Resumo: O presente trabalho visa a discutir as recentes mudanças no cálculo do Auxílio-Doença, a criação do chamado “Teto Mínimo”, e a via eleita para implementar essa alteração, a adequação da medida ante os Princípios Previdenciários previstos na Constituição Federal de 1988. Além disso, o artigo traz uma conceituação mais crítica sobre o benefício e o seu impacto nas contas públicas ao longo dos anos. O trabalho conclui que o § 10 do art. 29 da Lei 8.213/91 deve ser retirado do ordenamento jurídico, uma vez que é inconstitucional sob aspectos formais e materiais.
Palavras-chave: Auxílio Doença. Teto Mínimo. Art. 29, § 10 da Lei de Benefícios. MP 664. Inconstitucionalidade.
Sumário: Introdução. 1 – Conceito de Auxílio-Doença. 2 – Dados Estatísticos. 3 – Cálculo do benefício: antes e depois da mudança. 4 – Análise sobre a constitucionalidade do art. 29, § 10 da Lei de Benefícios. 4.1 – Da Falta de Urgência da Medida Provisória. 4.2 – Da Vedação ao Confisco. 4.3 – Da Fonte de Custeio. 4.4 – Do Caráter Contributivo-Retributivo. 4.5 – Proteção ao Sistema Previdenciário. Conclusão.
Introdução
O governo Dilma Roussef, em resposta às turbulências da crise econômica por que passa o Brasil, editou a Medida Provisória nº 664/2014 que foi convertida na Lei nº 13.135, de 17 de junho de 2015. O novo regramento, dentre outras alterações, inseriu, no artigo 29 da Lei de nº 8.213/91, a Lei de Benefícios, o parágrafo 10, modificando profundamente um dos benefícios mais solicitados pelos segurados, o Auxílio-Doença.
Mas será que a via eleita pelo governo foi a adequada? Será que essa alteração guarda similitude com a Constituição Federal de 1988?
Este Artigo visa a discutir a constitucionalidade do novo § 10 do art. 29 da Lei de Benefícios e seus reflexos na economia da União e no bolso do contribuinte.
1 – Conceito de Auxílio-Doença
Segundo definição descrita pelo antigo Ministério do Trabalho e Previdência Social, “o auxílio-doença é um benefício por incapacidade devido ao segurado do INSS acometido por uma doença ou acidente que o torne temporariamente incapaz para o trabalho” (G.N.)[1].
Porém, entendemos que essa definição está incompleta e que melhor conceito é encontrado na Lei de Benefícios (Lei nº 8.213/91) que, em seu artigo 59, afirma que “O auxílio-doença será devido ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos” (G.N.).
A lei nº 8.213/91 afirma que o benefício não será concedido apenas ao trabalhador, mas também àquele que não labora, ou seja, àquele que detém a qualidade de segurado, obrigatório ou facultativo, e se encontra incapaz para o exercício de suas atividades habituais, não englobando apenas o trabalho.
Importante mencionar que a Medida Provisória 664 visava também a alterar o tempo mínimo de 15 dias de afastamento para 30 dias, o que aumentava ainda mais os encargos das empresas e dificultava o acesso ao benefício. Porém, tais mudanças não foram implementadas quando da conversão da Medida Provisória na Lei 13.135/15.
2 – Dados Estatísticos
Fontes do próprio governo revelam que o Auxílio-Doença tem alto impacto nas contas da União, representando mais da metade dos gastos com benefícios aos segurados.
Segundo a série história de 2003 a 2013, a União desembolsou um total de R$ 33,9 bilhões em benefícios, sendo que os Auxílios-Doença, previdenciários e acidentários, representaram 53,3% desse valor, correspondendo a cerca de R$ 18,1 bilhões. Comparativamente, no mesmo período, as aposentadorias representaram 23,6% dos gastos, cerca de R$ 8 bilhões.[2]
Como se observa, a União gasta muito mais com benefícios provisórios do que com os definitivos.
3 – Cálculo do benefício: antes e depois da mudança
Antes da alteração ocorrida pelo advento da Lei 13.135/15, o cálculo do Auxílio-Doença computava todos os Salários de Contribuição, atualizados, que o segurado possuía desde julho de 1994, início da vigência do Plano Real. Em caso de filiação do segurado posterior a essa data, são computados todos os seus Salários de Contribuição. É o chamado Período Básico de Cálculo (PBC).
