Resumo: O uso de algemas na atividade policial sempre foi alvo de infindáveis debates, seja pelo constrangimento físico e moral impingidos ao acusado e o sensacionalismo com que a mídia procede em determinados casos, seja pela desnecessidade de se algemar quem não apresenta qualquer periculosidade, ou pelo fato de raramente os chamados “criminosos de colarinho branco” sofrerem esse tipo de constrangimento. Por tais razões, em agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº. 11, que prevê o uso de algemas apenas em casos excepcionais, responsabilizando civil e penalmente o agente que cometer arbitrariedades. Todavia, referida súmula recebeu inúmeras críticas, as quais serão abordadas no presente artigo, sob o enfoque dos princípios constitucionais e, em especial, do princípio da dignidade da pessoa humana, ressaltando, outrossim, a atuação da mídia, da Polícia, do Judiciário e do Ministério Público nessa questão.
Palavras-chave: Súmula Vinculante. Algemas. Uso Indiscriminado. Dignidade da Pessoa Humana.
Sumário: 1. Introdução; 2. Aspectos Gerais das Súmulas Vinculantes; 3. A Súmula nº 11 à luz dos princípios constitucionais fundamentais; 4. O uso de algemas no processo penal brasileiro. 5. Considerações acerca do princípio da dignidade da pessoa humana; 6. A atuação da mídia, da Polícia e do Ministério Público acerca do uso de algemas; 7. A aplicação da Súmula n.º 11 e a realidade jurisprudencial brasileira; 8. Conclusão; 9. Referências.
1. Introdução
De acordo com a Súmula Vinculante nº. 11, editada pelo Supremo Tribunal Federal em 13 de agosto de 2008, “só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
Tal súmula originou-se da necessidade de se coibir uma série de abusos cometidos pelo Estado na execução de prisões e na realização de atos envolvendo réus presos, além da falta de regulamentação do art. 199 da Lei de Execuções Penais, que determina que o emprego da algema seja regulamentado por decreto federal.
Contudo, tendo em vista a abrangência e o teor de seu texto e, ainda, as circunstâncias em que se deu sua edição, algumas questões surgiram acerca de sua aplicação, como a segurança dos policiais envolvidos no ato de prisão, o uso de algemas nos tribunais, sua compatibilidade com o princípio da dignidade humana, a postura do Supremo Tribunal Federal, entre outras, as quais são objeto do presente artigo, que com base no método de abordagem dedutivo, busca analisar os principais aspectos polêmicos acerca do uso das algemas.
A pesquisa desenvolveu-se através de levantamento bibliográfico, envolvendo livros jurídicos, revistas especializadas na área, artigos publicados na internet, assim como a legislação e jurisprudência existentes.
O tema desperta a reflexão não apenas acerca dos princípios que informam o processo penal, mas também e, principalmente, de outros direitos fundamentais, como o direito à imagem e à integridade física. Coloca-se em foco o papel do Ministério Público, do Judiciário, da Polícia e da mídia na edição e aplicação da referida súmula.
Os argumentos apresentados ao longo do texto fundamentam as conclusões da autora, que defende que o sucesso da intervenção mínima pressupõe, também, um mínimo de condições de aplicabilidade das normas, o que se obtém por meio de uma legislação técnica coerente, estruturação dos órgãos de jurisdição e aparelhamento dos mecanismos de execução das penas.
2. Aspectos Gerais das Súmulas Vinculantes
Originária do latim Summula, a palavra súmula significa sumário, restrito, podendo ser definida como um enunciado objetivo, sintético e conciso. (CAPEZ, 2005).
No âmbito dos Tribunais, a súmula é um resumo de todos os casos parecidos decididos da mesma maneira, que em regra, não possui caráter cogente, servindo apenas de orientação para as futuras decisões, a menos que passe a ter efeito vinculante, o que se tornou possível a partir da Emenda Constitucional nº. 45/04, a qual prevê, em seu art. 103-A, a possibilidade de uma súmula ter eficácia vinculante sobre decisões futuras, dispondo que:
O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§1º – A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
Ao atribuir-se efeito vinculante e não meramente facultativo, busca-se evitar que uma mesma norma seja interpretada de forma distinta para situações fáticas idênticas e com isso alcançar a celeridade processual.
