação e registro de penhora, pouco ou nada restava para ser expropriado. Assim, a necessidade de registro da constrição no bem alienado acabava por esvaziar a execução, fator este maximizado pela morosidade judiciária.
Melhor sorte não assistia à Fazenda Pública quando praticava o redirecionamento da demanda por responsabilidade tributária (sócios-gerentes). Nesse caso, o lapso temporal era ainda mais dilatado, praticamente inviabilizando a eficácia executiva.
Contudo, a “via sacra” do processo fiscal, a partir do julgado que compõe o título do presente estudo[1], ganhou contornos menos dramáticos, que, salvo melhor juízo, dará um novo norte às execuções fiscais.
2. Do voto do ministro Luiz Fux
Antecipando-nos novamente à conclusão, o mérito do julgado consta, unicamente, em corrigir um equívoco perpetrado de longa data pelo próprio STJ, qual seja, incidir o conteúdo da Súmula 375 nos executivos fiscais. A título ilustrativo seguem os arestos com o entendimento até então firmado:
“PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. FRAUDE À EXECUÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. ART. 185, DO CTN. BEM ALIENADO APÓS A CITAÇÃO VÁLIDA E ANTES DO REGISTRO DA PENHORA. APLICAÇÃO DO ENUNCIADO DA SÚMULA N. 375, DO STJ. RESSALVA DO PONTO DE VISTA DO RELATOR. 1. “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente” (Enunciado n. 375 da Súmula do STJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves, em 18/3/2009).” (REsp 726.323/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/08/2009, DJe 17/08/2009)
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. REGISTRO DA PENHORA DO BEM IMÓVEL ALIENADO. INEXISTÊNCIA. FRAUDE À EXECUÇÃO. INCARACTERIZAÇÃO. SÚMULA Nº 375/STJ. INCIDÊNCIA ÀS EXECUÇÕES FISCAIS. AGRAVO IMPROVIDO. 1. “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.” (Súmula do STJ, Enunciado nº 375). 2. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 1137103/RN, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/03/2010, DJe 16/04/2010)
Noutro sentido, o julgado sob análise enfoca o ponto central da demanda, qual seja, há a incidência da Súmula 375 nos executivos fiscais? A negativa se impôs. Como bem aponta o ministro Luiz Fux “os precedentes que levaram à edição da Súmula n.º 375/STJ não foram exarados em processos tributários nos quais se controverteu em torno da redação do artigo 185 do CTN, de forma que o Enunciado não representa óbice algum ao novo exame da questão”, acrescentando que “a diferença de tratamento entre a fraude civil e a fraude fiscal justifica-se pelo fato de que, na primeira hipótese, afronta-se interesse privado, ao passo que, na segunda, interesse público, porquanto o recolhimento dos tributos serve à satisfação das necessidades coletivas”.
A Súmula n.º 375, segundo o relator, tem respaldo em acórdãos de viés atrelado às demandas cíveis, que se travam entre particulares e encontram a sua disciplina normativa no Código Civil e no Código de Processo Civil.
De fato, compulsando os precedentes que deram origem à súmula percebe-se facilmente que a abordagem deu-se, de regra, no plano da norma adjetiva, em especial sobre o art. 593, II e 659 § 4º, sendo que em nenhum momento houve a abordagem da fraude à execução fiscal, disciplinada no Código Tributário Nacional (art. 185). Nesse particular colacionamos ilustrativos arestos:
“AGRAVO REGIMENTAL. DECISÃO MONOCRATICA CONFIRMADA. SOMENTE APOS O REGISTRO A PENHORA FAZ PROVA QUANTO A FRAUDE DE QUALQUER TRANSAÇÃO POSTERIOR (LEI N. 6.015, ARTIGO 240).(AgRg no Ag 4602/PR, Rel. Ministro ATHOS CARNEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 04/03/1991, DJ 01/04/1991, p. 3423)
FRAUDE A EXECUÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL. – PREPONDERA A BOA-FE DO ADQUIRENTE, QUE DEVE SER RESGUARDADA, NO CASO EM QUE O BEM OBJETO DA PENHORA E ALIENADO POR TERCEIRO. – AGRAVO IMPROVIDO.
