Resumo: O presente trabalho versa sobre a criação e atuação do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, abordando especificamente dois casos: o da Promotoria versus General Akayesu, em especial sobre a tipificação do estupro das mulheres tutsi como genocídio e o caso “Julgamento da mídia”, em que foram acusados Ferdinand Nahimana, Jean-Bosco Barayagwiza e Hassan Ngeze, pela mídia propagandista de incitação ao genocídio ocorrido entre abril e julho de 1994.[1]
Palavras-chave: Ruanda, genocídio, crime contra a humanidade, TPIR.
Resumen: Este estudio versa sobre la creación y acción del Tribunal Penal Internacional para Ruanda, enfocando específicamente a dos casos: el de la Persecutor versus el General Akayesu, en especial por la tipificación de la violación a las mujeres tutsi como genocidio y también el caso “Juzgamiento de los medios de comunicación”, donde fueron acusados Ferdinand Nahimana, Jean-Bosco Barayagwiza e Hassan Ngeze, por las informaciones de incitación al genocidio ocurrido entre el abril y el julio de 1994.
Palabras-llave: Ruanda, genocidio, crimen contra la humanidad, TPIR.
O trabalho é resultado de dois estudos de caso, ambos julgados no Tribunal Penal Internacional para Ruanda. O primeiro deles enfoca a tipificação do estupro como genocídio e o segundo aborda a questão da mídia propagandista do genocídio à época do ocorrido, ou seja, o ano de 1994.
1. RUANDA: noções geográficas, sociais e políticas
Ruanda está localizada no continente africano, fazendo fronteira com Burundi, Uganda, Tanzânia e República Democrática do Congo. É um país pequeno, montanhoso e rural, onde as tribos ocupantes dividem as terras férteis para plantar.
Incrustada como uma joia no grande continente, Ruanda é habitada por três etnias: hutu, tutsi e twa, sendo o grupo hutu, de acordo com Módolo de Paula (2011), o majoritário (representando 84% da população). Diferenciam-se fisicamente pela altura e massa corporal – os hutus são mais baixos e compactos; os tutsis, mais altos e os twa são pigmeus. As diferenças sociais e econômicas foram definidas no período colonial, em que os tutsis, de certa forma, foram um grupo privilegiado. No entanto, estudos anteriores acreditam que as diferenciações físicas feitas entre as tribos foram arbitrárias por parte dos colonizadores belgas.
Antes da colonização, Ruanda vivia no regime monárquico, governada por um rei tutsi, bem como eram tutsis os burocratas do reino. Os hutus acabaram ficando com a atividade agricultora, ocupando o estrato inferior da sociedade. Mesmo após a colonização, os belgas favoreceram os tutsis e lhes deram lugar na administração colonial. Os tutsis foram, conforme Módolo de Paula (2011), o grupo dominante até a independência de Ruanda, em 1962. O primeiro presidente eleito, Gregoire Kayibanda era hutu e, por esse motivo, os tutsi foram sendo afastados da vida política ruandesa.
Em 1973, Ruanda sofre um golpe de estado e o exército, chefiado por Habyrimana, toma o poder. Seu partido, o Movimento Revolucionário Nacional pela Democracia, MRND, era o único partido único admitido (a despeito do nome) e de filiação obrigatória; a imprensa era controlada pelo governo e a oposição não era tolerada.
2. RUANDA E A GUERRA CIVIL
A guerra civil começa com a invasão da Frente Patriótica Ruandesa a Ruanda. Com 50 combatentes, a FPR exigia a permissão para o retorno dos tutsis exilados em Uganda e o fim da perseguição étnica e das carteiras de identificação. A invasão foi frustrada, pois o exército ruandês recebeu apoio da França e do Zaire.
Com as ameaças da FPR, o exército ruandês cresceu, assim como cresceram os boatos de que o “inimigo” tutsi viria tomar o poder. Em 1991, o MRND formou a Interahamwe, organização miliciana bem estruturada para agir contra os tutsis. Neste mesmo tempo surge a Rádio RTLM (Radio Télévision Libre des Mile Collines), que pregava a destruição dos tutsis e disseminava o ódio racial.