A súmula vinculante, todavia, atribui ao órgão jurisdicional de instância superior a tarefa de dizer o direito em tese, em caráter genérico e universal, atribuição para a qual nunca esteve autorizado constitucionalmente, carecendo de legitimação democrática e recaindo em perigoso desvio de sua missão de dizer o direito no caso concreto, compondo os conflitos de interesse na exata medida de suas realidades.
Nestes termos, a súmula vinculante seria inconstitucional, pois, apesar de não excluir, constitui violação material de direito fundamental, pois esvazia o conteúdo jurídico do que está disposto no artigo 5º, XXXV e LIII.
Além disso, definir com precisão a quantidade de decisões para que sejam essas consideradas reiteradas não é tarefa fácil, assim como também não e fácil definir quando estaria consolidada uma jurisprudência dominante.
Desse modo, o bom senso e a razoabilidade devem guiar o intérprete, pois se não fosse assim, teria feito o legislador um sistema no qual toda e qualquer decisão do STF fosse vinculante.
3. A Súmula Vinculante nº 11 à luz dos princípios constitucionais fundamentais
Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os fundamentos da ordem jurídica, sendo um conjunto de bens e valores considerados bases de validade de todo o sistema jurídico.
Segundo o Ministro Marco Aurélio de Melo, os princípios possuem uma tríplice função: a primeira delas, de natureza informativa, tem como alvo o legislador; a segunda, de cunho normativo, é voltada para a sociedade com um todo e, por último, a função interpretativa, a qual está endereçada para os operadores do Direito.
O Direito existe como criação do homem, como emanação do pensar e viver em sociedade, destinado a garantir proteção a determinados bens jurídicos como a vida, a liberdade, a integridade física e mental, a saúde e a honra. É, pois, essencial à condição do homem livre.
Nesse diapasão, a Constituição de 1988 elenca, no rol de direitos individuais do seu art. 5º, importantes exigências que o Estado deve observar no desempenho de sua função punitiva, sob pena de desrespeitar tal condição, tais como garantias inerentes a: vedação em submeter qualquer pessoa a tratamento desumano ou degradante (inciso III), assegurando-se ao preso o respeito à integridade física e moral (inciso XLIX); observância do devido processo legal (inciso LIV) com todos os seus consectários, entre os quais o contraditório e a ampla defesa (inciso LV), o julgamento por autoridade competente (inciso LIII), a não admissibilidade de provas obtidas por meio ilícito (inciso LVI), a proibição de juízos ou tribunais de exceção (inciso XXXVII) e a consideração de que ninguém será reputado culpado senão antes do trânsito em julgado de sentença condenatória (inciso LVII), importando esta última em pressupor que a segregação do acusado, antes da sentença irrecorrível, somente se legitima em situações proporcionais previstas em lei; legitimidade material do direito de punir, tais como a reserva legal da definição de crimes e cominação de penas (inciso XXXIX), a individualização destas na medida da culpabilidade do infrator (incisos XLV e XLVI), a proibição de determinadas sanções, tais como a pena capital, a prisão perpétua, os trabalhos forçados, o banimento e as penas cruéis (inciso XLVII), a movimentação da competência prisional (incisos LXI a LXVI e LXVIII); e) execução da pena (incisos XLVIII e L), entre outros.
Vale, porém, ressaltar, que a própria Constituição Federal, em seu art. 144, prevê que “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio através da polícia (…)” e para consecução desses objetivos, muitas vezes é necessário o uso da força e de instrumentos de repressão, tais como as algemas.
É cediço que as algemas constituem instrumento fundamental na atividade policial, já que fazem parte do conjunto mínimo de equipamentos de segurança que um policial deve ter ao exercer suas funções. Em vista disso, um relevante aspecto referente ao tema diz respeito à substituição das algemas pela escolta policial, haja vista que para cada preso algemado conduzido deve ser empregado, no mínimo, um policial militar, o que seria inviável tendo em vista a deficiência de pessoal dos órgãos policiais.
Mas as críticas à súmula vinculante nº. 11 referem-se sobretudo ao fato de que o Supremo Tribunal Federal estaria “legislando”, desvirtuando-se de seu papel de garantidor da ordem constitucional e aplicador do jus puniendi àqueles que violam direitos fundamentais.
