O sistema de governo e o exercício da cidadania na história das constituições brasileiras

Resumo: Aqui se pretende analisar a evolução constitucional brasileira, com especial atenção as peculiaridades do sistema representativo institucionalizado em cada período e dos permissivos de exercícios de formas de governo direto nos diferentes momentos históricos, em especial através dos plebiscitos, referendos e iniciativas populares de leis.

Palavras-chaves: Constituições Brasileiras – Sistema de Governo – Sistema Representativo – Governo Direto.

INTRODUÇÃO

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A história política brasileira é marcada por sucessivas e graves rupturas democráticas, por ações militares e civis contrárias às instituições políticas vigentes, assim como pelos esforços jurídicos imediatamente posteriores para recomposição do regular exercício da cidadania e das liberdades individuais.

Foi assim quando da instituição da Monarquia e da criação do Império do Brasil, através da primeira dissolução parlamentar de nossa história, quando da transição imposta da Monarquia para a República, quando do golpe de Getúlio Vargas que instituiu o Estado Novo e, por derradeiro, quando da revolução militar de 1964. Todas estas crises tiveram reflexos diretos nas sete Constituições que vigoraram desde 1824 no Brasil, com a limitação e extensão dos direitos e garantias individuais em cada período, com a manipulação dos sistemas e formas de governo direto permitidos, pelas limitações ao exercício de direitos políticos, em especial no que diz com o voto e a participação popular no processo legislativo e deliberativo de Estado.

Serão analisadas, separadamente, cada uma das constituições que já vigoraram no Brasil, bem como os contextos históricos de suas vigências, com a contemplação das previsões normativas existentes sobre sistema de governo e sua representatividade, controle parlamentar dos atos dos Ministros de Estado, cidadania, iniciativa popular para apresentação de projetos de leis, plebiscitos e referendos, formas clássicas de exercício do denominado "governo direto".

É justamente esta evolução história, política e jurídica que se pretende estudar neste artigo, para chegarmos a uma identificação atual de expressões e conceitos, na vigente Constituição, denominada de "Cidadã".

1. A Constituição de 1824: de colônia de Portulal a Império do Brasil

No período compreendido entre 1500 e 1808, o Brasil foi uma mera colônia do Império de Portugal, fracionada administrativamente em denominadas “capitanias hereditárias”, com um "elemento unitário na organização"[1], qual seja o sistema dos governadores-gerais.

Em 1808, quando de grande instabilidade na Europa, o imperador D. João VI chega ao Brasil, deflagrando a fase monárquica.

Em 1815, o Brasil passa a figurar como "Reino Unido a Portugal", por determinação de D. João VI, o que faz cessar o monopólio da metrópole e, por conseguinte, o sistema colonial. O Imperador retorna para Portugal e deixa no Brasil seu filho, Dom Pedro de Alcântara.

Em 1822, Dom João VI exige a volta do filho para Portugal. Instado, o príncipe regente, Dom Pedro de Alcântara, negou-se a seguir tal determinação (fato esse ocorrido no dia 09 de janeiro daquele ano, conhecido como "Dia do Fico"). A vontade real de se tornar independente e, mais que isso, a de constituir um novo Estado, ocorreu somente com a Proclamação da Independência, em 7 de setembro de 1822, instituída sob a forma de monarquia, a qual perdurou até 15 de novembro de 1889.

José Afonso da Silva ensina que, transferida a sede da Família Reinante para o Rio de Janeiro, era preciso instalar repartições, os tribunais e as comodidades necessárias à organização do governo; cumpria estabelecer a ordem, com a polícia, a justiça superior, os órgãos administrativos, que tinham até aí faltado à colônia[2]. Dita forma de organização político-administrativa do governo imperial ficou adstrita somente às imediações do Rio de Janeiro, sendo certo que pouca influência exerceu no restante do interior do país, onde a fragmentação e diferenciação do poder real e efetivo perduravam, sedimentadas nos três séculos da vida colonial.

Assim, estabeleceram-se a nobreza brasileira e a aristocracia intelectual, na época, influenciada por ideais liberalistas que agitavam toda a Europa, motivadas especialmente pelo Liberalismo e pelo Constitucionalismo.

Surge o movimento constitucional no Brasil, reclamando uma unidade nacional, uma organização central a fim de romper com os governículos regionais. A conjuntura política brasileira era propícia para que aqui se instalassem as idéias inovadoras e universais embandeiradas pela Revolução Francesa. Afinal, segundo proclamado no artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, "não tem constituição a sociedade onde não é assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes".

Em 03 de junho de 1822, o Príncipe regente publicou decreto convocando eleições para uma Assembléia Constituinte, a qual, eleita, deu início a seus trabalhos e discussões em 03 de maio de 1823. Em 11 de novembro de 1823, poucos meses após o início de seu funcionamento, discordando das propostas firmadas e debatidas, Dom Pedro mandou cercar o prédio onde funcionava a assembleia, dissolvendo-a e prendendo vários de seus parlamentares, iniciando a triste história de golpes de Estado no Brasil. Em 25 de março de 1824, o Imperador outorgou a primeira Constituição brasileira de sua história, restando esta imposta, ou melhor, "oferecida e jurada por sua Majestade o Imperador", "em nome da Santíssima Trindade", conforme disposição dela constante[3].

Da análise da Constituição do Império do Brasil de 1824, podemos aferir que o Império Brasileiro era uma nação livre e independente que constituía uma associação política de todos os cidadãos brasileiros. As capitanias existentes foram transformadas em províncias, sendo essa a forma de divisão do território nacional, que organizava-se em forma unitária, sem características de federação. O governo era monárquico do tipo hereditário, constitucional e representativo.

Aos moldes da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, o preceito da separação dos poderes fora introjetado na Constituição do Império, contudo, na fórmula quadripartida que, além do Poder Legislativo, Executivo e Judiciário, concebia o "Poder Moderador", criação esta de Benjamim Constant para fortalecer os poderes do Imperador.