Devido às pressões do Ocidente, o presidente ruandês se viu obrigado a negociar com a FPR; assim, foram assinados os acordos de paz de Arusha. No entanto, o que parecia ser um exemplo de diplomacia não passou de um tratado de fachada, uma vez que, mesmo depois da assinatura do acordo, Ruanda importou machados e facas em enorme escala para cumprir o plano genocida.
3. CRIAÇÃO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL DE RUANDA – TPIR
A criação do Tribunal Penal Internacional para Ruanda foi um instrumento necessário para o julgamento dos acusados de cometer o crime de genocídio no país. O TPIR foi criado a partir da resolução nº 955 da Organização das Nações Unidas em 08 de novembro de 1994, ainda em meio aos transtornos latentes causados pela morte em massa. O tempo aplicado à jurisdição desse Tribunal compreendia os crimes que ocorreram entre 1º de janeiro de 1994 a 31 de dezembro de 1994, sendo os acusados de cometerem crimes contra a humanidade e crimes de guerra, além de graves violações ao Direito Internacional Humanitário que ocorreram em Ruanda e em territórios vizinhos no espaço de tempo supracitado.
Dessa forma, cabe à Corte, sediada em Arusha, Tanzânia, o encargo de processar e julgar os responsáveis pelas sérias violações ao Direito Humanitário Internacional, a fim de tomar medidas efetivas para fazer Justiça, uma vez que se diz que esta não poderia ser atingida em sua totalidade se os envolvidos fossem julgados nos tribunais ruandeses.
O TPIR é formado por três órgãos: as Câmaras de Julgamento, que é o julgamento em primeira instância e a Câmara de Apelação, o qual é o julgamento em segunda instância, em que ficam ordenados os Juízes; a Promotoria, encarregada das investigações e acusações, coordenada por um Promotor; e a Secretaria, coordenada por um secretário, que é responsável por dar apoio administrativo e jurídico às Câmaras e á Promotoria. As línguas de trabalho no Tribunal são o inglês e o francês.
Como é um Tribunal ad hoc, ou seja, serve para exercer a sua jurisdição em momento de tempo e com um fim específico, deverá durar o tempo necessário para que seja completo o julgamento dos acusados do crime em questão. A base material desse Tribunal se apoia em três pilares: a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948; as quatro Convenções de Genebra de 1949 e seus Três Protocolos Adicionais. A Convenção sobre o Genocídio define esse crime como contra o Direito Internacional e deixa bem claro que os Estados signatários da mesma devem tipificar e punir os culpados pelo crime de genocídio.
São crimes punidos pela Convenção de 1948 diversas modalidades de genocídio, como o genocídio consumado, a conspiração para cometer o genocídio, o incitamento público e direito ao genocídio, a tentativa de genocídio e a cumplicidade no genocídio.
Segundo Luiz Augusto Módolo de Paula, em sua dissertação Genocídio e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda:
“O incitamento público e direito para cometer genocídio também é punível (novamente é necessário o concurso do direito interno para definir “incitamento”). Geralmente é punido quem incita, instiga, encoraja ou usa qualquer forma de pressão para que outrem cometa o crime. Exige-se também que o incitamento seja “público e direto”. (PAULA, Luiz Augusto Módolo, pg. 63, 2011).
O caso em questão trata da acusação de Jean Paul Akayesu, burgomestre em Ruanda à época do genocídio. Akayesu foi a julgamento em 1998, quatro anos após o acontecido. O burgomestre foi acusado de 15 crimes, num julgamento que durou 2 meses.