O texto carregaria em si, portanto, o vício de inconstitucionalidade por quebra do princípio do pacto federativo e da regra da separação dos poderes, embora o STF estivesse legislando para proteger um direito humano fundamental, tendo em vista o descaso normativo em regulamentar a questão das algemas.
Alguns estudiosos do assunto chegam a frisar que a inconstitucionalidade da Súmula n. º 11 verifica-se no trecho que diz: “(…) justificada a excepcionalidade por escrito“, posto que não existe lei em vigor no país que traga essa previsão, tendo o Supremo criado uma norma, inovado, estipulando sanção civil, administrativa e penal em caso de descumprimento.
Entretanto, concorda-se que o guardião da Constituição não poderia ficar à espera da regulamentação federal que nunca ocorreu. Seria uma irresponsabilidade do STF se omitir ao julgar situações nos casos concretos que chegam à sua porta, uma vez que esse não deve ser o perfil do magistrado do século XXI.
Por fim, outra crítica à súmula relaciona-se ao fato de que, a partir dela, o uso ilegal de algemas pelas autoridades que compõem o sistema de segurança pública provoca a invalidação do ato de prisão, fulminando-o de nulidade, ou seja, estar-se-ia presenteando o infrator com a liberdade pela falha dos agentes do Estado, juízes ou profissionais de segurança pública e, como se sabe, a prisão é ato vinculado e não discricionário e as hipóteses para sua revogação ou relaxamento encontram-se devidamente regradas pelas leis penais.
Ressalte-se que antes da edição da Súmula Vinculante nº. 11, alguns diplomas legais, ainda que não regulassem totalmente a matéria, já traziam espécies de orientações a serem seguidas na utilização das algemas nas prisões de infratores e suspeitos, como veremos a seguir.
4. O uso de algemas no processo penal
Dispõe o art. 199 da Lei de Execução Penal – Lei nº 7.210, de julho de 1984, que “O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”. No entanto até hoje não existe esse decreto federal que cuide da matéria.
De qualquer modo, nosso ordenamento jurídico-penal contém alguns repositórios legais que prevêem o uso da força no ato de prisão e durante o processo. Por exemplo, o art. 284 do Código de Processo Penal preconiza que “não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”; o art. 292 diz que “se houver… resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência…”.
O art. 301 do mesmo diploma legal também trata que “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito“, ao passo que o art. 474 dispõe que “não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do Júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes”.
O Código Penal Militar também prevê, em seu art. 234: “O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas”.
Saliente-se que tramita, atualmente, na Câmara dos Deputados, uma série de projetos de lei acerca do uso de algemas.
Há, inclusive, um Projeto de Decreto Legislativo (PDC-853-2008) objetivando sustar a aplicação da Súmula Vinculante n.º 11.
O PL 3889/2008 dispõe sobre o emprego de algemas na condução de presos e detidos, enquanto que o PL 3888/2008 altera a redação do inciso III do art. 13 e do art. 301 do CPP, sobre a utilização de algemas na condução do preso em mandados de prisão expedidos pelas autoridades judiciárias e nas prisões em flagrante delito.
Outro Projeto de Lei que merece destaque é o 3746/2008, que libera o uso de algemas para os idosos, gestantes, presos e detidos que se apresentem voluntariamente e não apresentem indícios de fuga ou riscos à segurança.
No Senado Federal, por sua vez, destaca-se o Projeto de Lei 185/2004, que regulamenta o emprego de algemas, sem distinção de fase, seja investigativa, processual ou de execução penal.
Entretanto, embora não faltem projetos de lei sobre o tema, a morosidade das nossas Casas Legislativas não permitiu que nenhum destes fossem apreciados e convertidos em lei, daí porque o Supremo Tribunal antecipou-se a fim de regulamentar a matéria, como já exposto acima.
5. Considerações acerca do princípio da dignidade da pessoa humana
Costuma-se dizer que a base de todos os princípios é o da dignidade da pessoa humana, entendida como o atributo imanente ao ser humano para exercício da liberdade e de direitos, constituindo-se um mínimo que todo ordenamento jurídico deve assegurar e que somente pode sofrer limitações quando ofender outros direitos fundamentais.
Mesmo tendo violado as normas de convivência e de harmonia social e a integridade humana de outrem, o acusado também merece os cuidados do poder público competente, pois um dia retornará ao convívio social. É esse o papel ressocializador do direito penal, ou pelo menos deveria ser.
