Este texto tem um objetivo específico: contribuir para a discussão acerca das limitações que devem ser reconhecidas, em consonância com o sistema constitucional democrático vigente e o Direito Internacional, ao âmbito das medidas excepcionais correspondentes ao “estado de sítio”. A relevância de se perquerir acerca de tais limites resulta, em primeiro lugar e de forma imediata, da formulação textual de nossa Carta Magna cujo artigo 139 enumera as medidas restritivas cabíveis quando da verificação da hipótese de “comoção grave de repercussão nacional”, como previsto no art. 137 inciso I mas nada diz acerca da possibilidade aventada no inciso II daquele mesmo artigo, ou seja, a de “declaração de estado de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira”. Ainda que não se trate de hipótese de concretização apontada em horizonte próximo – e menos ainda desejável – a instabilidade político-militar do mundo contemporâneo não permite que se possa simplesmente descartar como “meramente acadêmica” a preocupação com a preservação do núcleo essencial dos direitos fundamentais e de seus mecanismos de efetivação em tal eventualidade, sobretudo se pensarmos no caráter durável da Constituição e em sua incidência nas próximas décadas.
Infelizmente, o século XXI não tem sido marcado por passos concretos em direção à paz, sobretudo no que se refere à responsabilidade das maiores potências militares. Ao contrário, a maior delas – os Estados Unidos – não se tem detido, nos últimos anos como em muitas ocasiões anteriores, diante dos graves danos provocados por suas intervenções a grandes parcelas de populações civis, sejam estes danos os de natureza material, sejam, com ainda maior gravidade, os referentes à violação de seus mais elementares direitos individuais e coletivos. Além disso, as disputas políticas em nosso subcontinente – tanto no plano interno quanto as que têm reflexos mais diretos nas relações externas – não se contêm completamente nos limites institucionais, sendo de conhecimento público a “instabilidade” e as ameaças golpistas que pesam contra os processos de reforma político-institucional ora em curso em países vizinhos e seus desdobramentos apenas parcialmente previsíveis. A extensíssima fronteira brasileira, portanto, não está, por enquanto, de todo e para sempre a salvo das hipóteses de agressão armada, ainda que este deva permanecer um objetivo centralmente e consequentemente perseguido pela administração de nosso Estado, inclusive dando efetividade aos princípios enumerados no art. 4º de nossa Constituição.
Os “estados de exceção” como sistemas de crise
A conhecida fórmula schimittiana dos anos 20 que estabelece “o soberano como aquele que decide o estado de exceção”, traçando uma relação entre o conceito em tela e a soberania – como bem aponta Agamben (2004) – é uma das poucas “idéias correntes” no pouco debate que o tema tem suscitado. É importante notar que ainda hoje fazem-se sentir os ecos dos tratamentos extra-jurídicos da “exceção”, ou seja, do seu entendimento como um problema muito mais “externo” ao Direito do que “de Direito” e, especialmente “de Direito Constitucional”.
Sendo claro que parece pouco razoável negar a existência de situações históricas excepcionais no que se refere à continuidade institucional e à capacidade de abrangência dos conflitos políticos no seio das institucionalidades postas, de um lado, parece necessário, de outro, afastar a idéia da “não-juridicidade” como característica inultrapassável destas situações excepcionais. Não cabendo a um breve texto como este a retomada dos debates acadêmico-políticos sobre exceção, pode-se, no entanto, sublinhar que uma boa medida do tratamento que recebeu – ou das justificativas apresentadas a posteriori – deve-se a uma abordagem que a apresentou como análaga ao “estado de necessidade” do indivíduo que se vê no limiar de sua sobrevivência, situação na qual se lhe desculpa que tudo faça. Assim, o “paralelo” entre indivíduo que, ao se ver ameaçado seriamente quanto a sua existência física, tem “permitidas” ou não sancionadas ações que normalmente seriam condenáveis e o Estado cuja estrutura jurídico-institucional é colocada em causa em certas quadras históricas, torna-se a base de uma argumentação tendente a diminuir muitíssimo os limites às ações que visam a “normalização”.
É importante lembrar aqui que diversos regimes autoritários e mesmo totalitários tiveram em “estados de exceção” suas origens jurídicas, como ocorreu no próprio período de estabelecimento do Nacional-Socialismo na Alemanha, de triste memória para a humanidade. A “excepcionalidade”, quase sempre justificada pela “necessidade” de combater um “inimigo” (real ou nem tanto, de fato perigoso ou cuja força é bastante exagerada pela propaganda em favor das exceções), está na origem tanto de alterações legais quanto de práticas extra-legais ou abertamente ilegais que acabam por restringir a esfera de autonomia consagrada pelos direitos individuais. Assim, a abordagem dos “estados de emergência” como exteriores ao Direito e, mais especificamente, ao Direito Constitucional, aparece como extremamente perigosa e indesejável (partindo-se da preservação da esfera dos direitos individuais mais amplamente reconhecida pelos Estados e organismos internacionais como algo a ser alcançado).