O Poder Moderador, considerado a chave de toda a organização política, era exercido privativamente pelo Imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que incessantemente sua vontade velasse sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos.

No aparelho político do poder central, dois órgãos concorriam para reforçar a ação do poder soberano: o Senado e o Conselho de Estado. Aquele, essencialmente conservador, funcionava como órgão de reação contra movimentos liberais da Câmara dos Deputados. O Conselho de Estado era órgão consultivo, que tinha enormes atribuições, sendo quem aconselhava o Imperador nas medidas administrativas e políticas e era o supremo intérprete da Constituição.

O exercício do Poder Legislativo era conferido à Assembleia-Geral, composta da Câmara dos Deputados, com a nota da eletividade e transitoriedade, e a dos Senadores, composta por membros vitalícios nomeados pelo Imperador (arts. 13, 35, 40 e 43 da Constituição). As eleições ocorriam na forma indireta e o voto era censitário, somente sendo deferido o direito ao voto aos homens, com mais de 25 anos de idade, e que comprovassem renda anual mínima prevista na própria Constituição.

O Chefe do Poder Executivo era o Imperador, que o exercia com o auxílio dos Ministros de Estado, que eram livremente nomeados e destituíveis pelo Imperador e a quem cabia referendar ou assinar todos os atos do poder executivo, sob pena de não poderem ser executados (arts. 131 a 136). Não havia a previsão constitucional de que os Ministros de Estado poderiam ser convocados pelo Poder Legislativo para prestar esclarecimentos, o que é compreensível em face da estrutura monárquica de governo. Durante o Império do Brasil, o Imperador reinava, governava e administrava, sendo chefe de Estado e de governo efetivamente.

O Poder Judiciário era independente dos demais poderes e composto de juízes e jurados (art. 151).

Inspirados nos princípios do constitucionalismo inglês, segundo o qual é constitucional apenas aquilo que diz respeito aos poderes do Estado e aos direitos e garantias individuais, os autores do texto outorgado por Dom Pedro I transplantaram para o art. 178 o que seguramente constitui a chave do êxito e da duração da Carta Imperial, que prescrevia expressamente que:

“É só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos; tudo o que não é constitucional pode ser alterado, sem formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias.”

Tal previsão é suficiente para classificar a Constituição de 1824 como semirrígida.

A Constituição do Império carregava em seu bojo um rol de garantias individuais que, nos seus fundamentos, permaneceu nas constituições posteriores, mas, curiosamente, não tratava sobre a escravidão, que era a principal força de trabalho em atividade no Brasil. Trata da proibição dos açoites, da tortura, da marca de ferro e de outras penas cruéis, que, no entanto, continuavam a existir de fato, mas não dispunha rigorosamente nada sobre a escravidão.

Não havia nenhuma previsão de formas de exercício de governo direto. O sistema de governo era representativo exclusivamente.

A Constituição brasileira de 1824 foi a de maior duração das sete que o Brasil já teve. Ao ser revogada pelo governo republicano, em 1889, depois de 65 anos, era a segunda Constituição escrita mais antiga do mundo, superada apenas pela dos Estados Unidos[4]. Ressalte-se, no entanto, que a única alteração àquele texto constitucional foi o Ato Adicional de 1834, que tratou do período regencial, que se estendeu de 1831 até a maioridade do imperador Dom Pedro II, em 1840.

Interessante registrar que foi sob esse mesmo texto, emendado apenas uma vez, que se processou, sem riscos de graves rupturas, a evolução histórica de toda a experiência monárquica brasileira. Essa evolução inclui fatos de enorme relevância e significação tanto política quanto econômica e social. As intervenções no Prata e a Guerra do Paraguai; o fim da tarifa preferencial da Inglaterra e o início do protecionismo econômico, com a tarifa Alves Branco, de 1844; a supressão do tráfico de escravos, o início da industrialização e a própria abolição da escravatura, em 1888, são alguns desses exemplos.

2. A Constituição de 1891: a República dos Estados Unidos do Brasil

A despeito da imposição de subordinação ao poder central, a realidade dos poderes locais, sedimentadas durante a colônia, ainda permanecia regurgitante sob o peso da monarquia centralizante.

José Afonso da Silva preleciona que a idéia descentralizadora como a republicana despontara desde cedo na história político-constitucional do Império. Os federalistas surgem no âmago da Constituinte de 1823, e permanecem durante todo o Império, provocando rebeliões como as Balaiadas, as Cabanadas, as Sabinadas e a República de Piratini. Tenta-se implantar, por várias vezes, a monarquia federalista do Brasil, mediante processo constitucional (1823, 1831), e chega-se a razoável descentralização com o Ato Adicional de 1834, esvaziado pela lei de interpretação de 1840. O republicanismo irrompe com a Inconfidência Mineira e com a revolução pernambucana de 1817; em 1823, reaparece na constituinte, despontando outra vez em 1831, e brilha com a República de Piratini, para ressurgir com mais ímpeto em 1870 e desenvolver-se até 1889[5].

Em 15 de novembro de 1889, houve a queda de um Império imensamente desgastado e vencido pela ideologia liberal, instaurando-se um governo provisório, presidido pelo Marechal Deodoro da Fonseca, como resultado do combate iniciado no dia anterior. Cedeu, pois, lugar à República Federativa, influenciada pelo federalismo, como princípio constitucional de estruturação do Estado e pela democracia, como regime político que melhor assegura o exercício dos direitos fundamentais.

Foi através do Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889, redigido por Rui Barbosa, que, histórica e provisoriamente, surgiu no Brasil a Federação como forma de Estado e a República como forma de governo. No art. 7º deste decreto, ficou estabelecido que a forma republicana ficaria aguardando o "pronunciamento definitivo do voto da nação, livremente expressado pelo sufrágio popular", na primeira previsão normativa brasileira de exercício de governo direto da cidadania. A vontade popular, no entanto, teve de esperar por mais de um século para manifestar-se efetivamente, sendo que, somente em 1993, foi realizado o plebiscito sobre os regimes e formas de governo.