É bem verdade que para colocar em prática o princípio da dignidade humana é preciso motivar as políticas públicas, de um lado diminuindo o avanço da criminalidade e, de outro, garantindo a reinserção social dos detentos.
No que se refere à questão das algemas, esse princípio é constantemente violado, pois, ao se algemar-se um acusado desnecessariamente, os juízes da mídia e da sociedade o condenam antecipadamente, ou seja, atentam não apenas contra a dignidade humana, mas contra os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência.
Pode-se dizer, então, que o conceito de dignidade humana abriga um conjunto de valores que não está restrito, unicamente, à defesa dos direitos individuais do homem, mas abarca uma série de direitos, liberdades, garantias e interesses que dizem respeito à vida humana, sejam esses direitos pessoais, sociais, políticos, culturais, ou econômicos, dele decorrendo outros importantes princípios penais, tais como o da legalidade, insignificância, adequação social, fragmentariedade, subsidiariedade e proporcionalidade.
Destarte, um sistema penal humanitário inclui a implementação de atividade policial respeitosa, de um processo penal constitucional e de um sistema prisional digno.
6. A atuação da mídia, da Polícia e do Ministério Público acerca do uso de algemas
A polêmica acerca da utilização indiscriminada de algemas pela polícia e o judiciário volta a ser tema de decisões judiciais e acaloradas discussões principalmente após a prisão de importantes nomes do cenário político brasileiro.
O fato é que as algemas ora são vistas como símbolo de repressão e humilhação, ora como fundamentais na segurança tanto do conduzido quanto do condutor.
O Estado atua com o chamado jus puniendi, ou seja, o direito que tem de punir condutas que são consideradas ilícitas. No entanto, a recente prisão de diversos acusados, pertencentes às mais altas classes da sociedade por suspeita de prática de crimes como lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, evasão de divisas, corrupção ativa, entre outros, recebeu ampla cobertura da mídia e causou sentimentos e manifestações diversos quanto à necessidade do uso da algemas.
O principal argumento contrário à utilização de algemas em tais casos está no baixo risco de periculosidade e possibilidade de resistência à prisão ou tentativa de fuga, ao contrário do que ocorre com traficantes, seqüestradores, homicidas, etc.
Tal argumento merece críticas, pois não se pode usar como critério a natureza do crime para se definir se há perigo de fuga ou à integridade física de outrem. Não se pode afirmar que um homicida sempre tenta fugir no ato de prisão, assim como também não há como saber se um criminoso do colarinho branco incontestavelmente se conformará com sua constrição, sem tentar adotar alguma medida violenta. Isso seria discriminação, ato abominado por nossa Carta Magna, reforçando o preconceito de classes.
Mas as notícias sensacionalistas das infrações penais e a impetuosidade das primeiras investigações revertem à presunção de inocência para transformar o simples suspeito ou mero indiciado em criminoso, seja ele de que classe for.
A imprensa, principalmente a mídia televisiva, costuma basear-se somente nas fontes iniciais, isto é, a polícia e o Ministério Público, não se interessando em analisar o lado do investigado, que mantém contra si a presunção de culpa. Cria-se, então, um juízo paralelo na sociedade, capaz de pressionar os órgãos jurisdicionais e decidir sobre as condutas alheias.
Rotineiramente vimos Delegados de Polícia extrapolando nos comentários dados em entrevistas, comprometendo a respeitabilidade e confiabilidade no trabalho da polícia.
Promotores de Justiça e Procuradores da República também costumam comentar na mídia sobre os fatos apurados, embora sejam agentes de controle externo da atividade judicial, que tem, entre os seus mais altos objetivos, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. O Ministério Público por vezes esquece que seu papel não é de mero acusador, mas de zelador dos direitos humanos.
Com efeito, o uso indiscriminado e arbitrário de algemas é inadmissível em um Estado Democrático de Direito, pois tal instrumento deve restringir-se a conter pessoas que, efetivamente, ponham em risco a segurança alheia, seja patrimonial ou pessoal, ou a ação da justiça.