A inovação deste caso, na qual centraremos o foco do estudo, trata da definição de estupro no contexto do direito internacional, a fim de saber como o estupro tem de ser classificado. Primeiramente, há a classificação do estupro como crime contra a humanidade e consta do art. 3º do Estatuto do TPIR, uma vez que o caso de Ruanda enquadra-se no seguinte: cometidos como parte de um ataque disseminado ou sistemático contra qualquer população civil com fundamento em nacionalidade, política, etnia, raça ou religião. Ainda, há a classificação do estupro como genocídio (aqui reside a inovação deste julgado): Conforme o art. 2º do ETPIR, baseado na Convenção de Genocídio, há genocídio quando da tentativa específica de destruir, no todo, ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
Em conclusão, os atos de estupros ocorridos em Taba, sobre a autoridade de Akayesu foram considerados crime contra a humanidade, de acordo com o art. 3º do ETPIR e como genocídio, de acordo com o art. 2º do mesmo instrumento. Akayesu foi considerado culpado por ambos os crimes.
Com base nos estudos de Módolo de Paula (2011, p. 252), chegamos a um quadro que resume as acusações, condenações e absolvições do burgomestre.
Jean Paul Akayesu foi burgomestre da Comuna de Taba (Prefeitura de Gitarama) entre 1993 e 1994. Como tal, era responsável pela manutenção da ordem pública e pela realização de diversas funções executivas. Em virtude da rígida estrutura hierárquica de poder ruandesa, Akayesu detinha forte comando sobre a região.
Foragido de Ruanda, Jean foi preso em outubro de 1995 na Zâmbia, vindo a ser o primeiro a passar pelo banco dos réus do TPIR.
Em fevereiro de 1996 a Promotoria apresentou ao TPIR mais de uma dezena de acusações contra Jean Paul Akayesu, entre genocídio, crimes contra a humanidade e violações os dispositivos das Convenções de Genebra e do Protocolo Adicional II.
Embora responsável pela ordem em Taba, mais de 2.000 tutsis foram mortos na Comuna enquanto burgomestre (sem mencionar as torturas, estupros e maus-tratos perpetrados no mesmo período).
Diante de tal cenário, Akayesu não apenas quedou-se inerte a essa violência como também chegou a testemunhar e encorajar seus subordinados à prática de estupros, inclusive em repartições públicas.
4.3 JULGAMENTO E SENTENÇA
O julgamento durou 60 dias, com 50 testemunhas (todas as testemunhas receberam medidas de proteção) de acusação e 13 de defesa (incluindo o próprio acusado e alguns peritos). Na audiência preliminar, o réu se declarou inocente das acusações.
Por ter sido o primeiro caso julgado pelo TPIR, inicialmente houve uma retomada histórica dos eventos ocorridos em Ruanda em 1994.
A sentença aponta que Akayesu era responsável pela manutenção da ordem na Comuna de Taba[2], e que pelo menos 2.000 tutsis foram mortos naquela região de abril a junho de 1994 com o acusado no poder. Em que pese as matanças terem sido abertas e disseminadas, o réu tinha conhecimento dos fatos ocorridos, entretanto não impediu, nem procurou outras autoridades a fim de evitar tamanhas atrocidades. Estes fatos, inclusive, foram confirmados por diversas testemunhas – inclusive por outros burgomestres que o antecederam e o sucederam.
Foram julgados ainda fatos e provas referentes a assassinatos específicos, sob o mando direto de Jean Paul, bem como um discurso feito pelo acusado numa reunião em 19 de abril de 1994, em que conclamou os presentes a eliminarem os tutsis – o que para a Promotoria configurou-se o crime de incitação ao genocídio.
Além disso, um dos trechos mais importantes da sentença é a análise da responsabilidade do acusado pela participação ou omissão perante o cometimento de crimes sexuais na Comuna. Tendo em vista que muitas mulheres tutsis se refugiaram nos prédios comunais, logo foram estupradas pelos policiais da localidade, algumas por múltiplos agressores, e a seguir, espancadas. Alguns refugiados foram mortos. Akayesu não só sabia dos atos de violência, como encorajou estes crimes.[3]
Ao tratar do genocídio, a Câmara de julgamento se baseou principalmente no art. 2° do ETPIR (Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda), reafirmando que o genocídio exige o intento específico de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racional ou religioso. Não obstante, o julgamento também abordou a definição dos crimes contra a humanidade e dos crimes de guerra à luz do ETPIR (arts. 3° e 4°), já que estas duas espécies de crimes foram cometidas pelo acusado.