Posteriormente, faz-se a média aritmética simples dos 80% maiores Salários de Contribuição atualizados. Esse resultado corresponde ao Salário de Benefício, sobre o qual incide a alíquota de 91%, obtendo-se, desse modo, a Renda Mensal Inicial (RMI), valor efetivamente recebido pelo segurado.
Naturalmente, o segurado não vai obter uma RMI menor do que eventual remuneração recebida quando laborava, pois, como dito, seu cálculo é obtido por média aritmética simples de todos os salários da vida contributiva do segurado, além da incidência da incidência de outro redutor, a alíquota de 91%.
A Lei 13.135/2015 introduziu um novo redutor para o Auxílio-Doença, ao acrescentar o § 10 ao art. 29 da Lei 8.213/91, in verbis:
“O auxílio-doença não poderá exceder a média aritmética simples dos últimos 12 (doze) salários-de-contribuição, inclusive em caso de remuneração variável, ou, se não alcançado o número de 12 (doze), a média aritmética simples dos salários-de-contribuição existentes”.
Ou seja, feito o cálculo, conforme inicialmente descrito, compara-se o valor obtido com o valor correspondente à média aritmética simples dos doze últimos salários de contribuição do segurado. O menor dos valores será a renda mensal inicial do beneficiário.
Observe-se que o auxílio-doença é benefício que deve garantir a subsistência do segurado, temporariamente incapaz de trabalhar, conforme pode ser inferido do art. 60, §6º da lei 8.213/91, assumindo, assim, o caráter substitutivo de remuneração.
Consoante exposto, o segurado doente/acidentado, em momento crítico da vida laboral, sofrerá redução de sua fonte de subsistência em razão do triplo redutor legal, o que comprometerá seu sustento e o de sua família. Tal situação, muitas vezes, compele o trabalhador a buscar outras fontes de custeio, ferindo a lei e postergando sua recuperação.
Situação mais perversa ainda é aquela em que o trabalhador, ciente da redução de sua remuneração, não comunica a doença ou o acidente de trabalho a seu empregador, permanecendo em sua função, prejudicando ainda mais sua saúde, bem como tornando-se um perigo para si e para o meio ambiente de trabalho.
4 – Análise sobre a constitucionalidade do art. 29, § 10 da Lei de Benefícios
De posse dos fatos acima, passamos à análise da constitucionalidade da MP 664 e da Lei 13.135/15.
4.1 – Da Falta de Urgência da Medida Provisória
Conforme o artigo 62 da CF/88, “em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”.
Como qualquer ato normativo, as medidas provisórias são passíveis de controle de constitucionalidade, tanto no que diz respeito ao conteúdo da norma, quanto aos critérios de urgência e relevância previstos no artigo 62 da CF/88. É entendimento do Supremo Tribunal Federal que a possibilidade de aferição da existência destes últimos critérios em controle de constitucionalidade é medida excepcional, sendo admitida apenas quando há flagrante abuso do poder de legislar por parte do Chefe do Poder Executivo[3].
Nesse diapasão, o caráter urgente das Medidas Provisórias precisa ser concreto, uma vez que a edição de tal ato normativo consiste em função atípica do Poder Executivo e, inexistente a urgência da medida, este Poder extrapolaria suas funções, ferindo princípio basilar da República e ensejando a ação do Poder Judiciário como contrapeso à medida.
Inverter a ordem legislativa, praticamente usurpando a competência do Congresso Nacional, somente para que o valor de um benefício previdenciário seja reduzido o mais rápido possível para conter gastos, configura-se desvio de finalidade ou abuso do poder de legislar.
Ademais, da atenta análise da exposição de motivos apresentada pela Presidência da República para a edição da MP 664[4], verifica-se a inexistência de justificativa plausível que confira à medida o caráter urgente. No referido texto, verifica-se que o ato normativo visa apenas ao equilíbrio financeiro e atuarial, sendo perfeitamente utilizável, in casu, um projeto de Lei Ordinária, porém nunca uma Medida Provisória.