Aliás, um dos motivos para a edição da Súmula Vinculante nº. 11, segundo o Presidente do STF, ministro Gilmar Mendes (apud DOTTI, 2008, p.26-27), era justamente evitar o uso de algemas para exposição pública do preso. “A Corte jamais validou esta prática, que viola a presunção da inocência e o princípio da dignidade humana“, afirmou. Segundo ele, em geral, a utilização de algemas já é feita com o propósito de violar claramente esses princípios. O objetivo é “algemar e colocar na TV“, afirmou.
Assim, a Súmula Vinculante nº. 11 nasce não só para regulamentar o uso das algemas, como também para por fim ao sensacionalismo feito pela mídia quando uma prisão ou outro ato processual é realizado.
7. A aplicação da Súmula n.º 11 e a realidade jurisprudencial brasileira
Antes da edição da Súmula Vinculante nº. 11 já se verificavam em nossa jurisprudência importantes decisões acerca do uso de algemas, das quais podemos destacar o HC 71.195 – 2ª Turma – Rel. Min. Francisco Rezek, j. 25.10.94, onde se decidiu que o emprego de algemas em plenário do Júri não constituiu constrangimento ilegal porque, no caso concreto, a medida se revelou imprescindível à ordem dos trabalhos e à segurança dos presentes, posto havia informações de que o réu pretendia agredir o Juiz-Presidente e o Promotor de Justiça; o RHC 56.465 (2ª Turma – Rel. Min. Cordeiro Guerra, j. 05.09.78), em que se entendeu que o uso de algemas em audiência para inquirição e testemunhas é justificado para se evitar a fuga do preso e preservar a segurança das testemunhas, inserindo-se a decisão no âmbito da condução pelo juiz dos trabalhos desenvolvidos na audiência; e o REsp n.º 571924 (2ª Turma – Rel. Min. Castro Meira, j. 24.10.2006), no qual o Superior Tribunal de Justiça isentou a União de pagar indenização por danos morais a um empresário que foi algemado pela Polícia Federal e depois foi absolvido das acusações de contrabando e descaminho, por entender que se demonstra razoável o uso de algemas, mesmo inexistindo resistência à prisão, quando existir tumulto que o justifique.
Percebem-se decisões em que o uso de algemas é admitido inclusive contra menores infratores nos casos de resistência à prisão, desde que a sua conduta cause risco à integridade física dos executores da lei, consoante entendimento do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de Goiás, segundo o qual “Não há falar-se em falta de motivação ou nulidade processual, por ofensa aos princípios da não culpabilidade, ampla defesa e devido processo legal, se a decretação da internação provisória do paciente, ao qual é imputado atos infracionais, foi editada por autoridade competente e decorre da garantia da ordem pública e segurança do próprio adolescente, seja pela gravidade do ato infracional ou pela repercussão social, observados, portanto, requisitos impostos nos arts. 108, 122, 174 e 183 do Estatuto da Criança e Adolescente”.
Analisando-se os precedentes do STF, bem como o que foi discutido na sessão em que se aprovou o texto da súmula vinculante nº. 11, tem-se que na verdade as preocupações maiores se relacionavam com a divulgação da imagem do réu algemado, principalmente na execução de prisões em flagrante e ordens de prisão preventiva ou temporária.
A parte final da súmula sob análise prevê, inclusive, a responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade que usar arbitrariamente as algemas durante as prisões ou outros atos processuais.
Administrativamente, o uso arbitrário de algemas configura uma infração passível de punição proporcional a gravidade, podendo, inclusive, acarretar a demissão do agente público.
Civilmente, pode gerar um ilícito, capaz de gerar responsabilidade civil, dando ensejo a uma indenização hábil a reparar o dano físico e moral provocado ao preso.
Penalmente, configura abuso de autoridade, regulado pela Lei n.º 4.898/65, que trata do direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, nos casos de abuso de autoridade, consistindo este em “submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei”.
A matéria da súmula vinculante n.º 11 também foi enfrentada pelo STF no HC n.º 89.429/RO da 1.ª Turma, que teve como relatora a Ministra Carmen Lúcia, com a seguinte ementa:
HABEAS CORPUS. PENAL. USO DE ALGEMAS NO MOMENTO DA PRISÃO. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA EM FACE DA CONDUTA PASSIVA DO PACIENTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. PRECEDENTES. 1. O uso legítimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo. O emprego dessa medida tem como balizamento jurídico necessário os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Precedentes. 2. Habeas corpus concedido.