(AgRg no Ag 54829/MG, Rel. MIN. ANTÔNIO TORREÃO BRAZ, QUARTA TURMA, julgado em 16/12/1994, DJ 20/02/1995, p. 3193)
PROCESSO CIVIL. FRAUDE À EXECUÇÃO. TERCEIRO DE BOA-FÉ. A ineficácia, proclamada pelo art. 593, II, do Código de Processo Civil, da alienação de imóvel com fraude à execução não pode ser oposta ao terceiro de boa-fé. Embargos de divergência conhecidos, mas não providos.” (EREsp 144190/SP, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/09/2005, DJ 01/02/2006, p. 427)
Segundo Fux, citando vasta doutrina[2] “a fraude de execução, diversamente da fraude contra credores, opera-se in re ipsa, vale dizer, tem caráter absoluto, objetivo, dispensando o concilium fraudis. Aduzindo que:
“a natureza jurídica tributária do crédito conduz a que a simples alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, pelo sujeito passivo por quantia inscrita em dívida ativa, sem a reserva de meios para quitação do débito, gera presunção absoluta (jure et de jure) de fraude à execução (lei especial que se sobrepõe ao regime do direito processual civil); a alienação engendrada até 08.06.2005 exige que tenha havido prévia citação no processo judicial para caracterizar a fraude de execução; se o ato translativo foi praticado a partir de 09.06.2005, data de início da vigência da Lei Complementar n.º 118/2005[3], basta a efetivação da inscrição em dívida ativa para a configuração da figura da fraude; (c) a fraude de execução prevista no artigo 185 do CTN encerra presunção jure et de jure, conquanto componente do elenco das “garantias do crédito tributário” (sem nota de rodapé no original).
Desse modo, é de se desconsiderar a vontade das partes, pois, nas palavras do relator
“pouco importa o elemento volitivo-subjetivo no sentido de que a venda que causa o malogro da execução tenha sido praticada com esse fim especifico. A fraude, ao revés, constata-se, objetivamente, sem indagar da intenção dos partícipes do negócio jurídico. Basta que na prática tenha havido frustração da execução em razão da alienação quando pendia qualquer processo, para que se considere fraudulenta a alienação ou onerarão dos bens. Esta é a expressiva diferença entre a “fraude de execução”, instituto de “índole marcadamente processual” e a “fraude contra credores” de “natureza material”, prevista no Código Civil, como vício social que acarreta a anulação do ato jurídico. Este vício civil exige vontade de fraudar (concilium fraudis) para caracterizá-lo, ao passo que a fraude de execução configura-se pela simples alienação nas condições previstas em lei (in re ipsa).”
Assim, para compreendermos a mudança de entendimento inegável reconhecermos a prevalência de um interesse público em detrimento do interesse privado. Como o próprio relator assentou “o recolhimento dos tributos serve à satisfação das necessidades coletivas”. Nesse sentir, a frustração da execução a todos prejudica, não obstante fomentar a cultura da fraude contumaz.
No que toca a eficácia do julgado, prescreve o Art. 543-C do CPC e seus parágrafos que “Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo”, sendo que “Caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça”. Outrossim, “Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem: I – terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou II – serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça” . Demais disso, “Na hipótese prevista no inciso II do § 7º deste artigo, mantida a decisão divergente pelo tribunal de origem, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial.
Assim, considerando que o próprio tribunal[4], bem como outros a este submetido deverão acatar o entendimento, sob pena de, admitido Recurso Especial, fatalmente ser revertida a decisão ou acórdão[5], é de se analisar as hipóteses em que a fraude à execução pode ser requerida.
Na prática existirão 4 (quatro) situações a ser considerada.
Alienação de bem de insolvente (pessoa jurídica ou jurídica) ocorreu antes da citação e anterior à vigência da LC/118[6]. Nesse caso, o ente público não poderá postular a declaração de ineficácia do negócio jurídico.
Alienação de bem de insolvente (pessoa jurídica e sócio-gerente) com citação e anterior a entrada em vigor da LC/118[7]. Nesse caso nada obsta a requisição de nulidade do negócio jurídico.
Alienação de bem de insolvente (sócio-gerente) sem citação após a entrada em vigor da LC/118[8]. Neste caso, há fundamento legal para requerer a ineficácia do negócio jurídico, pois o ato de redirecionamento é fato constitutivo do crédito frente a este, devendo ser aplicada a mesma regra como se pessoa jurídica fosse.
Por fim, caso o redirecionamento é anterior a entrada em vigor da LC/118, com alienação posterior a vigência do normativo mas sem citação, não é possível a requisição de ineficácia do negócio jurídico pois ao tempo do redirecionamento havida a necessidade de o executado/alienante ser citado.
Conclui-se, assim, que a não incidência da Súmula 375 certamente levará a uma execução fiscal mais eficiente e justa, frustrando, na medida do possível eventuais tentativas de fraude à execução.
Assessor Jurídico da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul – Regional Caxias do Sul e Advogado Tributarista
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