Não tardou para que o governo provisório tratasse de organizar o novo Estado que se formara, anunciando as liberdades democráticas. Presidida por Prudente de Moraes, foi eleita a Assembleia-Geral Constituinte, em 15 de setembro de 1890. Como produto de sua elaboração, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil terminou promulgada no dia 24 de fevereiro de 1891, que ratificou as disposições estruturais lançadas no Decreto nº 1.

O artigo 1º da Constituição da República de 1891 trazia as mudanças sofridas pela Nação brasileira e tinha a seguinte redação:

“A Nação brasileira adota como forma de governo, sob o regime representativo, a República Federativa Proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias, em Estados Unidos do Brasil.”

A nova República que se erguia desfez-se do Poder Moderador, traço pernicioso de inconfundível ingerência nos demais poderes. Adotou-se, então, o critério tripartido de Montesquieu, no qual os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário eram, sim, harmônicos e independentes entre si, conforme redação expressa do artigo 15 daquela Carta Política[6].

Adotou o sistema representativo de governo, através do presidencialismo, à moda norte-americana. O Presidente da República, neste contexto, era o chefe de Estado e de governo, auxiliado pelos Ministros de Estado, agentes de sua confiança que lhe subscrevem os atos, e que, curiosamente, eram proibidos constitucionalmente de comparecer às sessões do Congresso, e só podiam com este se comunicar por escrito ou pessoalmente em conferência com as Comissões das Câmaras (arts. 49 a 52).

Fato relevante diz com a eleição do Presidente e do Vice Presidente da República, os quais seriam eleitos por sufrágio direto da Nação e por maioria absoluta de votos. Se nenhum candidato alcançasse a maioria absoluta de votos, caberia ao Congresso a eleição (art. 47), transformando a eleição em indireta.

Além disso, passou a constar daquela Carta Política que o Poder Executivo seria exercido pelo Presidente da República, na qualidade de "chefe eletivo da nação" (art. 41). Como substituto, no caso de impedimento, o Vice-Presidente assumiria o poder, "eleito simultaneamente com ele" (parágrafo 1o do artigo 41). Os primeiros Presidente e Vice Presidentes da República seriam eleitos pela própria Assembléia Constituinte, tendo sido eleito o Presidente Deodoro da Fonseca e figurado como Vice-presidente Floriano Peixoto que, curiosamente, eram de chapas opostas.

As eleições eram diretas, porém os votos não eram secretos. Colocou-se fim ao voto censitário, sendo conferido direito político aos homens com mais de 21 anos de idade, devidamente alistados, sem mais exigir-se capacidade financeira mínima para a habilitação eleitoral. Não era prevista forma de iniciativa popular para apresentação direta de projetos de leis e atos normativos, sendo que cabia aos senadores e deputados a iniciativa para apresentação de tais proposições (art. 36). Igualmente, não havia previsão constitucional alguma sobre plebiscitos ou referendos como formas de exercício de governo direto.

Todas as normas previstas no texto constitucionais passaram a ser consideradas efetivamente constitucionais, exigindo processo árduo para sua mudança, inaugurando um definitivo período de "rigidez constitucional" em nosso sistema, o que será marcante em todas as demais Cartas que a sucederam.

Outra inovação da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil foi a atribuição de autonomia aos Estados-Membros e aos Municípios, o que se pode extrair da expressão constante do artigo 68 do mesmo documento: "Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse".

Quanto a declaração de direitos, houve o suprimento das penas de galés, de banimento judicial e de morte. O Habeas Corpus, que já era previsto no Código Criminal de 1830, oi elevado a garantia constitucional pela primeira vez em nossa história, para tutela de direitos muito além da liberdade física.

Historicamente, o conflito de interesses passou a permear as relações de poder, já antes das eleições para a primeira Presidência da República.

Como a recém-proclamada Constituição não estava sendo seguida pelo Presidente eleito, Deodoro da Fonseca, logo a oposição pretendeu derrubá-lo pelo impeachment, providenciando sua regulamentação por meio de um projeto de lei que definisse os crimes de responsabilidade do Presidente da República. O Poder Executivo o vetou. Este veto foi submetido ao Senado e à Câmara e, em ambas as casas, foi derrubado. Deodoro da Fonseca, para manter-se no poder, em 3 de novembro de 1891, dissolveu todo o Parlamento. Houve instantânea reação das Forças Armadas, no comando do almirante José Custódio José Mello. Deodoro da Fonseca, sob fortíssima pressão, renunciou à Presidência da República.

Em seu lugar, tomou o poder o Vice-Presidente, Floriano Peixoto. Preferiu desatar os nós estabelecidos entre seu antecessor e os governadores dos estados-membros, destituindo-os, o que se deu provocando a revolta de todos. Era o começo de mais uma guerra civil.

Entretanto, Floriano Peixoto manteve-se firme no poder e, apesar das intempéries, entregou o mandato somente ao novo Presidente eleito: Prudente de Moraes, o qual deu suporte aos governos dos Estados-Membros e com eles passou a brindar interesses oligárquicos. Campos Salles, a seu tempo, foi o responsável pela firmeza da "política dos Governadores", vilipendiando os partidos políticos.

O poder dos governadores, por sua vez, sustentava-se no coronelismo, fenômeno em que se transmudaram a fragmentação e a disseminação do poder durante a colônia, contido no Império pelo Poder Moderador. O coronelismo foi o poder real e efetivo, a despeito das normas constitucionais traçarem esquemas formais de organização nacional com teoria da divisão de poderes. A relação de forças dos governadores impunham o Presidente da República, enfraquecendo a eficácia de fato do esquema formal estabelecido na constituição.