Todavia, a “gota d’água” para a elaboração da súmula vinculante ora comentada foi o HC 91.952 (Plenário). Rel. Min. Marco Aurélio – j. 07.08.08, em que se anulou um julgamento efetuado pelo Júri popular da cidade de Laranjal Paulista, em 2005, porque o réu, um pedreiro acusado de homicídio, ficou algemado durante a sessão de julgamento. O principal fundamento para a decisão foi a potencial influência da visão do réu algemado sobre os jurados, que, leigos que são, poderiam fazer um pré-julgamento e entender que o réu era culpado.
Na ocasião, afirmou-se que não existiam dados concretos que pudessem indicar que, pelo perfil do acusado, houvesse risco aos presentes caso ele permanecesse em plenário sem algemas, razão pela qual se considerou violada sua dignidade humana.
Desde então, a Suprema Corte firmou a compreensão de que o uso de algemas, por se tratar de medida coercitiva excepcional, é restrita aos casos de a) resistência à prisão, b) fundado receio de fuga ou c) perigo à integridade física do preso e/ou de terceiros, sob pena de responsabilização civil, disciplinar e penal do agente público coator, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
8. Conclusão
A Súmula Vinculante nº. 11 tem sido vista por uns como uma vitória do Estado Democrático de Direito sobre o Estado de Polícia. Por outros, como manifesta inconstitucionalidade.
A verdade é que a falta de leis sobre o tema fez com que o Supremo Tribunal Federal decidisse “legislar” e criar regras a fim de combater o uso arbitrário e indiscriminado das algemas nas atividades policiais e no judiciário.
Mas as críticas, como não poderia deixar de ser, acumulam-se, levantando discussões não apenas do ponto de vista constitucional e jurídico, mas do ponto de vista social.
Sabe-se que o ato de prisão constitui-se um momento de tensão, não havendo como prever qual será a resposta de uma pessoa ao saber que será detida, nem evitar uma possível reação desesperada, o que pode levar a conseqüências piores. Nesse contexto, destacam-se os policiais, que devem cuidar de sua segurança e a dos detidos e ainda analisar as ações que possam ensejar o abuso de autoridade da condução destas mesmas pessoas.
Ora, às vezes o uso de algemas é legítimo e necessário, lembrando que o ordenamento jurídico brasileiro permite o uso da força em situações que a requerem. O policial que não adota procedimentos de segurança põe em risco não apenas sua integridade física, mas também a de terceiros, ensejando, inclusive, a responsabilização do Estado por falta de cautela.
Não se defende aqui o uso irrestrito de algemas, mas sim que estas devem ser usadas com a finalidade de prevenir, desestimular e coibir a reação do preso ou conduzido, através de sua imobilização e contenção, independentemente do enquadramento típico-penal da conduta censurada, pois a avaliação do estado anímico do réu-investigado é feita no ato da prisão e não só pelos fatos pretéritos cometidos.
O que se critica é o abuso em relação ao uso de algemas, prisões, vexames e constrangimentos contra indivíduos suspeitos, que às vezes nem chegaram a ser indiciados.
Assim, se não há risco de lesão ou fuga daquele que foi apreendido ou risco de agressão aos envolvidos na captura e transporte do preso, algemar alguém seria nada menos do que um ato simbólico de humilhação, cominando-lhe uma pena antecipada, desrespeitando os princípios constitucionais e, em especial, o da dignidade da pessoa humana.
A intenção da súmula é, notoriamente, evitar a utilização das algemas nas prisões para os delinqüentes não habituais e menos perigosos, devendo ficar restrita aos casos graves, em que a retirada do delinqüente do meio social é medida necessária e urgente.
Defende-se, pois, a harmonização entre as garantias constitucionais e a eficiente concretização das finalidades do Direito Penal, a fim de mudar a estereotipada visão de que o sistema carcerário brasileiro é um dos piores do mundo devido à patente violação dos direitos humanos. A edição de leis às quais não se consegue dar um mínimo de efetividade banaliza o direito penal e limita a sociedade ao pensamento de que a solução para a criminalidade está no fortalecimento das leis, quando na verdade se sabe que o problema é eminentemente social.
Bacharel em Direito e Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Federal do Amazonas; Assessora Jurídica junto ao Tribunal de Justiça do Amazonas
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