A “exceção” como parte do Sistema Constitucional
Se não quisermos que a “exceção” seja muito facilmente utilizada por forças políticas ocasionalmente no poder para a criação de sérias dificuldades a seus adversários e como “fachada” de ataques à Democracia e ao Estado de Direito, precisamos afastá-la desta noção de “necessidade” pessoal. Um Estado cuja forma de existência esteja sendo perturbada – mais ou menos violentamente – não pode ser comparado, seriamente, com uma pessoa próxima da morte pela fome ou pela sede. Este Estado estará sempre – nas formas históricas que apresentou até aqui – sendo dirigido por representantes de uma parte dos interesses e setores existentes em seu interior; partes estas que têm adversários portadores de projetos políticos alternativos. O reconhecimento da “possível parcialidade” das gestões do aparato estatal é uma das mais importantes justificativas do constitucionalismo mesmo e, sendo assim, não há razão para que justamente nos momentos de maior agudização desta conflitualidade sempre potencialmente posta se considere que as “normas fundantes” estão “afastadas” ou “suspensas”.
Este parece ser o sentido proposto por Canotilho ao apontar os “estados de exceção” como sendo mecanismos constitucionais e, portanto, já assim limitados como parte de um sistema jurídico-normativo (e não uma possibilidade de simplesmente “sair” deste durante um certo período de tempo):
“A regulamentação constitucional é já uma limitação: enumeratio ergo limitatio. Neste sentido se pode acolher a afirmação de quanto mais um Estado se torna constitucional tanto mais se impõe a regulamentação constitucional do direito de necessidade (K. STERN). Concretizando melhor: se a ´essência` do Estado constitucional é a vinculação dos poderes públicos à Constituição, então não existe qualquer outra fonte de legitimidade, que não seja a ´magna carta`do país, relativamente à fixação de competências e à definição dos pressupostos objectivos dos estados de necessidade (K. HESSE). O direito de necessidade constitucional não é um direito fora da Constituição, mas um direito normativo-constitucionalmente conformado. O regime das ´situações de excepção`não significa ´suspensão da Constituição` (excepção de Constituição), mas sim um ´regime extraordinário` incorporado na Constituição e válido para situações de anormalidade constitucional.” (Canotilho 1993: 1146)
Limites materiais implícitos ao Estado de Sítio no Brasil
Diante das dificuldades colocadas pela não explicitação dos limites ao “Estado de Sítio” em caso de guerra ou agressão armada estrangeira e do já exposto, cabe interrogar que aspectos da própria ordem constitucional correspondem a parâmetros inafastáveis. Por mais que uma disputa militar deste tipo possa ter implicações importantes, não se pode jamais admitir que ela derrogue o caráter “constitucional” de nosso Estado, com os traços essenciais oferecidos pelo constituinte de 88.
Inafastáveis, desde logo, devem ser considerados os princípios fundamentais de nossa Constituição, sobretudo em seus desdobramentos sobre os indivíduos. Assim, além do angular princípio da dignidade da pessoa humana, o fundamento do plurarismo político informa que a “exceção” jamais poderá ser pretexto para a perseguição de posições eventualmente minoritárias neste período (inclusive as que eventualmente se opuserem mesmo ao estado de guerra ou às políticas desenvolvidas em seu seio), não se admitindo a “confusão” dos opositores, legítimos, como “traidores” a serem perseguidos pelo mero exercício de sua “liberdade de consciência”.
Do mesmo modo, as “discriminações odiosas”, estabelecidas no art. 3º, IV, permanecem inaceitáveis. Se a “emergência” institucional se funda na defesa dos interesses coletivos – ao menos supostamente – então perderia toda sua legitimidade se se tornasse instrumento contra os interesses de parte do povo que integra o Estado. Assim, deve-se descartar a possibilidade das medidas excepcionais terem por critério de estabelecimento e execução – explícita e implicitamente – quaisquer dos “cortes” de discriminação ali devidamente banidos da vida constitucional.
Embora seja possível (e necessário) desenvolver um esforço hermenêutico-concretizante mais cuidadoso sobre os limites que precisam ser reconhecidos na própria ordem constitucional, para os objetivos deste texto estas indicações gerais são suficientes, uma vez que poderão ser integradas e melhor concretizadas pela evocação da previsão jurídica internacional.