 Todavia, aos poucos, as bases do coronelismo foram se tornando vazias e enfraquecidas. Era tempo de nova aliança. Assinala Aliomar Baleeiro que a política do “café-com-leite” era a alcunha que davam, antes de 1930, ao pacto silencioso entre Minas e São Paulo, pelo qual os dois mais populosos e fortes Estados se revezavam por seus filhos na Presidência da República[7].

Com a Revolução de 1930, Getúlio Vargas toma o poder e rompe com a "política de governadores", deixando para trás a primeira República, a denominada "República Velha". A desmoralização das eleições, sabidamente fraudulentas, ao lado da “política de governadores” foi, talvez, a causa principal do malogro da 1ª República e da sua condenação pela opinião pública.

3. A Constituição "Social" de 1934

Nesse momento histórico, a economia brasileira despontava em vertiginosa ascensão, até que os efeitos da crise da Bolsa de Valores de Nova Iorque se irradiaram para o Brasil, onde o preço do café para exportação caiu à metade.

Diante desse terrível cenário, Getúlio passou a se preocupar sensivelmente com a questão social. Foi o grande mentor e criador do Ministério do Trabalho. Outro feito importante de Getúlio foi a elaboração do Código Eleitoral, oportunidade na qual editou o decreto de 3 de fevereiro de 1932. Convocou eleições à Assembléia Constituinte, também por decreto, em 3 de maio de 1932.

Logo após, exatamente dois meses depois, eclodiu a Revolução Constitucionalista em São Paulo. Venceu Getúlio e as eleições que haviam sido convocadas restaram mantidas para o ano seguinte, sendo concluída a Constituição de 1934, também dos "Estados Unidos do Brasil", agora sob a invocação em preâmbulo da confiança de Deus.

Na Constituição de 1934, foram mantidos os mesmos princípios fundamentais, quais sejam, a república, a federação, a divisão de Poderes, o presidencialismo e o regime representativo. Mas é de se considerar que inovou em vários aspectos, inclusive com a extinção da figura do Vice-Presidente da República, no aumento de poderes atribuídos à União (arts. 5º e 6o); atribuiu alguns poderes aos Estados-Membros e entregou-lhes poderes remanescentes (arts. 7º e 8o); também tratou de competências concorrentes entre a União e os Estados-Membros (art. 10), tornando mais claro e preciso o pacto federativo.

Destaque-se que o exercício do Poder Legislativo foi conferido à Câmara dos Deputados que contava com a "colaboração" do Senado Federal (arts. 22, 88 e seguintes), rompendo com o modelo bicameral antes em vigor. Ao Senado Federal competia, com exclusividade, a iniciativa de leis sobre a intervenção federal e, em geral, das que interessem determinadamente a um ou mais Estados (art. 41, § 3º), fortalecendo, ainda mais, a Federação.

A Constituição de 1934 consagrou os direitos políticos das mulheres[8] e o voto secreto, e delineou as Justiças Eleitoral e Militar, vinculando-as ao Poder Judiciário (artigos, 109, 63, "d", e 82).

Pela primeira vez em nossa história constitucional, foi previsto que os Ministros de Estado, com responsabilidade pessoal e solidária com o Presidente da República, seriam obrigados a comparecer ao Congresso para prestarem esclarecimentos ou pleitearem medidas legislativas, contudo não se admitia a possibilidade de censura parlamentar.

Continuava sem previsão constitucional a iniciativa popular para a apresentação de projetos de leis e atos normativos, sendo que dita atribuição era conferida a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, ao Plenário do Senado Federal e ao Presidente da República (art. 41). Plebiscito e referendo continuavam sem contemplação constitucional.

Além disso, adotou, ao lado da representação política tradicional, a representação corporativa de influência fascista, a sindicalização. Ao lado da clássica declaração de direitos e garantias individuais, com a introdução da ação popular e do mandado de segurança, inscreveu um título sobre a ordem econômica e social e outros sobre a família, a educação e a cultura, com normas quase todas programáticas, sob a influência da Constituição alemã de Weimar. Pela primeira vez na história constitucional brasileira, foi tratada a questão indígena, denominados como "silvícolas" (arts. 5º e 129). Por fim, insta mencionar que a Constituição de 1934 cuidou da regulamentação da segurança nacional e estabeleceu princípios sobre o funcionalismo público (arts. 159 e 172).

José Afonso da Silva entende que "fora, enfim, um documento de compromisso entre o liberalismo e intervencionismo"[9].

4. A Constituição “Polaca” de 1937

Na época, as ideologias do mundo pós-guerra já haviam se difundido amplamente no Brasil. Tanto que os partidos políticos posicionavam-se a favor ou contra aquelas ideologias. Organizou-se o Partido Comunista, liderado por Luís Carlos Prestes. De outra banda, Plínio Salgado liderou a Ação Integralista Brasileira.

Receoso, Getúlio, que havia sido eleito pela Assembléia Constituinte, tal como ocorrera anteriormente com Deodoro da Fonseca, também reproduziu com fidelidade o gesto deste, na tentativa de restabelecer o poder central. Desse modo, adotou, a uma só penada, três atitudes de extrema relevância para o futuro político da nação brasileira: dissolveu a Câmara e o Senado, revogou a Constituição de 1934 e outorgou a Carta de 1937, cujo anteprojeto foi de autoria do jurista Francisco Campos.

Getúlio prometeu a convocação de futuro plebiscito (art. 187 daquela Constituição). Nunca o fez. Nascia o Estado Novo, período esse denominado "hiato autoritário" pelos constitucionalistas.