De acordo com Garapon (p. 99), “crime contra a humanidade é a destruição daquilo que há de humano no homem.” Este crime opõe, de um lado, um combatente super armado e, de outro, uma população civil inofensiva: “Os meios são empregues na aniquilação de parte da sua população, que deixou de ser vista como tal e que decidiu soberanamente expulsar da sua terra, da vida, ou até da pátria humana.” (p. 106). Por isso se afirma que o crime contra a humanidade nasce de uma agressão total e de uma passividade absoluta. Garapon cita diretamente o caso de Ruanda: “É vítima aquele a quem não é dada outra escolha senão a de deixar-se levar para o matadouro, ou até, como no de Ruanda, implorar – e pagar – para não ver o seu corpo mutilado.” (p. 108). Entra toda a questão da desumanização, da violação do direito de ter direitos, da discriminação e o desmoronamento da ideia de povo, e assim por diante.
Já o crime de guerra está relacionado a uma guerra entre soldados em que há igualdade de armas e objetivos estratégicos claros como, por exemplo, a conquista de um território.
Para os fins do reconhecimento de crimes contra a humanidade admitiu-se no julgamento o ataque disseminado e sistemático contra tutsis; que existia um conflito armado entre as Forças Armadas de Ruanda e a FPR (Frente Patriótica Ruandesa); e que, com exceção de algumas vítimas, todas as outras vítimas eram civis que não tomaram parte nas hostilidades. O próprio estupro – já delineado nos parágrafos anteriores – foi definido com um crime contra a humanidade, uma vez que foi cometido como um ataque disseminado ou sistemático, contra uma população civil tendo por base uma discriminação nacional, étnica, política, racial ou religiosa.
Jean Paul também foi condenado por tortura (crime contra a humanidade), em relação ao seu envolvimento no espancamento de inúmeras pessoas, algumas delas interrogadas com brutalidade e gravemente feridas nos prédios da Comuna.
Por fim, no total de quinze acusações, Akayesu foi considerado culpado por nove e absolvido nas seis acusações restantes. A Câmara o sentenciou a prisão perpétua.
4.4 APELAÇÃO
Tanto Akayesu quanto a Promotoria apelaram da decisão. Akayesu alegou, dentre outros fundamentos, o período de detenção ilegal, suposta parcialidade do Tribunal, a dosimetria da pena. Todos eles foram rejeitados pela Câmara de Apelação. A apelação da Promotoria também não levou a modificações na pena.
Geralmente, o estupro é visto como um crime sexual, de violência, ou contra a honra e de cometimento individual, no entanto, se o cometimento é um meio para atingir um grupo específico, como foi o caso de Ruanda, já se pode falar em crime de genocídio.
Conforme vimos no estudo do caso, o estupro foi tipificado como genocídio, ou seja, tentativa de extermínio dos tutsis, justamente por eles pertencerem a esta etnia. Assim,
“Em sua decisão, a Seção de Julgamento argumentou que as mulheres foram estupradas porque eram membros do grupo étnico tutsi. Uma vez que o tribunal considerou que ocorreu genocídio em Ruanda em 1994, o estupro nesse caso constituía genocídio.” (De Vito, Gill e Short, 2009)
Entendeu-se o caso de Jean-Paul com base no art. II da Convenção da ONU para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, de 1948, a qual define genocídio da seguinte forma: “qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal”.
As armas do conflito de Ruanda, além daquelas importadas, foram os estupros, arma essa capaz de subjugar o oprimido, pois, sendo a vítima violada, morta e exposta, ela servia como uma advertência para que as outras viessem a se submeter às ordens do invasor.
Ao nos questionarmos sobre o porquê do estupro, se o objetivo era a morte dos tutsis, o argumento de De Vito, Gil e Short, 2009, apud Graysel, 1999, parece ser o mais correto: o corpo da mulher torna-se um campo de batalha simbólico, no qual diferenças culturais e geopolíticas antiquíssimas são exteriorizadas. As consequências psicológicas, sociais, culturais, étnicas e médicas são devastadoras.