A Presidência da República, administradora das contas públicas, não pode valer-se de uma Medida Provisória, ato normativo precário e atípico, para, alegando urgência, reduzir um Direito Social, resguardado no caput do art. 6º e no art. 201, I da Carta Magna, os quais estão diretamente ligados à efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que visam à manutenção da subsistência digna de um cidadão brasileiro que se encontra em situação vulnerável. Nesse diapasão, o Congresso Nacional, que representa os interesses dos estados federados e do povo, deveria ter sido chamado ao debate.
É de se observar que a conversão da Medida Provisória em Lei Ordinária não convalida eventual vício de constitucionalidade da norma original, conforme já decidido pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal.[5]
4.2 – Da Vedação ao Confisco
O artigo 150, IV da CF/88 proíbe o confisco. Segundo a professora Regina Helena Costa, “o confisco, em definição singela, é a absorção total ou substancial da propriedade privada, pelo Poder Público, sem a correspondente indenização”.[6] Disso decorre que todo tributo, obrigatoriamente, deve corresponder a uma contraprestação do Poder Público à sociedade em geral.
No caso em tela, a contribuição social vertida pelo segurado deve obrigatoriamente refletir nos benefícios previstos pelo sistema previdenciário. Caso contrário, estaríamos diante do confisco dessas contribuições.
Com o advento do § 10 do art. 29 da Lei 8.213/91 é exatamente isso o que ocorre. O segurado contribui para a previdência social, mas as maiores contribuições serão desconsideradas quando da concessão do Auxílio-Doença, visto que, lembrando, a média dos salários de toda a sua vida não pode superar a média dos seus últimos 12 salários.
Logo, entendemos que aqueles tributos, recolhidos e não refletidos no benefício, foram simplesmente confiscados pelo Poder Público, o que é vedado pela Constituição Federal.
Completando o entendimento exposto, o Supremo Tribunal Federal mostra-nos o confisco tributário sob outra ótica:
“[…] A proibição constitucional do confisco em matéria tributária – ainda que se trate de multa fiscal resultante do inadimplemento, pelo contribuinte, de suas obrigações tributárias – nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais básicas. O poder público, especialmente em sede de tributação (mesmo tratando-se da definição do quantum pertinente ao valor das multas fiscais), não pode agir imoderadamente, pois a atividade governamental acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade que se qualifica como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais." (ADI 1.075-MC, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 17-6-1998, Plenário, DJ de 24-11-2006.) No mesmo sentido: AI 482.281-AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 30-6-2009, Primeira Turma, DJE de 21-8-2009. Vide: RE 400.927-AgR, rel. min. Teori Zavascki, julgamento em 4-6-2013, Segunda Turma, DJE de 18-6-2013; RE 523.471-AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, julgamento em 6-4-2010, Segunda Turma, DJE de 23-4-2010.”[7]
Utilizando os ensinamentos do Pretório Excelso quanto ao confisco, entendemos que, ao criar um terceiro fator de redução para o Auxílio-Doença, o Poder Público promove uma injusta apropriação do patrimônio do segurado, consistente na diferença entre o que este efetivamente receberá com o auxílio e o que deveria ter recebido com a aplicação de apenas dois fatores redutores já previstos na legislação securitária há mais de dez anos.
4.3 – Da fonte de Custeio
Diz o art. 195, § 5º da CF/88 que “nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”.
Aqui, para melhor interpretação, deve-se entender o dispositivo da seguinte forma: se um benefício não pode ser majorado sem sua fonte de custeio correspondente, um benefício também não pode ser reduzido se a fonte de custeio já tiver sido garantida. Caso isso aconteça, ocorrerá mais uma vez o confisco da contribuição social, tratada no item anterior.
Além disso, pode-se verificar que o princípio da segurança jurídica está presente, tanto para o Poder Público, que somente pagará benefícios que foram anteriormente financiados pelos segurados, quanto para o segurado, que terá um valor de benefício compatível com o que recolheu.
4.4 – Do Caráter Contributivo-Retributivo
O art. 201 caput e seu § 11, da Constituição Federal preveem que:
“Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
§ 11. Os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e consequente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei”
A conjugação dos dispositivos citados dá-nos a definição do tipo de sistema previdenciário do ordenamento jurídico brasileiro: sistema contributivo-retributivo.