Teve a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1937, como principais preocupações: fortalecer o Poder Executivo, a exemplo do que ocorria em quase todos os outros países, julgando-se o chefe do governo em dificuldade para combater pronta e eficientemente as agitações internas; atribuir ao Poder Executivo uma intervenção mais direta e eficaz na elaboração das leis, cabendo-lhe, em princípio, a iniciativa e, em certos casos, podendo expedir decretos-leis; reduzir o papel do parlamento nacional, em sua função legislativa, não somente quanto a sua atividade e funcionamento, mas ainda quanto à própria elaboração da lei; eliminar as causas determinantes das lutas e dissídios de partidos, reformando o processo representativo, não somente na eleição do parlamento, como principalmente em matéria de sucessão presidencial; conferir ao Estado a função de orientador e coordenador da economia nacional, declarando, entretanto, ser predominante o papel da iniciativa individual e reconhecendo o poder de criação, de organização e de invenção do indivíduo; reconhecer e assegurar os direitos de liberdade, de segurança e de propriedade do indivíduo, acentuando, porém, que devem ser exercidos nos limites do bem público; a nacionalização de certas atividades e fontes de riqueza, proteção ao trabalho nacional, defesa dos interesses nacionais em face do elemento alienígena[10].

A Constituição (que teve como parâmetro a experiência da Polônia, que logrou sucesso ao formar um Estado Social) dava destaque à proeminência do Poder Executivo. O art. 73 da Constituição do Brasil de 1937 é idêntico ao art. 2o da Constituição Polonesa de 1935:

“O Presidente da República, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos órgãos representativos, de grau superior, dirige a política interna e externa, promove ou orienta a política legislativa de interesse nacional, e superintende a administração do País.”

Durante este período, apesar de formalmente mantida a Federação, o Estado brasileiro foi, realmente, unitário. Pouca obediência prestava-se à Constituição no que concerne ao federalismo, sendo que os Estados regiam-se pelo Decreto-lei 1.202, de 08 de abril de 1939, verdadeira "lei orgânica" dos entes federados, que eram governados por interventores nomeados pelo Presidente da República. O culto ao poder central alcançou até os símbolos nacionais, sendo proibidos outras bandeiras, hinos, escudos e armas, inclusive as estaduais, os quais assim permaneceram por oito anos.

As eleições para o Parlamento Nacional, novamente previsto na forma bicameral, jamais foram realizadas neste período, assim como as para as Assembléias Legislativas estaduais.

A iniciativa para apresentação de projetos de leis era, em princípio, de competência do Governo. A nenhum membro de quaisquer das Câmaras caberia a iniciativa de projetos de lei, o que somente poderia ser tomada por um terço de Deputados ou de membros do Conselho Federal (artigo 64). Não havia previsão de iniciativa popular para apresentação de projetos de lei.

Walter Costa Porto observa uma aparente incongruência: um aspecto que diferencia a Carta de 1937 é que, sendo a segunda Constituição outorgada do Brasil, foi, no entanto, a que mais largo espaço abriu às práticas plebiscitárias[11], no exercício da denominada “democracia direta”, ao menos no que diz com o aspecto formal do texto. Nenhuma das Constituições anteriores fizeram referência a plebiscitos ou outras formas de consulta popular. Esta, por sua vez, empregou este termo por nove vezes, entre as quais podem ser destacadas as seguintes disposições: possibilidade de realização de plebiscito para a deliberação popular sobre a criação, fusão, desmembramento e subdivisão dos Estados (art. 5º); necessidade de realização de plebiscito para atribuição de poderes e competências legislativas ao Conselho de Economia Nacional (art. 63); no caso de ser rejeitado um projeto de emenda à Constituição de iniciativa do Presidente da República, ou no caso em que o Parlamento aprove definitivamente, apesar da oposição daquele, o projeto de iniciativa da Câmara dos Deputados, o Presidente da República tinha a possibilidade de, dentro em trinta dias, resolver que um ou outro projeto seria submetido ao plebiscito nacional (art. 174); era prevista a realização de plebiscito como condição de validade e permanência da própria Constituição (art. 187), registrando-se que o mandado do Presidente da República, Getúlio Vargas, seria renovado até a realização deste mesmo plebiscito (art. 175).

No entanto, não foi realizado nenhum plebiscito no período de vigência da Constituição de 1937.

Apesar de ser uma novidade no sistema jurídico brasileiro, na Europa o uso do plebiscito foi uma das características das ditaduras nazista e fascista nas décadas de 1920 e 1930, sempre como o objetivo de buscar o apoio popular a uma medida pouco democrática já em curso.

Como é possível perceber, o que de fato ocorreu, foi a imposição da mais execrável ditadura a qual, sob o pretexto de expurgar da Nação facções antidemocráticas, acabando por aniquilar direitos, liberdades e garantias fundamentais.

5. A Constituição de 1946: retorno à democracia

Após a Segunda Grande Guerra, iniciou-se a redemocratização do Brasil. Foi publicada a lei constitucional nº 9, de 28 de fevereiro de 1945, cuja finalidade principal foi convocar eleições diretas para o Chefe do Executivo e membros do Congresso Nacional. Esperou-se pela convocação de uma nova Assembléia Geral Constituinte, em vão.

Desse modo, emergiram poderosos grupos de opositores, dentre os quais o liderado pelo Brigadeiro Eduardo Gomes, representante da Força Aérea Brasileira e o General Eurico Gaspar Dutra, ex-Ministro de Guerra do próprio Getúlio Vargas. Venceu o segundo, o qual recebeu a faixa presidencial do então Ministro do Supremo Tribunal Federal, de vez que Getúlio Vargas havia sido deposto pouco antes, em 29 de outubro daquele mesmo ano. Era o fim do "hiato autoritário".

Estabeleceu-se, então, nova Assembléia Constituinte, marcada pela diversidade de ideologia representada pelos mais diversos partidos políticos, o que certamente ficou estampado na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, com a retomada efetiva e concreta da Federação.

Foi a Carta que mais fortaleceu os municípios na Federação, prestigiando suas definições em matérias e interesses locais. Tratou como constitucional o direito ao pleno e incondicional acesso ao Judiciário, a liberdade de organização partidária e afastou a pena de confisco.