4.6 A COMUNIDADE INTERNACIONAL
Em que pese as potências mundiais possuírem os meios para deter a matança dos tutsis, estas e mesmo a ONU pouco fizeram, à moda dos fracassos da Somália e dos Bálcãs, antecedentes emblemáticos quanto à infeliz dualidade passividade/precipitação, penosa constante no cenário internacional de resolução de conflitos. Conforme Módolo de Paula (2011), a maior resposta que a comunidade internacional deu ao genocídio perpetrado em Ruanda foi a criação do TPIR e, apesar de ser extremamente importante o julgamento dos envolvidos, essa nunca poderia ter sido a única resposta diante de tão terrível ato.
Portanto, cabe ressaltar que apenas a criação de cortes não satisfaz e nem pode ser a única resposta do mundo para os casos de conflitos internos ou externos que inevitavelmente surgirão.
5. MÍDIAS E PROPAGANDISTAS DO GENOCÍDIO: Ferdinand Nahimana, Jean-Bosco Barayagwiza e Hassan Ngeze
O Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR), no caso conhecido como “Julgamento da Mídia”, julgou em uma única ação três acusados: Ferdinand Nahimana, Jean-Bosco Barayagwiza e Hassan Ngeze. Esses eram acusados por utilizarem de seus meios de trabalho na mídia para implantarem genocídio no país.
Ferdinand Nahimana, historiador e militante da Supremacia Hutu filiado ao partido MRND, foi diretor da Agência Ruandesa de Informação (ONIFOR) dentre os anos de 1990 e 1992, além de ser membro fundador e diretor da rádio RTLM. Jean-Bosco Barayagwiza era advogado, filiado ao partido CDR (Coalizão para a Defesa da República), sócio e fundador da rádio RTLM e diretor do Ministério de Relações Exteriores de Ruanda. Hassan Ngeze era jornalista, fundador e editor-chefe do jornal “Kangura”, além de ser membro fundador do partido CDR.
Os acusados citados acima, conjuntamente, promoviam na mídia local uma campanha aberta com o intuito de exterminar o grupo étnico tutsi, incitando a matança por meio da RTLM e do jornal Kangura.
O partido político CDR, criado em 1992, é composto por extremistas favoráveis à causa hutu. A sua participação no governo foi vetada em razão dos Acordos de Arusha. A rádio RTLM era constantemente utilizada como arma de guerra contra os tutsis e a FPR. E o jornal Kangura publicava diariamente textos que promoviam a nação hutu e que denegriam os tutsis. Cabe lembrar que esse jornal foi patrocinado pelo governo e que esse também foi órgão de divulgação do partido CDR.
Em um primeiro momento, a Promotoria fez acusações em separado, ou seja, acusou individualmente cada um.
Nahimana e Ngeze foram acusados por sete crimes: conspiração para o cometimento do genocídio; genocídio; incitamento público e direto para cometer genocídio; cumplicidade em genocídio e crimes contra a humanidade (perseguição, extermínio e homicídio). Com relação ao primeiro, a Promotoria levou-se em consideração a sua participação na RTLM, enquanto que para o segundo a edição e publicação do jornal Kangura.
Já Barayagwiza foi acusado por nove crimes, sendo os mesmos citados acima, acrescidos de duas acusações de graves violações do art. 3º comum às Convenções de Genebra e do Protocolo Adicional II. O foco da acusação consistiu na sua participação na rádio RTLM e no partido extremista CDR.
Em 1999, a Promotoria por meio de moção solicitou um único julgamento para os três acusados, alegando que suas atitudes faziam parte de um plano comum. Ao julgar a moção, a Câmara de Apelação autorizou o julgamento em conjunto.
Em 2002, a Câmara de Julgamento, acolhendo as moções dos acusados, absolveu Nahimana e Barayagwiza por crimes contra a humanidade (homicídio), além de isentar de responsabilidade esse último no que diz respeito às graves violações do art. 3º comum às Convenções de Genebra e Protocolo Adicional II por ausência de provas.