Pelo caput do art. 201, somente serão beneficiários do Regime Geral de Previdência Social aqueles que contribuem, ou seja, aqueles que recolhem a contribuição social. Pela inteligência do § 11, todos os ganhos do segurado deverão repercutir nos benefícios.
Mais uma vez, a Constituição Federal determina que aquilo que se recolhe de tributo deve repercutir em serviços à população.
Com a inclusão do § 10 ao art. 29 da Lei de Benefícios, os maiores salários de contribuição simplesmente são desconsiderados no momento em que se chega ao valor final do benefício.
4.5 – Da Proteção ao Sistema Previdenciário
O art. 246 da Constituição Federal mostra-nos que:
“Art. 246. É vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada entre 1º de janeiro de 1995 até a promulgação desta emenda, inclusive”. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
Esse dispositivo, que constitui verdadeira proteção ao sistema da seguridade social, determina que Medida Provisória não pode regulamentar artigo da Constituição que foi criado ou modificado por Emenda Constitucional entre os anos de 1995 a 2001.
Ocorre que o art. 201 caput e o seu § 11, que definem o caráter contributivo-retributivo da Previdência Social, surgiram através da Emenda Constitucional nº 20 que foi editada em 1998, ou seja, dentro do período protegido pelo art. 246 da CF.
E, como a Medida Provisória 664 adentra na matéria descrita no § 11 do art. 201 da CF/88, determinando que nem todos os salários de contribuição irão repercutir no auxílio-doença pretendido, ela está, em verdade, regulamentando dispositivo constitucional, o que é vedado pelo art. 246.
Importante destacar que o Sistema Previdenciário não está protegido contra qualquer norma que venha a regulamentá-lo, mas isso não pode ser feito por Medida Provisória, ante a expressa vedação do art. 246 da CF/88. Assim, sabiamente, o constituinte entendeu que assunto tão importante não deveria ficar tão vulnerável à vontade de uma única pessoa, qual seja, o Presidente da República, devendo a matéria ser discutida, primeiramente, pelo Congresso Nacional, antes de produzir seus eventuais efeitos.
Conclusão
O presente trabalho procurou conceituar, de forma mais crítica, o Auxílio-Doença e o seu peso nas contas públicas. Analisou sua recente alteração, a criação do Teto Mínimo e seu impacto no bolso do segurado. E, de forma técnica, os aspectos formais e materiais da inconstitucionalidade desse novo cálculo.
Conforme se observa, existem vários ferimentos à Constituição Federal provocados pela alteração promovida pela Lei 13.135/15, oriunda da Medida Provisória nº 664/14, seja pela inadequação da via eleita, seja pelo novo dispositivo ser realmente equivocado e não guardar congruência com o Sistema Previdenciário, seja, ainda, por a norma representar afronta ao princípio da vedação ao retrocesso.
Mais uma vez, a tônica da política brasileira repete-se, de tempos em tempos, e o segurado é chamado ao sacrifício para deter a sangria das contas públicas, como se fosse dever seu resolver os problemas causados pela corrupção e má-gestão da verba pública.
Porém, nesse turno, o alvo é limar um benefício de natureza involuntária, ao qual o segurado recorre em momento de maior dificuldade, quando simplesmente sua força de trabalho desaparece, ainda que temporariamente, e ele vê que seu histórico contributivo de nada vale.
Com base nesses argumentos, recomendados que o novo § 10 do art. 29 da Lei nº 8.213/91 seja declarado inconstitucional, devendo, por isso, ser retirado do ordenamento jurídico brasileiro.
Advogado. Graduado pelo Centro Universitário Moacyr Sreder Bastos. Rio de Janeiro. 2005. Pós-graduando em Direito da Seguridade Social. Faculdade Legale / Universidade Cândido Mendes
Carlos Alberto Vieira de Gouveia é Mestre em Ciências Ambientais e Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais; Vice-Presidente para a área Previdenciária da Comissão Direitos e Prerrogativas e Presidente da Comissão de Direito Previdenciário ambas da OAB-SP Coordenador do curso de pós-graduação em Direito Previdenciário da Faculdade Legale
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