O sistema representativo de governo continuava sendo o presidencialista, com suas características fundamentais, cabendo este exercício ao Presidente, ao recriado Vice Presidente e a seus Ministros de Estado, os quais eram obrigados a comparecer perante a Câmara dos Deputados, o Senado Federal ou qualquer das suas Comissões, quando uma ou outra Câmara os convocasse para, pessoalmente, prestar informações acerca de assunto previamente determinado, sendo que a falta de comparecimento, não justificada, importava em crime de responsabilidade (art. 54). Porém, perceba-se, não havia o instituto da censura parlamentar na espécie.

A iniciativa das leis, ressalvados os casos de competência exclusiva, eram de competência do Presidente da República e a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (artigo 67), não havendo previsão para proposições de iniciativas populares.

O plebiscito, por sua vez, passou a ser limitado como condição essencial e de validade para a incorporação, subdivisão e desmembramento de Estados (artigo 2º), não sendo prevista qualquer outra forma ou hipótese de sua aplicação. Mesmo assim, foi realizado em 06 de janeiro de 1963 o único plebiscito sob a égide dessa Constituição.

Em agosto de 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, houve uma grave crise política, sendo que os militares não aceitavam a posse do vice-presidente João Goulart. A solução conciliatória encontrada foi a aprovação da Emenda Constitucional nº 4, em 02 de setembro de 1961, que instituiu o sistema parlamentar de governo e a extinção do cargo de vice-presidente, bem como fez previsão da realização de plebiscito para definição popular sobre o sistema de governo a ser definitivamente adotado no Brasil. Houve uma derrota esmagadora dos parlamentaristas na consulta popular realizada, retomando-se o sistema presidencialista.

Com o resultado plebiscitário, houve a aprovação da Emenda Constitucional nº 6, de 23 de janeiro de 1963, revogando o diploma parlamentarista anterior. João Goulart conservou-se no poder por razoável período e terminou deposto pelo golpe militar no dia primeiro de abril de 1964.

José Afonso da Silva ensina que a nova Carta Política baseou-se nas Constituições anteriores "que nem sempre estiveram conformes à história real, o que constituiu o maior erro daquela Carta magna, que nasceu de costas para o futuro, fitando saudosamente os regimes anteriores."[12] Talvez isso explique o fato de não ter conseguido realizar-se plenamente. Mas, assim mesmo, não deixou de cumprir sua tarefa de redemocratização, propiciando condições para o desenvolvimento do país durante os vinte anos em que o regeu.

6. A Constituição "Militar" de 1967

Com o Ato Institucional nº 1 de 1964, e efetivação do golpe civil-militar, a ordem jurídica foi "mantida", mantendo-se em vigor a Constituição de 1946, com a especialíssima ressalva de "suspensão dos direitos civis políticos". Castelo Branco foi eleito e orientou-se em todo o período de seu mandato pelo indigitado Ato Institucional. Após, seguiram-se os Atos Institucionais nº 2, 3 e 4. O último serviu para estabelecer procedimento de votação da nova Constituição pelo Congresso Nacional.

Enfim, a Constituição de 1967 foi outorgada, em 24 de janeiro de 1967; espelhou-se totalmente na Carta de 1937 e passou a produzir efeitos somente em 15 de março de 1967, momento no qual o Presidente Marechal Arthur da Costa e Silva tomou posse. Não mais tratava-se dos "Estados Unidos do Brasil", mas apenas de "Brasil".

O Poder Executivo foi novamente fortalecido, passando a centralizar a gestão do Estado. Adotou-se uma solução em que existe uma nítida separação entre poderes. Mas destaca-se dos demais, um Executivo forte, que se organiza por si mesmo, sem interferência do Legislativo e que se enquadra em uma estrutura administrativa poderosa, sob o comando direto do Presidente da República. Acabou a eleição direta presidencial, passando esta a dar-se por meio indireto do Congresso Nacional, pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral especialmente constituído para tanto (art. 9º).

Themístocles Cavalcanti, Luiz Navarro de Brito e Aliomar Baleeiro, em análise à Constituição de 1967, concluem ter havido os seguintes reforços ao Poder Executivo: " a) ampliação da iniciativa; b) limites no tempo da aprovação dos projetos do governo; c) delegação legislativa; d) restrição a emenda dos projetos governamentais; e) faculdade ao Executivo de expedir decretos-leis"[13]. São instrumentos que importam o fortalecimento do Poder Executivo, no comando não só da política administrativa e financeira, mas também do mecanismo parlamentar, que fica condicionado, na maioria das suas atividades, à participação do Poder Executivo.

O sistema de governo adotado era o presidencialista, cabendo registrar que manteve-se inalterada a previsão constitucional de obrigação dos Ministros de Estado em comparecer ao Parlamento quando convocados para esclarecimentos, sendo que a falta não justificada ao ato importaria em crime de responsabilidade. No entanto, constitucionalmente, passou-se a prever a possibilidade de solicitação dos próprios Ministros para comparecimento ao Parlamento para discussão de assuntos de seus interesses (art. 40).

Plebiscito e referendo não foram conhecidos como institutos jurídicos constitucionais. Há, no entanto, a previsão de uma possibilidade de consulta prévia à população interessada para a criação de novos municípios (art. 14), porém sem a mesma eficácia e vinculação obrigatória do exercício de governo direto. Não havia previsão de iniciativa popular para apresentação de projetos de lei, sendo que esta cabia a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, ao Presidente da República, e aos Tribunais Federais com jurisdição em todo o território nacional (art. 59), sendo esta legitimação do Poder Judiciário uma inovação bastante interessante na história constitucional brasileira.

Dentro dessa análise jurídica, ainda convém mencionar que na Constituição de 1967 houve fixação, com maior precisão, dos direitos trabalhistas, bem como foi criada a autorização de desapropriação para fins de reforma agrária, mediante o pagamento de indenização por títulos da dívida pública.