Ferdinand Nahimana, Jean-Bosco Barayadwiza e Hassan Ngeze foram responsáveis por incitar e provocar o ódio da população contra o grupo tutsi, incentivando as pessoas a exterminarem este grupo de indivíduos, utilizando-se para este propósito o rádio ou o jornal impresso.
Ferdinand e Jean-Bosco são membros-fundadores da rádio RTLM, e Hassan Ngeze é jornalista fundador do jornal Kangura, além de membro fundador do partido CDR. Ferdinand é filiado ao partido MRND – Movimento Revolucionário Nacional para a Democracia e Desenvolvimento – e Jean é filiado ao partido CDR.
A influência da rádio foi tamanha, que após a queda do avião presidencial em 06 de abril de 1994, a rádio RTLM intensificou suas ondas de violência, sendo que algumas pessoas foram perseguidas e mortas após os seus nomes serem divulgados na rádio.
A influência da mídia na participação do genocídio é bastante nítida no filme Hotel Ruanda, estrelado por Donald "Don" Frank Cheadle em 2008, o qual narra a história de Paul Rusesabagina na luta por salvar o máximo de pessoas durante o genocídio em 1994. O filme começa com a transmissão da rádio RTLM, em que o narrador incita a população a matar os tutsis, denominados de “baratas” pelos hutus.
Paul se irrita diversas vezes ao longo da história com as transmissões, pois além delas criarem a ideia do “inimigo” que deve ser eliminado, elas instauram o medo perante a população em geral.
O autor Antoine Garapon, em seu livro Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar – Para uma Justiça Internacional, no capítulo quatro (O Crime contra a Humanidade: um Desmoronamento da Comunidade Jurídica), aborda a rádio RTLM no cerne do problema dos crimes contra a humanidade: “o elemento material está muitas vezes ausente. Normalmente, o crime de gabinete ou de estúdio (veja-se o caso da rádio Mille Collines) não coloca o autor e as vítimas em contato direto” (p. 125). Mesmo sem o contato direto, essa violência se transforma em um círculo vicioso que influencia mais e mais pessoas, impulsionando-as em direção à violência, como ocorreu em Ruanda.
Após o julgamento em primeira instância, o réu Ngeze foi considerado culpado pelo crime de genocídio pelo seu papel como proprietário e editor do Kangura. Nahimana e Barayagwiza foram condenados por incitamento público e direto ao genocídio através da rádio RTLM.
Os acusados foram considerados culpados pelo crime de conspiração para cometer o genocídio. Em relação às acusações de cometimento de extermínio, os três réus foram considerados culpados por sua incitação na mídia.
Ngeze, que respondia por uma acusação de homicídio – crime contra a humanidade – foi considerado inocente por falta de provas. Barayagwiza também foi inocentado perante os crimes de homicídio e crimes de guerra.
Os acusados também foram condenados por crimes contra a humanidade e de perseguição, cada um em seu respectivo órgão de atuação. Assim, devido às condenações de cinco acusações, Nahimana recebeu pena de prisão perpétua, assim como Ngeze, que recebeu cinco acusações do mesmo modo. Barayagwiza recebeu também pena de prisão perpétua devido a cinco acusações, mas como houve uma violação dos seus direitos durante a sua prisão, conforme decisão da Câmara de Apelação em 31 de março de 2000, sua pena seria diminuída como forma de compensação; assim, passou para 35 anos, descontado desse tempo o tempo de pena já cumprido pelo réu na forma provisória.
Vale destacar que a Câmara utilizou jurisprudências históricas nesse julgamento, incluindo os casos de Streicher e Fritzsche, ambos de Nuremberg, e assim analisou instrumentos internacionais de proteção de liberdade de expressão, afirmando que essa liberdade possui limites, sendo os excessos imputados aos autores.
Após analisar as provas produzidas, a Câmara de Julgamento passou a tratar da responsabilidade dos acusados em relação às acusações da Promotoria, considerando os seus respectivos papéis na RTML (rádio), no Kangura (jornal) e no CDR (partido), que foram considerados culpados de genocídio, pois agiram com o intento de destruir o grupo étnico tutsi. Ao abordar as acusações comuns de incitamento público e direto ao genocídio, a Câmara abordou a jurisprudência histórica sobre a matéria e analisou instrumentos de proteção da liberdade de expressão, fazendo notar que tal liberdade tem limites, e que pode haver responsabilização por excessos. A Câmara também abordou princípios gerais que emergiram da jurisprudência mencionada, a configuração do incitamento público e direto ao genocídio pela mídia de massa e a necessidade de considerar-se o contexto do resultado em tela.