As respostas oferecidas pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos
Um adequado debate constitucional contemporâneo não pode deixar de lançar pontes para a proteção internacional dos Direitos Humanos. Assim, é importante destacar que algumas das suas mais importantes fontes escritas, além da compreensão largamente difundida entre os intérpretes e confirmada pelos espaços decisórios de importância cada vez maior, apontam para a existência de um grupo de “direitos intangíveis” que não poderiam ser limitados nem derrogados.
Manifestação das mais eloqüentes da existência deste núcleo se expressa pela redação do art. 4, nº 2 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), que determina que a possibilidade prevista de derrogação “não autoriza qualquer suspensão dos artigos 6°, 7°, 8° (§§1° e 2°), 11, 15, 16 e 18.”
A transcrição destes artigos seria desproporcionalmente extensa para as dimensões deste texto, mas vale sublinhar que tratam, respectivamente: art. 6º – do direito à vida e da proibição de sua privação arbitrária; art. 7º – a interdição da tortura e das penas e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes; art. 8º – a proibição da escravidão e da submissão à servidão; art. 11 – a proibição de prisão por mero descumprimento de contrato; art. 15 – a impossibilidade de condenação por atos ou delitos que não estivessem legalmente previstos no momento em que foram cometidos ou que não fossem contrários aos “princípios gerais de direito reconhecidos pela comunidade das nações”; art. 16 – o reconhecimento da personalidade jurídica de todas as pessoas, afastando-se a possibilidade da destituição da qualidade “de direito” de qualquer ser humano; art. 18 – a liberdade de pensamento, crença ou religião, sendo que quaisquer restrições às manifestações da liberdade religiosa têm que ser as “previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas”.
No mesmo sentido, o “art. 3º comum” das Convenções de Genebra estabelece no Direito Humanitário os direitos à vida, a não ser torturado e à não retroatividade da lei penal. Segundo Martins (2006: 149), estes direitos “devem ser considerados como os atributos inalienáveis da pessoa humana”. A mesma autora assinala que o Comitê de Direitos Humanos (no comentário nº 29 sobre estados de emergência de 31/08/2001) aumentou o elenco de direitos inderrogáveis, incluindo nela
“o direito de todas as pessoas privadas de liberdade a serem tratadas com humanidade e respeito, a proibição de fazer reféns, a proibição de deportações ou transferências forçadas de pessoas, a proibição do incitamento ao ódio racial, religioso ou nacional”.
Assim, temos um núcleo de direitos que ficam “a salvo” das emergências institucionais dos Estados. Além destes “limites materiais”, correspondentes aos direitos que não poderiam ser suspensos,o PIDCP também normatiza as eventuais suspensões dos demais direitos, sendo os mais importantes, como destaca Martins (2006):
– o Estado não pode exercer a derrogação para um fim diferente do previsto e está obrigado a observar o princípio da proporcionalidade na execução das medidas excepcionais;
– as medidas não podem envolver discriminações fundadas em sexo, cor, raça, língua, religião ou origem social.
À guisa de conclusão: o reconhecimento dos limites materiais como condição do aprofundamento da constitucionalização
No caso do “estado de sítio” previsto no art. 137, II, a inexistência de limites materiais expressos ou cujo reconhecimento seja clara e amplamente sedimentado no sistema jurídico-pátrio corresponde a uma verdadeiro “déficit de Constituição”. Tem implicações negativas na produção de garantias acerca das esferas de proteção asseguradas, abrindo uma perigosa margem a interpretações de conveniência de forças políticas eventualmente no comando. Este déficit poderia e poderá ser sanado pelo exercício do “poder reformador”, ou seja, pela apresentação de emenda constitucional que estabeleça de maneira adequada seus limites ou que os equipare aos já previstos para os casos do “inciso I” (as demais situações em que pode ocorrer estado de sítio). Entretanto, estando aparentemente esta capacidade congressual de “aperfeiçoamento” do texto constitucional absorvida por “agendas outras”, cabe aos operadores do Direito a tarefa de tentar construir a adequação entre este “silêncio” e as características basilares do nosso sistema constitucional.
Entendo-se a “constitucionalização” como processo histórico dinâmico – que, se tem determinados momentos cruciais de manifestação não está ausente do cotidiano jurídico-político – deve-se apontar a consolidação dos limites aqui identificados como necessária. Tal consolidação, dada a importância dos bens jurídicos protegidos e as dificuldades das circunstâncias nas quais sua ausência se faria sentir de forma efetiva, não merece esperar pelos “casos concretos” a serem avaliados pelo judiciário na hipótese trágica de sua verificação futura. Para muitas manifestações subjetivas de direitos poderia ser tarde demais. Este texto procurou ser um apontamento útil no cumprimento desta tarefa, não tendo tido a pretensão, naturalmente, de esgotá-la.
professor do NEPP-DH (Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos) da UFRJ. Doutor pela Escola de Serviço Social da mesma universidade. Mestre e Graduado em Direito pela PUC-Rio
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