Diante das diversas manifestações estudantis e populares de inconformidade com o sistema ditatorial iniciado, o Presidente Costa e Silva decretou o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, um dos atos mais arbitrários da história republicana. O recrudescimento do autoritarismo foi tal, que o Congresso Nacional foi fechado e os direitos e as garantias individuais foram suspensos.

Acometido de uma enfermidade, Costa e Silva foi impedido de exercer o poder pelo Ato Institucional nº 12, de 31 de agosto de 1969, o qual conferiu o poder aos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar. Por meio de uma "emenda" (a Emenda Constitucional nº 1, à Constituição de 1967), trataram de outorgar nova Constituição, a de 17 de outubro de 1969, cuja vigência foi postergada para o dia 30 daquele mesmo mês, que continuou a sofrer os reflexos dos Atos Institucionais, cada vez mais autoritários. Por exemplo, interessante consignar os Atos Institucionais nº 13 (instituiu o banimento daquele brasileiro que "comprovadamente se tornar inconveniente, nocivo ou perigoso à segurança nacional") e 14 (alterou o artigo 150 da Constituição e introduziu as penas de morte, perpétua e o banimento para os crimes de "guerra externa, psicológica adversa, revolucionária ou subversiva").

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1969 (denominação inovadora constitucionalmente) foi alterada por 26 emendas, sendo a última de 27 de novembro de 1985, a qual se manifestou, em essência, como verdadeiro ato político ao transmitir a ordem de convocação da Assembléia Nacional Constituinte. Ora, se convocava a Constituinte para elaborar Constituição nova que substituiria a que estava em vigor, por certo não tem a natureza de emenda constitucional, pois esta tem precisamente sentido de manter a Constituição emendada; se visava destruir esta, não pode ser tida como emenda, mas como ato político[14].

A Emenda Constitucional nº 11, de 13 de outubro de 1978, revogou os Atos Institucionais "no que contrariem a Constituição Federal" (art. 3º da Emenda), mas não afastou o fenômeno centralizador que marcou o período. De qualquer sorte, as chamadas salvaguardas do Estado foram incorporadas à Constituição e o Ato Institucional nº 5, símbolo maior do autoritarismo, foi revogado. Foram restabelecidas as imunidades parlamentares (art. 32) e iniciou-se a reforma política, assim como extinguiu-se a pena de morte e foi regulamentado os estados de sítio e de emergência, oportunizando-se a redemocratização, que somente foi ultimadas seis anos mais tarde.

7. A Constituição “Cidadã” de 1988

O clamor popular para restabelecimento das eleições diretas para a Presidência da República foi fundamental para tornar irreversível a saída dos militares do poder. Tancredo Neves, eleito Presidente em 1985, fez nascer uma República a ser materializada por meio de uma nova Constituição. Porém, enfermo, veio a óbito, sem ver a tão almejada obra. A intranqüilidade voltou a reinar absoluta. Assumiu seu Vice, José Sarney, fiel a ideologias autoritárias e anacrônicas.

A Constituição em construção era objeto de esmerosos debates. Esclareça-se que, na verdade, não foi convocada uma genuína Assembléia Nacional Constituinte. Convocou-se, sim, um "Congresso Constituinte".

No dia 5 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição Federal de 1988, denominada "Constituição Cidadã" porque teve ampla participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente para a plena realização da cidadania. Passava-se, definitivamente, a tratar da "República Federativa do Brasil".

É a Constituição mais longa de todas as anteriores: são 250 artigos e mais 70 nas disposições transitórias, perfazendo um total de 320 artigos. Acabou até sendo enxuta, pois na primeira versão eram 501 artigos, depois "sintetizados" em 334, até chegar quando da votação em 250. Interessante registrar que a palavra "garantia" aparece 46 vezes no texto constitucional, já "direitos", 16, mas "deveres" é citada somente quatro, revelando sua grande preocupação com as garantias individuais frente a ação do Estado, em manifesta reação ao longo período anterior de ditadura.

Caio Tácito registra que a Constituição brasileira de 1988, fiel às tradições nacionais, reafirma, como fundamento da ordem jurídica, o princípio da legalidade, fonte de direitos e deveres e limite ao poder do Estado e à autonomia da vontade, considerando-se lei como sendo, por excelência, ato que incumbe ao Poder Legislativo. O Parlamento bicameral, investido da representação popular e federativa, emite, no âmbito traçado pela Constituição, os comandos que estruturam a ordem jurídica. O poder de legislar é atividade precípua do Parlamento que, até mesmo etimologicamente, ‘fala’ em nome do povo[15].

O princípio democrático ficou cravado no texto constitucional de 1988 de tal modo que, logo no preâmbulo, o constituinte anunciou:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais […]”

Da mesma forma, ficou gravado no artigo 1º o "republicanismo", doutrina política que prega a honestidade cívica. No parágrafo único do mesmo dispositivo, o constituinte estabeleceu que "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição", admitindo expressamente a possibilidade de inclusão no sistema jurídico pátrio de modalidades de governo direto.

No que se refere aos objetivos da República Federativa do Brasil de 1988, o constituinte estabeleceu: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º).

Convém salientar que o princípio adotado pela Constituição Federal de 1988, no que tange à distribuição de competências federativas, foi o postulado da predominância de interesses, segundo o qual à União caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral, ao passo que aos Estados referem-se às matérias de predominante interesse regional e aos municípios concernem os assuntos de interesse local[16].

Há a manutenção do presidencialismo como sistema de governo representativo vigente, cabendo ao Presidente da República a chefia de Estado e de Governo (art. 76), auxiliado pelos Ministros de Estado, que não são responsáveis perante o Legislativo, que não os pode destituir, como ocorre no parlamentarismo. Não obstante, o Parlamento poderá convocar a presença de Ministros de Estado para prestarem, pessoalmente, informações sobre assuntos determinados, sob pela de crime de responsabilidade sua ausência sem justificação adequada, bem como poderão os Ministros de Estado comparecer ao Parlamento, por sua iniciativa, para expor assunto de relevância de seu Ministério (art. 50). Os Ministros, atualmente, são meros auxiliares do Presidente, por ele nomeados e demissíveis ad nutum, responsáveis pela direção da parcela da Administração Pública colocada sob sua competência, bem como cabe aos Ministros referendar os atos do Presidente, sob pena de imperfeição do ato e sua inexistência jurídica (art. 87, parágrafo único, I).