Os acusados foram considerados culpados pelo crime de conspiração para cometer genocídio. As interações entre acusados, que se utilizaram das instituições sobre as quais detinham o controle (RTLM, Kangura e CDR) levaram a Câmara de Julgamento concluir que houve uma ação concertada e uma agenda comum de intento genocida. Esta condenação exclui uma possível condenação dos acusados por cumplicidade de genocídio. Em relação às acusações de cometimento de extermínio (como um crime contra a humanidade) os três foram condenados.
A apelação dos acusados levou o TPIR a modificar a sentença de forma substancial, com influencia inclusive da dosimetria da pena. A discussão sobre a jurisdição do TPIR foi retomada, reformando a posição da Câmara de Julgamento. A conclusão foi que não se poderia ter usado como base para a condenação condutas anterior ao ano de 1994, nem mesmo para fins de análise do comportamento dos acusados.
As condenações de Nahimana e Barayagwiza por genocídio foram revertidas. A condenação de Ngeze por genocídio também foi revertida, mas as por incitamento público e direto para o cometimento de genocídio foram mantidas. Os acusados foram absolvidos por falta de provas, do crime de conspiração para genocídio. Alguns dos crimes contra a humanidade pelos quais os réus foram condenados foram afastados pela Câmara de Apelação. Com base nas absolvições em algumas acusações, as penas dos três acusados foram reduzidas: Nahimana recebeu uma pena de 30 anos; Barayagwiza recebeu de 32 anos; Ngeze recebeu de 35 anos.
A questão do genocídio está intrinsicamente relacionada com três pontos abordados por Agamben na obra Homo Sacer: a importância do bando para a formação da identidade do sujeito; estar sujeito à violência por ser uma vida “matável” e relação lei-direito-violência em meio à produção da vida nua.
Como o autor coloca, entende-se como a primeira relação política aquela que deriva do bando, que forma a ideia de pertencimento, de identidade popular, nacional, social e cultural. É nesse grupo que ele encontra proteção – jurídica, inclusive. Em contraposição, há aqueles que são excluídos desse, tornando-se um ser puro, um homo sacer. Trata-se do indivíduo que pode ser morto sem que o executor cometa homicídio, pois a sua existência é simplificada em uma vida nua, desprovida de todo direito, sendo assim assassinável. Uma vida que não merece ser vivida, que não tem direito à memória, “vida que coincide com a morte”, que vive em uma zona vazia, de indiferença. E essa relação de poder entre o banido e aquele que baniu é a mais política de todas. E sob esse aspecto que aqueles que cometem o genocídio compreendem o sujeito que sofre a violência, como uma vida separada e excluída de si mesma, sendo justificável o seu banimento pelo uso da força.
É em meio à produção de uma vida que não é nem animal, nem humana que se tem a relação lei-direito-violência, geralmente compreendia pela força de lei, pela regulação da vida feita pelo direito, pela existência de uma autoridade e pela violência ocasionada pelo banimento e, no caso estudado, no genocídio.
O resultado do conflito ruandês é estimado entre 800.000 e um milhão de mortos e uma população sobrevivente miserável e arrasada que teve que receber, sem qualquer estrutura, seus exilados de volta.
A criação do TPIR foi um marco na evolução do Direito Internacional Penal e foi satisfatório em seu papel, em seus objetivos. No entanto, não se deve esquecer que a criação de um tribunal desses não deve ser a única resposta da comunidade internacional diante de conflitos internos e externos.
Não se deve, sobretudo, ignorar os avisos que antecederam a tragédia, como foi o caso da Rádio RTLM e o treinamento das milícias Interawamwe, quando são tão (ou, na medida em que foram) claros os objetivos de cada uma delas.
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