No que tange ao denominado exercício de governo direto, pela cidadania, importante registrar que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto secreto e direto, com igual valor para todos, e mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular (art. 14, "caput"). Há a previsão constitucional do plebiscito e, pela primeira vez na história constitucional, do referendo e da iniciativa popular para apresentação de projetos de lei, que foram posteriormente regulamentados pela Lei Federal nº 9.709, de 18 de novembro de 1998. Quanto à iniciativa popular, esta será exercida através da apresentação à Câmara de Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles (art. 61, § 2º). O plebiscito é concebido como uma etapa preliminar no processo decisório e de aprovação de uma determinada lei, sendo condição para entrada em vigor do ato. Já o referendo, por sua vez, é uma instância posterior à vigência do ato, um expediente para ratificação ou cancelamento daquilo já em vigor.

No que tange a este tema, uma das deliberações mais controversas da Constituinte foi o art. 2º das Disposições Transitórias, que dispunha que, no dia 7 de setembro de 1993, haveria um plebiscito para definir a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) a vigorar no Brasil. Esta data foi antecipada para o dia 21 de abril, sob o argumento de que a primeira data escolhida mantinha estreito vínculo com a história monárquica e poderia ser indutiva do voto dos cidadãos. Interessante registrar que, durante a Constituinte, o parlamentarismo já havia sido derrotado, recebendo 213 votos, contra 343 favoráveis ao presidencialismo. Quando do plebiscito, o parlamentarismo foi novamente derrotado, na terceira oportunidade histórica de seu debate, assim como mantida a forma republicana.

No que tange ainda à cidadania, a Constituição permitiu aos analfabetos (e também aos maiores de 16 e menores de 18 anos de idade) votar nas eleições, não como um dever obrigatório, mas como um direito facultativo (art. 14, § 1º). Para os analfabetos, foi o retorno à participação nas eleições, direito que tinha sido retirado desde a reforma eleitoral de 1881, a Lei Saraiva, ainda no final do Segundo Reinado. No entanto, os analfabetos continuam sem poder ser eleitos, sendo considerados inelegíveis (art. 14, § 4º).

A Constituição Federal de 1988 pode ser classificada como uma Constituição promulgada, escrita, analítica, dogmática, rígida e dirigente.

CONCLUSÃO

A análise da história constitucional brasileira revela uma grande luta entre Estado e cidadãos, na difícil e árdua tarefa de fixar os perfeitos limites do poder e das liberdades individuais.

De qualquer sorte, é plenamente possível aferir-se uma significativa evolução democrática, mesmo que paulatina e gradativa. Pouco a pouco, os indivíduos tiveram assegurados direitos que lhe asseguram, hoje, o pleno exercício das garantias e prerrogativas democráticas, com significativa estrutura normativa de participação direta, inclusive, no processo governamental.

O Brasil convive há pouco mais de 20 anos com uma realidade democrática, com uma estrutura de normais constitucionais e infraconstitucionais destinadas a propiciar-lhes o direto exercício do poder. Somente após a Constituição de 1988 pode a cidadania formular e apresentar projetos de lei, diretamente, por iniciativa sua e exclusiva, sem a necessidade de intervenção de terceiros que a representem. Há lei regulamentadora do direito ao plebiscito e ao referendo, algo impensável anteriormente, e não no pretexto de justificação já esposado na década de 30, no Estado Novo.

Após turbulentos "hiatos autoritários", o atual regime político brasileiro fundou um Estado Democrático de Direito que, apesar de todas as adversidades, vem lutando para sedimentar seus valores e princípios, de forma clara e sólida, rogando-se não permita o futuro que se repitam os golpes e as imposições forçadas de sistemas e de governantes.

 

Referências bibliográficas
BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 2).
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1994.
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NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras: 1824. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 1.).
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TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
VILLA, Marco Antonio. A História das Constituições Brasileiras. 1ª ed. São Paulo: Leya, 2011.
Notas:
[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 70.
[2] SILVA, op. cit., p. 72.
[3] NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras: 1824. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 1.)
[4] NOGUEIRA, op. cit., p. 14.
[5] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 77.
[6] BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 2).
[7] BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 2). p. 49.
[8] Anteriormente, em 1928, no Rio Grande do Norte, foi permitido o alistamento eleitoral das mulheres pela primeira vez em nossa história, ao argumento de que o artigo 70 da Constituição não vedava expressamente o voto das mulheres e o artigo 72, § 2º, da mesma Carta prescrevia a igualdade de todos perante a lei. Ocorre que o número de alistadas foi quase que desprezível. De qualquer sorte, a primeira eleição nacional com participação feminina ocorreu apenas em 1945.
[9] SILVA, op. cit., p. 82.
[10] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 83.
[11] PORTO, Walter Costa. Constituições Brasileiras: 1937. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 4). p. 49.
[12] SILVA, op. cit., p. 85.
[13] CAVALCANTI, Themístocles; BRITO; Luiz Navarro de; BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1967. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 6). p. 30.
[14] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 87.
[15] TÁCITO, Caio. Constituições Brasileiras: 1988. Brasília: Senado Federal, 2001. (Coleção Constituições Brasileiras, v. 7). p. 13.
[16] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 269.

Informações Sobre o Autor

Antonio Carlos Pontes Borges

Advogado Especialista em Direito Constitucional Aplicado e Mestrando em Direito das Relações Internacionais e da Integração na América Latina da Universidad de La Empresa U.D.E. Montevideo Uruguai


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Equipe Âmbito Jurídico

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